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Cuidando para a criança crescer apesar da dor: a experiência da família

Resumos

Os objetivos desse estudo foram compreender o significado da experiência da família da criança com dor decorrente de artrite reumatóide juvenil e construir um modelo teórico representativo dessa experiência. A Teoria Fundamentada nos Dados e o Interacionismo Simbólico foram utilizados como referencial metodológico e teórico, respectivamente. Foram realizadas 12 entrevistas semi-estruturadas com famílias das crianças. A partir da análise dos dados, emergiu o modelo teórico Cuidando para a criança crescer, apesar da dor, constituído por elementos motivacionais: querendo ver a criança livre da dor e querendo ver a criança levar uma vida normal, além de elementos intervenientes, revelando como a família vivencia as transições em seus ciclos de desenvolvimento, retomando-os e integrando-os na sua dinâmica com a chegada da doença e da dor na criança. Esse modelo teórico proporciona um referencial para as práticas de ensino, pesquisa e assistência, permitindo avançar em termos de conhecimento teórico para a enfermagem.

família; criança; artrite reumatóide juvenil; dor


This study aimed to understand the meaning of the experience of families having a child experiencing pain due to Juvenile Rheumatoid Arthritis and to construct a theoretical model representing this experience. Grounded Theory and Symbolic Interactionism were used as methodological framework and theoretical framework, respectively. Data were collected by semistructured interviews with 12 families. Data analysis allowed for the construction of the theoretical model Caring for the child to grow despite the pain, which describes an experience based on motivational elements: wanting to see the child without pain and wanting to see the child live a normal life, reviewing how the family lives the transition in its development cycles, retaking and integrating them in the family dynamic with the appearance of the disease and pain in the child. This theoretical model provides a framework for teaching, research and care, permitting advances in terms of theoretical nursing knowledge.

family; child; arthritis, juvenile rheumatoid; pain


Este trabajo tuvo como objetivos comprender el cotidiano de la familia del niño que vivencia la situación de dolor consecuente de la Artritis Reumatoidea Juvenil y construir un modelo teórico representativo de esa experiencia. La Teoría Fundamentada en los Datos y el Interacionismo Simbólico fueron utilizados como referenciales metodológico y teórico, respectivamente. Los datos fueron obtenidos por intermedio de entrevistas semi-estructuradas a 12 familias. El análisis de los datos permitió construir el modelo teórico Cuidando para que el niño crezca a pesar del dolor, que describe una experiencia estructurada en torno a los elementos motivadores: queriendo ver el niño libre del dolor y queriendo ver el niño llevar una vida normal, revelando como la familia vivencia las transiciones en sus ciclos de desarrollo, integrándolos en la dinámica familiar con la llegada de la enfermedad y del dolor en el niño. Este modelo proporciona un referencial que ayuda a la enseñanza, investigación y atención, permitiendo avanzar en el conocimiento teórico en enfermería.

familia; niño; artritis reumatoide juvenil; dolor


ARTIGO ORIGINAL

Cuidando para a criança crescer apesar da dor: a experiência da família1 1 Trabalho extraído de Tese de Doutorado

Lisabelle Mariano RossatoI; Margareth AngeloII; Clovis Artur Almeida SilvaIII

IEnfermeira. Professor Doutor, e-mail: rossato@usp.br

IIEnfermeira, Professor Titular. Escola de Enfermagem, da Universidade de São Paulo, Brasil

III Médico, Instituto da Criança Pedro de Alcântara, do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo, Brasil

RESUMO

Os objetivos desse estudo foram compreender o significado da experiência da família da criança com dor decorrente de artrite reumatóide juvenil e construir um modelo teórico representativo dessa experiência. A Teoria Fundamentada nos Dados e o Interacionismo Simbólico foram utilizados como referencial metodológico e teórico, respectivamente. Foram realizadas 12 entrevistas semi-estruturadas com famílias das crianças. A partir da análise dos dados, emergiu o modelo teórico "Cuidando para a criança crescer, apesar da dor", constituído por elementos motivacionais: querendo ver a criança livre da dor e querendo ver a criança levar uma vida normal, além de elementos intervenientes, revelando como a família vivencia as transições em seus ciclos de desenvolvimento, retomando-os e integrando-os na sua dinâmica com a chegada da doença e da dor na criança. Esse modelo teórico proporciona um referencial para as práticas de ensino, pesquisa e assistência, permitindo avançar em termos de conhecimento teórico para a enfermagem.

