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O financiamento dos serviços de água e esgoto: análise do passado recente (2016-2019) e desafios da diversificação de fontes para chegar à universalização* * Artigo recebido em 29 de janeiro de 2021 e aprovado em 20 de setembro de 2021. Não reflete necessariamente a opinião do Banco. Os autores agradecem os comentários de Laura Bedeschi, Rômulo Tavares Ribeiro e dos pareceristas anônimos, naturalmente isentando-os de erros e omissões remanescentes.

The financing of water and sewage services: an analysis of the recent past (2016-2019) and challenges of diversifying sources to achieve universalization

Resumo

O artigo analisa como os principais prestadores dos serviços de água e esgoto se financiam, usando informações das demonstrações financeiras de 2016 e 2019. A caracterização das diferentes fontes de recursos junto com a comparação de sua participação nas dívidas das empresas entre os períodos tem como objetivo explicitar como os prestadores têm se financiado e identificar estratégias, bem como apontar desafios para a alavancagem futura dos investimentos. As emissões de debêntures, que no período se elevaram significativamente, foram especificamente analisadas. Diante da necessidade de mais do que dobrar a média dos investimentos realizados de 2007 a 2019 para que seja possível universalizar os serviços no país até 2033, como prevê o Plano Nacional de Saneamento Básico e o novo marco legal do saneamento, o artigo busca compreender qual o tipo de fonte de recurso é mais adequada a cada tipo de investimento dentro do setor, defendendo sua complementaridade na consecução dos investimentos para universalização. Por fim, aponta-se algumas perspectivas e desafios para a elevação dos investimentos com vistas à universalização.

Palavras-chave:
Saneamento básico; Água e esgoto; Infraestrutura; Debêntures; Financiamento de longo prazo; BNDES; Caixa Econômica Federal

Abstract

Using information from the 2016 and 2019 financial statements, the article analyzes how the main providers of water and sewage services in Brazil finance themselves. The characterization of each of the different sources together with the comparison of their shares in the companies' debts aims to explain how providers have financed themselves, identifying strategies and pointing out challenges for the future leverage of investments. Specifically, the issuances of debentures, which rose significantly in the period, were analyzed. Faced with the need to more than double average investments made from 2007 to 2019 in order to universalize services in the country by 2033, as given in the National Basic Sanitation Plan and the new legal framework for sanitation, the article seeks to understand which type of funding source is most suitable for each type of investment within the sector, defending their complementarity in achieving universalization investments. Finally, some perspectives and challenges are pointed out for increasing investments with a view to universalization.

Keywords:
Basic sanitation; Water and sewage; Infrastructure; Debentures; Long-term financing; BNDES; Caixa Econômica Federal

Introdução

O saneamento básico é um setor de infraestrutura econômica e social altamente intensivo em externalidades, isto é, em benefícios econômicos que não são passíveis de serem capturados nas receitas dos prestadores de serviço.

A coleta e o tratamento de esgoto podem ser usados como exemplo: o benefício é coletivo para a sociedade, embora o pagamento pelos serviços seja feito individualmente. O abastecimento de água também é um serviço essencial, embora seus benefícios sejam percebidos individualmente de maneira mais direta, o que facilita sua cobrança e, assim, a expansão de sua rede.

Esses serviços agregam benefícios à saúde, ao meio ambiente, à produtividade do trabalho e da educação infantil, ao turismo, entre outras coisas, agindo diretamente na diminuição das desigualdades sociais. Estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde) indicam que para cada dólar investido em saneamento se ganha cerca de USD 5,5 em economia de gastos com a saúde e outras externalidades (WHO, 2019WORLD HEALTH ORGANIZATION. Sanitation. 2019. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/sanitation. Acesso em: 8 jul. 2021.
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)

Portanto, é preocupante o déficit desses serviços no Brasil. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2018, 84% das residências brasileiras tinham fornecimento de água, 53% contavam com coleta de esgoto e 46% do esgoto gerado recebia tratamento. A desigualdade regional no país é imensa, tendo as regiões Norte e Nordeste índices de atendimento de água e esgoto bem inferiores à média nacional, como será visto na Figura 1.

Figura 1
Déficits em saneamento – Brasil e regiões

Os investimentos feitos para superar tal déficit, ainda que tenham tido seu patamar elevado a partir de 2009, não chegam à metade do necessário para atingir a universalização até 2033, conforme preconiza o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Tais investimentos são concentrados geograficamente (principalmente nas regiões Sudeste e Sul) e pouco alavancados, refletindo a heterogeneidade de capacitações – técnicas, financeiras e institucionais – dos prestadores de serviço do setor.

Assim, é preciso elevar e desconcentrar os investimentos, além de aumentar a participação do capital de terceiros1 1 Capital de terceiros diz respeito aos recursos de financiamento que podem ser acessados pelas empresas e entes públicos de forma a contribuir para a implementação de projetos. Este tipo de fonte é importante em projetos de longo prazo, pois permitem que sejam captados grandes volumes de recursos para aplicação em investimentos, que não seriam possíveis de serem acumulados no mesmo intervalo de tempo apenas pela geração de receita dos serviços prestados. Em contrapartida, o repagamento destes recursos, uma vez que é parcelado e diluído no tempo, é possível de ser realizado a partir do fluxo de caixa dos beneficiários do crédito. no financiamento dos projetos. Duas frentes de trabalho são relevantes: manter e/ou elevar os investimentos dos prestadores que já têm capacidade de elaborar e implementar projetos financiados com recursos próprios e onerosos2 2 Recursos onerosos são aqueles que precisam ser repagados, como empréstimos, financiamentos e emissão de títulos de dívida (debêntures). Já os recursos não onerosos são aqueles que não precisam ser repagados, como recursos do Orçamento Geral da União e de fundos não reembolsáveis. ; e trazer prestadores de serviço capacitados para atuar nas localidades em que o atual prestador não possui essa capacidade, bem como não consegue o acesso a esses recursos, realizando investimentos muito aquém do necessário.

Para que tais frentes obtenham sucesso em elevar os investimentos, também é fundamental a disponibilidade de fontes de recursos adequados às características dos investimentos no setor: capital intensivo, com longos prazos de maturação e altas externalidades.

Este artigo visa avaliar as fontes de recursos existentes (bancos públicos, mercado de capitais, agências multilaterais, títulos estrangeiros, bancos comerciais, etc.), suas características e as formas como vêm sendo usadas pelos prestadores de serviços.

É feita uma análise dos investimentos do país, seguida de uma avaliação da estrutura de dívida dos prestadores de serviços públicos e privados que são capazes de acessar recursos de financiamento, bem como dos dados de emissões no mercado de capitais nos anos recentes.

O objetivo é ter um diagnóstico do financiamento do setor para compreender melhor as oportunidades e os desafios quanto à oferta de funding adequado para buscar as metas de universalização do serviço, estabelecidas pela Lei 14.026/2020 (novo marco do saneamento) de atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033. Como desdobramento, também será analisado o papel dos recursos públicos, onerosos e não onerosos, no financiamento do setor.

1 Panorama dos serviços de água e esgoto

Esta seção apresenta as principais características econômicas e regulatórias do setor, que influenciam a viabilização do financiamento ao investimento.

Os serviços de saneamento constituem um monopólio natural. A escala das redes de captação e distribuição faz com que a exclusividade da prestação dos serviços de água e esgoto seja uma condição de sua viabilidade econômica. Como é típico de serviços essenciais, a demanda é inelástica – em razão da água ser um bem essencial e, logo, menos sujeita a mudanças de preferências dos consumidores. O setor ainda tem receitas pulverizadas, uma vez que a cobrança é feita domicílio a domicílio. Isso explica por que nesta pandemia o setor tenha sido pouco atingido pela queda geral da demanda. Seus riscos estão mais associados a crises de ofertas (seca). Mas no geral os negócios no saneamento são marcados pela estabilidade.

No Brasil, a titularidade desses serviços pertence aos municípios, mas seu exercício pode se dar de duas formas. Sendo o interesse local, o exercício é exclusivamente do município. Se há interesse comum, o entendimento consolidado é de que a titularidade deve ser exercida de forma compartilhada, entre municípios e estado organizados em uma estrutura de governança interfederativa, embora em muitos casos essa instância de gestão compartilhada ainda não tenha sido estabelecida.

De acordo com a Lei de Saneamento (Lei n. 11.445, de 05 de janeiro de 2007), o titular dos serviços é responsável pelo planejamento, pela prestação, e pela regulação dos serviços. Na prestação dos serviços, é possível que a operação seja direta pelo titular – através de autarquias ou empresas públicas – ou por meio de concessões a empresas do setor público ou privado. Uma vez o serviço concedido, cabe ao ente que exerce a titularidade estabelecer as metas de qualidade e custos de prestação do serviço, por meio de órgão regulador que acompanhe o desempenho, frente aos indicadores estabelecidos e evite lucros excessivos, eventualmente, punindo o descumprimento das metas pactuadas.

O Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) registrou em 2018 a existência de 26 Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), 1.435 municípios prestadores e 107 empresas privadas, totalizando 1.568 prestadores de serviço. Muitos prestadores privados se agregam em grupos econômicos, havendo no Brasil 5 holdings3 3 BRK Ambiental, SAAB – Águas do Brasil, Iguá, GS Inima e AEGEA que concentram o mercado privado do setor.

As CESBs são os principais atores do mercado. Juntas, atendem a 69% da população urbana brasileira com serviços de abastecimento de água e a 65% com serviços de esgoto. As demais formas de prestação dos serviços de água e esgoto são por meio de autarquias e empresas municipais (21% da população atendida com água e 23% da população atendida com esgoto) e, em menor proporção, de empresas do setor privado (10% da população atendida com água e 11% da população atendida com esgoto) (SNIS, 2019). A participação privada tem crescido. De 2007 a 2019, um levantamento da ABCON (2020)ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS CONCESSIONÁRIAS PRIVADAS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUA E ESGOTO – ABCON. Panorama da participação privada no saneamento: tempo de avançar. 2020. Disponível em: https://www.abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2020/08/Panorama2020-baixa-FINAL.pdf. Acesso em: 17 dez. 2020.
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mostra que o número de municípios atendidos pelo setor privado aumentou de 125 para 291.

Em relação ao planejamento, única atribuição indelegável do titular dos serviços, todo município deve ter um plano de saneamento. Com as mudanças trazidas pela Lei 14.026/2020, passou a também ser possível que ele ocorra no âmbito regional, quando houver prestação regionalizada. Segundo levantamento feito pelo IBGE em 2018, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 41,54% tinham plano de saneamento básico definido, enquanto 27,13% estavam com a política em fase de elaboração e 31,33% não tinham qualquer encaminhamento. O Decreto n. 7.217, de 21 de junho de 2010, que regulamentou a Lei n. 11.445/2007, buscando incentivar a atividade de planejamento, estipulou que, a partir de 2014, a existência de plano de saneamento seria condição de acesso a recursos federais (orçamentários ou de financiamento). Essa previsão tem sido repetidamente prorrogada, sendo que atualmente o prazo limite é 31/12/2022.

A regulação, por sua vez, ainda é incipiente, havendo muitos municípios não regulados e grande heterogeneidade em relação às capacidades institucionais dos entes reguladores. A Associação Brasileira de Agências Reguladoras mapeou 57 agências atuando nos serviços de água e esgoto: 6 de consórcios de municípios, 1 distrital, 25 estaduais e 23 municipais (ABAR, 2020ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGÊNCIAS DE REGULAÇÃO – ABAR. Regulação Saneamento Básico. 2020. Disponível em : file:///D:/Users/mtm/Downloads/PROJETO%20REGULAC%CC%A7A%CC%83O%20SANEAMENTO%20BA%CC%81SICO%20-%2008DEZ2020_compressed.pdf. Acesso em: 17 dez. 2020). Essas agências abrangem cerca de 3.000 municípios, de um total de 5.570 municípios brasileiros. Mais ainda, a atividade de regulação atinge principalmente as CESBs e empresas privadas, sendo menos de 10% dos serviços municipais regulados.

Em termos de sustentabilidade financeira, o setor tem um panorama híbrido. De um lado, a demanda estável e as receitas pulverizadas propiciam estabilidade aos negócios. Ao contrário de outros serviços públicos essenciais, como a mobilidade, muitos prestadores de serviços prescindem dos subsídios externos à prestação, sendo capazes de obter sustentabilidade econômico-financeira e investir contando apenas com as receitas provenientes de suas tarifas. Essa sustentabilidade depende da capacidade de pagamento da população atendida, do tamanho do déficit de atendimento a ser superado, do prazo dos investimentos a serem feitos para superar esse déficit e da eficiência dos prestadores de serviços.

