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Odores e infecções em ambiente hospitalar: a negação do óbvio no registro das observações da enfermagem

Odors and infections in the hospital environment: denying the obvious in registering nursing observations

Olores y infecciones en el ambiente hospitalar: la negativa de lo obvio en el registro de las observaciones de la enfermería

Resumos

Este artigo aborda a percepção dos fenômenos odorantes com o objetivo de proporcionar reflexão acerca do significado destes fenômenos e sua relação com processos infecciosos no espaço hospitalar. Realizou-se uma análise documental dos conteúdos de 5303 Observações Complementares de Enfermagem, referentes à percepção da equipe de Enfermagem frente às situações odorantes, sua interpretação através de registros da taxonomia dos cheiros e procedimentos decisórios aos mesmos, de 160 clientes internados nas Clínicas de Internação Cirúrgica de um Hospital Universitário. Os dados mostram que das 5303 observações, 2557 eram relativas a fenômenos odorantes, e destas, apenas 91 caracterizam o fenômeno odorante qualificado, concentrando-se em secreções corporais. No espaço hospitalar evidencia-se a negação, ocultação ou silêncio olfativo, o que sem dúvida, impede a real evidência dos riscos de infecções. Recomenda-se avançar nos conhecimentos e práticas de higiene corporal, ambiental e dos materiais utilizados nos serviços de saúde para promover a saúde, bem como, desenvolver novas concepções e modalidades de abordagem sobre as percepções olfativas, suas sensações e implicações em prol do viver mais saudável

Fenômenos odorantes; Infecções hospitalares; Ambiente hospitalar


This article lays out the perception of the odorous phenomenon, with the objective to inspire reflection concerning the significance of these phenomenon and their relationship with infectious processes in the hospital environment. A documental analysis was performed, searching the contents of 5503 Complementary Nursing Observations, referring to the perception of the Nursing Team before odorous situations, their interpretation through registration of the taxonomy of smells and decision-making procedures towards the 160 clients submitted to the Overnight Surgery Clinics in a University Hospital. The data show that of the 5503 observations, 2557 referred to odorous phenomenon, and of these, only 91 characterized the qualified odorous phenomenon, focusing on corporal secretions. In the hospital space, denial, occulting, and olfactory silence are evidenced. This, without a doubt, impedes the real evidence of the risk of infection. We recommend advancing the study and practice of bodily and environmental hygiene, as well as of the materials used in the health care services to promote health. We also recommend developing new conceptions and modalities of approaching olfactory perceptions, their sensations and implications in view of healthier living

Odorous phenomenon; Hospital infection; Hospital environment


Este artículo aborda la percepción de los fenómenos de mal olor con el objetivo de reflexionar sobre del significado de estos fenómenos y su relación con los procesos infecciosos en el espacio hospitalario. Se realizó un análisis documental de los contenidos de 5,303 observaciones complementarias de Enfermería, relacionados a la percepción del equipo de enfermería frente a las situaciones mal olientes, su interpretación a através de los registros de la taxonomía de los olores y procedimientos decisivos a los mismos, de 160 clientes internados en las clínicas de internamiento quirúrgico de un Hospital Universitario. Los datos muestran que de las 5303 observaciones, 2,557 eran con relación a fenómenos de mal olor, y de éstas, solo 91 caracterizan el fenómeno de mal olor, concentrado en secresiones corporales. En el espacio hospitalar se evidencia la negación, ocultamiento o silencio olfativo, lo que sin duda, impide la real evidencia de los riesgos de infecciones. Se recomienda avanzar en los conocimientos y prácticas de higiene corporal, ambiental y de los materiales utilizados en los servicios de salud para promover la salud, asi como, desarrollar nuevas concepciones y modalidades de abordaje sobre las percepciones olfativas, sus sensaciones e implicaciones en pro de un processo de vida más saludable

Fenómenos de mal olor; Infección hospitalar; Ambiente hospitalar


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

Odores e infecções em ambiente hospitalar: a negação do óbvio no registro das observações da enfermagem

Odors and infections in the hospital environment: denying the obvious in registering nursing observations

Olores y infecciones en el ambiente hospitalar: la negativa de lo obvio en el registro de las observaciones de la enfermería

Antônio de Miranda WosnyI; Alacoque Lorenzini ErdmannII

IProfessor Adjunto IV do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Enfermagem

