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A morte de um filho jovem em circunstância violenta: compreendendo a vivência da mãe

Resumos

Este trabalho teve como objetivo compreender a vivência da mãe na perda de um filho jovem em circunstâncias violentas. O procedimento metodológico foi apoiado na fenomenologia. A população de estudo foi constituída por cinco mães que perderam seus filhos jovens por homicídio. Esses homicídios aconteceram em épocas distintas, com intervalo de tempo entre 50 dias e 10 anos. Utilizou-se como instrumento de coleta de dados a entrevista aberta do método fenomenológico, norteado por uma questão orientadora. A análise fenomenológica dos discursos desvelou a compreensão das significações essenciais sistematizadas nas categorias: mumificação do filho na memória; dois caminhos trilhados pela publicidade frente à morte; apego à espiritualidade para suportar a dor da morte de um filho; cumplicidade materna e impunidade dos assassinos. Os resultados deste estudo podem contribuir para a elaboração de propostas de intervenção junto às mães no sentido de ajudá-las na reorganização de suas vidas após a morte de um filho.

morte; violência; mães


This study was aimed at understanding the life of a mother who lost their child in violent circumstances. The methodological proceedings were supported on phenomenology. The study population was constituted by five mothers who had lost its young children for homicide. These homicides occurred different times ranging from 50 days to 10 years. I used as instrument of collection of data open interview the phenomenological method guided by a orienting question. The analysis phenomenology in their discourses showed the comprehension of essential meanings which were systematized in categories: the child's mummification in the memory; the two ways followed by the publicity concerning the death; fondness to spirituality to endure the pain from the child's death; maternal complicity and impunity. The results of this study can contribute to elaboration of intervention proposals close to the mothers in the sense of helping them in the reorganization of their lives after son's death.

death; violence; mothers


Este trabajo tuvo como objetivo comprender la vivencia de la madre delante de la pérdida de un hijo joven en circunstancias violentas. El procedimiento metodológico fue guiado por la fenomenología. La población del estudio fue constituida por cinco madres que perdieron sus hijos jóvenes por homicidio. Esos homicidios ocurrieron en distintos intervalos de tiempo, entre 50 días y 10 años. Utilizamos como instrumento de recolección de datos la entrevista abierta del método fenomenológico dirigida por una pregunta orientadora. El análisis fenomenológico de los discursos reveló la comprensión de los significados esenciales sistematizados en las categorías: momificando el hijo en la memoria; los caminos recorridos por la publicidad frente a la muerte; apego a la espiritualidad para soportar el dolor de la muerte de un hijo; complicidad materna; e impunidad de los asesinos. Los resultados de este estudio pueden contribuir para elaborar propuestas de intervención junto a las madres para ayudarlas a reconstruir sus vidas después de la muerte de un hijo.

muerte; violencia; madres


ARTIGO ORIGINAL

A morte de um filho jovem em circunstância violenta: compreendendo a vivência da mãe

Ana Carolina Jacinto AlarcãoI; Maria Dalva de Barros CarvalhoII; Sandra Marisa PellosoII

IPsicóloga, Mestre pela Universidade Estadual de Maringá, Brasil, e-mail: anacarolina.78@hotmail.com

IIDoutor em Enfermagem, Docente da Universidade Estadual de Maringá, Brasil, e-mail: mdbcarvalho@terra.com.br, sspelloso@uem.br

RESUMO

Este trabalho teve como objetivo compreender a vivência da mãe na perda de um filho jovem em circunstâncias violentas. O procedimento metodológico foi apoiado na fenomenologia. A população de estudo foi constituída por cinco mães que perderam seus filhos jovens por homicídio. Esses homicídios aconteceram em épocas distintas, com intervalo de tempo entre 50 dias e 10 anos. Utilizou-se como instrumento de coleta de dados a entrevista aberta do método fenomenológico, norteado por uma questão orientadora. A análise fenomenológica dos discursos desvelou a compreensão das significações essenciais sistematizadas nas categorias: mumificação do filho na memória; dois caminhos trilhados pela publicidade frente à morte; apego à espiritualidade para suportar a dor da morte de um filho; cumplicidade materna e impunidade dos assassinos. Os resultados deste estudo podem contribuir para a elaboração de propostas de intervenção junto às mães no sentido de ajudá-las na reorganização de suas vidas após a morte de um filho.

