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O cotidiano das enfermeiras do exército na força expedicionária brasileira (FEB) no teatro de operações da 2ª Guerra Mundial, na Itália (1942-1945)

The daily life of nurses in the Brazilian expeditionary force in the theater of operations during World War II, in Italy (1942-1945)

El cotidiano de las enfermeras del ejército en la fuerza expedicionária brasileña (FEB) en el teatro de operaciones de la 2ª Guerra Mundial en Italia (1942-1945)

Resumos

Estudo histórico-social, tem como objetivo analisar os desafios cotidianos enfrentados pelas enfermeiras do Exército no Teatro de Operações da 2ª Guerra Mundial, na Itália. Utilizou-se como fontes primárias três fotografias da época e depoimentos de nove enfermeiras que estiveram no conflito. As fontes secundárias constituíram-se do acervo literário referente ao assunto. Utilizou-se conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu para apoiar a discussão. Os resultados evidenciaram que as enfermeiras enfrentaram os desafios do cotidiano na guerra e adaptaram-se às adversidades dos acampamentos/enfermarias. Conclui-se que o cotidiano das enfermeiras, nesse cenário, ao tempo que as levou ao enfrentamento de barreiras, propiciou a apreensão de novas culturas e tecnologias.

história da enfermagem; trabalho; enfermagem; prática profissional


This historic-sociological study aims to analyze the daily challenges faced by army nurses in the Theater of Operations during the Second World War in Italy. The primary sources of investigation consist of three photographs taken during that period as well as testimonies by nine nurses, while literature on the subject is used as a secondary source. The discussion is supported by Pierre Bourdieu's concepts. The results show that these nurses faced the challenges of daily life at war and managed to adapt themselves to the adversities of the camping sites and wards. We infer that their daily life in this scenario not only made them overcome barriers, but also provided them with an opportunity to get to know new cultures and technologies.

history, nursing; work; nursing; professional practice


Este estudio histórico-sociológico tiene como objetivo analizar los retos cotidianos enfrentados por las enfermeras del Ejército Brasileño en el teatro de operaciones de la 2ª guerra mundial en Italia. Fuentes primarias: tres fotografías de la época, articuladas a los testimonios de nueve enfermeras que estuvieran en el conflicto. Fuentes secundárias: acervo bibliográfico referente al contexto histórico social del recorte temporal. Utilizamos conceitos de Pierre Bourdieu. Los resultados evidenciaron que las enfermeras enfrentaron los retos del cotidiano en la guerra y se adaptaron a las adversidades de los campamentos/enfermerías. Concluimos que las enfermeras en este escenario ultrapasaron barreras y tuvieron la oportunidad de conocer nuevas culturas y tecnologías.

historia, enfermería; trabajo; enfermería; práctica profesional


ARTIGO ORIGINAL

O cotidiano das enfermeiras do exército na força expedicionária brasileira (FEB) no teatro de operações da 2ª Guerra Mundial, na Itália (1942-1945)

The daily life of nurses in the Brazilian expeditionary force in the theater of operations during World War II, in Italy (1942-1945)

El cotidiano de las enfermeras del ejército en la fuerza expedicionária brasileña (FEB) en el teatro de operaciones de la 2ª Guerra Mundial en Italia (1942-1945)

Margarida Maria Rocha BernardesI; Gertrudes Teixeira LopesII; Tânia Cristina Franco SantosIII

IEnfermeira, Bióloga, Especialista em Administração em Serviços de Saúde, Mestre, Docente da Universidade Estácio de Sá, Enfermeira Supervisora do Hospital de Emergência Henrique Sérgio Grégori-Resende, e-mail: margarbe@globo.com

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Livre-Docente, Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador do CNPq, e-mail: gertrudeslopes@uol.com.br

IIIEnfermeira, Doutor, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pesquisador do CNPq, e-mail: taniacristinafsc@aol.com