IIProfessora Titular do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Enfermagem. Pesquisadora do CNPq

Endereço Endereço: Antônio de Miranda Wosny Rua Frei Canexa,122, apto. 902, B1 88025 000 - Agronômica , Florianópolis, SC E-mial: wosnyp@nfr.ufsc.br

RESUMO

Este artigo aborda a percepção dos fenômenos odorantes com o objetivo de proporcionar reflexão acerca do significado destes fenômenos e sua relação com processos infecciosos no espaço hospitalar. Realizou-se uma análise documental dos conteúdos de 5303 Observações Complementares de Enfermagem, referentes à percepção da equipe de Enfermagem frente às situações odorantes, sua interpretação através de registros da taxonomia dos cheiros e procedimentos decisórios aos mesmos, de 160 clientes internados nas Clínicas de Internação Cirúrgica de um Hospital Universitário. Os dados mostram que das 5303 observações, 2557 eram relativas a fenômenos odorantes, e destas, apenas 91 caracterizam o fenômeno odorante qualificado, concentrando-se em secreções corporais. No espaço hospitalar evidencia-se a negação, ocultação ou silêncio olfativo, o que sem dúvida, impede a real evidência dos riscos de infecções. Recomenda-se avançar nos conhecimentos e práticas de higiene corporal, ambiental e dos materiais utilizados nos serviços de saúde para promover a saúde, bem como, desenvolver novas concepções e modalidades de abordagem sobre as percepções olfativas, suas sensações e implicações em prol do viver mais saudável.

Palavras-chave: Fenômenos odorantes. Infecções hospitalares. Ambiente hospitalar.

ABSTRACT

This article lays out the perception of the odorous phenomenon, with the objective to inspire reflection concerning the significance of these phenomenon and their relationship with infectious processes in the hospital environment. A documental analysis was performed, searching the contents of 5503 Complementary Nursing Observations, referring to the perception of the Nursing Team before odorous situations, their interpretation through registration of the taxonomy of smells and decision-making procedures towards the 160 clients submitted to the Overnight Surgery Clinics in a University Hospital. The data show that of the 5503 observations, 2557 referred to odorous phenomenon, and of these, only 91 characterized the qualified odorous phenomenon, focusing on corporal secretions. In the hospital space, denial, occulting, and olfactory silence are evidenced. This, without a doubt, impedes the real evidence of the risk of infection. We recommend advancing the study and practice of bodily and environmental hygiene, as well as of the materials used in the health care services to promote health. We also recommend developing new conceptions and modalities of approaching olfactory perceptions, their sensations and implications in view of healthier living.

Keywords: Odorous phenomenon. Hospital infection. Hospital environment.

RESUMEN

Este artículo aborda la percepción de los fenómenos de mal olor con el objetivo de reflexionar sobre del significado de estos fenómenos y su relación con los procesos infecciosos en el espacio hospitalario. Se realizó un análisis documental de los contenidos de 5,303 observaciones complementarias de Enfermería, relacionados a la percepción del equipo de enfermería frente a las situaciones mal olientes, su interpretación a através de los registros de la taxonomía de los olores y procedimientos decisivos a los mismos, de 160 clientes internados en las clínicas de internamiento quirúrgico de un Hospital Universitario. Los datos muestran que de las 5303 observaciones, 2,557 eran con relación a fenómenos de mal olor, y de éstas, solo 91 caracterizan el fenómeno de mal olor, concentrado en secresiones corporales. En el espacio hospitalar se evidencia la negación, ocultamiento o silencio olfativo, lo que sin duda, impide la real evidencia de los riesgos de infecciones. Se recomienda avanzar en los conocimientos y prácticas de higiene corporal, ambiental y de los materiales utilizados en los servicios de salud para promover la salud, asi como, desarrollar nuevas concepciones y modalidades de abordaje sobre las percepciones olfativas, sus sensaciones e implicaciones en pro de un processo de vida más saludable.

Palabras clave: Fenómenos de mal olor. Infección hospitalar. Ambiente hospitalar.

INTRODUÇÃO

Na atualidade, o hospital pode ser considerado uma instituição de importância similar às outras organizações caracterizadas como de necessidade social, tais como as escolas, as igrejas, os presídios e os asilos. É um ambiente que requer um olhar especial dada à peculiaridade e preciosidade de suas atividades, a maioria destinada ao cuidado do ser humano em situações de transição e fragilidade: o nascer, o adoecer e o morrer.

