Acessibilidade / Reportar erro

Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico

Interdisciplinarity and health: bibliographic study

Interdisciplinaridad y salud: estudio bibliográfico

Resumos

Este é um estudo bibliográfico, no qual se buscou aproximação com o tema da interdisciplinaridade. A complexidade que caracteriza o mundo atual e, particularmente, o cenário de saúde exige o desenvolvimento de programas interdisciplinares de ensino com vistas a alcançar novo tipo de pensamento e a formação do profissional de saúde comprometido com a reconstrução social. Nosso objetivo foi buscar na literatura o significado da interdisciplinaridade, seu histórico, suas relações com a Saúde Coletiva e com a educação dos profissionais de saúde.

equipe de assistência ao paciente; ensino


This is a bibliographic research which sought to achieve a better understanding of the interdisciplinarity theme. The complexity that characterizes the world and especially the health area nowadays has required the development of interdisciplinary teaching programs, with a view to obtaining a new kind of thinking and the formation of health professionals committed to social reconstruction. We examined literature for the meaning of interdisciplinarity, its history and relations with Collective Health and the education of health professionals.

patient care team; teaching


Este es un estudio bibliográfico, en el cual se ha buscado una aproximación con el tema de la interdisciplinaridad. La complejidad que caracteriza el mundo actual y, particularmente el escenario de salud, exige el desenvolvimiento de programas interdisciplinarios de enseñanza con el objetivo de alcanzar un nuevo tipo de pensamiento y la formación de un profesional de salud comprometido con la reconstrucción social. Nuestro objetivo fue buscar en la literatura el significado de la interdisciplinaridad, su histórico, sus relaciones con la salud colectiva y con la educación de los profesionales de salud.

grupo de atención al paciente; enseñanza


ARTIGO DE REVISÃO

Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico

Interdisciplinarity and health: bibliographic study

Interdisciplinaridad y salud: estudio bibliográfico

Elaine Morelato VilelaI; Iranilde José Messias MendesII

IProfessor do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília. Doutoranda do Curso de Pós-Graduação, e-mail: elainemv@terra.com.br

IIProfessor Associado do Curso de Pós-Graduação Mestrado-Doutorado. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

RESUMO

Este é um estudo bibliográfico, no qual se buscou aproximação com o tema da interdisciplinaridade. A complexidade que caracteriza o mundo atual e, particularmente, o cenário de saúde exige o desenvolvimento de programas interdisciplinares de ensino com vistas a alcançar novo tipo de pensamento e a formação do profissional de saúde comprometido com a reconstrução social. Nosso objetivo foi buscar na literatura o significado da interdisciplinaridade, seu histórico, suas relações com a Saúde Coletiva e com a educação dos profissionais de saúde.

Descritores: equipe de assistência ao paciente; ensino

ABSTRACT

This is a bibliographic research which sought to achieve a better understanding of the interdisciplinarity theme. The complexity that characterizes the world and especially the health area nowadays has required the development of interdisciplinary teaching programs, with a view to obtaining a new kind of thinking and the formation of health professionals committed to social reconstruction. We examined literature for the meaning of interdisciplinarity, its history and relations with Collective Health and the education of health professionals.

Descriptors: patient care team; teaching

RESUMEN

Este es un estudio bibliográfico, en el cual se ha buscado una aproximación con el tema de la interdisciplinaridad. La complejidad que caracteriza el mundo actual y, particularmente el escenario de salud, exige el desenvolvimiento de programas interdisciplinarios de enseñanza con el objetivo de alcanzar un nuevo tipo de pensamiento y la formación de un profesional de salud comprometido con la reconstrucción social. Nuestro objetivo fue buscar en la literatura el significado de la interdisciplinaridad, su histórico, sus relaciones con la salud colectiva y con la educación de los profesionales de salud.

Descriptores: grupo de atención al paciente; enseñanza

INTRODUÇÃO

Complexidade tem sido a palavra mais empregada para caracterizar o panorama mundial e os problemas que nele se apresentam. Entre eles, destacam-se: a rapidez do crescimento demográfico, a acentuada diferença entre ricos e pobres, o fenômeno da globalização que, em conjunto com as novas tecnologias de comunicação, leva à difusão da produção cultural das grandes potências mundiais, provocando a erosão das especificidades culturais dos países menos desenvolvido, os conflitos declarados entre as nações, etnias e comunidades religiosas, levando à configuração de um "mundo multirrisco" complexo e inseguro(1).