RESUMO

Estudo histórico-social, tem como objetivo analisar os desafios cotidianos enfrentados pelas enfermeiras do Exército no Teatro de Operações da 2ª Guerra Mundial, na Itália. Utilizou-se como fontes primárias três fotografias da época e depoimentos de nove enfermeiras que estiveram no conflito. As fontes secundárias constituíram-se do acervo literário referente ao assunto. Utilizou-se conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu para apoiar a discussão. Os resultados evidenciaram que as enfermeiras enfrentaram os desafios do cotidiano na guerra e adaptaram-se às adversidades dos acampamentos/enfermarias. Conclui-se que o cotidiano das enfermeiras, nesse cenário, ao tempo que as levou ao enfrentamento de barreiras, propiciou a apreensão de novas culturas e tecnologias.

Descritores: história da enfermagem; trabalho; enfermagem; prática profissional

ABSTRACT

This historic-sociological study aims to analyze the daily challenges faced by army nurses in the Theater of Operations during the Second World War in Italy. The primary sources of investigation consist of three photographs taken during that period as well as testimonies by nine nurses, while literature on the subject is used as a secondary source. The discussion is supported by Pierre Bourdieu's concepts. The results show that these nurses faced the challenges of daily life at war and managed to adapt themselves to the adversities of the camping sites and wards. We infer that their daily life in this scenario not only made them overcome barriers, but also provided them with an opportunity to get to know new cultures and technologies.

Descriptors: history, nursing; work; nursing; professional practice

RESUMEN

Este estudio histórico-sociológico tiene como objetivo analizar los retos cotidianos enfrentados por las enfermeras del Ejército Brasileño en el teatro de operaciones de la 2ª guerra mundial en Italia. Fuentes primarias: tres fotografías de la época, articuladas a los testimonios de nueve enfermeras que estuvieran en el conflicto. Fuentes secundárias: acervo bibliográfico referente al contexto histórico social del recorte temporal. Utilizamos conceitos de Pierre Bourdieu. Los resultados evidenciaron que las enfermeras enfrentaron los retos del cotidiano en la guerra y se adaptaron a las adversidades de los campamentos/enfermerías. Concluimos que las enfermeras en este escenario ultrapasaron barreras y tuvieron la oportunidad de conocer nuevas culturas y tecnologías.

Descriptores: historia, enfermería, trabajo, enfermería; práctica profesional

INTRODUÇÃO

A 2ª Guerra Mundial aconteceu no recorte temporal brasileiro da Era Vargas: 1930-1945. Nesse contexto, foi criada uma força militar diferenciada, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que partiu para o campo de batalha comandada pelo General João Batista Mascarenhas de Moraes(1). Na oportunidade, foram para a Itália 186 profissionais de saúde, entre eles, 67 enfermeiras do Exército, sendo 61 enfermeiras hospitalares e seis especializadas em transporte aéreo(2).

Um dos fatores positivos para a inserção dessas mulheres no campo militar foi a mobilização nacional espontânea, desenvolvida por pressão popular, para a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial. Algumas brasileiras procuraram participar dessa mobilização e foi pela profissão de Enfermagem o caminho encontrado. Houve demanda significativa pelos cursos das escolas de formação de Enfermagem da época. Um fato que demonstra a importância desse voluntariado na sociedade da época foi o ingresso de duas alunas pertencentes à nobreza brasileira, as princesas Maria Francisca e Maria Tereza Órleans e Bragança, na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha Brasileira(2).

A necessidade de criação de um Quadro de Enfermeiras para atuar no cenário da guerra, juntamente com o efetivo da FEB, se deu em função de uma solicitação dos aliados norte-americanos pois "[...] as [enfermeiras] americanas já estavam sobrecarregadas de serviço, além do mais não falavam a língua dos futuros pacientes [brasileiros] [...]"(2).

O governo brasileiro, portanto, implementou, em caráter de urgência, a busca de voluntárias, de modo a atender a solicitação de um grupo hegemônico militar estrangeiro "[...] mandatários do Estado, detentores do monopólio de violência simbólica legítima[...]"(3).