Descritores: morte; violência; mães

INTRODUÇÃO

Atualmente a violência vem ganhando espaço e crescendo de maneira assustadora. O aumento de mortes de jovens por homicídio é cada vez mais alarmante, sendo considerado, já em 1996 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como um importante problema de saúde pública(1).

O interesse pela realização desta pesquisa surgiu principalmente da interação que mantenho com mães de jovens assassinados na minha prática profissional, enquanto psicóloga atuante nas políticas públicas para juventude em condições de vulnerabilidade social, ficando sempre muito evidente o sofrimento materno, com sentimentos de injustiça, frustração e revolta que as acompanham por longo tempo.

Isso me instigou para a reflexão desta temática, pouco explorada e envolvida por sentimentos de dor e injustiça, despertando a necessidade de compreender a vivência de mães que perderam seus filhos assassinados, para poder, enquanto profissional, ser capaz de assisti-las autenticamente de uma forma mais humana e eficaz, e atuar com intervenções que possam ajudar no enfrentamento da dor.

A morte de um jovem é interpretada como interrupção no seu ciclo biológico e isso provoca sentimentos de impotência, frustração, tristeza, dor, sofrimento e angústia. Sabe-se que a morte é um fato inevitável, contudo, é difícil aceitar que aconteça precocemente. Lidar com a morte é uma questão difícil, muito pior quando ocorre com um filho, isso porque a morte de um jovem é uma situação que não é naturalmente pensada pela família, pois o normal seria que os pais morressem antes na perspectiva do ciclo vital(2).

Se a morte ocorre de maneira brusca e inesperada, é possível que o sentimento materno de perda irreparável se agrave, levando à não-aceitação, desorganização e impotência da mãe(3).

Os sentimentos vivenciados pelas mães que perderam seus filhos por homicídio alimentam a busca de justiça e punição dos culpados, a ânsia de compreender o que aconteceu e a necessidade de expressar a dor e falar sobre a tragédia vivenciada, o que pode caracterizar possível fator de risco para o desenvolvimento de um luto complicado(4).

Tendo como premissa essas considerações, o objetivo deste estudo foi compreender a vivência da mãe na morte de filho jovem em circunstâncias violentas.

METODOLOGIA

A opção pela trajetória fenomenológica veio ao encontro das inquietações frente ao fenômeno da vivência das mães de jovens assassinados. Para que esse fenômeno fizesse sentido e se tornasse inteligível, foi preciso apreender o seu significado para quem o vivenciou. A fenomenologia se mostrou assim o método ideal, já que tem como princípio que o que fundamenta todas as ciências é uma volta ao mundo da experiência, ao mundo vivido(5).

Enquanto movimento filosófico, a fenomenologia constituiu-se uma das principais correntes de pensamento do século XX, surgindo a partir das concepções de Edmund Husserl (1859-1938) que propunha, por meio da fenomenologia, a "volta às coisas mesmas", à análise das essências, entendidas como unidades ideais de significação, elementos que constituem o sentido de nossa experiência A fenomenologia objetiva a investigação direta e a descrição de fenômenos que são vivenciados pela consciência, sem teorias sobre a explicação causal e tão livre quanto possível de preconceitos(6).

Este estudo foi desenvolvido em um município de médio porte localizado no Noroeste do Estado do Paraná. Segundo o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social- IPARDES(7), o referido município apresenta o segundo maior índice de crescimento populacional do Estado do Paraná. No entanto, esse crescimento se deu de forma desordenada e sem planejamento, o que acarretou sérios problemas sociais e econômicos, entre os quais as diversas formas de violência, resultando em mortes de adolescentes.

A partir dos contatos realizados com as instâncias do Fórum e Delegacia, obtive a informação da ocorrência de uma média anual de sete homicídios de jovens. Essa média anual foi o referencial de mães de jovens assassinados a serem entrevistadas.

Com acesso aos boletins de ocorrências na Delegacia de Polícia e alguns processos no Fórum, sorteei as sete mães que nos últimos dez anos tinham perdido seus filhos assassinados, para serem contatadas e convidadas a participarem da pesquisa. As mães foram sorteadas em diferentes anos, para poder compreender as vivências e desvelar os sentimentos com pouco tempo e com maior tempo da perda de um filho por homicídio.

Das sete mães sorteadas entrevistei cinco mães, pois os discursos começaram a mostrar pontos em comum e dados novos deixaram de aparecer. Assim, as entrevistas foram encerradas porque os dados considerados em suas convergências e divergências mostraram-se suficientes para compreensão do fenômeno(8). A população de estudo foram cinco mães de jovens assassinados.