Alguns autores consideram que o mundo contemporâneo se defronta com vários desafios relacionados com o pensamento fragmentado, fruto do racionalismo da era moderna(2-3).

Uma outra característica dos dias atuais é a proliferação do conhecimento, que se transforma rapidamente e se encontra dividido em áreas isoladas, fenômeno esse conhecido por "disciplinaridade"(4).

A complexidade do mundo e da cultura exige análises mais integradas. Qualquer acontecimento humano apresenta diversas dimensões, uma vez que a realidade é multifacetada. Sendo assim, a compreensão de qualquer fenômeno social requer que se leve em consideração as informações relativas a todas essas dimensões. Essa tem sido a linha de argumentação com maior poder de convencimento em favor da interdisciplinaridade(5).

O conceito de interdisciplinaridade surgiu no século XX e, só a partir da década de 60, começou a ser enfatizado como necessidade de transcender e atravessar o conhecimento fragmentado, embora sempre tenha existido, em maior ou menor medida, uma certa aspiração à unidade do saber(6).

Para melhor compreender a disciplinaridade e a interdisciplinaridade, é preciso vê-las a partir de seus condicionantes sócio-históricos. Sendo assim, nosso objetivo foi buscar, na literatura, o significado da interdisciplinaridade, seu histórico, suas relações com a Saúde Coletiva e com a formação dos profissionais de saúde.

ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS

A idéia de um saber unitário sempre existiu na história do pensamento. O mito para o homem pré-histórico, a idéia de cosmos, no mundo grego, e a aceitação de Deus criador, na Idade Média, sustentaram a unidade do saber e conservaram a integridade epistemológica naqueles períodos, à qual correspondia uma pedagogia também unitária(7).

Na tradição grega, havia um programa de ensino chamado enkúklios paidéia, o qual foi retomado pelos romanos e transmitido à Idade Média com a idéia de uma orbis doctrinae. Esses modelos traziam um saber de totalidade como ideal de educação e tinham por objetivo a formação da personalidade integral e não meramente um saber enciclopédico, com acúmulo e justaposição de conhecimentos. As disciplinas articulavam-se entre si, formando uma unidade(4,7).

A preocupação com a integração dos saberes também esteve presente no Movimento Iluminista do século XVIII, quando a enciclopédia foi tomada como modelo na defesa da unidade do conhecimento e como expressão de uma nova atitude intelectual, caracterizada pela rejeição à autoridade dogmática sustentada pela Igreja e pela tradição(5).

No entanto, o advento da Modernidade, por volta do século XVII, provocou um processo de desintegração crescente da unidade do saber. A era moderna foi um período marcado por grande efervescência cultural, quando se destacou Descartes, entre outros(8).

Descartes inaugurou definitivamente o pensamento moderno, ao propor o uso disciplinado da razão como caminho para o conhecimento verdadeiro e definitivo da realidade e formulou os princípios dessa nova forma de produção de saberes, caracterizado por uma série de operações de decomposição da coisa a conhecer e pela redução às suas partes mais simples. Esse modelo é conhecido como modelo cartesiano e tornou-se um paradigma(8-9).

O paradigma cartesiano mostrou-se bastante adequado para construir e tratar objetos simples e proporcionou uma simbiose entre ciência e técnica, atendendo às necessidades da industrialização. Dessa maneira, abriu-se o caminho para a fragmentação do conhecimento, uma vez que as indústrias necessitavam urgentemente de especialistas para enfrentar os problemas e objetivos específicos de seus processos de produção e comercialização. Dessa maneira, o século XIX marca a consolidação das especializações(5,8).

E, assim, a ciência ocidental se desenvolveu com base na noção de especialização, a qual foi se valorizando cada vez mais e, no campo das práticas sociais, novas profissões foram criadas e um novo sistema de ensino e formação foi se estruturando, com base na estratégia da disciplinaridade, caracterizada pela fragmentação do objeto e pela crescente especialização do sujeito científico(8).

Se a visão cartesiana de mundo permitiu o desenvolvimento científico-tecnológico, presente no mundo atual, o reducionismo que o caracteriza apresenta um perigo na medida em que reconhece o método analítico como sendo capaz de oferecer a explicação mais completa e a única forma válida de produzir conhecimento(10).