Descritores: família; criança; artrite reumatóide juvenil; dor

INTRODUÇÃO

A dor crônica da criança representa, para a família, impacto ao vivenciar uma série de sentimentos como desespero, ansiedade, frustração e impotência ao lidar com situações do dia-a-dia. Como os adultos, a criança experiencia a dor associada a doenças como câncer, artrite reumatóide juvenil (ARJ), anemia falciforme, hemofilia, trauma acidental e queimaduras(1-4).

Resultados de uma revisão de literatura ressaltam que as pesquisas, referentes à dor crônica na criança, têm focalizado a atenção na avaliação da dor, principalmente na sua duração e intensidade, negligenciando o impacto e suas conseqüências funcionais causados na criança e na família, os quais são extremamente relevantes(5).

Investigações realizadas mostram que a dor crônica da criança altera, geralmente, o funcionamento familiar com as novas demandas geradas, possibilitando ou não desencadear habilidades na família para superar esse evento(1-2,6).

Sob essa perspectiva, constata-se a necessidade de aprofundar conhecimentos acerca da vivência da família da criança com dor decorrente da ARJ, à medida que estudos têm focalizado apenas aspectos tais como: insegurança e impotência em relação ao tratamento e ao cuidado da criança, tipo de educação oferecido, a sensação que a família tem de que sua vida está estagnada em torno da dor do filho, além da ambivalência entre a esperança e o conformismo em relação à condição física futura da criança(3-4,7).

Algumas características da ARJ, dentre elas o fato de ser incurável e progressiva, apresentando evolução incerta para a criança, relacionada à incapacidade e dependência física(3), despertou o interesse em buscar conhecimentos referentes à experiência da família ao vivenciar a situação de dor na criança.

Nesse sentido, este estudo tem como objetivos: compreender o significado da experiência da família da criança que vivencia a situação de dor decorrente de ARJ e desenvolver modelo teórico do significado da experiência da família da criança que vivencia a situação de dor decorrente de ARJ.

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

Caracterização do estudo

Como referencial metodológico, foi utilizada a Teoria Fundamentada nos Dados, que consiste na descoberta e no desenvolvimento de uma teoria com base nas informações obtidas e analisadas sistemática e comparativamente. Os autores ressaltam que a teoria significa "uma estratégia para trabalhar os dados em pesquisa, que proporciona modos de conceitualização para descrever e explicar". Esse método não tem como proposição formar uma descrição perfeita da área de investigação e sim gerar teoria que justifique, precisamente, a realidade da interação social e seu contexto estrutural à luz de um referencial teórico adequado(8).

O Interacionismo Simbólico foi escolhido como referencial teórico por atribuir importância fundamental ao sentido que as coisas representam para o comportamento humano, e seu significado ser visto como produto social com origem na interação simbólica, na qual o ser humano define e interpreta as ações por meio das atividades desenvolvidas pelas pessoas enquanto elas interagem(9).

Local e sujeitos da pesquisa

O estudo foi realizado no ambulatório de especialidades pediátricas, setor de reumatologia de um hospital-escola da cidade de São Paulo, que atende crianças portadoras de ARJ até a idade de 18 anos, após obter a aprovação do projeto de pesquisa pela Comissão de Ética da instituição onde os dados foram coletados.