As candidatas iniciaram seu voluntariado quando o jornal "O Globo", de 9 de outubro de 1943, publicou uma chamada, solicitando que mulheres entre 18 até 36 anos, solteiras, viúvas ou separadas e que possuíssem qualquer diploma de Enfermagem se apresentassem para seleção.

Posteriormente selecionadas, participaram em caráter obrigatório do Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército (CEERE)* * Segundo depoimento do General Jonas de Morais Corrêia Neto, as enfermeiras, ao terminarem o CEERE, integrando-se à FEB, tornaram-se enfermeiras da reserva. A partir do momento em que participaram dessa força operacional de combatentes, imediatamente passaram à ativa, como todo pessoal da reserva convocado. Todos passaram a estar na ativa por causa da Guerra , ministrado pela Diretoria de Saúde do Exército, cujo objetivo era formar o Quadro de Enfermagem (QEERE)** ** Pelo Decreto - Lei nº 6097/43, de 13 de dezembro de 1943, publicado no Diário Oficial da União nº 290, de 15/12/1943, foi criado o Quadro de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército Brasileiro (QEERE) . Tal curso comportou três módulos distintos: parte teórica, preparação física e instrução militar(4).

O Curso pode ser visto como representando uma estratégia gerativa de práticas em conformidade com as estruturas objetivas do campo militar, mediante a absorção pelas candidatas de um habitus militar, contribuindo para a padronização do comportamento dessas enfermeiras no Teatro de Operações (TO), na Itália.

Derivou-se como objetivo deste estudo analisar os desafios cotidianos enfrentados pelas enfermeiras do Exército no TO da 2ª Guerra Mundial na Itália.

Essa questão articula-se a outro aspecto identificado como identidade política. Estudos que abordam a interação entre identidade, trabalho e cotidiano dos enfermeiros e apontam as forças influentes no processo, podendo ajudar a compreender a construção da identidade desses profissionais, através das escolhas feitas perante os conflitos existentes, o "por quê" de sua tomada de posição(5).

Destaca-se, portanto, que a história da Enfermagem, até a conquista de seu atual status profissional, está imbricada por acontecimentos decisivos e determinantes de sua evolução, freqüentemente não registrados, gerando grandes vazios de informações.

Este estudo pretende preencher algumas lacunas da História da Enfermagem brasileira, vivenciada durante a 2ª Guerra Mundial, contribuir para ampliação de novos conhecimentos para o ensino e a prática da profissão, assim como proporcionar subsídios para posteriores aprofundamentos na área histórica da Enfermagem. Mostra-se ainda relevante, na medida em que vai contribuir como fonte primária de dados, para pesquisas históricas na Enfermagem e também em outras áreas do conhecimento.

O estudo promove ainda a divulgação de fotografias do recorte temporal existentes no Comando Militar do Leste (CML) do Exército Brasileiro, no município do Rio de Janeiro, que se encontra disponível para outros pesquisadores e novas descobertas iconográficas, em relação à enfermagem na 2º Guerra Mundial e as demais categorias profissionais, atores nesse evento de proporções mundiais.

Neste momento em que existe uma mobilização para produção de pesquisas históricas na área de conhecimento da profissão de enfermagem, em nosso país, com a criação de fóruns de discussão, núcleos de pesquisa e centros de memória sobre a história da Enfermagem brasileira, este estudo vem somar aos conhecimentos existentes novos saberes, que podem aumentar a visibilidade da Enfermagem brasileira.

DELINEAMENTO TEÓRICO- METODOLÓGICO DO ESTUDO

Trata-se de um estudo histórico, derivado da Dissertação de Mestrado intitulada "O Grupamento Feminino de Enfermagem do Exército na Força Expedicionária Brasileira durante a 2ª Guerra Mundial: uma abordagem sob o olhar fotográfico (1942-1945)".