Utilizei como instrumento de coleta de dados a entrevista aberta do método fenomenológico com uma questão orientadora "o que significa para senhora vivenciar a perda de um filho por homicídio?". A entrevista fenomenológica não está fundamentada em idéias direcionadas para determinados fins, pois o que se objetiva não é um saber sobre o sujeito, mas sim, um saber do sujeito(9).

As entrevistas foram realizadas sem limite de tempo, nas residências das mães, onde estas falaram livremente. Foram gravadas para que pudesse ouvir mais atentamente os discursos reveladores da vivência na sua singularidade e subjetividade.

Foram garantidos o anonimato e o consentimento informado de todas as participantes. Na análise do conteúdo as mães foram identificadas por algarismos arábicos.

Também foi previsto um serviço de apoio e aconselhamento na Unidade de Psicologia Aplicada - UPA da Universidade Estadual de Maringá, para eventual encaminhamento daquelas que, em decorrência da participação na pesquisa, apresentassem necessidade de ajuda.

A análise dos discursos das mães dos jovens assassinados passou pelos quatro momentos descritos por Giorgi(10) na busca das convergências e também divergências de todas as unidades de significado das entrevistas, objetivando categorizar o fenômeno, o que se dá por meio da fala dos sujeitos. Cada sujeito percebe os fatos a partir de sua perspectiva e isso possibilita ao investigador ter várias visões do fenômeno. Essas várias visões no cruzamento da intersubjetividade desvelam significados comuns que permitem a compreensão do fenômeno, de sua essência.

O projeto de pesquisa foi submetido aos Princípios Éticos previamente aprovado sob o parecer de nº 373/2005 pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos - COPEP, da Universidade Estadual de Maringá-PR.

RESULTADOS

As cinco mães que participaram da pesquisa eram provenientes de famílias de baixo estrato socioeconômico, residente na periferia urbana - carente de infra-estrutura e de serviços básicos.

No primeiro contato com as mães para entrevista sobre a vivência da morte de um filho de forma violenta, elas se apresentaram muito simpáticas e receptivas, e todas se mostraram dispostas a ser entrevistadas, o que poderia, para elas, significar a possibilidade de continuar falando sobre seus filhos assassinados.

Os discursos das mães, uma vez transcritos e analisados, começaram a mostrar as convergências, ou seja, o que havia em comum entre eles, e neste momento, quando se chega às repetições, às convergências, é que se podem apreender os significados essenciais, e assim chegar à essência do fenômeno(8).

As mães entrevistadas, independentemente do tempo transcorrido desde a ocorrência do homicídio contra seus filhos jovens - que variou de 50 dias a 10 anos - todas passaram por uma vivência de perda com características semelhantes, reveladas nas categorias analisadas a seguir: mumificando o filho na memória; morte e publicidade: trilhando dois caminhos; suportando a dor da morte de um filho: apego à espiritualidade; cumplicidade materna: mães de filhos assassinos e mães de filhos assassinados e justiça x impunidade.

DISCUSSÃO

Mumificando o filho na memória

A perda de um filho se revela como um sofrimento intenso e complexo, isso porque, a intensidade da sintomatologia e duração do processo de luto parental freqüentemente difere dos processos de luto por outros tipos de perda(11).

Para as mães, os sentimentos e o sofrimento pela circunstância da morte dos filhos são preservados e revividos a cada lembrança. Mesmo tendo ocorrido há muito tempo, cada uma delas relatou minuciosamente cada detalhe do caso ocorrido com seu filho e descreveu a seqüência dos fatos, com lembranças de horários, roupas, falas e desejos do filho antes da morte.

Os relatos das mães revelaram o persistente estado de ligação, do vínculo de amor estabelecido com o filho que morreu, gera elevadíssimos níveis de angústia(12).

Outro fator complicador para a vivência da perda de um filho por assassinato é a violência física contra seu corpo, que despertou nas mães a revolta e o desespero.

No presente estudo as mortes por homicídio ocorreram por asfixia, arma de fogo, arma branca e agressões contra a vítima (estupro), mortes violentas que persistem na lembrança de cada mãe como "uma morte não digna", aumentando a dor a cada momento e fazendo-a imaginar os instantes de sofrimento de seu filho ao morrer clamando por ajuda.