Admite-se, no entanto, que a produção do conhecimento é histórica, social e culturalmente determinada e, dessa maneira, o modelo de pensamento desenvolvido nos séculos XVI e XVII passa, hoje, por revisão, em função das novas perspectivas e desafios que se apresentam à ciência. O paradigma racionalista da modernidade, atualmente, já apresenta sinais de esgotamento e essa constatação foi possível graças ao avanço da ciência proporcionado pelo próprio modelo. É nesse contexto que se coloca a interdisciplinaridade que, ao invés de se apresentar como alternativa para substituição de um jeito de produzir e transmitir conhecimento, se propõe a ampliar a nossa visão de mundo, de nós mesmos e da realidade, no propósito de superar a visão disciplinar(11).

O CONCEITO DE INTERDISCIPLINARIDADE

O fenômeno da interdisciplinarização representa mais um "sintoma da situação patológica em que se encontra, hoje, o saber" do que um real progresso do conhecimento. O exagero das especializações conduz a uma situação patológica em que uma "inteligência esfacelada" produz um "saber em migalhas". Nesse contexto, o esforço de integração da interdisciplinaridade se apresenta como "o remédio mais adequado à cancerização ou à patologia geral do saber". "A interdisciplinaridade se caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa"(7).

O termo interdisciplinaridade não possui ainda um sentido único e estável, no entanto, a definição acima pode ser considerada um princípio das suas inúmeras distinções terminológicas(12).

Interdisciplinaridade também é uma questão de atitude. "É uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida diante do problema do conhecimento, ou seja, é a substituição de uma concepção fragmentária para unitária do ser humano". Está também associada ao desenvolvimento de certos traços da personalidade, tais como: flexibilidade, confiança, paciência, intuição, capacidade de adaptação, sensibilidade em relação às demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir na diversidade, aceitar novos papéis(5,12).

A primeira condição de efetivação da interdisciplinaridade é o desenvolvimento da sensibilidade, fazendo-se necessário um treino na "arte de entender e esperar, um desenvolvimento no sentido da criação e da imaginação". Interdisciplinaridade não se ensina nem se aprende, apenas vive-se e exerce-se(12).

O projeto interdisciplinar envolve questionamentos sobre o sentido e a pertinência das colaborações entre as disciplinas, visando um conhecimento do "humano". E, nesse sentido, a interdisciplinaridade é chamada a postular um novo tipo de questionamento sobre o saber, sobre o homem e sobre a sociedade. Não é uma "moda, mas corresponde a uma nova etapa de desenvolvimento do conhecimento. Também não se trata de postular uma nova síntese do saber, mas, sim, de constatar um esforço por aproximar, comparar, relacionar e integrar os conhecimentos(7).

A interdisciplinaridade é fundamentalmente um processo e uma filosofia de trabalho que entra em ação na hora de enfrentar os problemas e questões que preocupam cada sociedade(5).

Partindo do conceito de disciplina como "uma maneira de organizar e delimitar um território de trabalho, de concentrar a pesquisa e as experiências dentro de um determinado ângulo de visão", podemos estabelecer diferentes níveis de interdisplinaridade, conforme o grau de integração das disciplinas que são reagrupadas num determinado momento. Vários autores têm estabelecido classificações diferentes para expressar as modalidades possíveis de interdisciplinaridade. Dentre elas, a mais conhecida é a distinção realizada por Erich Jantsch, que consta de cinco níveis, a saber(5):

multidisciplina: justaposição de disciplinas diversas, com a intenção de esclarecer os seus elementos comuns, mas desprovidas de relação aparente entre elas;

pluridisciplina: justaposição de disciplinas, mais ou menos vizinhas, nos domínios do conhecimento, visando a melhoria das relações entre elas. Ex: Física e Química;

disciplinaridade cruzada: abordagem baseada em posturas de força, em que a possibilidade de comunicação está desequilibrada, pois uma das disciplinas predomina sobre as outras;

interdisciplinaridade: interação existente entre duas ou mais disciplinas, em contexto de estudo de âmbito mais coletivo, no qual cada uma das disciplinas em contato é, por sua vez, modificadas e passa a depender claramente uma(s) da(s) outra(s). Resulta em enriquecimento recíproco e na transformação de suas metodologias de pesquisa e conceitos;

transdisciplinaridade: é o nível superior da interdisciplinaridade, em que desaparecem os limites entre as diversas disciplinas; a cooperação é tal que se fala no aparecimento de uma nova macrodisciplina. Cita-se, como exemplo, a elaboração de marcos teóricos como a teoria geral dos sistemas, o estruturalismo, a fenomenologia, o marxismo.