Os dados primários preferenciais foram obtidos em documentos fotográficos (três fotografias), pertencentes ao arquivo iconográfico do CML, articulados aos depoimentos orais de nove enfermeiras da FEB que atuaram no TO, na Itália, por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Também utilizou-se de depoimentos de militares que estiveram presentes nesse conflito, contracenando direta ou indiretamente com as enfermeiras entrevistadas para este estudo. Na ocasião, esses depoentes foram esclarecidos quanto aos objetivos da entrevista e cederam por escrito os seus depoimentos e imagens filmadas, gravadas para o Centro de Memória Drª Nalva Pereira Caldas da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FENF/UERJ), com o objetivo de futuras pesquisas.

Essa forma de articular texto fotográfico com depoimentos e documentos na pesquisa histórica é um método inovador de investigação que possibilita ao pesquisador usar diferentes técnicas, aprofundando o conhecimento sobre um determinado fenômeno em estudo. Denomina-se, aqui, o método desenvolvido de MÉTODO ANALÍTICO FOTOGRÁFICO ORAL.

Ao se desenvolver essa experiência, tinha-se em mente a aproximação ao máximo das experiências vivenciadas pelas enfermeiras do Exército no Teatro de Operações durante a 2ª Guerra Mundial. Ao percorrer esse caminho metodológico não se observou que, ao mesmo tempo, estava-se desenvolvendo uma nova maneira de pesquisar em história. Também espera-se que esse novo método possa contribuir no desvelamento de fenômenos vinculados a essa área de conhecimento para outros pesquisadores.

O material selecionado foi submetido à análise de acordo com o seu conteúdo manifesto. A articulação do texto fotográfico aos depoimentos orais favoreceu a interpretação dos dados.

Os dados oriundos das fontes secundárias trataram do contexto histórico-social brasileiro dos anos 40, com destaque para o período da 2ª Guerra Mundial. Essas fontes foram coletadas em bibliografia alusiva à história do Brasil.

Os dados foram analisados à luz dos conceitos de habitus e de campo do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que proporciona fundamentos para a análise das relações dialéticas entre o habitus dos agentes e as estruturas do campo.

FRAGMENTOS DO COTIDIANO DAS ENFERMEIRAS NO TEATRO DE OPERAÇÕES DA ITÁLIA

A obrigatoriedade de concentrar diversos tipos de capital (militar, científico, político, tecnológico) é entendido como "[...] fundamento de uma dominação simbólica sem precedente [...]"(6). As enfermeiras da FEB foram selecionadas e preparadas para enfrentar uma guerra, num país distante, desconhecido para quase a totalidade delas, sendo compelidas a adotarem um modelo de conduta ajustado às exigências do campo em que iriam atuar.

No cotidiano das enfermeiras do Exército na FEB, o uniforme se constituiu em estratégia de igualdade e diferenciação do grupo. A respeito do uso dos uniformes eles possuem "[...] traço comum: criam ou recriam formas de ação originais, em seus fins e seus meios, de forte conteúdo simbólico [...]"(7).

Os uniformes das enfermeiras da FEB foram decididos por uma comissão da qual fizeram parte a Srª Darcy Vargas, esposa do Presidente da República Getúlio Vargas e a Srª Santinha Dutra, esposa do então Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra. Os modelos adotados não atenderam às expectativas, conforme registra o depoimento abaixo.

[...] Dona Santinha [...] esposa do General Dutra [...] acho que ela mandava mais do que ele que era Ministro da Guerra[...] ela e Dona Darcy Vargas [...] a Comandante [do Comitê que decidiu os uniformes das enfermeiras][...] resolveram um uniforme horroroso, pano de algodão cor cinza escuro, um vestidão solto, uns bolsos [...] parecia espantalho de arrozal [...] um triângulo daquele mesmo pano para amarrar na cabeça [...] assim como lavadeira, faxineira [...] a primeira vez que eu vesti, tive vontade de morrer [...] por sorte [...] eles nos deram os uniformes das enfermeiras americanas [...] uniforme só de trabalho [...] nós não saíamos do recinto do hospital com aquela roupa, que era um vestido aberto [...] transpassado [...] (Enfermeira Bertha Moraes).

O depoimento de outra enfermeira também registra esse descontentamento.