De outro, os serviços são essenciais, precisando ser prestados independentemente de sua rentabilidade. Como o déficit de atendimento ainda é significativo, são altas as necessidades de investimentos. Isso indica que é preciso em alguns casos ter subsídios para conferir sustentabilidade econômica à expansão e mesmo à operação do setor, algo justificável com facilidade em razão de suas elevadas externalidades. Os subsídios podem ocorrer internamente à prestação de serviços (tarifários), quando as receitas de prestação em uma localidade permitem a viabilização da prestação em localidades menos rentáveis, ou externamente (fiscais), através do aporte de recursos não onerosos nos projetos – via Orçamento Geral da União (OGU) ou de fontes de financiamento privilegiadas, como os fundos de desenvolvimento regionais.

Há um cenário heterogêneo em relação às capacidades técnicas, institucional e econômico-financeiras dos prestadores. Entre as CESBs, há desde empresas de capital aberto até algumas que dependem de aportes mensais de seus estados controladores para dar conta de suas obrigações correntes de custeio. No setor privado, ainda que a sustentabilidade financeira seja indispensável, os principais grupos do setor também diferem em suas estratégias de negócios e captação.

Após uma análise mais geral dos investimentos em abastecimento de água e esgotamento sanitário no país, o artigo se concentrará nas CESBs e nos grupos privados que acessam recursos de financiamento oneroso diretamente.

2 Investimentos em abastecimento de água e esgotamento sanitário

Olhando o acesso aos serviços de abastecimento de água e esgoto por uma ótica regional, é possível notar não apenas o tamanho considerável do déficit ainda persistente, mas também a desigualdade substancial entre as regiões. Como se vê na Figura 1, as regiões Norte e Nordeste possuem índices relativos aos serviços de abastecimento de água e esgoto bastante inferiores à média nacional e às outras regiões do país. Além disso, para os serviços de coleta e tratamento de esgoto, apenas Sudeste e Centro-Oeste se encontram acima da média nacional.

Para superar o déficit nacional em saneamento, o Plansab estimou que até 2033 são necessários investimentos de R$ 142 bilhões em água e R$ 215 bilhões em esgoto, uma média de R$ 27,6 bilhões por ano, a preços de 20194 4 Valores necessários para atingir até 2033 metas de atendimento de 99% de abastecimento de água, 92% de acesso ao esgotamento sanitário e 93% de tratamento do esgoto coletado. . Como se vê no Gráfico 1, que trata dos investimentos anuais nos serviços de água e esgoto entre 2007 e 2019 (a preços de 2019), o investimento realizado foi de R$ 13 bilhões em média. Ou seja, para atingir a média anual necessária, teriam que mais do que dobrar. Mais do que isso, mesmo nos anos em que mais se investiu na série, ainda assim os investimentos ficaram mais de R$ 12 bilhões aquém do necessário.

Gráfico 1
Investimentos em saneamento (água e esgoto) – Brasil 2007 a 2019 (R$ bilhões – valores constantes de 2019)

O problema se torna mais sensível ao notar que a distribuição dos investimentos não está alinhada à concentração dos déficits, como mostra a Tabela 2 a seguir.

Tabela 1
Participações nos déficits e nos investimentos, por região (%)
Tabela 2
Participação das fontes de recursos no investimento total em saneamento no Brasil (2009-2019)

As regiões Norte e Nordeste têm percentuais de atendimentos bem abaixo das médias nacionais (ver Figura 1). Mais do que isso, conforme mostra a Tabela 1, as participações dessas regiões nos déficits de serviços de saneamento são sistematicamente superiores aos seus percentuais da população. Ou seja, o percentual de pessoas sem acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário nestas regiões é maior do que a média nacional, isto é, há concentração do déficit nas regiões Norte e Nordeste. No mesmo sentido, as participações nos investimentos têm ficado abaixo tanto das participações nos déficits quanto na população (Tabela 2).

Assim, o problema é de duas ordens: há subinvestimento em relação ao necessário para obter as metas de universalização do Plansab e os investimentos que são feitos são concentrados geograficamente nas regiões com menor participação no déficit, indicando que as disparidades regionais de acesso existentes irão aumentar.

Os dados do SNIS (2019) sugerem que a região Sudeste é a única que tem investido para obter a universalização em 2033. Considerando que o investimento total para o país estimado como necessário pelo Plansab é um pouco mais do que o dobro (2,12 vezes) da média do investimento efetivo, e que a região também tem investido perto do dobro de suas participações nos déficits de água (2,07 vezes) e esgoto (2,01 vezes), os investimentos na região seguem grosso modo no ritmo necessário para obter a universalização. O mesmo ocorre em relação ao abastecimento de água nas regiões Sul e Centro-Oeste.

Uma explicação para esse cenário de concentração de investimentos onde não se concentram os déficits de atendimento está na heterogeneidade de capacidades técnicas, institucional e econômico-financeiras do principal tipo de prestador dos serviços de saneamento, que são as CESBs, responsáveis pelo atendimento de quase 70% da população brasileira. Entre as 26 CESBs, há empresas que precisam de aportes mensais de seus estados controladores para dar conta de obrigações correntes de custeio. Mas também há treze empresas que acessam recursos de financiamento no mercado privado e público através de suas tarifas, em particular três empresas que são de capital aberto (Sabesp, Copasa e Sanepar).

Os estados dessas três estatais foram os que mais investiram de 2015 a 2019: São Paulo, Paraná e Minas Gerais (37,4% da população) realizaram mais da metade (52,4%) dos investimentos nacionais no período. São Paulo (21,9% da população brasileira), em especial, fez 37,9% dos investimentos totais, em razão de sua CESB (Sabesp) e também da relevante participação privada no Estado.

Mesmo nas regiões em que são altos os índices de atendimento, há investimentos relevantes a fazer, como em redução de perdas e de intermitência no abastecimento de água e aumento da coleta e do tratamento de esgoto. De todo modo, para reduzir a concentração dos investimentos, o caminho deve ser o de elevar os montantes realizados pelos prestadores que menos investem, ao menos mantendo os patamares dos que já têm capacidade de executar projetos.

A capacidade de geração de caixa, obtenção de recursos onerosos e de realizar desembolsos direcionados a investimentos – isto é, implementar projetos – também é um bom indicador da qualidade técnica, operacional, financeira e de gestão das empresas. Isso se reflete na estratificação dos investimentos por fontes de recursos, como mostra a Tabela 2 abaixo.

Os recursos não onerosos (orçamentários) na média de 2009 a 2019 respondem pelo financiamento de 15,1% do investimento total realizado, montante que deve ser reduzido nos próximos anos, se mantida a orientação de restrição de gastos existente na política econômica. Como os recursos próprios representaram mais da metade (55,4%) das fontes e os recursos onerosos, 29,5%, percebe-se que as empresas que realizam investimentos são justamente aquelas mais capazes de gerar receitas próprias e de acessar os mercados de crédito e de capital.

Para um setor de prazos longos de implantação de projetos, que ainda tem alto déficit de atendimento, e boa capacidade de geração de receitas, o saneamento é em geral pouco alavancado. Como pode ser visto no Gráfico 1, em média, apenas um terço dos investimentos foram realizados com recursos onerosos de 2007 a 2019. Isso vale mesmo para as empresas que acessam recursos onerosos e que respondem pela maioria dos investimentos. Assim, para aumentar e desconcentrar o investimento, é preciso também elevar a participação dos recursos onerosos no seu financiamento, tendo em conta os longos prazos de implantação e retorno e a mencionada escassez de recursos não onerosos.

De um lado, mesmo as empresas que já acessam esse tipo de recursos precisam fazer mais investimentos ou buscar parcerias para tal. De outro, é necessário atrair atores mais capacitados para a prestação dos serviços nas localidades mais deficitárias no acesso aos serviços e na realização corrente de investimentos.

Neste último ponto, para além de seu papel usual de financiador, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vem atuando, desde 2016, na estruturação de projetos no saneamento, buscando atrair mais capital privado nacional e estrangeiro para o setor. Os projetos já contratados (desde 2016) e em andamento podem resultar em investimentos vultosos de mais de R$ 50 bilhões em 35 anos, concentrados nos primeiros dez anos das concessões.

Assim, o cenário é de necessidade de manutenção e expansão dos investimentos dos prestadores que já os realizam combinada com expansão do setor privado – tanto através de parcerias público-privadas quanto com novas concessões, podendo ainda incluir a alienação de controle acionário de algumas das estatais. Para que os investimentos nesse contexto possam ser realizados, diversidade de fontes e financiamento de longo prazo são extremamente relevantes.

Hoje, há o desejo de agregar o setor privado tanto na prestação quanto no financiamento. Mas a multiplicidade do setor – que tem titularidade municipal, local ou compartilhada e diversos arranjos de prestação – torna improvável que a universalização possa ser obtida por soluções únicas. Na prestação continuará havendo modelos distintos, ainda que a prestação privada esteja aumentando.

No financiamento, a diversidade de fontes é relevante dada a necessidade de mais do que dobrar os investimentos do setor. O financiamento privado pode contribuir mais, mas segue com restrição de volumes e prazos. As fontes públicas e de agências multilaterais seguirão necessárias e é preciso que estejam disponíveis.

Por isso, a próxima seção irá explorar as fontes de financiamento utilizadas por empresas regionais e grupos privados5 5 Há empresas e autarquias municipais que acessaram os mesmos recursos no período analisado. Mas dada a heterogeneidade desse grupo e a representatividade do grupo de CESBs e operadores privados nos investimentos no setor, optou-se por concentrar a análise neste último. que acessaram recursos de financiamento no BNDES e na Caixa Econômica Federal (CEF) como beneficiários – isto é, a partir da oferta de garantias próprias – nos últimos 10 anos6 6 Há também CESBs que receberam recursos dessas instituições financeiras através de seus estados controladores. Mas este artigo tem como critério de corte o acesso a recursos onerosos pela própria empresa, pois é um indicativo de capacidade financeira, técnica e de gestão. . Esse grupo é composto por 13 CESBs e 5 grupos privados7 7 Conforme será visto mais adiante, o grupo de 13 CESBs é composto por: Sabesp, Sanepar, Copasa, Cesan, Cedae, Casan, Corsan, Saneago, Caesb, Compesa, Cagece, Embasa e Sanesul. Já os 5 grupos privados são: SAAB, BRK Ambiental, AEGEA, Iguá e GS Inima. que, juntos, representaram 83% dos investimentos realizados e 95% dos investimentos feitos com recursos onerosos do próprio prestador, em 2018.

A próxima seção tem dois objetivos. Um é averiguar as características das fontes de recursos disponíveis para os prestadores que são sustentáveis financeiramente, isto é, conseguem se financiar a partir de seus próprios balanços. Outro é buscar identificar de que forma esses prestadores utilizam cada tipo de fonte existente, considerando seus usos. Será dado destaque para o mercado de capitais, uma vez que as emissões de debêntures tiveram expressivo crescimento nos últimos anos e, portanto, se faz necessário identificar qual o real potencial para o financiamento de investimentos no setor de saneamento que esse instrumento traz.

3 Como as empresas com acesso a recursos onerosos se financiam?

3.1 Fontes de recursos disponíveis e suas características

Os recursos de financiamento disponíveis para dar conta do desafio de elevar e desconcentrar o investimento no saneamento provêm: (i) da CEF, do BNDES e de outros bancos públicos, como o Banco do Nordeste (BNB) ; (ii) de agências multilaterais – BID, IFC, BIRD, por exemplo – e de bancos de desenvolvimento estrangeiros8 8 Há também novos atores multilaterais com potencial para entrada no financiamento ao saneamento, como o New Development Bank (NBD), que inaugurou suas atividades no Brasil em 2019 e o Asian Infrastructure Investment Back (AIIB), ao qual o país se juntou – como membro fundador – no final de 2020. , como KfW e JICA; (iii) de debêntures, incluindo as incentivadas via Lei 12.431; (iv) de títulos internacionais; (v) de outros instrumentos de crédito privados, como FIDCs, bancos privados, arrendamento mercantil.

Historicamente, o financiamento dos investimentos em melhoria e ampliação da infraestrutura de prestação de serviços de saneamento tem sido feito por bancos públicos, em especial Caixa Econômica Federal e BNDES. Essas instituições oferecem prazos longos (CEF oferece até 24 anos e BNDES até 34 anos), alta participação (ambas financiam até 95% do projeto) e custo financeiro reduzido se comparado ao mercado (CEF possui custo básico de 6% a.a. e BNDES, IPCA + 1,49% a.a.9 9 Taxa básica de juros do BNDES para projetos contratados em outubro/2020. ), sendo recursos onerosos compatíveis com o prazo de retorno (payback) dilatado e com as altas externalidades sociais associadas ao setor10 10 A CEF e o BNDES têm características de atuação parecidas para os propósitos mais relevantes do texto e, por isso, são tratados em geral de maneira conjunta. Quando necessário, são destacadas características de uma ou outra instituição financeira, em particular do BNDES, que passou por mudanças mais marcantes nos anos recentes. .

Ainda que recentemente tenha havido uma mudança no patamar dos juros no país e no custo financeiro básico do BNDES – que está convergindo para um custo de mercado até 2023 – reduzindo seu diferencial de juros, os outros atributos mencionados (longo prazo e alta participação no financiamento) seguem sendo fatores decisivos na viabilização dos investimentos.