Esse modelo de classificação pressupõe que os campos disciplinares são estruturas compostas por uma axiomática teórica e uma matriz metodológica, com princípios e conceitos decodificáveis, que interagem entre si, produzindo relações convergentes. Os campos disciplinares, no entanto, não são estruturas, mas sim instituídos por uma práxis. A produção organizada do conhecimento científico se realiza em uma complexa rede institucional operada por agentes históricos concretos, ligada estreitamente ao contexto sóciopolítico mais amplo. Desse modo, não são os campos disciplinares que interagem entre si, mas sim os sujeitos na prática científica cotidiana. Propõe-se, então, uma redefinição do modelo de transdisciplinaridade, baseada na possibilidade de comunicação não entre os campos disciplinares, mas entre os agentes em cada campo, por meio da circulação, não dos discursos, mas pelo trânsito dos sujeitos dos discursos(8).

Há diferentes opiniões sobre o que constitui verdadeiramente a interdisciplinaridade, mas considera-se que só se pode falar em interdisciplinaridade a partir do momento em que essa comunicação ou diálogo gerar integração mútua dos conceitos entre as disciplinas, constituindo novo conhecimento ou buscando a resolução para um problema concreto(13).

A interdisciplinaridade é considerada uma inter-relação e interação das disciplinas a fim de atingir um objetivo comum. Nesse caso, ocorre uma unificação conceitual dos métodos e estruturas em que as potencialidades das disciplinas são exploradas e ampliadas. Estabelece-se uma interdependência entre as disciplinas, busca-se o diálogo com outras formas de conhecimento e com outras metodologias, com o objetivo de construir um novo conhecimento. Dessa maneira, a interdisciplinaridade se apresenta como resposta à diversidade, à complexidade e à dinâmica do mundo atual(13).

A interdisciplinaridade também é entendida, de forma radical, como "atitude de superação de toda e qualquer visão fragmentada e/ou dicotômica que ainda mantemos de nós mesmos, do mundo e da realidade". Apesar da constância com que o tema aparece nas discussões atuais, a interdisciplinaridade ainda é incipientemente desenvolvida em todos os campos do conhecimento e é pouco explorada no terreno da educação(11).

O ensino baseado na interdisciplinaridade tem grande poder estruturador, pois os conceitos e procedimentos encontram-se organizados em torno de unidades mais globais, em que várias disciplinas se articulam(5).

A interdisciplinaridade é também entendida como um diálogo que possibilite o enriquecimento das disciplinas em nível de método e perspectiva; é uma proposta de religare entre o conhecimento científico e a complexidade do mundo vivido, para a medida do humano na produção da ciência, visando a superação da dicotomia entre teoria e prática. É uma das chaves para a compreensão do mundo, uma vez que esse não é feito de coisas isoladas, mas consiste em várias dimensões complementares. Sendo assim, interdisciplinaridade é um conceito que se aplica às ciências, à produção do conhecimento e ao ensino, especialmente em áreas que demandam, de forma direta, a interdisciplinaridade, como, por exemplo, a saúde(4,14-15).

Dessa maneira, passamos, a seguir, ao estudo da relação entre interdisciplinaridade e saúde, particularmente, na sua expressão coletiva.

INTERDISCIPLINARIDADE E SAÚDE COLETIVA

Etimologicamente, o termo "saúde", em latim salus, significa são, inteiro; em grego, o significado é inteiro, real, integridade. Desse modo, saúde como integridade não permite a fragmentação em saúde física, mental e social e, portanto, parte-se de uma visão holística que supõe entendê-la na interface de grande diversidade de disciplinas. Essa diversidade torna-se mais complexa quando a realidade da saúde ultrapassa a dimensão individual e passa para a esfera coletiva(4).