O ato do cuidado ao ser humano hospitalizado pode ser focalizado nas suas múltiplas dimensões, especialmente em um hospital de ensino universitário, que além da função de cuidar, deve pesquisar sobre esse cuidado, desenvolvendo as experiências de aprendizagem sobre o cuidado a partir da construção de novos conhecimentos. Para tal, essa instituição necessita caminhar no compasso da contemporaneidade, produzir novos fundamentos que atendam também as expectativas futuras. O campo hospitalar consta da agenda de pesquisadores em saúde, especialmente de grupos constituídos para investigações de temas tais como a qualidade, a segurança e o conforto neste ambiente.

A preocupação com a melhoria da qualidade da atenção à saúde demanda o desenvolvimento de novas tecnologias de cuidado e conforto, a busca de alternativas que promovam a segurança frente aos riscos ambientais, e um repensar sobre as possibilidades de viver mais saudável.

O ambiente hospitalar pode ser caracterizado por um aspecto não menos importante, o seu odor próprio. A história dos hospitais é marcada pela descrição da presença dos fenômenos odorantes, sua evolução e hoje mesmo, sua negação atrelada à era do asséptico, do inodor e do invisível. O "cheiro no hospital" é reconhecido e indicativo de qualidade em saúde1:59. Em decorrência das emanações odorantes, as quais podem designar múltiplos significados, ainda é possível identificar a presença de determinado fenômeno odorante relativo a um agente biológico, como indicativo de condições de risco de infecção hospitalar ou ainda de higiene ambiental2.

Nosso estudo dedica atenção aos odores do espaço hospitalar, com prioridade aos de origem corporal, procurando interpretar e analisar a sua significância no ato do cuidado. Assim, centra-se na percepção da Enfermagem e tomada de decisões no cuidado do cliente e ambiente, resultante da presença dos odores.

O cotidiano da Enfermagem é permeado de emanações odorantes, as quais quando percebidas tor-na-se alvo de atenção, especialmente àquelas de caráter considerado desagradável ou incômodo e às de indicativo de risco iminente de infecções.

A reflexão desta temática nos instiga na direção de alguns interrogantes e pressupostos.

Todo odor comunica algo. Agradáveis ou desagradáveis, os odores enviam alguma mensagem, óbvias em diversas situações, em outras, requerendo decodificação. Podem significar algum perigo iminente presente no ambiente, causa ou resultado de algum dano ou desconforto ao indivíduo. A interpretação destas mensagens olfativas pela Enfermagem, dependendo da sua resposta, pode ser decisiva na condução e desenlace do ato de cuidar mediado pela relação percepção olfativa/ação de Enfermagem. Pode ser sugestiva de emanação fisiológica resultante da ação de determinada patologia portada pelo cliente. A percepção olfativa, mais aguçada em uns e menos em outros, responde às sensações variadas. A maior compreensão estético/filosófica e técnico/científica das emanações odorantes, poderão favorecer no diagnóstico de Enfermagem e planejamento da assistência, vigilância da qualidade ambiental e terapêutica3-8.

Este artigo tem como objetivo proporcionar reflexão acerca do significado dos fenômenos odorantes e sua relação com processos infecciosos no espaço hospitalar.

PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DO TEMA

Realizamos estudo em documentos relativos ao conteúdo das Observações Complementares de Enfermagem, referentes à percepção da equipe de Enfermagem frente as situações odorantes, sua interpretação e procedimentos de enfrentamentos aos mesmos9. Os dados e informações documentais foram obtidos através de pesquisa, em registros de cuidados de Enfermagem aos clientes internados nas Clínicas de Internação Cirúrgica de um Hospital Universitário. O objetivo desta atividade foi verificar a percepção da Enfermagem, através de registros da taxonomia dos cheiros nas Observações Complementares de Enfermagem, bem como, avaliar a condução da assistência decorrente da análise destas situações contidas no Processo de Enfermagem.