As operações de crédito com agências multilaterais e bancos de desenvolvimento estrangeiros compõem o funding de alguns prestadores e devem seguir sendo relevantes, uma vez que os prazos oferecidos costumam ser longos (15, 20 anos). Os juros costumam ser baixos, mas variam de acordo com as condições de captação de cada instituição. Ainda assim, esse tipo de fonte tem seu uso limitado pois em geral o financiamento se realiza em moeda estrangeira, acrescentando um risco cambial à operação. Uma vez que a receita das empresas é em reais, são necessários mecanismos de proteção às flutuações cambiais, o que encarece a taxa de juros a princípio baixa ou pode resultar em aumentos bruscos do estoque de dívida das empresas quando ocorre uma desvalorização do real. Recentemente, houve operações de crédito com multilaterais feitas em moeda nacional11 11 Foi realizado, em 2019, contrato de financiamento entre a BRK Ambiental e o BID Invest, no valor de R$ 350 milhões, para realização de investimentos na região metropolitana de Recife, na qual a BRK presta serviços de esgotamento sanitário através de uma Parceria Público Privada com a Compesa. Disponível em: https://www.brkambiental.com.br/pernambuco/recife/brk-ambiental-e-bid-invest-assinam-financiamento-para-expansao-do-saneamento-em-pernambuco. . Caso se torne uma tendência, essa fonte de recursos pode ampliar sua participação na estrutura de dívida das empresas.

As agências multilaterais e os bancos de desenvolvimento estrangeiros concentram sua atuação nas CESBs, em razão de limitações de seu escopo de atuação a empréstimos a entes públicos. Os financiamentos devem ser aprovados pela Cofiex (Comissão de Financiamentos Externos), atualmente no Ministério da Economia. Mais recentemente, os braços de financiamento ao setor privado das instituições multilaterais (como BID Invest e IFC) têm mostrado interesse em operar no setor de saneamento brasileiro, o que pode agregar uma nova opção de financiamento para as concessões privadas.

Ambos os tipos de fonte ainda incentivam e/ou exigem como contrapartida a adoção de boas práticas – sociais, ambientais e/ou de governança.

Quanto às formas de análise e acompanhamento dos projetos, ainda que tenham especificidades, bancos públicos, agências multilaterais e bancos de desenvolvimento estrangeiros se assemelham. Para todos, além dos atributos do crédito, são relevantes os aspectos relativos ao projeto a ser financiado. Para aprovação, contratação e desembolso dos recursos é necessário: regularidade fundiária e de licenciamento ambiental; viabilidade e funcionalidade do projeto; custos adequados aos parâmetros do setor; comprovação do uso dos recursos nas finalidades aprovadas; acompanhamento da evolução física; acompanhamento dos benefícios sociais. Esses itens visam a garantir a efetividade da aplicação dos recursos e, com isso, acabam por implicar custos de transação para a empresa, relacionados à prestação das informações.

O mercado de capitais é uma forma de financiamento relativamente incipiente no setor, ainda que o volume de emissões tenha aumentado significativamente nos últimos anos, como será visto mais à frente. Por ora, basta destacar que o mercado de capitais para o saneamento tem duas necessidades de aprimoramento. Uma é em relação à concentração. Apesar de boa parte das empresas que acessa recursos de financiamento também conseguir acessar o mercado de capitais, mais de metade das emissões se concentram em duas empresas, como será visto mais adiante. Outra se refere ao prazo médio dos títulos emitidos. No período de 2016 a 2019, ele foi de 5,4 anos, ainda que tenham ocorrido algumas emissões com prazos de 10 anos.

As debêntures têm sido destinadas principalmente para capital de giro, distribuição de dividendo para holding (no caso de SPEs) e investimentos de rápido retorno em intervenções pulverizadas e pequenas, que são mais difíceis de serem financiadas por bancos públicos devido ao custo de transação de análise e acompanhamento. Recentemente, observou-se um aumento nas emissões de debêntures incentivadas, cujos recursos devem ser destinados a investimentos, como será visto adiante.

Os custos de transação relacionados a uma emissão de debêntures são os relativos ao registro junto à CVM e à coordenação da oferta, sem necessidade de outros custos de transação associados ao acompanhamento dos projetos. Exceção são as debêntures incentivadas (lei n. 12.431/2011), que devem ser vinculadas a um projeto de investimento e precisam comprovar a utilização dos recursos.

O incentivo tributário previsto na Lei 12.431 é concedido a projetos prioritários, selecionados pelo ministério setorial – no caso, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) – ou que integrem o Programa de Parcerias de Investimento (PPI)12 12 Critérios de priorização estabelecidos pelo Decreto n. 8.874/2016. . A penalidade prevista pela não alocação de parte ou integralidade do valor emitido no projeto priorizado é de multa de 20%, a ser aplicada pela Receita Federal.

As debêntures incentivadas, ainda que possam ser emitidas pela empresa ou por sua holding, são sempre associadas a um projeto específico, o que requer análise e acompanhamento. O processo de priorização do MDR inclui a análise de seu enquadramento nas modalidades específicas de saneamento e de informações e documentos do projeto, como: carta consulta; quadro de usos e fontes; quadro de composição acionária do titular do projeto; instrumento que rege a relação contratual entre concessionária e titular dos serviços; localização do projeto e suas principais características. Depois de aprovado, a empresa deve anualmente enviar ao MDR quadro informativo da destinação dos recursos captados e relatório de acompanhamento do projeto, com descritivo da sua evolução e registro fotográfico. Ademais, compromete-se a informar o MDR de qualquer alteração na implementação do projeto e deve prestar informações, caso sejam solicitadas13 13 Requisitos estabelecidos pela Portaria 1.917/2019, do MDR. .

Ainda que os requisitos de análise e acompanhamento das debêntures incentivadas tenham sido simplificados ao longo dos anos, os procedimentos associados à sua emissão são parecidos com aqueles relativos aos financiamentos de bancos públicos e multilaterais. Isso, em associação com os menores prazos obtidos pelas emissões de debêntures, talvez explique o uso ainda tímido desse instrumento de 2016 a 2019. Em 2020, observou-se maiores volumes de emissões de debêntures incentivadas, com parte atingindo 10 ou mais anos, com será visto adiante.

De todo modo as debêntures, incentivadas ou não, têm duas vantagens em relação aos financiamentos via bancos públicos, agências multilaterais e bancos de desenvolvimento estrangeiros. As operações de vendas de títulos e valores mobiliários não estão inclusas no limite de crédito para o setor público ao qual estão sujeitas as CESBs14 14 Conforme Resolução n. 4.589/2017, do Banco Central do Brasil. . E, dependendo da classificação de risco do emissor, as emissões de debêntures conseguem ser feitas com garantias quirografárias, isto é, sem garantias específicas, como recebíveis, que são as tradicionalmente oferecidas às instituições financeiras.

Os FDICs (fundos de investimento em direitos creditórios) não são incomuns no saneamento, pois são tipicamente uma opção de financiamento para empresas que têm classificação de risco pior do que a dos seus recebíveis. Como a demanda pelos serviços de saneamento costuma ser inelástica a variações na renda (em particular, a água é um bem essencial) e os contratos de prestação são de longo prazo, os recebíveis gerados são de boa qualidade, o que nem sempre ocorre com a prestadora dos serviços. De todo modo, como se verá na próxima seção, é uma opção pouco usada, provavelmente em razão de seu custo elevado. Quando há melhora na percepção de risco da empresa e/ou nas condições financeiras de outras fontes de recursos, ela tende a deixar de usá-lo.

Os títulos internacionais costumam ter prazos mais longos e juros mais baixos do que as emissões de títulos domésticos e comungam da flexibilidade de o uso não precisar estar associado a um projeto específico. No entanto, têm risco cambial, associado às operações em moeda estrangeira em um setor cujas receitas são em moeda local. Ademais, para que ocorra a emissão é preciso que a empresa possua registros na agência responsável pelo mercado de capitais nos países estrangeiros em que será realizada, além de classificações de risco internacionais, acarretando custos financeiros e de transação. Assim, são pouco utilizados no setor.

Por fim, “outros instrumentos” - que inclui arrendamento mercantil e empréstimos em bancos comerciais privados ou públicos -, costumam representar uma pequena parte do estoque de dívida das empresas. Em alguns casos e em momentos como os de necessidade de capital de giro, podem representar uma parcela maior.

O Quadro 1 resume as principais características das fontes de recursos tratadas e aponta a utilização de cada uma pelas empresas analisadas neste artigo.

Quadro 1
Principais fontes de recursos e suas características

3.1 Características das empresas que acessam recursos onerosos

O acesso a financiamentos de CEF e BNDES foi usado como um indicador de capacidade mínima das empresas em termos financeiro, técnico, operacional e de gestão. Para uma empresa ter margem disponível nesses bancos, são feitas análises cadastrais e de crédito, o que indica sustentabilidade econômico-financeira e critérios mínimos de governança. Além disso, para que as operações de crédito sejam aprovadas e durante seu acompanhamento, as instituições financeiras exigem: informações detalhadas sobre o projeto financiado; verificação de regularidade de certidões, licenças ambientais e outorgas; estabelecimento e acompanhamento de covenants financeiros. Cumprir essas exigências também atesta a existência de atributos mínimos de competência financeira e operacional.

Mas esse grupo de empresas é também bem heterogêneo, em especial as CESBs. Mesmo sendo empresas que acessaram recursos de financiamentos no passado recente, o fizeram em diferentes montantes e frequências, com distintos desempenhos na execução dos projetos e acompanhamento dos requisitos financeiro e jurídico. Tais diferenças refletem distintos níveis de desenvolvimento institucional das empresas: suas diferentes capacidades técnicas e financeiras, que impactam o volume e a velocidade com que as empresas conseguem fazer os investimentos, e se são suficientes para buscar a universalização até 2033.

Essas diferenças também se relacionam ao desenvolvimento socioeconômico das áreas de atuação das companhias, envolvendo a capacidade de pagamento da população, o nível de governança da(s) entidade(s) regulatória(s) atuantes, a qualificação dos profissionais do setor e o comprometimento do ente público controlador com a melhoria dos serviços de saneamento.

Na Tabela 3, busca-se explicitar as heterogeneidades nesse grupo de empresas – públicas e privadas – através de indicadores relacionados aos tamanhos de suas operações, suas capacidades de geração de caixa para investir, seus graus de endividamento e seus perfis de funding usados para realização dos investimentos. Este último ponto será aprofundado nas seções a seguir.

Tabela 3
Indicadores financeiros das 18 empresas de saneamento da amostra

Conforme mencionado, a Tabela 3 mostra diferenças relevantes entre os indicadores de receita, dívida líquida, eficiência operacional (margem EBITDA), alavancagem (Dívida Líquida sobre EBITDA) e fontes de investimentos (porcentagem dos investimentos realizados com recursos próprios ou onerosos com garantias próprias) das empresas do setor de saneamento selecionadas.

Vale fazer alguns apontamentos. Primeiro, as CESBs podem ter seus investimentos financiados por recursos que não guardam relação com sua geração de caixa, quais sejam, recursos fiscais (não onerosos) e aportes dos estados controladores.

É verdade que os recursos não onerosos são importantes em um setor como o saneamento, cujos déficits são elevados e as externalidades sociais também. O uso desse tipo de recurso é desejável para viabilizar investimentos em áreas cujo retorno financeiro é reduzido ou nulo e tende a ser crucial na universalização dos serviços nas áreas menos desenvolvidas do país. Hoje, os prestadores privados não podem acessar esses recursos, em razão de normativos infralegais, mas os benefícios se aplicam de forma semelhante caso pudessem e poderiam viabilizar investimentos com menor custo para população nas áreas menos rentáveis.

Porém, a alta proporção de recursos não onerosos ou aportes estatais nos volumes investidos deve ser vista com atenção, por dois motivos. Um é a escassez atual de recursos não onerosos, que deve se estender ao menos no curto e médio prazo em razão das regras fiscais existentes. Outro é que – embora os recursos não onerosos sejam necessários para atingir a universalização, como em áreas isoladas, pouco densas e de ocupação irregular – as empresas precisam ser capazes de realizar investimentos através de suas receitas visando a expansão do atendimento. O setor é altamente gerador de caixa e capaz de operar subsídios cruzados (entre serviços e entre localidades) para aliviar a necessidade de recursos externos. Caso melhorem seu desempenho operacional, boa parte das empresas seria capaz de elevar a proporção de seus investimentos realizados com recursos próprios e onerosos. Há inclusive casos em que se observa a realização da totalidade ou quase totalidade dos investimentos sem recorrer a esse tipo de recursos (como Sabesp, Sanepar, Copasa e Casan, conforme pode ser visto na Tabela 3).

Segundo, em relação à alavancagem, em geral os grupos privados possuem uma relação dívida líquida/EBITDA muito superior às CESBs. Isso pode em parte refletir a maior possibilidade de acesso a fontes não onerosas por parte das CESBs, mas mesmo as estatais sem esse tipo de fonte de recursos possuem índices de alavancagem bem inferiores aos observados na média dos grupos privados.