A aproximação às famílias aconteceu no próprio ambulatório e cada uma foi convidada a participar do estudo, inclusive as próprias crianças. Havendo interesse e disponibilidade, as entrevistas eram agendadas com a família e foram gravadas após consentimento. A seleção foi eventual e a equipe médica auxiliou na identificação das famílias, segundo a forma e gravidade da ARJ que a criança apresentava.

O número de famílias foi pautado na análise dos depoimentos e das observações realizadas pela pesquisadora e orientado pelos grupos amostrais(9). As reflexões puderam indicar que outros dados deveriam ser coletados para que as categorias fossem melhor desenvolvidas e densificadas, conforme a análise dos dados prosseguia. A coleta de dados foi realizada até o momento que ocorreu a saturação teórica, quando foi verificadas a repetição e ausência de dados novos e a compreensão progressiva dos conceitos identificados.

Participaram do estudo 12 famílias de crianças na faixa etária entre 6 e 17 anos de idade, que vivenciavam a situação de dor decorrente da ARJ, em acompanhamento no Ambulatório de Reumatologia, como mostram abaixo as Tabelas 1 e 2. Os familiares completaram o total de 27 pessoas: 12 mães, 2 pais, 11 crianças com ARJ e 2 irmãos.

Coleta e análise de dados

A entrevista e a observação foram estratégias utilizadas para realizar a coleta de dados, sendo importantes recursos para compreensão da experiência familiar da criança com dor, decorrente de ARJ. As entrevistas foram semi-estruturadas e norteadas pela questão: "Como tem sido para vocês a experiência de ter uma criança com dor decorrente de Artrite Reumatóide Juvenil?"

O objetivo da entrevista qualitativa é entender a experiência da pessoa e assim, uma experiência não é mais verdadeira do que a outra. Pode-se encontrar várias versões do mesmo evento e elas poderão refletir perspectivas distintas do fato ocorrido(10).

A observação é outra estratégia importante a ser utilizada pelo pesquisador, pois lhe possibilita um contato bem próximo com a experiência do sujeito, olhando sob sua perspectiva, facilitando a compreensão do significado das ações atribuídas pelo sujeito(11).

Durante a coleta de dados realizada de setembro de 2001 a agosto de 2002, foi observado o comportamento dos familiares, enquanto aguardavam o atendimento da criança e suas interações com membros da equipe e outras pessoas que ali se encontravam. Todos os fatos acontecidos foram anotados, sendo denominados "notas de observação".

A coleta e a análise dos dados aconteceram simultaneamente como preconiza a Teoria Fundamentada nos Dados. A coleta de dados foi até o momento que ocorreu a saturação teórica, quando foram verificadas a repetição e ausência de dados novos e a compreensão progressiva dos conceitos identificados(8).

Para a análise dos dados as seguintes etapas foram seguidas: codificação aberta, que consiste em identificar e analisar os dados obtidos nas entrevistas e observações, que são examinados linha por linha e recortados em unidades de análise, denominadas códigos. Após a codificação de cada entrevista, foi realizada a categorização, momento em que os códigos foram agrupados em categorias, mediante suas similaridades conceituais. A codificação teórica consiste em um intenso movimento de indução e dedução, no qual os dados são comparados e as categorias densificadas, possibilitando a identificação da categoria central que representa o elo entre todas as categorias. Essa deve ser ampla o suficiente para exprimir a essência do fenômeno estudado e permitir a proposição do modelo teórico que descreve a experiência em questão(8).

RESULTADOS

A análise dos dados permitiu o desenvolvimento do modelo teórico cuidando para a criança crescer apesar da dor (Figura 1), representativo da experiência da família ao vivenciar a situação de dor decorrente da ARJ na criança.


A experiência que emergiu da integração dos conceitos revela a trajetória vivida pela família, em que significados e objetivos interagem o tempo todo. A experiência está estruturada em torno de elementos definidos como motivacionais e intervenientes e uma categoria central, que se configurou como componente essencial ao cotidiano da família que tem sob seus cuidados uma criança com ARJ.

