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O cotidiano dos alunos na escola de enfermagem Alfredo Pinto (1949-1956)

Resumos

O objetivo deste estudo foi analisar as estratégias dos alunos para se adequarem ao sistema estabelecido pela diretora da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, demarcando as transformações e suas influências sobre a vida acadêmica, no período de 1949 a 1956. O método utilizado foi o estudo de natureza histórico-social, que utiliza a história oral temática como método para coleta de dados; as fontes utilizadas foram depoimentos orais dos alunos da Escola no período de 1949 a 1956 e documentos do Arquivo Setorial Enfermeira Maria de Castro Pamphiro, da UNIRIO. Os resultados mostram que as alunas de imediato se deparavam com o desafio da adaptação às regras existentes na Escola, como a alimentação, a vestimenta, enfim, uma mudança no dia-a-dia delas. Conclui-se, aqui, que, no decorrer do curso, construíram estratégias que lhes permitiam burlar tais regras, se adaptarem aos novos costumes e a tornarem a convivência prazerosa.

história da enfermagem; enfermagem; escolas de enfermagem


AIM: To analyze students' strategies to adapt to the system established by the dean of Alfredo Pinto Nursing School (1949-1956). METHOD: This historical-social study uses the thematic oral history to guide data collection. Sources: students' oral statements related to the period from 1949 to 1956 and written documents from the file of the nurse Maria de Castro Pamphiro at UNIRIO. RESULTS: students immediately faced the challenge of adapting to the school's rules regarding eating, clothing, and all changes presented in their daily life. Discussion: They created, along the course, strategies to cheat on rules, adapt to new customs and make life more enjoyable.

history of nursing; nursing; nursing schools


El objetivo de este estudio fue analizar las estrategias de los alumnos para adecuarse al sistema establecido por la directora de la Escuela de Enfermería Alfredo Pinto, demarcando las transformaciones y sus influencias sobre la vida académica, en el período de 1949 la 1956. El método utilizado fue el estudio de naturaleza histórico social, que utiliza la historia oral temática como método para recolección de datos; las fuentes utilizadas fueron declaraciones orales de los alumnos de la Escuela en el período de 1949 a 1956 y documentos del Archivo Sectorial Enfermera Maria de Castro Pamphiro, de la UNIRIO. Los resultados muestran que las alumnas de inmediato se encontraban con el desafío de adaptarse a las reglas existentes en la Escuela, como la alimentación, el vestuario, en fin, un cambio en lo cotidiano de ellas. Se concluye, aquí, que, en el decorrer del curso, construyeron estrategias que les permitía burlar tales reglas, adaptarse a las nuevas costumbres y a transformar la convivencia en una experiencia placentera.

historia de la enfermería; enfermería; escuelas de enfermería


ARTIGO ORIGINAL

O cotidiano dos alunos na escola de enfermagem Alfredo Pinto (1949-1956)1

Marcia da Rocha MeirellesI; Wellington Mendonça de AmorimII

IEscola de Enfermagem Alfredo Pinto, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil: Aluna de graduação, e-mail: marciameirelles@oi.com.br

IIEscola de Enfermagem Alfredo Pinto, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil: Doutor em História da Enfermagem, Professor Adjunto, e-mail amorimw@gmail.com

RESUMO

O objetivo deste estudo foi analisar as estratégias dos alunos para se adequarem ao sistema estabelecido pela diretora da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, demarcando as transformações e suas influências sobre a vida acadêmica, no período de 1949 a 1956. O método utilizado foi o estudo de natureza histórico-social, que utiliza a história oral temática como método para coleta de dados; as fontes utilizadas foram depoimentos orais dos alunos da Escola no período de 1949 a 1956 e documentos do Arquivo Setorial Enfermeira Maria de Castro Pamphiro, da UNIRIO. Os resultados mostram que as alunas de imediato se deparavam com o desafio da adaptação às regras existentes na Escola, como a alimentação, a vestimenta, enfim, uma mudança no dia-a-dia delas. Conclui-se, aqui, que, no decorrer do curso, construíram estratégias que lhes permitiam burlar tais regras, se adaptarem aos novos costumes e a tornarem a convivência prazerosa.