Em nossa atividade de pesquisa observou-se o respeito aos princípios éticos, tais como: a garantia de impessoalidade das respostas, o sigilo profissional, a

preservação da imagem institucional sem ocultar situações de real interesse da população hospitalar, a análise criteriosa dos dados, a observação das normas da comissão de ética da instituição, e o consentimento informado nos casos de coleta de informação pessoal. Assim, atendeu-se os requerimentos previstos nos casos de pesquisas com seres humanos, de acordo com a Resolução n.º 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que determina as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos10. Nosso projeto foi submetido à aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina e aprovado de acordo com o Parecer Consubstanciado n.º 032/01. Obtivemos o consentimento informado dos participantes da pesquisa para utilização das informações anotadas.

Os odores e as observações da Enfermagem: o oculto e o explícito.

O planejamento do cuidado de Enfermagem ao cliente internado neste Hospital Universitário, é fundamentado na Teoria das Necessidades Básicas de Horta, e desenvolvido essencialmente a partir das observações e registros detalhados da equipe de Enfermagem11. Estes registros são orientados e recomendados nos documentos básicos da metodologia assistencial da referida instituição. Na elaboração deste estudo, além da etapa de observações diretas, previmos a realização de um levantamento dos registros documentais, relativos às percepções odorantes que favorecessem a compreensão deste fenômeno mais objetivamente, a partir da analise dos registros de Enfermagem constantes no Processo de Enfermagem nos prontuários dos clientes. No entanto, para apresentar neste artigo, nos atemos aos dados das anotações constantes em outro documento padrão denominado Observações Complementares de Enfermagem - OCE. Trata-se de um documento de anotações das rotinas diárias de Enfermagem, bem como de todos os eventos ocorridos com a clientela internada no hospital. Neste formulário, encontram-se as anotações básicas da equipe de Enfermagem para subsidiar os relatos nas trocas de turnos (passagem dos plantões), elaborar a Evolução de Enfermagem e quadros de controles de rotina. Trata-se de um documento temporário, isto é, após a alta do cliente, não é anexado ao seu prontuário e sim desprezado. Desta maneira, solicitamos aos funcionários das Unidades de Internações Cirúrgicas Mistas da instituição estudada para que, durante um determinado período de tempo, conservassem estes relatórios na unidade. Não havíamos estabelecido um número prévio de documentos a serem observados, pois seu conteúdo é variável, isto é, relativo ao período de internação do respectivo cliente. De posse dos primeiros, nos empenhamos em levantar o número de observações realizadas, procurando enumerar os termos que pudessem estar relacionados com os odores. Consideramos como Observações Complementares de Enfermagem, os registros diários relativos às observações e aos cuidados dispensados à clientela, durante o seu período de internação. Sua quantificação refere-se àquela impressa no formulário, contendo dados individuais, referentes aos cuidados de enfermagem prestados ao cliente em determinado horário, datado e assinado por trabalhadores responsáveis pela assistência, estagiários e professores de Enfermagem das diversas categorias profissionais que atuaram nos setores envolvidos no estudo. Adotamos como referência para quantificação, palavras-chave ou termos concernentes a determinados fenômenos de enfermagem, passíveis de avaliação como fenômeno odorante, meritórios de registro com tal qualificação, necessários ao diagnóstico e intervenção de enfermagem. Na pesquisa destacaram-se ainda outros fenômenos odorantes, os quais, devido suas características próprias, consideramo-los como fenômenos "fora da enfermagem"12, tais como, gangrena, necrose e hemorragia13, porém também significativos para as reflexões sobre os riscos de infecções hospitalares.

Os odores estão fortemente presentes nas atividades rotineiras da Enfermagem onde são realizados diariamente, um grande número de procedimentos envolvendo matérias odorantes, cujos relatos praticamente omitem as percepções olfativas. Para identificar as possíveis qualificações odorantes destes fenômenos, tomamos como base as sugestões da taxonomia preconizada nos documentos institucionais normatizadores dos procedimentos e anotações de Enfermagem. Levantamos os registros de cuidados e ocorrências relativas a 160 clientes internados de diversas especialidades cirúrgicas. Consideramos que este número seria o bastante, pois os dados forneciam indícios de suficiência para algumas possíveis interpretações, pois acumularam 5.303 Observações Complementares de Enfermagem, com uma média de 94 registros por cliente. Do total de observações registradas dos 160 clientes internados nas Clínicas Cirúrgicas Mistas I e II, 15 (9%) deles estavam Sem registro de fenômenos potencialmente odorantes e 145 (91%) Com registro de fenômenos potencialmente odorantes.