O estado em que fica a pessoa que morreu pode ter forte influência na memória e lembranças que se têm. Os discursos das mães revelaram que essas lembranças são insuportáveis.

Apesar da inaceitabilidade da morte dos filhos, as mães não demonstraram apego a objetos e pertences, ou à negação da morte do filho; no entanto, é de intensa magnitude o apego às lembranças e à memória que elas carregam, sobretudo em relação ao filho, as quais são revividas intensamente, não importando quanto tempo tenha se passado.

Isso me levou a acreditar em uma mumificação da memória materna, que conduz as mães ao desespero e a uma situação insustentável, mas também significa a preservação viva de um vínculo saudável com seu filho. Essa mumificação na memória se revela como um retornar do filho ao útero materno, para a proteção e privacidade de sentimentos tão nobres e delicados. Esta mumificação parece não significar negação da morte ou esperança de retorno do filho assassinado, e sim, demonstrar uma profunda ligação afetiva e desejo de justiça.

As reações de dor e sofrimento intenso, a mumificação das lembranças das mães diante da morte de um filho, revelou que as famílias acometidas pela violência não estão tendo assistência adequada, não têm o apoio necessário para o enfrentamento de tamanha tragédia, que pode atingir de forma negativa sua vida pessoal, familiar e social.

Morte e publicidade: trilhando dois caminhos

A mídia, em suas diversas formas, difunde amplamente junto à população os fatos de interesse ou que causam impacto. Das notícias por ela propagadas a violência está entre as mais comuns, em função dos seus índices crescentes e alarmantes.

Neste sistema de informação, pelo interesse na audiência, existe uma evidente invasão da imprensa a qual transforma a perda em morte pública, levando a uma desumanização da morte e banalização do sofrimento.

Na posição de edição, escolhem os acontecimentos, as mortes que merecem "investimentos", aquelas que resultarão em audiência e renderão leitura. Para isso invadem os locais dos acontecimentos, buscam relatos dos familiares, e com essa função, certamente correm o risco de atravessar a linha do bom senso e do respeito.

É patente a reação de repúdio e oposição da maioria das mães às atitudes dos repórteres ante a morte de seus filhos. Elas relataram a situação de desconforto em que foram colocadas pela imprensa sensacionalista, que invadiu sua privacidade somente pela busca de notícia e audiência.

São evidentes os problemas da cobertura jornalística e a falta de sensibilidade que permeiam os momentos de tragédia. A linha entre o dever de informar sobre uma tragédia e o respeito aos direitos dos que querem sofrer longe das lentes e dos microfones é muito tênue e exige dos jornalistas grande respeito e sensibilidade.

Mas a massificação desses meios de comunicação aprofundaram a tendência a transformar mortes trágicas em notícias, e de modo quase simultâneo, destacam a coisificação da morte. Deste modo, a morte se torna pública, impessoal, perdendo o seu caráter existencial, como a mais irremissível de todas as possibilidades(13).

Essas práticas que invadem e expõem a dor do outro, principalmente em se tratando de pessoas pobres e anônimas, são comuns nos jornais e emissoras ditos populares, que vendem muito com as tragédias anunciadas(14).

Não obstante, o tratamento dado à notícia e a atitude da mídia diante da vítima e dos familiares dependem do perfil do órgão. Muitas vezes a mídia revela uma função positiva quanto à divulgação da informação, o que torna necessário compreender seu papel por outro prisma.

Elemento essencial em nossa sociedade, a mídia atua também como agente de denúncia e, igualmente, como um agente fixador da memória, ao contar e produzir uma história para a sociedade e propagar a informação, podendo intensificar a resolução dos casos.

Apenas para a mãe n° 2 o papel da mídia na resolução do caso foi de suma importância, pois após a decepção com a justiça em relação à condenação do assassino do seu filho, a mãe viu na imprensa uma aliada. A imprensa, neste caso, transmitiu à ela a segurança e confiabilidade que deveriam ser expressas pelo poder judiciário.

Com toda a convicção a mãe 2 afirmou: ... toda imprensa foi muito boa e temos que valorizar a imprensa porque só acontece alguma coisa na justiça com pobre se tiver à imprensa pra cobrar, pra pressionar, pra colocar no ar.

Diante dessas situações vivenciadas pelas mães em relação à mídia e à publicidade da morte violenta de seus filhos, compreende-se a existência de dois caminhos trilhados pelos meios de comunicação ao divulgar a morte por homicídio, caminhos que são opostos e com diferentes conseqüências: a mídia pode-se revelar como uma invasora de privacidade e, sob outra perspectiva, como uma aliada na busca de justiça e, indiretamente, na compreensão da dor da perda das mães.