O uso mais intenso de recursos de terceiros pelos privados, mesmo em relação às estatais com bom desempenho operacional e de capital aberto, pode refletir uma estratégia de mais foco na busca de ampliação da rentabilidade do capital próprio, alavancando a estrutura de capital. Como a água é um bem essencial, o setor é altamente gerador de caixa. Isso facilita o uso de recursos próprios por quem tem uma gestão financeira mais conservadora e está sujeito a mais restrições na realização de investimentos (como lei das licitações e limite de crédito para o setor público), mas também possibilita a formatação de papéis que têm alto interesse por parte de investidores que buscam liquidez e estabilidade de rendimentos.

É preciso ainda considerar os graus de maturidade das concessões no portfólio de cada empresa. Em geral, o início de uma concessão tem maiores exigências de investimentos ante a geração de caixa, exigindo um endividamento maior.

Também são relevantes a intermitência e a limitação de acesso a recursos de financiamento por parte das companhias estaduais. Mesmo as estatais não dependentes estão submetidas ao limite de crédito ao setor público. De 2001 a 2017, esse limite foi concedido através de janelas de descontingenciamento. A partir de 2018, houve a disponibilização de limites anuais, mas que têm se mostrado largamente insuficientes para dar conta da demanda de crédito público.

A Tabela 4 aglutinou as empresas, destacando algumas características em comum. Para tal, buscou-se inspiração na metodologia utilizada por Albuquerque (2011)ALBUQUERQUE, G. D. R. Estruturas de financiamento aplicáveis ao setor de saneamento básico. BNDES Setorial, n. 34, p. 45-94, set. 2011. Disponível em: https://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/bnset/set3402.pdf. Acesso em: 1 dez. 2020):
https://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/expor...
16 16 Albuquerque (2011) utilizou uma série de indicadores financeiros, operacionais, de produtividade, de investimentos e de endividamento para classificar as empresas do setor de saneamento conforme sua performance. , porém usando um número menor de indicadores. Uma vez que o objetivo deste artigo é analisar como o setor se financia, a categorização busca olhar o conjunto de empresas para fazer relações com o uso das diversas fontes de financiamento.

Tabela 4
As 18 empresas da amostra organizadas por grupos

Optou-se por separar empresas públicas e privadas, em razão das diferenças em termos de acesso a recursos e das normas às quais estão submetidas.

Conforme apresentado na Tabela 4, as CESBs foram estratificadas em três grupos: (i) empresas cujo desempenho nos três indicadores encontra-se bem acima da média; (ii) empresas cujo desempenho no indicador operacional (margem EBITDA) gravita em torno ou está acima da média, mas que têm desempenhos heterogêneos em relação ao endividamento e ao investimento; (iii) empresas cujo desempenho em pelo menos dois indicadores, sendo um o operacional, está abaixo da média. O grupo II é o mais heterogêneo. A média referida é a das firmas que conseguem acessar recursos de financiamento.

Em relação às empresas privadas, apesar de em uma visão geral serem passíveis de aglutinação, pois possuem mais semelhanças do que diferenças, cabem duas observações. Uma é que, apesar de todas as margens EBITDA estarem acima de 30%, há entre elas diferenças em razão da maturidade das concessões de cada holding. Por exemplo, concessões novas, com capacidade de elevar rapidamente a geração de caixa através de melhorias de eficiência – fazendo ajustes na gestão comercial, reduzindo de perdas de água, entre outras coisas – tendem a oferecer um aumento líquido expressivo de receita operacional. A outra diz respeito às alavancagens, que refletem distintos apetites a risco. Tanto um quanto outro indicador são reflexos da estratégia de negócios das holdings em relação à competição por novas concessões, ao grau de maturidade das concessões em portfólio e da estrutura de capital para dar conta dos investimentos necessários.

3.1 Estrutura de dívida

Foi feita a partir das demonstrações financeiras (DFs) uma compilação da estrutura de dívida de cada uma das dezoito principais empresas (13 CESBs e 5 grupos privados) que atuam no saneamento básico com sustentabilidade financeira e capacidade técnica para acessar recursos de bancos federais, CEF e BNDES.

Os tipos de dívida foram separados em cinco classificações: “BNDES/CEF”, que agrega os empréstimos concedidos e as debêntures privadas adquiridas pelos dois bancos públicos; “debêntures de mercado”, que indica o valor das debêntures emitidas em ofertas públicas, convencionais e incentivadas; “títulos internacionais”, que são os papéis emitidos no exterior; “agências multilaterais/BDs estrangeiros”, com os financiamentos de BID e BIRD ou bancos de desenvolvimento do exterior; “FDIC”, que envolve os fundos de direitos creditórios; e “outros”, que agrega arrendamentos mercantis, bancos comerciais, etc.

Apresentam-se a seguir as tabelas com a consolidação das estruturas de dívida das 18 empresas de acordo com suas demonstrações financeiras de 2016 e 2019.

Tabela 5
Dívidas (R$ mil) por fonte de financiamento de 18 empresas/grupos de saneamento básico, em 31/12/2016 e 31/12/2019, a preços de 2019

Os três anos decorridos de 31/12/2016 e 31/12/2019 mostram uma mudança sensível na estrutura das dívidas das principais empresas/grupos do setor de saneamento. No entanto, há também elementos relevantes de continuidade.

A maior parte das empresas reduziu seu estoque de dívida. O crescimento de 5% do total de dívida das empresas de dezembro/2016 para dezembro/2019 se deveu principalmente aos expressivos aumentos da dívida de AEGEA e GS Inima. As duas empresas privadas elevaram sua participação no estoque total da dívida. A GS Inima passou de 0,9% para 3,8% e a AEGEA, de 5% para 13%. A participação das demais 16 empresas no estoque da dívida se manteve relativamente constante, com variações de um ou dois pontos percentuais (p.p.), para mais ou para menos.

As rubricas que reduziram a participação no estoque da dívida das empresas de 2016 a 2019 foram: CEF/BNDES (-7 p.p.), Agências/BDs internacionais (-1,2 p.p.), FIDC (-2,5 p.p.). Em compensação, houve aumento nos itens de debêntures de mercado (4,8 p.p.), títulos externos (4,4 p.p.), e outros (1,5 p.p.).

Porém, monetariamente, os estoques de dívida com BNDES/CEF17 17 Por ser uma fonte que também conta com recursos institucionais de longo prazo, o Banco do Nordeste (BNB) foi somado ao estoque de dívidas com CEF e BNDES. No entanto, sua participação é ainda inexpressiva. Em 31/12/2016, apenas a Compesa tinha 5% de suas dívidas totais em empréstimo no BNB (0,065% do estoque das 18 empresas). Em 31/12/2019, além da Compesa, Cagece, Cesan, GS Inima e Aegea tinham financiamentos no BNB, representando 0,2% do total. e com agências multilaterais e BDs internacionais ficou praticamente estável. Atualizando pelo IPCA acumulado de 2017 a 2019 (11,41%), há uma queda de R$ 16,8 bilhões para R$ 15,1 bilhões entre 2016 e 2019. No segundo, a valores constantes, há estabilidade, de R$ 6,9 bilhões para R$ 6,8 bilhões.

Os valores de FIDCs caíram expressivamente em termos monetários reais, de R$ 1,18 bilhão para R$ 283,5 milhões. Das 4 empresas que utilizavam tal instrumento de crédito, todas reduziram seu estoque, e duas delas levaram esse item a zero.

O estoque de debêntures de mercado aumentou de R$ 8,4 bilhões para R$ 10,7 bilhões, a preços de 2019. Mas nenhuma empresa que ainda não havia entrado no mercado de capitais passou a emitir debêntures de 2017 a 2019. Das 12 que já emitiam debêntures, metade aumentou a participação desse item em suas dívidas.

O expressivo aumento nos títulos externos, de R$ 1,3 bilhão para R$ 3 bilhões, em valores reais, se deu em razão da emissão da AEGEA em 2017, que se somou à da Sabesp, de 2010, e, em menor medida, da desvalorização cambial (a taxa de câmbio entre 2016 e 2019 passou de R$ 3,49 para R$ 3,9418 18 Dados da taxa de câmbio foram segundo IPEA: http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=31924. ). Os valores em dólares das emissões de Sabesp e AEGEA foram, respectivamente, U$ 350 milhões e U$ 400 milhões19 19 Informações retiradas dos sites das empresas: http://www.sabesp.com.br/CalandraWeb/CalandraRedirect/?temp=4&proj=investidoresnovo&pub=T&db=&docid=752A4E922A03EA10832577FF0060D1FE&docidPai=E522E6C2739BB37F8325768C00525A83&pai=filho1 e https://ri.aegea.com.br/noticia/em-primeira-emissao-de-bonds-aegea-saneamento-capta-us-400-milhoes/. . No entanto, enquanto a Sabesp fez a emissão com câmbio a R$ 1,76 (em 2010), a AEGEA colocou títulos no mercado internacional a taxa mais elevada (R$ 3,19 em 2017), realizando proteção cambial. Além disso, os títulos internacionais representavam, em 2019, 10,6% do estoque de dívida da Sabesp, ao passo que para a AEGEA a participação era de 32,2%. É possível inferir uma diferença de estratégia das empresas em termos da relevância pretendida dessa fonte de recursos em sua carteira de dívidas, uma vez que a emissão de Sabesp se deu em um contexto de câmbio menos desvalorizado e tinha participação menor em sua dívida. Por outro lado, a emissão da AEGEA foi de maior representatividade em relação à sua dívida, mas contou com realização de hedge pela empresa.

Vale contrapor tal evolução do estoque de dívida das empresas analisadas com os investimentos do setor. A valores constantes de 2019, de 2016 a 201920 20 Último dado anual disponível pelo SNIS é o do 2019. , a média dos investimentos, de R$ 13,3 bilhões, subiu em comparação aos R$ 13 bilhões de 2007 a 2019, mas caiu sensivelmente em relação aos R$ 14,2 bilhões de 2009 a 2014, anos em que vigorou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os investimentos caíram em 2016 e 2017 e voltaram a subir em 2018 e 2019, ficando respectivamente em R$ 13 bilhões e R$ 15,5 milhões.

Essa oscilação nos investimentos realizados parece ser consistente com a redução dos estoques de dívida da grande maioria das empresas. As amortizações das dívidas têm superado os novos desembolsos para os projetos em execução. Ainda que algumas empresas tenham elevado seus estoques de dívida, é provável que o crescimento das fontes debêntures de mercado e de títulos externos tenham ocorrido majoritariamente como troca de dívidas antigas já “performadas”, capital de giro e execução de projetos de mais rápido retorno. Como perspectiva para a contabilização dos investimentos no curto prazo (2020 e 2021), não se observa tendência de salto do patamar observado nos últimos anos.

Vale reapresentar a estrutura de dívidas acima com as divisões pelos grupos de empresas propostos pela aplicação da metodologia usada na seção 3.1.

A Tabela 6 mostra o grupo I, formado pelas três CESBs (Sabesp, Copasa e Sanepar) de melhor desempenho financeiro e operacional. São também as empresas que realizam mais investimentos no setor e o fazem a partir de sua própria geração de caixa, utilizando diretamente recursos próprios, ofertando recebíveis em garantias para obter financiamentos ou realizando emissões a mercado com base na avaliação do risco de crédito da empresa. O grupo I responde por mais da metade do estoque de dívida das empresas da amostra, com destaque para a Sabesp (mais de um terço desse total). Porém houve uma redução de sua participação: de 55,5% em 2016 para 50,2% em 2019.

Tabela 6
Dívidas (R$ mil) por fonte de financiamento/grupo I, em 31/12/2016 e 31/12/2019, a preços de 2019

As três empresas acessam quase todas as fontes disponíveis (todas, no caso da Sabesp), mas suas dívidas estão concentradas nas fontes de recursos com prazos mais longos. As rubricas BNDES/CEF e Agências/BDs internacionais representam 63% do estoque da dívida, em média. A distribuição entre essas fontes varia de acordo com a estratégia da empresa, aversão ao risco (cambial, por exemplo) e acesso a financiadores internacionais de longo prazo.

De forma geral, as empresas mais bem capacitadas financeira e operacionalmente encontram menos barreiras e dificuldades em acessar recursos de longo prazo. Tanto por possuírem boas avaliações de risco, o que se traduz em maior limite de crédito em diferentes instituições financeiras, quanto por serem operacionalmente mais capazes de planejar e implementar investimentos, possuindo preparo para prestar informações e apresentar documentos e certidões necessários ao andamento de diversos projetos (e desembolsos) em simultâneo.

Mesmo tendo acesso a todos os tipos de recursos disponíveis para o setor, essas empresas com maior capacidade tendem a optar por recursos de longo prazo, o que se traduz em maior capacidade de realizar investimentos. Deve-se ainda ter em conta que empresas públicas costumam ser financeiramente mais conservadoras. Utilizar fontes de curto prazo para executar investimentos de longo prazo exige que no futuro existam condições financeiras adequadas para emissão de novas dívidas, o que eleva a incerteza envolvida. Ademais, ainda que tenham boa capacidade técnica e operacional, as estatais são submetidas a regramentos que tendem a tornar a execução de obras menos célere, contribuindo para uma estratégia mais conservadora na composição do funding.