É preciso considerar a complexidade da área da saúde, uma vez que seu objeto tem base conceitual situada em campos bastante distintos como a Física, Epidemiologia, Ecologia, Biologia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, História, Ciência Política, Economia, Administração, Ética, Genética, Educação, etc(4).

Tal complexidade se acentua quando procuramos entender saúde no âmbito coletivo, cujo objeto envolve o biológico e o social, o indivíduo e a comunidade e ainda, a política social e econômica. Como campo político, é um espaço em que a articulação cooperativa entre as disciplinas constitui-se em "um campo de correlação de forças", relacionado à consciência social e política. Para se chegar a uma Saúde Coletiva é necessário um esforço interdisciplinar que tem como conseqüência uma abertura conceitual(14).

A interdisciplinaridade na área da Saúde Coletiva coloca-se como exigência interna, uma vez que seu objeto de trabalho - a saúde e a doença no seu âmbito social - envolve concomitantemente: as relações sociais, as expressões emocionais e afetivas e a biologia, traduzindo, por meio da saúde e da doença, as condições e razões sócio-históricas e culturais dos indivíduos e grupos. Embora haja dificuldades de construir uma proposta interdisciplinar, essa é vista como desafio possível e desejável na área da saúde, uma vez que há ilimitado campo de possibilidades a ser explorado, pois existe, a seu favor, ligação direta e estratégica com o mundo vivido, o mundo do sofrimento, da dor e da morte(6).

Entre as dificuldades para a construção da proposta interdisciplinar, na área da saúde, destaca-se: o mito de que a ciência "pura e imaculada" conduz necessariamente ao progresso; o mito de que há verdade sem deontologia e ciência sem poder, os obstáculos de ordem psicossocial de dominação dos saberes, em que os processos de competição, de posição defensiva e de segurança econômica assumem papel fundamental. São também considerados obstáculos à interdisciplinaridade no campo da Saúde Coletiva: a forte tradição positivista e biocêntrica no tratamento dos problemas de saúde, os espaços de poder que a disciplinarização significa, a estrutura das instituições de ensino e pesquisa em departamentos, na maioria das vezes, sem nenhuma comunicação entre si, as dificuldades inerentes à experiência interdisciplinar, tais como a operacionalização de conceitos, métodos e práticas entre as disciplinas(14,16).

Na área da saúde, os pressupostos da integração estão presentes há algum tempo e, nas últimas décadas, a interdisciplinaridade tem sido invocada para a criação de modelos pedagógicos e para a construção de um conhecimento partilhado por ciências biológicas e sociais. São muitas as dificuldades para se trabalhar, numa perspectiva integradora de vários saberes, e o modelo vigente de formação profissional para a área da saúde reforça a formação clínica na vertente das ciências biomédicas, deslocando o social para a periferia. As dificuldades não se limitam ao campo epistemológico, mas de vencer as barreiras que historicamente vêm privilegiando uma determinada maneira de formar recursos humanos(4).

A EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A formação de profissionais de saúde, desde o início do século XX, tem sido orientada pelo modelo fragmentador e biologicista, guardando relação com o modelo de atenção à saúde vigente, o qual pretende oferecer à população a maior quantidade possível de serviços de saúde, centrados na consulta médica, voltada a tratar as enfermidades, por meio da clínica e com a intermediação crescente de tecnologias(4,16).

A partir da década de 70, no entanto, começa a ficar em evidência a inadequação desse modelo, conhecido como modelo flexneriano, fazendo surgir críticas às instituições educacionais que preparavam recursos humanos para atuar no campo da saúde(17).

Para a superação desse modelo que está na raiz da crise da saúde, propõe-se a transição do paradigma flexneriano para outro, denominado de paradigma da produção social da saúde, o qual tem seus fundamentos calcados na teoria da produção social. Tal teoria permite romper com a setorialização da realidade e, dessa forma, a produção social da saúde, além de responder por um estado de saúde em permanente transformação, rompe também com a idéia de um setor saúde, erigindo-a como produto social resultante de fatos econômicos, políticos, ideológicos e cognitivos. "O que significa, necessariamente, inscrevê-la, como campo do conhecimento, na ordem da interdisciplinaridade e, como prática social, na ordem da intersetorialidade"(16).