Suportando a dor da morte de um filho: o apego à espiritualidade

O processo de vivência da perda refere-se às concepções que as mães têm do mundo, pois a perda pode pôr em causa, inicialmente, várias crenças e desafiar valores fundamentais na busca de compreensão da morte violenta de um filho.

Diante de uma morte cuja causa não é natural crescem os sentimentos de incompreensão, injustiça e revolta. A perda torna-se inaceitável, por tirar dos seus filhos o direito de viver, diferentemente de quando a morte acontece pelo processo natural de envelhecimento ou doença. Quando ela ocorre por ato de crueldade dos homens se torna inadmissível e inconformável para as mães.

A indignação, a revolta e o inconformismo das mães só encontraram guarida na espiritualidade, na crença de um mundo melhor que o mundo físico que se apresenta a elas - um mundo de violência, de desrespeito, de dor e sofrimento. Também, que outros recursos podem ter além da busca pelo sagrado(15)?

As mães, logo de início, destacaram a crença em Deus como fortaleza para sobreviver à morte violenta do filho.

A mãe n° 1 relatou: Quem não acredita em Deus com certeza fica louca. Eu me apeguei em Deus, se não, eu não ia sobreviver... Vou na igreja sempre, e se alguém me perguntar como consigo sobreviver é por Ele, só Deus pra dar força pra gente, Ele que me fortalece.

É notória a relação intrínseca entre a religião e períodos críticos ou estressantes da vida. Dificuldades, sofrimentos e conflitos representam o foco da atenção de orientações da religião de como lidar com a dor, perdas, fracassos, ou com sentimentos de impotência diante de problemas.

Tais considerações se revelaram em todas as entrevistas: a fé, a religião, o poder divino no dizer das mães - acabam por tornar tolerável o insuportável, ao oferecerem força para lidar com a tragédia e continuar vivendo.

Este aspecto do processo de reestruturação da vida após a perda de um filho representa um desafio e mostra a necessidade de os profissionais refletirem sobre a relação entre a espiritualidade e o enfrentamento da perda, relação esta muitas vezes por eles negligenciada ou negada.

Cumplicidade materna: mães de filhos assassinados e mães de filhos assassinos

A maternidade atravessa o dia-a-dia das mulheres desde a infância. Desde criança a menina brinca de boneca, de casinha, ocupando sempre o papel de mãe; e na descrição desse papel da infância encontra-se também a definição de maternidade como cuidadora e responsável pelo bem estar da família(15).

Esse simbolismo da maternidade unifica entre si as mulheres como únicas a vivenciarem o estado de gestação, nascimento e amamentação de seus filhos, criando também uma esfera emocional de compreensão exclusiva das mães nessas situações.

Todas as mães entrevistadas afirmaram que a vivência da maternidade e da tragédia, ou seja, de uma maternidade estraçalhada, gera uma solidariedade e uma união muito fortes entre elas. A mãe n° 2, em choro aflito, expressou: ...a cada morte que acontece eu revivo em mim a dor, principalmente penso nas mães que estão passando por isso.

Ainda quando se alude às condições da perda de um filho por homicídio, envolvendo diretamente duas situações - a da vítima e a do assassino - é interessante destacar que esta solidariedade entre as mães firma-se na representação simbólica do amor materno, em que a mãe da vítima expõe seus sentimentos de solidariedade e apoio à mãe do assassino.

Todas as mães entrevistadas empenharam-se incansavelmente na busca de justiça e condenação dos assassinos; no entanto, referiram-se às mães destes com compaixão. A mãe n° 5 revelou: Eu acho que a mãe desse assassino é contra o que ele faz, nenhuma mãe cria um filho para ser assassino.

Assim, são duas as condições de perda de um filho: uma é a da mãe na posição de perder um filho assassinado bruscamente e outra a da mãe na posição de perder um filho para o mundo do crime. Essa "irmandade" de sentimentos foi aclamada por todas as mães.

Assim, revelou-se que, nos discursos das mães que perderam seus filhos por assassínio, todas acabaram por ser cúmplices e solidárias, até com aquelas mães em relação às quais, pela lógica, isso seria impossível: as mães dos assassinos de seus filhos. As mães das vítimas reconheceram que essas mães também estão sofrendo, também perderam um filho, e nunca desejam vingança, e sim, punição dos assassinos.