Quanto às debêntures, as três empresas acessam o mercado de capitais há alguns anos, sendo emissores frequentes, o que pode ser percebido pelo estoque de debêntures já relevante em 2016. O aumento da participação dessa rubrica foi acompanhado de um aumento dos prazos dos papeis emitidos, que passaram em média de três anos para quase sete anos no período observado.

Não obstante, outros fatores concorrem para explicar as variações nessa rubrica – sendo a mais significativa a da Copasa, que aumentou 9,6 p.p. São eles: o volume de recursos já contratados anteriormente a 2016, cujos desembolsos ocorreram durante os anos subsequentes; o não atendimento dos requisitos técnicos e institucionais do processo seletivo de operações de crédito da Secretaria Nacional de Saneamento, forma de acesso a recursos do FGTS e do BNDES para mutuários públicos; a estratégia de composição de custo médio de capital de cada empresa.

A Tabela 7 a seguir faz o mesmo recorte para o grupo II de CESBs.

Tabela 7
Dívidas (R$ mil) por fonte de financiamento do grupo II, em 31/12/2016 e 31/12/2019, a preços de 2019

O grupo II das CESBs reúne Corsan, Saneago, Cesan, Casan, Sanesul e Cagece. São empresas com desempenho operacional, medido pela margem EBITDA, em torno da média das 18 empresas (28%), mas com índices de alavancagem e realização de investimentos através de sua geração de caixa heterogêneos. As estruturas de dívidas são mais heterogêneas entre si do que no Grupo I.

Ainda assim, em termos do total da dívida das empresas, o grupo II se mostrou bem estável, com seu estoque monetário permanecendo no mesmo patamar (somatório de R$ 3,6 bilhões) e sua participação na soma das dívidas de todas as empresas variando de 9,9% em 2016 para 9,4% em 2019.

A participação das fontes de longo prazo, em média, se manteve relativamente estável, com a participação de CEF/BNDES e Agências multilaterais/BD com queda de 2,5 p.p e 1,2 p.p., respectivamente. No grupo II, 4 empresas (Corsan, Cesan, Sanesul e Cagece) possuem a totalidade (ou quase) de seu estoque de dívida contratado com esses dois tipos de fontes. Embora os recursos de longo prazo sejam os mais adequados à realização de investimentos, essas empresas têm relação dívida líquida/EBITDA baixa e menor do que as outras duas, Casan e Saneago, que acessam outros instrumentos de crédito. Assim, poderiam fazer mais investimentos através de maior alavancagem nas fontes que já utilizam e da utilização de outras fontes de recursos.

A menor diversificação da dívida, em especial em fontes de menor prazo, pode ser em parte explicada porque Cesan, Sanesul e Cagece têm boa parte de seus investimentos realizados por recursos não onerosos ou de seu ente controlador21 21 Percentual de recursos não onerosos e do estado nos investimentos das empresas: Cesan, 16% e 13%; Sanesul – 11% e 24%; Cagece – 41% e 0%, respectivamente. A Corsan é exceção com só 8% de seus investimentos feitos com recursos não onerosos e nenhum aporte estatal (SNIS, 2018). .

O investimento através de recursos sem custo para o prestador de serviços pode ser extremamente importante para viabilizar investimentos nas regiões mais pobres e o aporte de recursos orçamentários para investimento costuma ser uma escolha acertada, em virtude da necessidade de se priorizar o saneamento na execução de políticas públicas. Entretanto, pela análise de seus indicadores financeiros atuais, essas empresas teriam espaço para ampliar seu estoque de dívida e, portanto, aumentar sua capacidade geral de investir com vista à universalização dos serviços.

A dificuldade pode estar na capacidade de planejamento, técnica e institucional dos prestadores de realizar maiores volumes de investimento. Além disso, poderiam elevar ainda mais sua capacidade de investir se também elevassem suas margens através de ganhos de eficiência. Outra causa pode ser a existência de um ambiente institucional/regulatório incipiente, refletido na qualidade dos órgãos, que devem atuar para garantir o atingimento de metas acordadas e também de outras instituições relevantes para o andamento das obras, como as ambientais.

O aumento das debêntures de mercado, cuja participação no estoque de dívida das seis empresas subiu 20,4 p.p. se deveu a apenas duas empresas – Casan e Saneago – que acessam o mercado de capitais. Ambas aumentaram a participação dessa fonte em suas dívidas, mas a Casan também elevou a parcela de fontes de longo prazo (de 41% para 54%) enquanto a Saneago reduziu, de 37% para 23%.

Boa parte desse crescimento das debêntures é explicado pela redução do uso de FDICs por Saneago e Casan, embora na primeira ainda tenha havido redução de CEF/BNDES, em menor medida. Os FDICs, também só usados por essas empresas, representavam 23,8% das fontes do grupo II em 2016, passando para 6% em 2019. Os altos custos do instrumento22 22 Custo dos FIDCs: Saneago – IPCA + 8,77% a.a. e Casan – IPCA + 11,9%a.a.. em conjunto com as melhores condições do mercado de capitais nos últimos anos ajudam a explicar esse movimento.

No entanto, as emissões realizadas por essas empresas de 2017 a 2019 tiveram prazo médio de 4,9 anos, ainda muito curto para que os recursos sejam utilizados adequadamente para investimentos de mais longo prazo de maturação, como o investimento na expansão do serviço de esgoto. Ainda assim, pode ser uma alternativa para a gestão financeira de empresas que praticamente não contam com recursos não onerosos ou de seus estados controladores. Isso se reflete ainda na maior alavancagem dessas duas empresas em relação às outras do grupo.

O acesso ao mercado de capitais pode ser um instrumento importante de autonomia financeira das CESBs. Mas não garante a ampliação dos investimentos de forma proporcional. Para tal é preciso uma combinação do uso das debêntures com fontes de maior prazo, além do desenvolvimento institucional dos prestadores para melhorar seu desempenho operacional, bem como aprimorar a elaboração e a implementação de projetos, o que também permitiria obter condições mais favoráveis no mercado de crédito privado.

A Tabela 8 a seguir faz o recorte para o grupo III das companhias estaduais.

Tabela 8
Dívidas (R$ mil) por fonte de financiamento/grupo III, em 31/12/2016 e 31/12/2019, a preços de 2019

O grupo III das CESBs é composto por quatro empresas (Embasa, Compesa, Cedae e Caesb) cujo desempenho financeiro e operacional está abaixo da média do conjunto das 18 empresas. Esse grupo reduziu seu endividamento de forma relevante comparando-se 2016 a 2019. Com exceção da Caesb, as demais empresas tiveram queda acima de 3,5 p.p. em seus estoques de dívida. A participação na dívida total das empresas analisadas também se reduziu em 2,4 p.p. (3 p.p. se excluída a Caesb, cuja participação aumentou).

Essa redução foi acompanhada de uma alta na participação das fontes de longo prazo (CEF/BNDES e agências/BDs internacionais) no estoque de dívida do grupo III23 23 Na Compesa, única empresa que reduziu a participação dos recursos de longo prazo em sua dívida no período, houve aumento da rubrica “outros”, em razão da contração de empréstimos com bancos comerciais, que não costumam oferecer recursos de longo prazo. . O endividamento via debêntures de mercado e FIDC das duas empresas que acessam esses instrumentos (Compesa e Cedae) se reduziu significativamente, caindo, no total, 6,5 p.p. e 7 p.p. respectivamente.

Distintamente do que ocorreu no grupo II, no grupo III as debêntures de mercado não substituíram os fundos de direitos creditórios. Houve redução dos estoques de dívida em ambas as fontes, debêntures e FDIC. Nos últimos anos, quando houve uma melhoria das condições do mercado de capitais, a Cedae não realizou nenhuma emissão e a Compesa o fez apenas em 2016.

É provável que ante uma redução na capacidade de endividamento, as empresas do setor tendam a se ajustar e a concentrar suas dívidas em fontes de longo prazo, que são mais estáveis e permitem manter um patamar mínimo de investimentos.

O indicador de endividamento das empresas se mostrou baixo para três empresas do grupo. Segundo as DFs de 2019, a “dívida líquida/EBITDA” era: Cedae, 0,36; Compesa, 0,50; e Embasa, 0,37. A Caesb era uma exceção, com 2,51.

Tal baixo endividamento também pode ser explicado pela elevada participação de fontes de recursos não onerosos/aportados pelo controlador, que não dependem da geração de caixa: Caesb, 14%; Cedae, 38%; Embasa, 30%; e Compesa, 51%24 24 Esse dado se encontra na Tabela 3 de maneira agregada e é a diferença entre o percentual total de investimentos realizados e aqueles investimentos realizados com recursos próprio e onerosos do prestador, disposto na Tabela 3. .

Mas, ao contrário do Grupo II, essas empresas parecem não ter tanto espaço para elevarem seus endividamentos, em razão de suas reduzidas margens EBITDA. Assim, aqui os entraves para a realização de mais investimentos parecem ser tanto relacionados à sustentabilidade econômico-financeira das empresas, insuficiente para obtenção de crédito em maior montante, quanto à capacidade das empresas de elaborar e implementar investimentos, bem como para cumprir os requisitos para a contratação de novas dívidas. Como no Grupo II, fatores externos em relação ao ambiente regulatório e institucional também podem influenciar.

A Tabela 9 a seguir apresenta o mesmo recorte para as holdings privadas.

Tabela 9
Dívidas (R$ mil) por fonte de financiamento/ grupo privado, em 31/12/2016 e 31/12/2019, a preços de 2019

As cinco holdings que formam o grupo privado tinham, em 2016, 25,7% do total de dívidas das 18 empresas analisadas. Em 2019, esse percentual subiu expressivamente para 33,9%. Foram notáveis o aumento de endividamento da AEGEA e o da GS Inima25 25 O endividamento da AEGEA se elevou de R$ 1,9 bilhão para R$ 5 bilhões, e o da GS Inima de R$ 335 milhões para R$ 1,5 bilhão, a valores de 2019. , refletindo a entrada de novas concessões, bem como a existência de concessões não maduras no portfólio dessas empresas, que ensejam necessidades de investimento e aportes de capital.

Ao elevar suas dívidas, ambas empresas reduziram significativamente a participação de recursos de longo prazo (CEF/BNDES e Agências/BDs internacionais). Ainda assim, CEF e BNDES seguem sendo a principal fonte do grupo privado.

Há uma baixa participação da rubrica “agências multilaterais/BDs internacionais”. Os prestadores privados têm acesso restrito a esse tipo fonte, cujas instituições frequentemente limitam seu escopo de atuação a entes públicos, embora pareça existir interesse em financiar as novas concessões privadas, dados os financiamentos já realizados para concessões privadas existentes e também a procura desses agentes por informações sobre o setor no Brasil recentemente.

A AEGEA elevou sua dívida principalmente através de emissões de títulos nos mercados doméstico e internacional. A GS Inima contraiu dívidas num banco privado26 26 A maior parte do crescimento da dívida da GS Inima se deu em razão de um empréstimo realizado com o BTG Pactual para aquisição de ativos industriais, uma vez que a empresa possui atuação no tratamento de água de indústrias. . O uso de fontes de menor prazo indica uma estratégia de celeridade nos investimentos, aquisição de ativos e alta rotatividade das dívidas assumidas. A Saab também reduziu a participação de fontes de longo prazo, em uma operação de troca de dívida com um banco privado, através de capital de giro.

O movimento nas três empresas mencionadas acima explica a redução de 18 p.p. da participação dos bancos públicos no total de dívidas do grupo privado. Monetariamente, porém, houve estabilidade: a variação foi de R$ 5,4 para R$ 5,2 bilhões, a preços de 2019. De todo modo, a escolha por elevar sua dívida através do mercado de capitais e de bancos comerciais indica que tais fontes se tornaram, nos últimos anos, mais atraentes para a gestão financeira das empresas privadas.

BRK e Iguá mantiveram estável a proporção entre dívidas de curto e longo prazo entre 2016 e 2019, refletindo um portfólio de concessões mais maduras. A Iguá, junto com a Aegea, foi responsável pelo sensível aumento na participação das debêntures de mercado. No grupo privado, essa rubrica aumentou em 3,4 p.p. sua participação de 2019 em relação a 2016. Monetariamente, a elevação foi de R$ 2,9 bilhões para R$ 4,5 bilhões, a preços constantes de 2019.

BRK, Iguá e Aegea são os grupos privados que mais acessam o mercado de capitais. O fazem, porém, com prazos distintos, o que reflete diferentes estratégias de composição do custo médio de capital e apetites ao risco. Essas empresas possuem geração de caixa elevada, o que garante segurança para cumprir com seus compromissos financeiros. Porém, possuem relação dívida líquida/EBITDA em patamar intermediário ou alto27 27 Dívida líquida/EBITDA: AEGEA, 3,11; Iguá, 3,58; e BRK, 6,54. , o que restringe o espaço de contração de novas dívidas. Assim, a escolha de contrair mais dívidas no curto prazo incorre nos riscos já mencionados de descasamento com os compromissos de investimento, mesmo que essas empresas tenham mais facilidade para executar os investimentos – pois estão submetidas a menos regramentos do que as estatais.