Na interação da família com os elementos presentes na experiência, a motivação configura-se como componente-chave na interação da família para o desempenho das ações em seu cotidiano. Configura-se, dessa forma, na força que move a família para ações específicas.

Na experiência estudada, a motivação e conseqüentes ações da família relacionaram-se a interações que ocorrem em dois domínios: o domínio da doença, portanto, da dor e o domínio da criança como ser que cresce e se desenvolve.

Para que essas motivações sejam realizadas, a família deve utilizar estratégias, ações visando a execução do tratamento da criança e a tentativa de restabelecimento da vida normal, perpassando pelos ciclos de vida da doença, da família e da criança.

Ao exercer interação com a doença da criança, são geradas intenções para proporcionar cuidados no cotidiano da criança que refletem as ações realizadas pela família que interage constantemente com a dor, procurando formas de aliviá-la, querendo ver a criança livre da dor.

A busca pelo diagnóstico da criança não é percurso tranqüilo, muitas vezes, é bastante confuso e demorado, gerando alívio ao ser descoberto, além de sentimentos de medo e insegurança por tudo lhe ser desconhecido durante essa espera. Essa fase acarreta expectativas à família, deixando-a com a vida suspensa voltada, exclusivamente, à descoberta do diagnóstico.

A vida parou para todo mundo quando ele estava lá, parou tudo, a gente só pensava no hospital, nele, nossa, ele é o primeiro neto, ele é filho e irmão. (F2)

A família empenha-se para restabelecer o equilíbrio perdido, durante a fase de transição experienciada entre a criança saudável, a descoberta do diagnóstico e a convivência com uma doença crônica. Vive nova fase onde deve aprender a aplicar ações que ajudem à criança a conviver com sua nova condição de vida, necessitando desenvolver maneiras de lidar com o temor que a criança sente pelo futuro.

A gente está lidando com ela a gente já até acostumou, sabe. Minha mãe lida normal com ela, eu lido normal, carrega, passeia com ela, a gente faz de tudo um pouco pra ela. (F3)

A família precisa superar o choque inicial de receber esse diagnóstico e desenvolver formas de aprender a conviver com a imprevisibilidade da chegada da dor e, portanto, da crise. Ficando de sobreaviso, mas, mesmo assim, tendo de conseguir viver normalmente, a família permanece atenta para que os outros filhos não se sintam negligenciados ou preteridos em função da criança com dor.

Quando eu vejo que ela deitou e dormiu, eu falo ih, hoje ela não está boa, quando ela está muito quieta ela não está boa. (F4)

A alteração do funcionamento familiar começa desestruturando o antigo equilíbrio, acarretando mudanças nos papéis desempenhados pelos seus membros, sobrecarregando algum. Nem sempre esses rearranjos familiares são discutidos, muitas vezes são impostos ou considerados automáticos ao membro da família que já cumpria esse papel, antes do evento da doença. A partir do momento que a doença da criança instala-se na vida da família e começa a fazer parte dela com a mãe assumindo todo o cuidado, seus membros voltam à sua vida anterior.

Lá em casa quem se preocupa com ela sou eu, sabe como é homem, né, é sempre homem, não se interessa igual à mãe. (F7)

O fato de a mãe ficar mais próxima do cuidado da criança doente do que os outros familiares leva-a a perceber a fragilidade da criança mais claramente, tentando protegê-la e dedicando-se mais a seus cuidados. Essa situação gera conflitos nas relações familiares por não entenderem essa nova dinâmica imposta pela doença crônica, que exige muita atenção à criança, requerendo que a mãe a administre, assumindo posição conciliatória entre os membros da família.

Todos os irmãos tinham ciúmes da A. porque as atenções eram para ela. (F6)

Durante sua experiência com a doença da criança, a mãe depara-se com adversidades de diversas naturezas que precisam ser superadas para alcançar o grande propósito de cuidar para a criança crescer apesar da dor. O preconceito e a desconsideração em relação à situação da doença da criança são os elementos que mais a abatem.