Descritores: história da enfermagem; enfermagem; escolas de enfermagem

INTRODUÇÃO

O objeto desta pesquisa é o cotidiano dos alunos na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, no período de 1949 a 1956. Foi definido como marco inicial do estudo o ano em que passou a vigorar a Lei 775/1949(1), que dispõe sobre o ensino de enfermagem no Brasil e, como marco final, o término da gestão da primeira enfermeira diretora da Escola, Maria de Castro Pamphiro, em 1956.

Esse período foi marcado por diversas transformações no setor político e econômico do país. O ano 1950 foi caracterizado pelo retorno de Getúlio Vargas à presidência que, com apoio popular, criou empresas estatais e monopolistas, atuantes em todas as áreas de infra-estrutura como petróleo, eletricidade e siderurgia(2).

No âmbito da saúde, Vargas sancionou, em 1953, a Lei 1920(3) que criou o Ministério da Saúde, ao qual foram transferidos todos os atuais órgãos e serviços do antigo Ministério da Educação e Saúde, atinentes à saúde e à criança, e desmembrados aqueles que exerciam atividade em comum.

Em 1954, o avanço do Estado na economia passou a gerar fortes reações contra o presidente. Tal revolta não conseguiu derrubá-lo do poder, mas, após o atentado sofrido por Carlos Lacerda, um de seus maiores opositores, Vargas teve seu cargo abalado, preferindo o suicídio à renúncia(2).

No ano seguinte, Juscelino Kubitschek foi eleito presidente, sendo seu governo pautado por um Plano de Metas, onde estavam definidas as prioridades e identificados os pontos críticos a serem superados com urgência, além da construção de nova capital na região central do país(2). O país cresceu consideravelmente durante o governo de Juscelino; foram anos de otimismo, embalados por altos índices de crescimento econômico(4).

A motivação do estudo, no entanto, decorre dos acontecimentos que influenciaram a trajetória da primeira escola de enfermagem brasileira, em meados do século XX. Assim, em 1943, Maria de Castro Pamphiro assumiu a direção da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto (EEAP), tornando-se a primeira diretora enfermeira dessa Escola. Após assumir o cargo, deu início a diversas transformações no espaço da EEAP, destacando-se a luta pelo reconhecimento do curso oferecido na Escola como sendo de enfermagem e não mais de enfermeiro-auxiliar, conforme o desejo do Departamento Nacional de Saúde e oficializado no regulamento da EEAP de 1942, buscando igualar-se ao ensino ministrado nas escolas equiparadas ao padrão Anna Nery.

Tal fato, apesar de não ter se concretizado até 1948, foi amenizado pela Lei 775/1949 que regulamentou o ensino de enfermagem no país. Essa Lei constituiu-se em marco na história da enfermagem brasileira e encerrou a vigência do Decreto 20 109/1931 que concedia à Escola de Enfermagem Anna Nery o privilégio de constituir-se como padrão oficial para as demais escolas de enfermagem brasileiras(5).

A diretora da EEAP buscou, durante sua gestão, modificar não só o ensino ministrado na Escola, como também introduziu cerimônias religiosas, premiação aos melhores alunos, realizou atividades culturais, confeccionou novos uniformes, incorporou rituais como a entrega da insígnia e da touca, dentre outros costumes, como consta em seu relatório(6), que possivelmente geraram transformações em seu cotidiano.

E, para se alcançar o conhecimento em relação às práticas cotidianas, as quais estão na dependência de um grande conjunto, difícil de delimitar(7), o estudo da reconfiguração da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto tornou-se possibilidade de consolidação de acesso a novas fontes documentais. No entanto, tais documentos oficiais expressam majoritariamente as opiniões e as posições dos principais agentes dos campos da psiquiatria, saúde pública e enfermagem, sendo que o mesmo não tem ocorrido com a voz dos alunos e alunas que faziam parte dessa Escola na época em que aconteceram as principais mudanças em sua estrutura.

Nesse sentido, apresenta-se, aqui, como questão de pesquisa digna de elucidação a construção de fontes documentais, a partir de depoimentos orais de sujeitos, que tenham vivido nesse período e preservado em suas memórias informações que contribuam para o conhecimento sobre o cotidiano dos alunos na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, na gestão da primeira diretora enfermeira.