[...] nosso uniforme foi simplesmente desconfortável e ridículo (Enfermeira Elza Cansanção).

A preocupação com a padronização fica registrada até escolha das roupas íntimas, conforme o depoimento abaixo.

[...] por azar [...] as roupas íntimas levadas eram formadas de peças padronizadas compradas em local estipulado [...] as calcinhas eram de malha de algodão [...] podiam ser rosa, azul, mas abaixo do joelho; eu nunca vi nada igual nem em bisavó minha [...] aqui no Brasil nós já usávamos o látex como o delas [...] o soutien era verde oliva [...] por esse motivo eu, Antonieta e Carmem Bebiano tínhamos vergonha de tomar banho em conjunto com as americanas, nós tomávamos banho à noite, quando não mais funcionava a água quente e os banheiros não tinham mais luz [...] nós lavávamos nossas roupas na pia e pendurávamos nas nossas barracas [...] nós fizemos camaradagem com as americanas e elas nos levaram na cantina[então]nós compramos outras roupas íntimas [...] (Enfermeira Virgínia Portocarrero).

O poder simbólico, manifestado pela esposa do então Ministro da Guerra, está retratado nos depoimentos, quando definiu o tipo de uniforme utilizado pelas enfermeiras voluntárias que partiram para o TO, para realizar a assistência de enfermagem no front europeu.

O fato da esposa do Ministro ter o poder de decidir sobre o uniforme dessas enfermeiras conferiu a essa senhora uma grande responsabilidade. Ela foi, portanto, utilizada pelas altas autoridades que não quiseram ou puderam resolver essa questão. Assim, ela foi [...] tão manipulada quanto manipuladora[...](8). Foi manipulada ao assumir a criação dos uniformes para as enfermeiras do Exército e manipuladora, quando criou os uniformes, sem consulta a quem iria usá-los realmente.

Dada a urgência do embarque, vale ressaltar que as cinco primeiras enfermeiras partiram do Brasil sem receber os uniformes de serviço. Assim trabalharam por vinte dias, com o uniforme verde-oliva nada funcional e apropriado. Após entendimentos feitos entre as delegações brasileira e norte-americana, optou-se pelo uso do uniforme de verão norte-americano, sendo que a passeio usariam o verde-oliva brasileiro(4). Essa foi a solução conciliadora para resolver a insatisfação com os modelos dos uniformes.

A Figura 1 retrata o uniforme de verão norte-americano, objeto da polêmica. Registra a enfermeira Lúcia Osório vestida com o uniforme de verão norte-americano e surpreende-a no momento em que usa o capacete para lavagem de roupa.


O cenário representado na figura é um gramado. À esquerda da agente fotografada vê-se um balde de metal, ao fundo uma barraca com varal e roupas estendidas. A enfermeira retratada, Lúcia Osório, está vestindo o uniforme de verão norte-americano e lavando roupa num capacete militar. Pode-se deduzir a descontração do momento congelado pelo seu semblante sorridente. Essa foto foi publicada no jornal "Tribuna Popular" do Rio de Janeiro, datado de 18 de julho de 1945.

A expressividade simbólica da fotografia reside em tornar manifesto para a sociedade o cotidiano dessas enfermeiras no cenário de guerra, proporcionando uma imagem positiva de sua atuação no conflito, ao mesmo tempo em que releva os atributos inerentes à natureza feminina. Considera-se a seguinte recomendação:

"[...] A vida cotidiana não representa necessariamente um valor autônomo, visto que a continuidade do homem está fundada por aspectos e formas de atividades que são acumuladas casualmente na cotidianidade, como: o espírito de observação, a sagacidade, a capacidade de raciocinar que operam efeitos diversos, dentre outros, o amor, o ódio, o desespero, a participação, a simpatia, o desejo [...]"(9).

A depoente, ao visualizar a foto durante a entrevista, ressalta a praticidade do uniforme norte-americano.