Os meninos ficam mexendo com ela, tirando sarro, dando apelidos, clone, 'robocop', porque anda dura, não corre. (F5)

O segundo elemento motivacional, querendo ver a criança levar uma vida normal, representa a interação da família com o domínio da criança como ser que cresce e se desenvolve, além de vivenciar a situação de dor crônica na criança, realizando ações que lhe permita vida normal, vislumbrando seu desenvolvimento ao longo do ciclo de vida para alcançar um futuro normal, como outras pessoas.

A motivação da família é ensinar a criança a conviver com a dor, incentivar seu relacionamento com seus pares para que possa participar de atividades físicas como brincar, correr, pular, conviver socialmente, tendo amigos, freqüentando a escola e demais atividades sociais.

Durante sua experiência com a artrite, a família aprende que, mesmo a criança com doença crônica, poderá crescer normalmente, ou seja, com demandas iguais às das outras que não são doentes, sendo obrigada a se relacionar com seu filho da melhor maneira possível, mesmo que, às vezes, essa convivência seja marcada por dificuldades relativas ao comportamento intempestivo ou, ainda, à necessidade de colocação de limites, tão normais em qualquer família.

Agora ela brinca com todo mundo, conversa, joga bola, faz de tudo. (F7)

Considerando essa nova demanda, a família precisa aprender novas estratégias, mas, para que isso ocorra, deve buscar conduzir normalmente a vida da criança, sendo essa uma nova normalidade, adaptada às condições limitantes da criança.

Eu adaptei os lugares para facilitar para ela andar em casa. (F9)

Conforme a criança vai crescendo, a família necessita desenvolver habilidades no relacionamento com ela, pois, mesmo tendo uma condição crônica, precisa conviver com seus pares e, para isso, algumas ações devem ser desenvolvidas para que ela possa ter normal, como as outras.

Eu vou ensinando ela enxugar a louça, fazendo ela se esforçar para fazer alguns serviços de casa, cuido para ela não pensar que é inválida. (F10)

A condição crônica da criança demanda muito aprendizado da família, pois deve preparar a criança para o futuro, ensiná-la a enfrentar sua doença e conviver com suas limitações, incentivando-a a realizar atividades possíveis, estimulando sua independência para a vida adulta.

Agora a A. já está no cursinho, já vai sozinha, vem sozinha para o médico. (F1)

A família acredita que um futuro sem a doença acontecerá, sente esperança de encontrar a cura para a criança, seja por meio do surgimento de novos medicamentos, ou por um milagre. É fortalecida por uma religiosidade representada pela presença de muita fé em Deus.

A gente vai levando a vida como Deus quiser, mas a minha esperança é que ela vai ficar boa. (F8)

Outro construto que compõe o modelo teórico deste estudo são os elementos intervenientes, denominados: querendo sair desse pesadelo, tendo de conviver com incertezas, esperando um milagre e desejando um futuro bom.

As ações realizadas pela família são influenciadas pelos elementos intervenientes que são seus desejos manifestados, procurando ver resolvidas suas necessidades.

Querendo sair desse pesadelo é desejo que interfere negativamente na família, estimulando-a a persistir na vontade de que a criança não tenha uma doença crônica, não sinta dor, não tenha restrições físicas, deformidades, nem tampouco sofrimento.

Dá uma angústia de não saber quando vai melhorar logo e não saber até quanto ela está sentindo dor, a gente sabe que a dor é forte, mas a gente fica sem saber até quanto. (F2)

Tendo de conviver com incertezas é outro desejo que revela como a família passa a maior parte do tempo, ora tentando compreender a doença da criança, ora tendo de conviver com dúvidas em relação ao tratamento, à próxima crise dolorosa, à possível incapacidade física, às possíveis deformidades da criança, gerando muito sofrimento e insegurança em todos.