Justiça X Impunidade

Para aqueles cuja pessoa amada foi vítima de homicídio, continuar o luto é difícil, senão impossível, até que os aspectos legais do caso sejam resolvidos(16).

Com a realidade da violência tornando-se parte de suas vidas e com a vivência cruel da impunidade, as mães revelaram a construção de uma nova representação: mães que buscam justiça, mães que aparecem nas ruas, que invadem os órgãos públicos, por causa de uma dura realidade que sofrem em comum: a violência contra seus filhos.

A história da mãe n° 2 ilustrou bem essa realidade, descrevendo todos os momentos da busca pelo assassino de seu filho: ... o assassino ficou dois anos e meio fugido, e durante esses dois anos eu procurei ele ... nós mesmos que tivemos que achar ele, nunca desistimos.

Considera-se, ainda, que estas famílias, além da morte dos filhos e da impunidade dos assassinos, trazem a vivência de outras situações múltiplas de violência, num contexto de violência institucional, social, econômica, uma vez que se defrontam com situações relacionadas à justiça como inacessibilidade a autoridades e a informações sobre a resolução dos crimes.

A dor passa a ser uma realidade eternamente presente nas vidas das mães, e é desta dor versus amor que nasce a força para o surgimento da mãe justiceira. A mãe n° 3 apresentou sua pertinácia a gente que é mãe nunca desiste.

A esperança de reencontrar o filho até não existe mais para essas mães, contudo, permanece a luta, nem que seja pelos outros filhos, pelos filhos de outras mães, para que isso "não volte nunca mais a acontecer". Essa busca de punição, de que se faça justiça, acaba sendo um motivador, um incentivo de vida.

Com a maternidade a mãe incorpora a função de proteger, cuidar e garantir o bem-estar físico, emocional e social do filho. A perda de um filho representa, para ela, fracasso em sua função materna, e ela se sente roubada em seu papel de proteger e de ser necessária a algo ou alguém. Com o assassinato do filho vem a culpa pela crença de ter falhado em sua proteção, sentindo-se ela responsável pelo que aconteceu, por falhar no dever de cuidar(11).

Assim, o desejo de justiça se faz indispensável para elas. Quando há a punição do assassino parece que grande parte deste sentimento desaparece, uma vez que as mães podem verificar e dizer que os culpados foram punidos. A condenação, assim, é também uma forma de diminuir a inevitável culpa que elas sentem pelo ocorrido.

Nas entrevistas, as desvantagens das mães do presente estudo, pelo fato de serem desprovidas de bens financeiros, manifestaram-se de forma categórica quanto ao acesso à justiça.

Algumas tragédias não escolhem classes sociais, mas o status conta muito quando se trata de reivindicar e garantir direitos. Existe uma constatação evidente de que justiça não é sinônima de lei(14).

A mãe n° 4 com um choro angustiante revelou os assassinos fugiram, mas sempre é assim, se fosse filho de rico, daí sim eles (policiais) vão atrás, mas com a gente é assim, é a mesma coisa se tivesse matado um cachorro na rua.

Todavia, mesmo neste contexto, as mães sofredoras responsáveis pelos filhos, apeadas de seus direitos, ainda persistiram em converter a dor em ação, procurando fazer justiça. A impunidade dos assassinos desvelou uma influência negativa na aceitação da perda do filho e na sua elaboração por parte da mãe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos dizer que as pesquisas e discussões sobre a questão da morte possuem uma trajetória de conquistas e avanços, mas também um horizonte de muitos desafios, ainda mais quando se pensa em uma rede de apoio em suas diversas áreas - saúde, social, segurança, judicial - para os que vivenciam as perdas. A dor da perda deveria ser acolhida e compartilhada por esta rede social, que deveria também assegurar amparo e segurança efetiva para a sociedade.

A compreensão das vivências das mães que perderam seus filhos de forma violenta colabora para um olhar mais compreensivo para a perda, possibilitando o enfrentamento da morte com dignidade e apoio. Cria a perspectiva de intervenções profissionais mais adequadas, em que as mães sejam ouvidas e acolhidas. Intervenções capazes de propiciar-lhes melhor superação da dor, a expressão dos seus sentimentos e um reinvestir em suas vidas e desejos. Demonstra ainda, a necessidade de políticas pública para juventude e segurança para sociedade.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2007
  • Aceito
    20 Fev 2008
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