[...] eu gostava dele [o uniforme] [...] foi usado durante o verão [...] era transpassado na frente, amarrado atrás, sem botões, de tecido listado [...] fácil de vestir e tirar [...] muito prático para trabalhar [...] acompanhando-o tinha um casaquinho de malha de tricô beje de uso facultativo [...] os sapatos americanos eram marrons e mais confortáveis do que os nossos [...] foi versátil (Enfermeira Hilda Ribeiro).

Ainda a respeito, outra depoente afirma.

[...] nós os ganhamos dos americanos [...] era prático e funcional [...] pouco o usei porque eu era do serviço aéreo [...] viajava constantemente, usando os uniformes próprios de vôo [...] (Enfermeira Lenalda Campos).

Ao visualizar a fotografia, outra enfermeira complementa a leitura do texto fotográfico.

[...] a nossa bacia [...] era o capacete, era grande, dava para lavar roupa, lavar o pé [...] o rosto [...] era o que nós usávamos mais que tudo [...] aqui era uma colega Lúcia Osório [...] ela era a moça mais bonita do nosso contingente todo [...] muito boa colega [...] o capacete era um grande amigo [...] (Enfermeira Bertha Moraes).

Outro depoimento corrobora o depoimento acima.

[...] o capacete era nosso "safa onça" [...] nós não tínhamos bacia [...] usávamos ele para tudo [...] lavávamos roupas íntimas, o uniforme de verão americano como mostra a foto, além de ter os mais diferentes fins [...] o uniforme de verão [...] secava rápido [...] era muito prático [...] não precisava passar [...] lavou, pendurou, secou, vestiu [...] usávamos ele diariamente para trabalharmos no verão [...] (Enfermeira Isabel Feitosa).

Pelos depoimentos percebe-se que os uniformes significaram muito na vida dessas enfermeiras no front italiano. "Eles [...] simbolizam uma forma extrema de roupa convencional, sendo um traje totalmente determinado pelo outro e que, em termos de discurso falado, representa estar, parcial ou totalmente, sob censura[...]"(10).

As enfermeiras tiveram sagacidade e criatividade laborativa para usarem um artefato distribuído, desenvolvendo tarefas que facilitavam seu cotidiano com ele.

Nesse sentido, quando as pessoas trocam de ambiente e enfrentam um trabalho novo com tarefas diferenciadas, absorvem sistemas inéditos, adequando-se a novos costumes, lutando dia após dia em situações cotidianas adversas(11).

Para o enfrentamento de dificuldades diárias reporta-se ao seguinte pronunciamento: "[...] é necessário que as pessoas tenham capacidade própria de negociação para enfrentar um cotidiano de dificuldades de toda ordem [...]"(9).

A Figura 2 tem ao centro a enfermeira Antonieta Ferreira em visível esforço físico, observado pela posição do corpo, segurando com as mãos uma pá com neve, procurando removê-la. O uniforme que veste é aparentemente de lã, com mangas e calças compridas. Está calçando botas de cano longo, tendo suas mãos protegidas por luvas. À esquerda da foto aparece metade do corpo de uma pessoa, provavelmente um militar por estar usando as mesmas calças e botas. Ao seu lado esquerdo, observa-se uma estaca de madeira de barraca. O chão está coberto de neve.


Recortes de depoimentos ilustram as lutas das enfermeiras frente ao clima adverso da Europa.

[...] a tenente Antonieta Ferreira remove a neve na entrada da sua barraca [...] (Enfermeira Elza Cansanção).

Outro relato evidencia as dificuldades com o clima, também no momento de repouso.

[...] Antonieta, excelente enfermeira, formada pela Cruz Vermelha Brasileira, ótima colega [...] esse mundo de neve aqui era um tormento [...] eu dormia [na barraca] com um cabo de vassoura [...] do lado da cama, [...] ia caindo a neve, caindo a barraca até chegar no rosto [...] a gente dava uma cutucada para a neve cair dos lados e dormíamos mais um pouco [...] foi muito difícil [...] mas a mocidade agüenta tudo [...] (Enfermeira Bertha Moraes).