É uma incógnita, será que ela vai acordar bem hoje, a gente fica assim, o medo dela não acordar bem. (F7)

A família sempre deseja e sonha, esperando um milagre, que a criança obtenha a cura, embora, sabendo que a doença é crônica e pode apenas ser controlada, mas, mesmo assim, tem fé e acredita que Deus existe e poderá acontecer um milagre.

Os médicos falam não cura, pra mim tenho certeza que vai curar, pra mim não existe que essa doença não tem cura. (F11)

A família procura, também, pensar positivamente em relação ao futuro da criança, como se atraísse boas vibrações e a doença fosse embora. Desejando um futuro bom, é a família tentando conquistar para a criança uma vida sem dor, sem restrições, tentando obter a cura com o empenho de fazer o tratamento rigoroso.

Eu vou fazendo de tudo para evitar um futuro ruim, nada sendo impossível a Deus. (F9)

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo revelaram que o impacto do diagnóstico de artrite reumatóide juvenil é acentuado pela mudança abrupta da condição de criança normal para criança doente. Além disso, a dor aparece como precursora constante das próximas crises, deixando a família submersa em um universo desconhecido. A família sente-se insegura e ameaçada quanto ao futuro incerto da criança, relacionado às limitações e deformidades físicas.

De maneira geral, a doença surge inesperadamente e toma de assalto a família, principalmente quando o acometimento se dá com uma criança. Quando há necessidade de hospitalização, nenhuma das duas se encontra preparada para lidar com essa mudança repentina no cotidiano. Para a criança, a hospitalização representa medo do desconhecido, sofrimento físico com os procedimentos e sofrimento psicológico relacionado a todos os sentimentos novos que passa a vivenciar. Para a família, significa o sentimento de perda da normalidade, de insegurança na função de progenitores, de alteração financeira no orçamento doméstico, de dor pelo sofrimento do filho.

A preocupação maior da família é evidenciada na urgência em aliviar a dor da criança, tendo como um dos focos significativos suas necessidades, explicadas pelo elemento motivacional querendo ver a criança livre da dor.

Considera-se essencial a compreensão do ciclo de vida familiar e das demandas psicossociais determinadas pela ARJ, pois constituem elementos particularmente relevantes na experiência da família, possibilitando identificar as formas como a família maneja a experiência de doença, bem como as crises que passam a existir ao longo do desenvolvimento da família, enquanto vivencia a ARJ.

Neste estudo, a fase de descoberta da dor e doença crônica, experienciada pela família da criança, é semelhante à denominação da fase de crise da doença crônica descrita em estudo sobre o ciclo de vida da doença. O autor ressalta que este momento tem como características o aparecimento dos sintomas, a ocorrência do diagnóstico e início do tratamento, trazendo insegurança e medo à família(12).

Observa-se, neste trabalho, que a doença da criança impôs um movimento do sistema familiar para incorporar suas necessidades, acarretando crise na unidade como um todo.

Para a família da criança, a dor, na maioria das vezes, significa vivenciar momentos de crise com os quais se deparam ao longo do ciclo da vida, principalmente quando a criança precisa ser hospitalizada, enfrentando situações estressantes(13).

O impacto da dor crônica da criança é muito presente no casamento, pois a mãe, geralmente, tem a sobrecarga de deixar seu trabalho, sua casa e seus afazeres domésticos para se dedicar integralmente à criança doente que agora demanda mais cuidados e atenção, prejudicando a intimidade do casal(14).

No presente trabalho, a mãe realiza ações, ao perceber a necessidade de intervenção caracterizada pelo ciúme dos outros filhos em relação à atenção voltada para a criança com dor, vendo-se obrigada a harmonizar as relações familiares. Esse papel conciliatório é feito pela mãe como fator de equilíbrio familiar, capaz de amenizar as tensões ocorridas nos relacionamentos entre seus membros(15).