De todo modo, o mercado de capitais tem se desenvolvido nos anos recentes. Houve aumento do número de emissões, de seus prazos e do uso de instrumentos incentivados. O desempenho do mercado de capitais é tratado na seção seguinte.

3.4 Mercado de capitais

Nesta seção, são analisadas as emissões de 2016 a 2019, mesmo período de análise das demonstrações financeiras e as emissões até outubro de 2020. Quando forem apresentados dados agregados, como prazos médios, estão apartadas as emissões de 2020. Essa escolha se dá não apenas para coincidir temporalmente a análise da estrutura de dívida e das emissões a mercado, mas também porque a pandemia fez 2020 ser um ano atípico para os investimentos em saneamento.

Desde 2016, cresceu significativamente a emissão de debêntures no setor – tanto corporativas quanto incentivadas, que usufruem dos subsídios tributários da Lei n. 12.43. O gráfico 2 a seguir mostra a evolução dos montantes emitidos e do número de emissões feitas por empresas que prestam serviços de água e esgoto28 28 Na modalidade de resíduos sólidos urbanos, entre 2016 e 2019, houve uma emissão da Estre, em 2019, no valor de R$ 55 milhões. :

Gráfico 2
Emissões de debêntures de 2016 a outubro de 2020 no setor de água e esgoto

Do total de R$ 17,83 bilhões emitidos por empresas dos setores de água e esgoto, R$ 17,68 bilhões foram emitidos pelas empresas da amostra29 29 A Conasa, empresa privada que não está na amostra, foi responsável pela emissão de R$ 155 milhões em 2019. , o que confirma sua representatividade em termos das empresas capazes de obter acesso a diferentes fontes de recursos. Vale notar que 12 empresas têm debêntures de mercado em suas estruturas de dívida, conforme apurado na Tabela 6 da seção 3.3.

Vale ainda notar que, ao contrário do que ocorre com os financiamentos via bancos públicos e agências multilaterais, os recursos obtidos com emissões de debêntures não incentivadas não necessariamente são destinados a investimentos em expansão e modernização dos ativos. Como se verá a seguir, é possível inferir que parte dessas emissões é destinada a capital de giro, troca de dívidas, e outras finalidades que não configuram investimentos.

As debêntures incentivadas devem ser destinadas a investimentos. Tal instrumento ainda é pouco usado no setor, mas em 2020 houve uma alta significativa de suas emissões. De 2016 a 2019, as empresas analisadas realizaram três emissões de debêntures incentivadas, no valor total de R$ 823 milhões. Até outubro de 2020, o mesmo conjunto de empresas havia feito cinco emissões, somando R$ 2,9 bilhões. Os prazos também têm aumentado expressivamente, chegando a até 14 anos.

Das empresas analisadas, 11 fizeram emissões de 2016 a outubro de 202030 30 A Cedae é a única empresa que possui debêntures em sua estrutura de dívida, porém não fez emissões entre 2016 a 2019. Desde 2013, a empresa realizou uma única emissão, em 2015, no valor de R$ 200 milhões. . A Tabela 10 a seguir mostra as diferenças significativas em relação ao volume, frequência, prazo das emissões, diferenciando incentivadas de não incentivadas.

Tabela 10
Empresas de saneamento que emitiram debêntures de 2016 a out/2020

As CESBs do Grupo I, uma empresa do Grupo II (Saneago) e três empresas privadas (BRK, AEGEA e Iguá) emitiram em pelo menos três dos cinco anos analisados. Saab e Casan, ainda que tenham feito poucas emissões, o fizeram em 2019, indicando que atualmente podem estar buscando tal fonte de recursos e têm capacidade para acessar o mercado. A Compesa e a GS Inima realizaram emissões pequenas e esporádicas no início do período analisado. Em suma, das 11 empresas analisadas nesta sessão e das 18 do artigo, sete são emissoras frequentes e consolidadas.

Como esperado, as empresas de melhor desempenho operacional e financeiro conseguem emitir papeis com prazos maiores. É natural que as empresas de maior capacidade de planejar e implantar projetos sejam as que tenham acessado as debêntures incentivadas, uma vez que se exige a comprovação da aplicação dos recursos na finalidade aprovada. Caso a comprovação não ocorra, a multa é de 20% sobre o valor não aplicado. Ademais, como são empresas com bom desempenho, os prazos mais largos obtidos nessa classe de debêntures se devem provavelmente à combinação de uma boa percepção do risco das empresas com a melhora das condições das debêntures proveniente do benefício fiscal.

Além dos prazos já maiores das debêntures incentivadas no período 2016-2019, de janeiro a outubro de 2020 houve uma significativa redução dos prazos das não incentivadas. Em 2020, as debêntures incentivadas não apenas foram mais usadas como tiveram de modo geral seus prazos aumentados. Esse movimento pode ser explicado por três fatores principais: as incertezas relacionadas à crise econômica decorrente da pandemia do vírus corona; a aprovação do novo marco legal do saneamento, em julho de 2020; e o patamar historicamente baixo da taxa Selic.

O primeiro fator parece explicar as emissões com prazos curtos, principalmente de março a maio de 2020, para dar conta de compromissos financeiros vincendos e/ou fazer caixa diante das incertezas do cenário econômico. A partir do terceiro trimestre, apesar da continuidade da crise econômica, o mercado de crédito privado voltou a se estabilizar.

A aprovação do marco legal teve duas consequências: a melhora da percepção de risco do setor pelo mercado, que se refletiu em prazos mais longos das debêntures incentivadas emitidas em 2020, e incertezas em relação à concessão de crédito pelos bancos públicos federais, o que em janeiro de 2021 ainda carecia de um entendimento jurídico consolidado após a edição do decreto presidencial n. 10.588, de 24/12/2020, que tratava, dentre outros temas, dos critérios de acesso a recursos federais para investimentos no setor de saneamento. Soma-se a isso a atratividade que a aplicação em títulos de risco privado/corporativo de longo prazo – associado a investimentos – passou a ter ante aos títulos públicos, remunerados a Selic, dada a queda desta última taxa no passado recente.

As emissões de debêntures incentivadas a prazos mais longos, ainda que bem aquém dos oferecidos por bancos públicos, mas já mais compatíveis com as características dos investimentos em saneamento, parecem expressar uma migração do financiamento de parte dos investimentos para o mercado de capitais, antes realizados via bancos públicos. Ainda não é possível saber em que medidas esse fato é conjuntural e em que reflete as melhores condições ofertadas pelo mercado e menores custos de transação associados à emissão de portarias de debêntures incentivadas, processo que tem sido desburocratizado.

Assim, é possível observar que em 2020 cinco empresas (Sabesp, Sanepar, Iguá, BRK Ambiental, AEGEA) emitiram debêntures incentivadas, ao passo que só três (AEGEA, Sabesp e Copasa) fizeram o mesmo de 2016 a 2019. Mais ainda, BRK, Iguá e Sanepar conseguiram obter em 2020 prazos significativamente maiores nas debêntures incentivadas do que os obtidos nas emissões não incentivadas de 2016 a 2019, mesmo mantendo ou reduzindo os prazos destas últimas.

Vale notar que como política pública, as debêntures incentivadas podem ter problemas de efetividade. Pereira e Miterhof (2019)PEREIRA, Tiago R.; MITERHOF, Marcelo T. Debêntures de infraestrutura: qual fração do custo fiscal é transferida aos projetos? BNDES, 2019. (Texto para Discussão, n. 143). Disponível em: http://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/18601. Acesso em: 1 dez. 2020.
http://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle...
indicam que cerca de 40% dos custos fiscais absorvidos pela União não foram efetivamente transferidos como redução do custo de captação das debêntures incentivadas, em comparação com papéis sem subsídios, de mesmo perfil de risco e prazo médio ponderado de amortização (duração). O estudo foi feito para o universo de debêntures, e não especificamente para saneamento, mas é um ponto de atenção quanto a possíveis aprimoramentos do produto financeiro.

De modo geral, observa-se a elevação de volume e prazos das debêntures não incentivadas e incentivadas. Contudo, os prazos ainda são curtos se comparados aos prazos de implantação e retorno dos investimentos no setor, em especial em concessões não maduras. Ainda que os prazos possam se ampliar, como tem ocorrido, as emissões podem ter restrições de volume dadas pela avaliação de risco, em especial na fase de construção, e pela disponibilidade de recursos por parte dos investidores dos títulos de mercado. Esses fatores costumam dificultar a utilização de debêntures, de forma majoritária, em projetos com grande volume de investimentos e ciclos longos de implementação, pelo menos nos primeiros anos.

Isso não significa que o instrumento não possa ter um papel relevante nesse tipo de projeto, uma vez que pode financiar outorgas, investimentos com retorno mais rápido, como trocas de hidrômetros, e/ou capital de giro (não incentivadas). Como dito, é importante olhar as diferentes fontes de recursos e suas características vis-à-vis os usos possíveis dentro dos investimentos e da gestão financeira dos prestadores. Encarando as diferentes fontes de forma complementar, é possível buscar a melhor estruturação financeira de um projeto, visando a maximizar seu retorno social e garantir sustentabilidade financeira para a empresa que o realiza.

Os desafios relacionados à consecução dessa melhor alocação de recursos, bem como as melhorias possíveis dos instrumentos financeiros e de sua regulação, serão explorados na seção seguinte.

4 Considerações finais: como viabilizar os novos investimentos

Um desafio do saneamento é elevar e desconcentrar os investimentos, com vistas à universalização. Para tal, é preciso ampliar a participação dos recursos onerosos em seu financiamento, buscando usar todas as fontes disponíveis e adequar as características de cada uma com as necessidades dos projetos. Para um esforço de investimento tão relevante, é crucial contar com a disponibilidade das distintas fontes de recursos, em especial de longo prazo, que têm taxas e prazos (carência e amortização) adequados ao retorno e à maturação dos investimentos no setor.

Os prestadores precisam ter capacidade financeira, institucional e operacional para acessar essas fontes em condições favoráveis e elaborar e implementar projetos de forma eficiente e efetiva. Nesse sentido, nos últimos anos, o BNDES tem atuado em um programa de estruturação de projetos de concessão no setor. O objetivo é estruturar projetos com sustentabilidade financeira, divisão adequada de riscos e geração de benefícios sociais, atraindo prestadores capacitados principalmente para as áreas de maior déficit de acesso e onde o investimento atual é insuficiente.

O estímulo às novas concessões se reflete não apenas no programa de concessões do BNDES, mas em diversos outros projetos em estruturação. Tal movimento pode somar investimentos expressivos aos que vêm sendo feitos pelos prestadores mais capacitados. Os desafios dos investimentos em saneamento a partir dessa nova onda de projetos a serem concedidos são mais bem explorados na seção seguinte.

4.1 Desafios da elevação e da desconcentração dos investimentos

Conforme mencionado, os investimentos anuais médios nos últimos 11 anos (2007 a 2018) foram de R$ 12,3 bilhões (a preços de 2018), menos da metade do necessário para levar à universalização até 2033, segundo o Plansab. As regiões mais deficitárias são as que recebem menos investimentos. Ademais, conforme mencionado, tais investimentos se concentraram principalmente nas regiões Sul e Sudeste, mais especificamente em três estados: São Paulo, Paraná e Minas Gerais.

Com o objetivo de elevar e desconcentrar os investimentos, as estruturações de projetos de saneamento do BNDES cumprem o papel de propiciar a atração de prestadores de serviços capacitados para as áreas e os serviços mais deficitários. Elas se concentram nos estados do Norte e Nordeste (Alagoas, Ceará, Acre, Amapá) e nos serviços de esgoto (PPPs de esgoto da Corsan – RS e da Cagece, e projeto do Rio de Janeiro, estado do Sudeste com menor índice de coleta e tratamento de esgoto, e maior índice de perdas de água). As estimativas de investimentos e população beneficiada em cada projeto em estruturação em curso segue na Tabela 11 abaixo.

Tabela 11
Concessões estruturadas pelo BNDES, posição de novembro/2020

Os investimentos desses projetos buscam prover saneamento adequado para cerca de 24 milhões de habitantes e superam os R$ 50 bilhões, concentrados nos primeiros oito/dez anos dos projetos. A eles se somam ainda projetos estruturados por outros órgãos, em curso ou já ocorridos, como a PPP de esgoto da Sanesul.