O cotidiano das enfermeiras também foi marcado pelas dificuldades em vencer o clima frio da Europa.

[...] chegamos com um calor intenso, então foi indo gradativamente até chegar a neve [...] enfrentávamos aquele clima difícil, chuva, vento, degelo, frio, tempestade [...] às vezes pela noite a dentro a barraca resolvia desabar, acordávamos com a lona fria no rosto, dentro da cama rolo [...] coisas da guerra [...] a gente tinha que sair da cama e pegávamos aquela chuva toda [...] (Enfermeira Virgínia Portocarrero).

Esse problema foi comentado por uma das participantes da seguinte forma:

[...] o frio era uma coisa horrorosa [...] o frio na Europa é uma coisa terrível [...] olha que aqui em Belo Horizonte faz frio, mas não é nada comparado ao que passamos por lá [...] (Enfermeira Carlota Mello).

Duas enfermeiras apontam as dificuldades inerentes à inadequação das vestimentas brasileiras.

[...] os uniformes que recebemos do Brasil foi humanamente impossível serem usados [...] nós recebemos avantajados uniformes americanos de lã [...] muitas mantas para nos cobrirmos [...] existiam lareiras dentro da barracas...nos adaptamos bem [...] a compra de diversos complementos para usar com os uniformes era opcional, a capa de borracha americana com forro de lã adaptável, realmente foi comprada, mas valeu a pena, foi muito útil [...] (Enfermeira Virgínia Portocarrero).

[...] Recebemos dos americanos uma capa de chuva verde-oliva com capuz amarrado [...] a capa era revestida interiormente por um casacão de lã grosso, abotoado e removível [...] ganhamos também japona marrom esverdeada [...] a meia bota brasileira apropriada para a neve foi o equipamento brasileiro que mais nos serviu [...] (Enfermeira Hilda Ribeiro).

Os depoimentos abaixo ratificam a luta diária com o frio.

[...] a friagem era muito grande [...] quando fomos para lá [...] levamos capa de brim [inadequada] para o inverno europeu [...] as americanas nos levaram para comprar mais agasalhos [...] eu comprei capa igual à das americanas, forrada de pele [...] cachecol [...] luvas [...] (Enfermeira Roselys Teixeira).

[...] nós tínhamos estufas para nos aquecer porque o frio de lá não era de brincadeira [...] o frio foi muito intenso [...] (Enfermeira Rosalys Teixeira).

[o frio] [...] quantas e quantas noites eu fiquei com 16 graus abaixo de zero em Livorno, botava a capa por cima do pijama e ia fazer uma ronda no hospital (Enfermeira Elza Cansanção).

As afirmativas acima demonstram que a Comissão que decidiu os uniformes também não os adequou ao clima europeu. Os norte-americanos proveram essas profissionais de roupas adequadas. Como transcrito nos depoimentos acima, apesar dessa doação/concessão, alguns acessórios complementares, se quisessem usá-los, teriam que ser comprados.

Tal fato, leva à reflexão sobre a preocupação e superioridade dos norte-americanos ao prover adequadamente seus cidadãos soldados para enfrentarem o clima europeu numa guerra. Nossas enfermeiras aceitaram esses uniformes e compraram os acessórios necessários como estratégia de sobrevivência e adaptação ao regime de clima adverso, aderindo dessa forma ao modelo de fardamento do aliado dominante, que lhes pareceu mais conveniente.

Sendo assim, quanto mais adesões conseguem os dominantes, aumenta a visão de seu mundo para os dominados, auferindo-lhes mais poder(12).

A luta empreendida pelas enfermeiras do Exército no TO incluiu também diversas mudanças de localização dos hospitais, uma vez que a Guerra produz mudanças geográficas em função das estratégias bélicas de avanço ou retraimento. O Serviço de Saúde também acompanhou essa mobilidade.

A esse respeito, recorta-se o depoimento de uma enfermeira que faz alusão à mobilidade exigida do Serviço de Saúde.