O outro elemento motivacional da família, traduzido por querendo ver a criança levar uma vida normal, mostra como a família lida com o estresse da doença ao mesmo tempo em que se desenvolve como unidade familiar. Neste sentido, emergiu também como questão fundamental: qual é a maneira utilizada pela família para atingir um nível funcional adequado às demandas da doença da criança e aos recursos disponíveis, bem como às diferentes dimensões da vida familiar, no contexto da ARJ, proporcionando uma vida normal à criança?

Conduzindo normalmente a vida da criança, é uma ação realizada pela família no presente com o propósito de preparar a criança para enfrentar as adversidades que surgirão no futuro. Certamente, é uma nova forma, adaptada às condições da criança, mas permite-lhe freqüentar normalmente a escola e continuar sua vida com seus colegas.

A família descreve a dificuldade que vai encontrando, conforme a criança vai crescendo e tornando-se adolescente. O seguimento rigoroso do tratamento que a família mantinha, até então, é posto à prova pelo adolescente, rebelando-se contra ele, deixando a família em situação vulnerável, pois sabe que a doença é progressiva e que o seguimento do tratamento é a única opção para tentar evitar a sua progressão.

Nessa fase de desenvolvimento da criança para adolescente, são geradas típicas demandas, exigindo que a família promova transformações em toda a estrutura para sair da fase de proteção dessa criança para a preparação para a vida adulta, exercendo uma função de apoio emocional, necessitando aumentar a flexibilidade das fronteiras familiares(12).

O surgimento da dor crônica da criança, ao mesmo tempo do desenvolvimento de seu ciclo de vida, abala um dos objetivos básicos de seu crescimento que é a conquista da independência adequada em relação à própria família. Portanto, é necessário avaliar o quanto a dor interfere nas atividades realizadas fora do ambiente familiar e na escola, tentando abrigar nova normalidade para a criança.

Para a família, é primordial investigar como se dá o relacionamento da criança com seus pares na escola, se tem amigos, se pode participar das brincadeiras realizadas pelas crianças, como lida com suas limitações e como se sente em relação às perguntas feitas pelos colegas sobre sua condição, a fim de ter parâmetros para ir preparando a criança para conviver com a situação de doença.

O ciclo da doença é acrescentado ao do desenvolvimento da família, incorporando as demandas da doença ao tratar a criança com dor como normal, ao lidar com os problemas de cada fase de desenvolvimento da criança. Um dos desejos que a família mais anseia é que seu filho seja normal como os outros, e à medida que ele vai crescendo com a doença, a família sonha que ele possa fazer tudo o que as outras crianças fazem, concorrendo com os outros para trabalhar, e que tenha uma vida normal como as outras pessoas.

É importante colocar, aqui, a evolução da doença crônica em um contexto desenvolvimental para se compreender a interface entre o relacionamento da dinâmica familiar e a doença crônica da criança nos diferentes ciclos de vida(12).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo avança ao desenvolver o modelo teórico Cuidando para a criança crescer apesar da dor, possibilitando atender a família da criança com dor decorrente da ARJ, auxiliando-a a compreender o início da doença, conseguindo superar mais rapidamente o impacto do diagnóstico, acomodando a doença na família, permitindo a manutenção de sua estrutura e manejando a dor crônica na criança.

Um aspecto importante da existência de modelos teóricos de experiências de famílias, gerados a partir das pesquisas, é a possibilidade de discussão a respeito da influência desses resultados na prática com famílias, proporcionando referencial teórico norteador para as práticas de ensino, pesquisa e assistência, avançando em termos de conhecimento teórico para a área da enfermagem.

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Recebido em: 19.5.2006

Aprovado em: 9.4.2007

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  • 1
    Trabalho extraído de Tese de Doutorado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Recebido
      19 Maio 2006
    • Aceito
      09 Abr 2007
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