A partir dos modelos de estruturação em cada estado, é possível observar algumas tendências e relações. A maior parte das localidades que possui prestadores com capacidade para acessar financiamentos e realizar investimentos tende a seguir o modelo de PPP, com foco em esgoto, modalidade de serviço mais deficitário. São os casos de Cariacica, Rio Grande do Sul, Ceará e Mato Grosso do Sul, cujas companhias estaduais (Cesan, Corsan, Cagece e Sanesul) são do grupo II da classificação da seção 3.3. Tais empresas têm desempenho operacional razoável e costumam ter espaço para elevar seus investimentos e suas alavancagens. O modelo de PPP, portanto, pode ser pertinente para prestadores com capacidade de arcar com contraprestações, mas que podem se beneficiar da capacidade – operacional e financeira – de realizar investimentos de outro prestador, de maneira complementar aos realizados pela própria CESB. Mas deve-se avaliar à luz do novo marco legal, a partir da aprovação da Lei 14.026 de 15/07/2020, se os projetos em estruturação, somados à capacidade de investimento das próprias companhias, serão suficientes para atender as metas de universalização31 31 O novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/20) estabelece que os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento estabelecidas na Lei.

Os estados cujos prestadores nem sequer possuem capacidade de acessar fontes onerosas de investimentos a partir de suas receitas tendem a seguir o modelo de concessão plena, substituindo o prestador existente por um novo, com capacidade para executar os investimentos necessários. São os casos do Acre, do Amapá e de Alagoas, que nem sequer entraram na classificação de grupos das CESBs por não cumprirem o requisito mínimo de terem obtido empréstimos com CEF e BNDES nos últimos anos. Algumas CESBs dependem de aportes do estado controlador não só para investir, mas também frequentemente para cobrir custos de operação e manutenção, o que somado aos baixos índices de atendimento configura uma situação precária. Assim, o modelo que contempla a concessão plena dos serviços de água e esgoto pode propiciar alívio fiscal ao estado e ao mesmo tempo atrair investimentos necessários para buscar a universalização do acesso.

Os projetos do estado do Rio de Janeiro e de Porto Alegre são de concessão plena dos serviços, embora possuam capacidade para acessar recursos de financiamento, ainda que em montante insuficiente para realizar os investimentos necessários para a universalização dos municípios sob sua gestão. Nos últimos anos, a Cedae, como mostrado na análise do grupo III, reduziu sua dívida. O Rio de Janeiro é o estado do Sudeste com menor índice de atendimento de esgoto e maior índice de perda de água, indicando graves deficiências operacionais. O estado também enfrenta problemas fiscais graves, o que reduz sua capacidade de aporte para estruturar PPPs e torna atraente modelos que possibilitem ganhos com a outorga. A concessão plena pode ser pertinente ainda nos casos em que elevados investimentos em esgoto precisam ser equilibrados pelos ganhos nos serviços de água, como é o caso de Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Os casos apresentados mostram que, ainda que se possam observar tendências de acordo com características gerais, não há um modelo único de estruturação de projetos e cada caso deve ser analisado conforme suas peculiaridades. Além de questões técnicas, outros fatores pesam na opção por um modelo, incluindo os políticos e orçamentários do ente para o qual é realizada a estruturação.

De maneira geral as concessões em estruturação ou recém leiloadas – como a da região metropolitana de Maceió – guardam muitas diferenças em relação à atuação das empresas privadas no setor até o momento e também às estruturas de financiamento usadas para viabilizar os investimentos.

Em sua grande maioria, os novos projetos envolvem uma prestação regionalizada, que contempla diversos municípios numa só concessão, buscando dar viabilidade para os investimentos mesmo em localidades com baixo retorno financeiro. Como a maior parte das concessões privadas existentes até então são municipais, os novos projetos promovem uma mudança significativa na escala de atuação e nos volumes de investimentos necessários para cumprir as metas contratuais previstas.

Os prestadores públicos também podem participar dos leilões. As CESBs atuam de acordo com esse modelo, pois há muito praticam a prestação regionalizada e de larga escala, embora sua atuação se dê através de contratos individuais com os municípios. As concessões regionais estruturadas atualmente são feitas a partir de um contrato único estabelecido entre o vencedor do leilão e o estado, após os titulares dos serviços autorizarem a gestão associada dos municípios com o estado.

Assim, mesmo em relação aos tipos de prestação regionalizadas já existentes, os projetos em estruturação trazem mudanças. O contrato único de concessão faz com que os investimentos nos diversos municípios sejam vistos conjuntamente em relação às metas a serem cumpridas, o que se reflete também em sua equação financeira. Assim, dificulta-se sua pulverização em diversos projetos e, com isso, diversos contratos de financiamento, como fazem as CESBs atualmente.

Além da prestação regionalizada, é relevante que as concessões em estruturação têm altos níveis de investimentos, concentrados no início. São projetos com fluxo de caixa negativos nos primeiros anos, o que muda significativamente quando os investimentos anuais necessários se tornam menores, o que costuma ocorrer entre o oitavo e o décimo ano, e começa a haver retorno sob a forma de receitas.

Assim, ao contrário do que ocorre hoje com o financiamento das CESBs e de concessões privadas, será necessária a atuação de diversas fontes de recursos em um mesmo projeto. São poucas as experiências em saneamento no Brasil de cofinanciamento. Desafios precisam ser superados para que mercado de capitais, bancos públicos, multilaterais e privados atuem conjuntamente, mas situações semelhantes são usuais em outros setores da infraestrutura, como no elétrico. Por exemplo, acordos entre credores e compartilhamento de garantias são alguns dos temas que os diferentes financiadores deverão trabalhar de maneira cooperativa.

Ademais, para os primeiros ciclos de investimentos, os altos montantes de recursos para dar conta dos investimentos necessários poderão ter limitação nas margens de crédito dos prestadores nas distintas fontes de recursos existentes, em especial as que propiciam prazos de carência e amortização compatíveis com os períodos de maturação dos projetos. Os riscos da fase pré-operacional das concessões somados aos políticos e aos regulatórios do setor fazem com que seja necessária a estruturação híbrida do crédito, isto é, parte de “project finance non recourse” - que não dependa de aportes ou garantias corporativas - e parte de “corporate finance” (garantias do controlador, fora do projeto). Conforme esses riscos sejam superados, o projeto pode ser mais baseado nas garantias de projeto. Estruturas híbridas, estudadas caso a caso, podem alavancar mais os projetos.

Quanto às fontes de recursos disponíveis, é preciso, ao mesmo tempo: garantir a disponibilidade de fontes de longo prazo já existentes, principalmente em moeda doméstica; aprimorar as condições ofertadas por fontes que passaram a ter maior participação no financiamento do setor recentemente, como as debêntures; e adotar instrumentos de crédito ainda pouco utilizados pelo setor.

No primeiro ponto, instituições financeiras públicas, agências multilaterais e bancos de desenvolvimento estrangeiros precisam ter funding para dar conta da demanda por crédito proveniente dos investimentos, bem como políticas de crédito adequadas ao setor e às características dos projetos. Bancos multilaterais e de desenvolvimento estrangeiros podem contribuir ainda mais viabilizando empréstimos em moeda doméstica, pois as receitas do setor são em moeda local.

O mercado de capitais precisa ofertar condições melhores que as praticadas atualmente, em especial em relação ao no aspecto do prazo. Isso permitiria ampliar o uso em projetos de investimento, principalmente em concessões não maduras ou em conjunto com as fontes de mais longo prazo dos projetos regionalizados, de alta escala. No caso de concessões recentes, o desembolso na partida, que pode implicar um custo de carregamento alto até as obras serem efetivamente realizadas, e o risco de construção podem dificultar o uso de debêntures para financiar parte dos investimentos. De todo modo, o instrumento pode ser usado para financiar a outorga e os investimentos dos primeiros anos da concessão, em conjunto com as outras fontes.

Também é necessário atrair mais investidores para os papéis emitidos pelo setor. Uma mudança de alto potencial é permitir, na legislação que rege as debêntures incentivadas de infraestrutura, a alocação do benefício tributário no emissor. Isso deve atrair os fundos de pensão, que por já contarem com isenção na compra de títulos públicos não têm ganho adicional quando o benefício é dado ao comprador dos papéis incentivados. Esse regime de isenção dada ao emissor é um dos objetos do Projeto de Lei 2.646, atualmente em tramitação no Congresso Nacional.

Por fim, é preciso identificar instrumentos de crédito já utilizados em outros países ou setores que possam contribuir para maior disponibilidade de funding para o saneamento. Um exemplo é a utilização mais ampla de garantias ofertadas por bancos públicos ou multilaterais. Outro são os “mini perms”, créditos de curto prazo para a fase de construção do projeto, que necessitam ser refinanciados ao final do seu termo, seja pela própria instituição que concedeu o crédito seja pelo mercado de capitais. Esse instrumento é relevante para atrair atores com liquidez e propensão a risco suficientes para aportar recursos em projetos pré-operacionais, mas que não comportam a manutenção do crédito em seu balanço patrimonial por prazos muito longos, como os bancos privados. Podem também ser utilizados por bancos públicos, com garantia de refinanciamento caso o mercado de capitais não oferte crédito em montante suficiente no final do período.

Além de equalizar as estruturas de funding dos projetos, é necessário também atrair novos prestadores – nacionais e estrangeiros – de maneira a ampliar a capacidade de investimento do setor como um todo. Não somente elevando a margem disponível nas instituições financeiras, mas também trazendo capital próprio novo para ser aportando nas concessões.

O desafio de atrair novos atores (em dívida e em capital próprio) – bem como o de concretizar os investimentos previstos nas novas concessões, mantendo os investimentos acordados em concessões existentes, públicas e privadas – depende do ambiente institucional e regulatório do setor. Esses fatores, e seus impactos sobre os investimentos, serão tratados na próxima seção.

4.2 Desafios regulatórios após a aprovação do novo marco legal na busca da universalização

Em 15/7/2020, foi promulgada a Lei 14.026, que promoveu a reforma do marco legal do saneamento. Entre os objetivos do novo marco, destacam-se: (i) reforçar a segurança jurídica do setor; (ii) elevar a transparência, a eficiência e a efetividade da prestação dos serviços, pública ou privada; e (iii) criar condições para ampliar a participação privada, principalmente por meio de projetos de maior escala.

No primeiro ponto, destaca-se o estabelecimento da Agência Nacional de Águas (ANA) como supervisora regulatória do setor. Busca-se tornar mais homogêneo o ambiente regulatório do setor, que conta com agências municipais, intermunicipais e estaduais. O objetivo é aprimorar a qualidade da atividade regulatória e reduzir os custos de transação dos prestadores que são regulados por mais de um órgão.

Quanto ao segundo objetivo, destacam-se as seguintes disposições: (i) a extinção do contrato de programa, de forma que toda delegação dos serviços deva ser precedida obrigatoriamente por um processo licitatório; (ii) o estabelecimento de conteúdo mínimo para os contratos, em especial metas de cobertura dos serviços de água e esgoto, para além dos itens já obrigatórios pela Lei das Concessões (Lei 8.987/1995); e (iii) a necessidade do prestador ser avaliado em sua capacidade econômico-financeira de fazer frente aos investimentos previstos contratualmente para garantir a continuidade de seu contrato de concessão.

O terceiro objetivo, por sua vez, pretende dar escala aos projetos licitados. Caso os processos fossem feitos de forma pulverizada, haveria o risco de as localidades mais rentáveis serem concedidas à iniciativa privada ao passo que os locais menos rentáveis ou deficitários seguiriam com a prestação pública, o que prejudicaria muito a sustentabilidade econômico-financeira deste último tipo de prestador.

O novo marco legal visa facilitar a ampliação da escala de prestação dos serviços, trazendo mudanças que simplificam ritos necessários para viabilizar a prestação regional, como: a previsão de que um plano regional de saneamento dispense a necessidade do plano municipal; a instituição de blocos de municípios para posterior concessão; e a possibilidade de os estudos fornecidos pelos prestadores de serviços servirem de base para a formulação dos planos municipais.

Para incentivar a aderência dos prestadores a essa diretriz de regionalização, a União estabelece que o acesso a recursos federais ou geridos por órgãos de controle da União (“spending power”) fica condicionado à estruturação da prestação regionalizada, criando incentivos para a adesão voluntária dos municípios às formas de regionalização instituídas. Dentre os condicionantes acrescentados pela reforma do marco ao acesso a recursos federais, incluindo de bancos públicos, também está a necessidade de aderência às normas da ANA pela agência que regula o prestador que pleiteia o repasse ou financiamento.

Em 24/12/2020 foi publicado o decreto presidencial N. 10.588, que versa sobre o apoio técnico e financeiro da União e sobre a alocação de recursos federais para o setor de saneamento. Esse foi o primeiro decreto necessário à regulamentação do novo marco legal, o que é crucial para entender melhor os marcos temporais e os procedimentos para aplicação dos dispositivos mencionados. As normas de referência não começaram a ser editadas pela ANA, embora a agência esteja se estruturando e trabalhando para isso. Por isso, ainda não é possível averiguar a aderência das agências subnacionais às diretrizes federais. Essas normas também devem contribuir para que as regras de transição entre modelos sejam mais bem compreendidas. A instituição de metodologia para indenização de ativos não amortizados, por exemplo, é essencial no caso de interrupção de contratos de programa e de concessão para trazer mais segurança aos investimentos.