[...] não tínhamos colchões nesses Hospitais de Evacuação [...] numa mudança seria muito difícil transportarmos os mesmos [...] fazíamos uso de nossa cama rolo colocada em cima da lona, e colocávamos nossas roupas estendidas e cobertores que recebíamos, pois no caso de mudança rápida, era só enrolar a cama de rolo com nossa roupa dentro e desamarrar os catres e carregar [...] Nestes hospitais de Evacuação tínhamos que estar sempre alertas com as mudanças rápidas e assim tínhamos que estar sempre tudo arrumado por precaução [...] eu me locomovi por onze hospitais porque quando avançava a tropa, nós avançávamos também [...] (Enfermeira Virgínia Portocarrero).

A Figura 3 retrata um momento de mudança de localização do Serviço de Saúde.


O cenário da figura é um campo de terra, vendo-se ao fundo barracas ainda montadas. No primeiro plano encontra-se uma enfermeira sorrindo de frente a um homem. Ambos com a mesma postura corporal, agarram com as mãos o volume que se encontra no chão, evidenciando sincronia de movimento, aparentemente feito no sentido de levantá-lo. No segundo plano, uma enfermeira entrega com a mão direita um objeto para outra enfermeira que se encontra dentro do caminhão. Esse tem bancos nas laterais e uma provável cobertura de lona. Os movimentos dos corpos dos agentes retratados nos dão idéia de como eram feitas essas mudanças dos hospitais, ou seja, cancelamento de um campo para criação de outro.

Sabe-se que "[...] o poder dos agentes e dos mecanismos que dominam o mundo [...] repousa em uma concentração extraordinária de todos os tipos de capital, econômico, político, militar [...]"(6).

Assim, a leitura do texto fotográfico articulada à fala da depoente evidencia que as enfermeiras da FEB detinham o capital militar necessário à atuação no cenário da guerra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presença de mulheres no Exército Brasileiro foi iniciada na década de quarenta, durante a 2ª Guerra Mundial, quando o Brasil, tornando-se um país aliado, organizou uma força especial, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que enviou para o Teatro de Operações (TO) um contingente de vinte e cinco mil trezentos e trinta e quatro cidadãos brasileiros, sendo 67 enfermeiras.

As enfermeiras incorporadas à FEB adquiriram o capital militar num processo de inculcação, cujas estratégias tiveram a função de fortalecer o sentimento de unidade interna do grupamento feminino, mediante a homogenização de atitudes e gestos no front europeu.

As lutas empreendidas no cotidiano da guerra, tais como o clima adverso, as mudanças de localização dos hospitais, a barreira lingüística entre outras, foram alguns dos desafios enfrentados pelo grupamento feminino de enfermagem. Por outro lado, as experiências vivenciadas junto às enfermeiras de outras nacionalidades possibilitou a incorporação de um capital cultural simbólico determinante na sua vida e no seu futuro profissional.

Vale ressaltar que a determinação do governo norte-americano correspondeu à imposição de uma visão de mundo hegemônica, constituindo-se em violência simbólica, mas permitiu a inserção da mulher enfermeira no campo militar, contribuindo para a valorização da mulher na sociedade brasileira, considerando-se que: "As guerras foram importantes vetores da profissionalização da Enfermagem no Ocidente"(13).

Recebido em: 26.4.2004

Aprovado em: 23.12.2004

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  • *
    Segundo depoimento do General Jonas de Morais Corrêia Neto, as enfermeiras, ao terminarem o CEERE, integrando-se à FEB, tornaram-se enfermeiras da reserva. A partir do momento em que participaram dessa força operacional de combatentes, imediatamente passaram à ativa, como todo pessoal da reserva convocado. Todos passaram a estar na ativa por causa da Guerra
  • **
    Pelo Decreto - Lei nº 6097/43, de 13 de dezembro de 1943, publicado no Diário Oficial da União nº 290, de 15/12/1943, foi criado o Quadro de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército Brasileiro (QEERE)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      26 Abr 2004
    • Aceito
      23 Dez 2004
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