De conformidade com estes dados é possível demonstrar que, em consonância ao nosso entendimento de "fenômeno de enfermagem odorante", somente uma parcela inferior a dez por cento da clientela não apresentou registros de "eventos potencialmente odorantes". Como eventos potencialmente odorantes, destacamos em nosso estudo aqueles constantes nos documentos básicos de orientação à metodologia de enfermagem do referido HU, destacando neste caso pelo Roteiro de Observações: problemas relacionados às Necessidades Humanas Básicas11. Este documento sugere uma taxonomia qualificativa para fenômenos de enfermagem potencialmente odorantes, tais como: expectorações (odor fétido, característico); eliminação intestinal (odor fétido, azedo, pútrido); eliminação urinária (odor característico, amoniacal, fecal, de peixe, de palha recém-cortada, de maçã azeda, de violeta); vômitos (odor ácido, inodoro, amônia, azedo, de fezes), Drenagem gástrica, biliar, torácicas, fístulas, de lesões, etc., (volume, cor, odor, consistência)14. Entretanto, nos dados seguintes nota-se que a potencialidade de noventa e um pontos percentuais para registro de prováveis fenômenos odorantes, não significa que eles ocorreram. Com isso queremos dizer que o simples registro de fenômenos de enfermagem "potencialmente odorantes" não é garantia de sua caracterização qualitativa olfativa necessária. Pelo contrário, evidencia-se o número de registros de caracterização de odores inversamente ao número de fenômenos odorantes, como ilustramos a seguir.

Observando a distribuição dos números deste estudo, podemos verificar que aproximadamente a metade das OCE refere-se a fenômenos odorantes (48,2%), a maioria pertencente a eliminações corporais, com destaque às secreções, o que dá forte indícios da presença de riscos de infecções se os cuidados de assepsia e proteção não forem devidamente observados. Em estudo paralelo, registramos um número expressivo de referência às halitoses ou odores da boca. Entretanto, nos registros da prática, percebese uma ausência total de qualquer registro desta percepção. A ocultação de observações de fenômenos olfativos orais merece uma maior atenção, considerando que os cuidados de higiene oral fazem parte da Prescrição de Enfermagem rotineira do hospital.

Destacamos ainda o fato que, no bloco das Observações Complementares de Enfermagem pesquisadas, percebemos registros referentes a clientes portadores de traumas ou patologias bucais, os quais devido sua natureza, apresentam fenômenos odorantes11. É correto afirmar que o diagnóstico e tratamento de halitoses e outros problemas de saúde bucal não é competência do profissional de Enfermagem, todavia no hospital, tradicionalmente os cuidados com a higiene oral são de nossa alçada.

O silêncio olfativo relativo aos odores da boca pode ser reprodução da ocultação social aos cheiros de origem oral, culturalmente reprimidos devido seu caráter estético como fenômeno capaz de produzir desconforto primordialmente social15-6. O mercado de equipamentos e produtos para dissimular os odores da boca disponibiliza ao consumo da população alta variedade de opções, as quais devidamente utilizadas promovem higiene e sensação de conforto bucal. Não é objeto de nosso estudo a análise específica de cada fenômeno odorante que é percebido no hospital, no entanto, com relação aos fenômenos odorantes orais, observamos na prática, atitudes cotidianas de cuidados com a higiene, utilizando equipamentos e procedimentos merecedores de reavaliação da sua eficácia. Uma possível justificativa cabível à limitação das observações, e restrição às técnicas repetitivas e de pouca eficácia na higiene oral deve-se à ausência de pesquisas multiprofissionais direcionadas a melhoria higiênica e ao conforto oral da clientela sob cuidado hospitalar. Note-se que na realidade deste HU, os equipamentos e procedimentos utilizados nos cuidados rotineiros da boca não condizem com procedimentos e técnicas preconizadas pela pesquisa atual de fenômenos odorantes orais.