Ainda assim, é possível fazer observações sobre condições que precisam ser levadas em conta para que a segurança jurídica que a lei pretende propiciar de fato se concretize e a reforma do marco atraia novos investidores para o setor de saneamento. Primeiro, a transição entre modelos deve ser feita respeitando os contratos vigentes. Quando esses forem encerrados antes de seu termo, as devidas indenizações precisam ser pagas. Segundo, uma vez comprovada a capacidade econômico-financeira de um prestador, é necessário garantir que ele consiga acesso às fontes de recursos disponíveis para financiar seus investimentos e uma fiscalização da execução desse investimento conforme o cronograma estabelecido. Terceiro, é preciso que a reforma do marco legal se expresse na priorização do saneamento nas agendas políticas de municípios, estados e União.

Mesmo nos casos em que os serviços sejam concedidos ao setor privado, o setor público ainda é parte essencial da resolução do déficit, tanto na regulação quanto na promoção de atividades que contribuem para viabilizar os investimentos. Há necessidade de intervenções de municípios e estados, como na regularização fundiária, no desenvolvimento urbano e na segurança pública. Os investimentos em áreas rurais e aglomerados subnormais32 32 Segundo o IBGE, os aglomerados subnormais são formas de ocupação irregular de terrenos para fins de habitação em áreas urbanas, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular. Podem ter diversas denominações e características: favelas, baixadas, comunidade, palafitas, etc. também exigem cooperação entre setores público e privado, dado o desafio que representam. E são decisivas as políticas públicas estruturadas pela União, como a de estruturação de projetos ora em curso tanto pelo BNDES quanto pela CEF, com o Fundo de Estruturação de Projetos – FEP. Da mesma forma, são necessários recursos e equipes capacitadas para estruturar as operações de crédito aos investimentos. Para que esses papéis sejam bem desempenhados, é preciso alocar recursos orçamentários e humanos.

Essa priorização poderia ser expressa, por exemplo, no estabelecimento do limite de crédito para o setor público junto ao sistema financeiro nacional. Hoje, tal limite é estabelecido globalmente para todos os entes públicos subnacionais, incluindo estatais não dependentes, sem que haja priorização setorial. A disponibilização contínua de limites é positiva, pois permite planejar e estruturar ações de longo prazo pelas empresas, como a formação de um banco de projetos e a capacitação de equipes. Porém o volume disponibilizado tem se mostrado insuficiente ante as demandas de crédito do setor público, em especial no saneamento.

Há uma necessidade de elevação dos montantes disponibilizados. No saneamento, uma forma de assegurar montantes adequados à demanda de crédito existente por entes públicos, seria incluir na definição da alocação dos recursos critérios que avaliem os benefícios sociais trazidos pelo crédito a ser contraído. O objetivo é garantir que setores essenciais não tenham seus investimentos represados.

A elevação da participação do setor privado no saneamento é desejável e um dos objetivos da reforma do marco legal, mas a prestação pública ainda deverá ser parte relevante da provisão de serviços no Brasil nos próximos anos. Em especial após a adaptação dos contratos aos novos dispositivos da lei e também da comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas, os contratos serão executados por prestadores com capacidade para atingir suas metas, não importando se públicos ou privados. Assim, é importante garantir que os prestadores com saúde financeira e capacidade operacional para realizar investimentos não tenham limitada sua capacidade de contrair crédito.

Outra possibilidade é seguir o que já é feito com Petrobras e Eletrobras, que não precisam observar o limite de crédito para o setor público, consequência de também não comporem as estatísticas fiscais do governo. O Manual de Estatísticas Fiscais do Banco Central33 33 Disponível em: https://www.bcb.gov.br/ftp/infecon/Estatisticasfiscais.pdf. explica que a “exclusão da Petrobras e da Eletrobrás se deve às características específicas das empresas, seguidoras de regras de governança corporativa similares às experimentadas pelas empresas privadas de capital aberto, e com autonomia para captar recursos nos mercados interno e externo” (pg. 8). Raciocínio similar poderia ser aplicado às estatais não dependentes com capital aberto em bolsa atuantes no saneamento.

Essas questões do ambiente regulatório e jurídico precisam ser enfrentadas para que os investimentos de fato atinjam um patamar mais alto. É necessário segurança jurídica e regulação adequada para que o nível atual de investimentos (de cerca de R$ 12 bilhões) se mantenha e seja acrescido significativamente pelos investimentos das novas concessões. Só nos projetos em estruturação no BNDES, considerando que 80% dos investimentos devem ser realizados nos primeiros oito anos, os investimentos devem se elevar pelo menos em R$ 5 bilhões anuais no período.

Para atingir o montante necessário à universalização até 2033 (R$ 27,6 bilhões por ano), é preciso que a continuidade/aumento dos investimentos dos prestadores já atuantes no setor, a estruturação de projetos e as mudanças regulatórias criem um ciclo virtuoso. A ampliação da atuação de atores capacitados e a atração de novos atores são necessárias tanto para melhorar prestação dos serviços quanto para ampliar as condições de acesso a crédito para financiar os investimentos.

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    Artigo recebido em 29 de janeiro de 2021 e aprovado em 20 de setembro de 2021. Não reflete necessariamente a opinião do Banco. Os autores agradecem os comentários de Laura Bedeschi, Rômulo Tavares Ribeiro e dos pareceristas anônimos, naturalmente isentando-os de erros e omissões remanescentes.
  • 1
    Capital de terceiros diz respeito aos recursos de financiamento que podem ser acessados pelas empresas e entes públicos de forma a contribuir para a implementação de projetos. Este tipo de fonte é importante em projetos de longo prazo, pois permitem que sejam captados grandes volumes de recursos para aplicação em investimentos, que não seriam possíveis de serem acumulados no mesmo intervalo de tempo apenas pela geração de receita dos serviços prestados. Em contrapartida, o repagamento destes recursos, uma vez que é parcelado e diluído no tempo, é possível de ser realizado a partir do fluxo de caixa dos beneficiários do crédito.
  • 2
    Recursos onerosos são aqueles que precisam ser repagados, como empréstimos, financiamentos e emissão de títulos de dívida (debêntures). Já os recursos não onerosos são aqueles que não precisam ser repagados, como recursos do Orçamento Geral da União e de fundos não reembolsáveis.
  • 3
    BRK Ambiental, SAAB – Águas do Brasil, Iguá, GS Inima e AEGEA
  • 4
    Valores necessários para atingir até 2033 metas de atendimento de 99% de abastecimento de água, 92% de acesso ao esgotamento sanitário e 93% de tratamento do esgoto coletado.
  • 5
    Há empresas e autarquias municipais que acessaram os mesmos recursos no período analisado. Mas dada a heterogeneidade desse grupo e a representatividade do grupo de CESBs e operadores privados nos investimentos no setor, optou-se por concentrar a análise neste último.
  • 6
    Há também CESBs que receberam recursos dessas instituições financeiras através de seus estados controladores. Mas este artigo tem como critério de corte o acesso a recursos onerosos pela própria empresa, pois é um indicativo de capacidade financeira, técnica e de gestão.
  • 7
    Conforme será visto mais adiante, o grupo de 13 CESBs é composto por: Sabesp, Sanepar, Copasa, Cesan, Cedae, Casan, Corsan, Saneago, Caesb, Compesa, Cagece, Embasa e Sanesul. Já os 5 grupos privados são: SAAB, BRK Ambiental, AEGEA, Iguá e GS Inima.
  • 8
    Há também novos atores multilaterais com potencial para entrada no financiamento ao saneamento, como o New Development Bank (NBD), que inaugurou suas atividades no Brasil em 2019 e o Asian Infrastructure Investment Back (AIIB), ao qual o país se juntou – como membro fundador – no final de 2020.
  • 9
    Taxa básica de juros do BNDES para projetos contratados em outubro/2020.
  • 10
    A CEF e o BNDES têm características de atuação parecidas para os propósitos mais relevantes do texto e, por isso, são tratados em geral de maneira conjunta. Quando necessário, são destacadas características de uma ou outra instituição financeira, em particular do BNDES, que passou por mudanças mais marcantes nos anos recentes.
  • 11
    Foi realizado, em 2019, contrato de financiamento entre a BRK Ambiental e o BID Invest, no valor de R$ 350 milhões, para realização de investimentos na região metropolitana de Recife, na qual a BRK presta serviços de esgotamento sanitário através de uma Parceria Público Privada com a Compesa. Disponível em: https://www.brkambiental.com.br/pernambuco/recife/brk-ambiental-e-bid-invest-assinam-financiamento-para-expansao-do-saneamento-em-pernambuco.
  • 12
    Critérios de priorização estabelecidos pelo Decreto n. 8.874/2016.
  • 13
    Requisitos estabelecidos pela Portaria 1.917/2019, do MDR.
  • 14
    Conforme Resolução n. 4.589/2017, do Banco Central do Brasil.
  • 15
    Os dados de porcentagem dos investimentos realizados com recursos próprios ou recursos onerosos do prestador foram retirados do SNIS e são a soma dos indicadores FN030 e FN 031. A diferença para os investimentos totais é composta pelo percentual de investimentos feitos com recursos não onerosos do prestador; recursos próprios, onerosos e não onerosos do Estado; e recursos próprios, onerosos e não onerosos do município (respectivamente FN032, FN055, FN056, FN057, FN045, FN046, FN047.
  • 16
    Albuquerque (2011)ALBUQUERQUE, G. D. R. Estruturas de financiamento aplicáveis ao setor de saneamento básico. BNDES Setorial, n. 34, p. 45-94, set. 2011. Disponível em: https://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/bnset/set3402.pdf. Acesso em: 1 dez. 2020):
    https://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/expor...
    utilizou uma série de indicadores financeiros, operacionais, de produtividade, de investimentos e de endividamento para classificar as empresas do setor de saneamento conforme sua performance.
  • 17
    Por ser uma fonte que também conta com recursos institucionais de longo prazo, o Banco do Nordeste (BNB) foi somado ao estoque de dívidas com CEF e BNDES. No entanto, sua participação é ainda inexpressiva. Em 31/12/2016, apenas a Compesa tinha 5% de suas dívidas totais em empréstimo no BNB (0,065% do estoque das 18 empresas). Em 31/12/2019, além da Compesa, Cagece, Cesan, GS Inima e Aegea tinham financiamentos no BNB, representando 0,2% do total.
  • 18
    Dados da taxa de câmbio foram segundo IPEA: http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=31924.
  • 19
  • 20
    Último dado anual disponível pelo SNIS é o do 2019.
  • 21
    Percentual de recursos não onerosos e do estado nos investimentos das empresas: Cesan, 16% e 13%; Sanesul – 11% e 24%; Cagece – 41% e 0%, respectivamente. A Corsan é exceção com só 8% de seus investimentos feitos com recursos não onerosos e nenhum aporte estatal (SNIS, 2018).
  • 22
    Custo dos FIDCs: Saneago – IPCA + 8,77% a.a. e Casan – IPCA + 11,9%a.a..
  • 23
    Na Compesa, única empresa que reduziu a participação dos recursos de longo prazo em sua dívida no período, houve aumento da rubrica “outros”, em razão da contração de empréstimos com bancos comerciais, que não costumam oferecer recursos de longo prazo.
  • 24
    Esse dado se encontra na Tabela 3 de maneira agregada e é a diferença entre o percentual total de investimentos realizados e aqueles investimentos realizados com recursos próprio e onerosos do prestador, disposto na Tabela 3.
  • 25
    O endividamento da AEGEA se elevou de R$ 1,9 bilhão para R$ 5 bilhões, e o da GS Inima de R$ 335 milhões para R$ 1,5 bilhão, a valores de 2019.
  • 26
    A maior parte do crescimento da dívida da GS Inima se deu em razão de um empréstimo realizado com o BTG Pactual para aquisição de ativos industriais, uma vez que a empresa possui atuação no tratamento de água de indústrias.
  • 27
    Dívida líquida/EBITDA: AEGEA, 3,11; Iguá, 3,58; e BRK, 6,54.
  • 28
    Na modalidade de resíduos sólidos urbanos, entre 2016 e 2019, houve uma emissão da Estre, em 2019, no valor de R$ 55 milhões.
  • 29
    A Conasa, empresa privada que não está na amostra, foi responsável pela emissão de R$ 155 milhões em 2019.
  • 30
    A Cedae é a única empresa que possui debêntures em sua estrutura de dívida, porém não fez emissões entre 2016 a 2019. Desde 2013, a empresa realizou uma única emissão, em 2015, no valor de R$ 200 milhões.
  • 31
    O novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/20) estabelece que os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento
  • 32
    Segundo o IBGE, os aglomerados subnormais são formas de ocupação irregular de terrenos para fins de habitação em áreas urbanas, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular. Podem ter diversas denominações e características: favelas, baixadas, comunidade, palafitas, etc.
  • 33
  • JEL: G31, H54.

Bibliografia

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2021
  • Aceito
    20 Set 2021
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