Trata-se de nova forma de resposta social organizada aos problemas de saúde, orientada pelo conceito positivo de saúde e pelo paradigma da produção social da sáude e que deve atuar sobre os nós críticos dos problemas, baseado em um saber interdisciplinar e um fazer intersetorial. Suas estratégias resultam da combinação de três grandes tipos de ações: a promoção da saúde, a prevenção das enfermidades e acidentes e a atenção curativa(16).

Na atualidade, vem ocorrendo uma série de transformações no mundo do trabalho, nas relações entre as pessoas, nas inovações tecnológicas, originando novas maneiras de organizar a produção. No caso específico da saúde, a mudança que se opera traz a marca do fortalecimento do cuidado, da ação intersetorial e do desenvolvimento da autonomia das populações(18).

Essa mudança no campo da saúde deve trazer transformações na área da educação, cujas transformações em curso mostram a transição da concepção tradicional para a concepção crítico-reflexiva da educação. No primeiro caso, temos uma prática educativa calcada na pedagogia da transmissão, centrada no professor e desvinculada da realidade. A concepção crítico-reflexiva busca a articulação entre teoria e prática, a participação ativa do estudante e a problematização da realidade(18).

Nessa nova perspectiva de educação, a pesquisa deve ser considerada um princípio educativo, instrumento básico de formação. E, nesse sentido, uma experiência de iniciação científica vinculada à interdisciplinaridade, envolvendo a Enfermagem e a Administração, permitiu a construção ou reconstrução do conhecimento, através da ação conjunta de profissionais de diferentes áreas, possibilitando a desenvoltura de integração dos especialistas, além de favorecer maior visibilidade da Enfermagem para outros profissionais(19).

A educação dos profissionais de saúde deve pautar-se nos conhecimentos experimentados, vividos, pois esses permitem formar profissionais com capacidade de solucionar problemas. Desse modo, a educação deve ser prática e medir sua qualidade frente à necessidade de contribuir para melhorar a situação de saúde da população. A pouca consciência social coletiva e a formação isolada dos contextos sociais levaram ao fato de que os médicos começaram a ser muito mais parte do problema do que da solução dos mesmos. A universidade sem responsabilidade com a comunidade é um erro e os currículos devem incluir, em seus planos, o princípio da responsabilidade social em cada um de seus passos, bem como os conceitos de eqüidade, acesso universal e qualidade do atendimento(20).

As dificuldades para que a educação dos profissionais de saúde caminhe nessa direção encontram-se em fatores como: a rotina dos docentes, suas experiências anteriores e sua formação, a tendência à privatização, fazendo com que os planos de formação profissional, com uma clara responsabilidade social, não consigam o apoio docente. A década de 80 produziu reforço do individualismo e os docentes de hoje aceitam com dificuldade os caminhos participativos e de progresso social coletivo. Uma mudança nesse terreno poderá ser facilitada mediante formas de aprendizagem participativas e coletivas(20).

O esforço de melhor compreender e trabalhar a organização dos serviços de saúde, a educação dos profissionais de saúde e o papel da cidadania na construção de sociedades mais democráticas e auto-sustentáveis, no contexto da América Latina, tem contado com a ajuda do PROGRAMA UNI, subsidiado pela Fundação Kellogg. Esse Programa adotou, como premissa básica, a necessidade de articulação entre universidade, serviço e comunidade, assim como a compreensão e respeito mútuo nas relações humanas e institucionais de todos os participantes. Os seus objetivos são o desenvolvimento de modelos de ensino-aprendizagem, prestação de serviços de saúde, melhorias ambientais e práticas de autocuidado, além do desenvolvimento de líderes(17).

O PROGRAMA UNI propõe que a educação de profissões de saúde deve estar orientada para os problemas de saúde da comunidade; o currículo deve enfatizar o desenvolvimento do raciocínio, da capacidade de continuar aprendendo, estimulando o ensino interdisciplinar e deve combinar experiências intramurais com experiências em cenários da vida real; a investigação científica deve ter natureza aplicada e participativa com a comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interdisciplinaridade tem sido considerada por diversos autores como alternativa para se alcançar o desenvolvimento de um pensamento que responda pela complexidade que caracteriza o mundo atual, com seus desafios. Entre eles, encontram-se os problemas de saúde.

Um novo modelo de atenção à saúde tem sido proposto e para isso são necessárias mudanças no sistema de formação dos profissionais de saúde. Os projetos curriculares integrados fazem parte dessa estratégia de mudança.