Em contrapartida os registros com referência às secreções se destacam como fenômeno odorante, sendo qualificados primordialmente, por observações visuais17 e, secundariamente, olfativas. Entretanto, mesmo com significativo destaque como fenômeno odorante, os registros de sua caracterização olfativa são minimamente destacados, como poderemos verificar nas tabelas a seguir:

De acordo com o exposto, observa-se a limitação de registros qualificando as percepções olfativas, o que melhor poderia subsidiar a percepção da existência de riscos de infecções hospitalares. Neste caso, a grande maioria, restrita à caracterização do fenômeno odorante relativo à eliminação de secreções corporais. Esta limitação é maior evidenciada quando analisamos estes números em relação ao total de observações com fenômenos odorantes, bem como em relação ao total de observações realizadas, conforme tabela 3.

Ao analisarmos estes dados em busca de explicações matemáticas que os justifiquem, possivelmente incorreremos em conclusões imprecisas sobre os mesmos. É certo que são números estremados, produto de uma rápida garimpagem de impressões perceptivas subjetivas dos fenômenos odorantes, num determinado documento de registros rotineiros do cuidado de Enfermagem. Entretanto, justamente em razão da exacerbação destes números, mesmo de relativa consistência, podemos através deles nos subsidiar para possível interpretação que conduza a uma maior compreensão do fenômeno em estudo. É bem possível que encontremos algumas explicações para estes números, mas é provável que elas não serão decorrentes de verificação empírica no campo paradigmático das ciências naturais, pelo contrário, uma maior compreensão do fenômeno poderá efetuar-se através de abstrações arrazoadas em paradigma humanista ou em ecológico-ambientalista. De acordo com a nossa avaliação, percebe-se que no espaço hospitalar reproduzem-se as mesmas caracterizações relativas ao sentido do olfato, manifestadas em estudos de outros espaços sociais, isto é, sua negação, ocultação ou silêncio olfativo, o que sem dúvida, impede a real evidência dos riscos de infecções. Mesmo ciente destas limitações, a preocupação com o manuseio das secreções, desde a limpeza, assepsia, destino e risco das mesmas ao ambiente e pessoas presentes, deve ser mais intensificada uma vez que pouco ainda sabemos em relação ao limpo e o sujo, ao séptico, aos processos de proliferação dos agentes nocivos e ao controle do ser humano sobre a natureza e suas mutações. Urge avançar nos conhecimentos e práticas de higiene corporal, ambiental e dos materiais utilizados nos serviços de saúde para promover a saúde. Negar, ocultar ou silenciar diante da percepção de fenômenos odorantes é talvez desconhecer seus significados, tanto para o prazer como para o desprazer no viver humano.

DEDUÇÕES E CONTRIBUIÇÕES

Considerando que o presente trabalho foi elaborado para contribuir ao conhecimento em saúde, nossa expectativa em relação aos possíveis resultados do estudo proposto é de que os mesmos constituam uma oportunidade de reflexão e agregação de novos elementos ao conhecimento, pertinentes à prática e ao debate sobre as implicações referentes a este tema. Propusemos esta reflexão concernente aos possíveis significados das sensações olfativas, nas atitudes e decisões no cuidado de Enfermagem, pressupondo que o universo odorante que permeia o ambiente de cuidado hospitalar é relegado a uma instância de mérito restrito, sem uma noção mais clara da sua importância para a segurança de estar em um ambiente mais livre de riscos e um viver mais saudável.

Um dos propósitos de nosso estudo também esteve orientado no sentido de elevar considerações à olfação, como ato sensível, traduzindo os odores como fenômenos de alta pertinência ao cuidado de Enfermagem, especialmente nas questões relativas às infecções no espaço hospitalar. Neste intuito, pressupomos que o maior e melhor juízo dos fenômenos olfativos presentes neste ambiente possibilitará mais atenção aos odores no sentido de ser um indicativo de risco que implica na adoção de técnicas mais seguras de cuidado, como também, na evolução do estado de saúde do cliente no que possa ser considerado como de normalidade ou de anormalidade. Não podemos ficar inertes diante do negar, ocultar ou silenciar a percepção de fenômenos odorantes no trabalho da enfermagem hospitalar. Assim, recomendamos que se desenvolvam novas concepções e modalidades de abordagem sobre as percepções olfativas, suas sensações e implicações, já que ainda é um tema um tanto difícil de ser estudado.

Recebido em: 15 de setembro de 2003

Aprovação final: 12 de fevereiro de 2004

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      12 Fev 2004
    • Recebido
      15 Set 2003
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