Saúde é considerada uma área eminentemente interdisciplinar e a integração de disciplinas no âmbito dos cursos que preparam recursos humanos para atuar nesse campo, certamente poderá levar à formação de profissionais mais comprometidos com a realidade de saúde e com a sua transformação.

Ainda são poucas as experiências de implementação de propostas curriculares integradas. As instituições formadoras de recursos humanos para a área da saúde, que adotaram a interdisciplinaridade em seus currículos, esbarram em várias dificuldades, as quais vão se resolvendo à medida que o exercício do diálogo e do trabalho em equipe vão ocorrendo.

Recebido em: 25.2.2002

Aprovado em: 10.12.2002

  • 1. Delors J, organizador. Educaçăo: um tesouro a descobrir. relatório para a UNESCO da Comissăo Internacional sobre Educaçăo para o século XXI. 4Ş ed. Săo Paulo: Cortez; 2000.
  • 2. Morin E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2000.
  • 3. Capra F. O ponto de mutaçăo: a cięncia, a sociedade e a cultura emergente. Săo Paulo: Cultrix; 1988.
  • 4. Nunes ED. A questăo da interdisciplinaridade no estudo da saúde coletiva e o papel da cięncias sociais. In: Canesqui AM. Dilemas e desafios das cięncias sociais na saúde coletiva. Săo Paulo: Hucitec; 1995. p.95-113.
  • 5. Torres Santomé J. Globalizaçăo e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artmed; 1998.
  • 6. Minayo MCS. Interdisciplinaridade: uma questăo que atravessa o saber, o poder e o mundo vivido. Medicina Ribeirăo Preto 1991 abr/jun; 24(2):70-7.
  • 7. Japiassu H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago; 1976.
  • 8. Almeida N Filho. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Cięncia & Saúde Coletiva 1997; 3(1/2):5-20.
  • 9. Marcondes D. Iniciaçăo ŕ história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997.
  • 10. Moraes MC. O paradigma educacional emergente. 6Ş.ed. Campinas (SP): Papirus; 1997.
  • 11. Bochniak R. Questionar o conhecimento: a interdisciplinaridade na escola... e fora dela. 2Ş ed. Săo Paulo: Loyola; 1998.
  • 12. Fazenda ICA. Integraçăo e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? 4Ş ed. Săo Paulo: Loyola; 1996.
  • 13. Meireles BHS, Erdmann AL. A questăo das disciplinas e da interdisciplinaridade como processo educativo na área da saúde. Texto Contexto Enfermagem 1999 jan/abr; 8(1):149-65.
  • 14. Gomes R, Deslandes SF. Interdisciplinaridade na saúde pública: um campo em construçăo. Rev Latino-am Enfermagem 1994 janeiro; 2(2):103-14.
  • 15. Feuerwerker LCM, Sena RR. Interdisciplinaridade, trabalho multiprofissional e em equipe - sinônimos? como se relacionam e o que tęm a ver com a nossa vida? Olho Mágico 1998 mar; 5(18):5-6.
  • 16. Mendes EV. Uma agenda para a saúde. Săo Paulo: Hucitec; 1996.
  • 17. Chaves M, Kisil M. Origens, concepçăo e desenvolvimento. In: Almeida M, Feuerwerker L, Llanos M, organizadores. A educaçăo dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. Săo Paulo: Hucitec; 1999. p.1-16.
  • 18. Feuerwerker LCM, Sena RR. A construçăo de novos modelos acadęmicos, de atençăo ŕ saúde e de participaçăo social. In: Almeida M, Feuerwerker L, Llanos, organizadores. A educaçăo dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. Săo Paulo: Hucitec; 1999. p.47-82.
  • 19. Mazon L, Trevizan MA. Fecundando o processo da interdisciplinaridade na iniciaçăo científica. Rev Latino-am Enfermagem 2001 julho; 9(4):83-7.
  • 20. Venturelli J. Os aspectos educacionais na reforma da educaçăo e nas profissőes de saúde. In: Almeida M, Feuerwerker L, Llanos M, organizadores. A educaçăo dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. Săo Paulo: Hucitec; 1999. p.145-64.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2003

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2002
  • Aceito
    10 Dez 2002
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: rlae@eerp.usp.br