E para operacionalizar o estudo definiu-se como objetivos: descrever o dia-a-dia dos alunos na EEAP na segunda metade da gestão de Maria de Castro Pamphiro e analisar as estratégias dos alunos para se adequarem ao sistema estabelecido pela diretora da EEAP, demarcando as transformações e suas influências sobre a vida acadêmica, no período de 1949 a 1956.

Justifica-se este estudo pela apresentação como categoria central o cotidiano dos alunos circunscrito a uma escola de enfermagem. Tal proposta vem acrescentar as produções anteriores sobre o tema, com destaque para o estudo intitulado O cotidiano das enfermeiras do exército na Força Expedicionária Brasileira (FEB) no teatro de operações da 2ª Guerra Mundial, na Itália, no período de 1942 a 1945(8).

Entende-se, também, que o desenvolvimento deste estudo representa contribuição significativa à pesquisa institucional, intitulada A reconfiguração da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto na gestão da primeira enfermeira diretora (1943-1956), da linha de pesquisa Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, do grupo de pesquisa (CNPq) Laboratório de Pesquisa em História da Enfermagem Brasileira - Laphe, da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E por se dar nesse espaço laboratorial, caracteriza-se como prática investigativa e que incrementa a produção científica(9). E, de outro modo, a produção de novas versões e interpretações sobre a trajetória da EEAP continuará sinalizando outros estudos em História da Enfermagem a serem desenvolvidos pelos alunos de graduação e de pós-graduação.

E, na medida em que "a memória coletiva, além de uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder"(10), esta pesquisa concede visibilidade e prestígio a certos acontecimentos vivenciados pelas ex-alunas, evidenciando a solidariedade grupal e a identidade social da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto.

MÉTODO

Trata-se de estudo de natureza histórico-social, que utilizou a história oral temática como método para coleta de dados, sendo esse considerado "um recurso moderno usado para elaboração de documentos, arquivamento, e estudos referentes à vida social de pessoas. Ele é sempre uma história do tempo presente e é reconhecido como história viva"(11).

Os sujeitos da pesquisa foram ex-alunos da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto do período de 1949 a 1956. A Escola oferecia cursos para formação de profissionais enfermeiros e auxiliares de enfermagem, ambos com alunas em regime de internato, ou seja, alunas dos dois cursos mantinham convivência no dia-a-dia na Escola.

No recorte temporal do estudo, há o registro de 130 alunos(as) de enfermagem e 82 alunos do curso de auxiliares de enfermagem formados na EEAP. No entanto, na busca ativa dos sujeitos potenciais (sexo feminino, não residentes no Distrito Federal, vivos e em condições de fornecer depoimentos), localizou-se 10 (dez) enfermeiras e 2 (duas) auxiliares de enfermagem. Dessas enfermeiras, 7 (sete) tiveram seus registros localizados no setor de aposentadoria de um hospital público federal fundado em 1947, 2 (duas) atuam como docentes de instituições de ensino de enfermagem e 1 (uma) está aposentada por outra instituição. Em relação às auxiliares de enfermagem, foram localizadas por intermédio de um docente da EEAP/UNIRIO, que tomou conhecimento deste estudo. Após a realização de contato por telefone, as sete enfermeiras aposentados não aceitaram participar por motivo de doença ou por insegurança em receber um entrevistador em seu lar. Em relação às auxiliares, uma não se encontrava em condições de fornecer a entrevista. As demais enfermeiras e uma auxiliar de enfermagem concordaram em conceder depoimentos.

Como ponto inicial da pesquisa, destaca-se que a mesma ocorreu a partir do ponto zero, denominação referente ao depoente que conheça a história do grupo ou com quem se quer fazer a entrevista central(11), o qual foi encontrado atuando como docente de uma Escola de Enfermagem do setor privado, situada no município do Rio de Janeiro.

Após o término da seleção dos sujeitos, teve início o processo das entrevistas, as quais foram semi-estruturadas e tendo a técnica do gravador como suporte, além de um caderno de campo, que funcionou como diário, onde foram registradas as condições e as impressões das entrevistas. Os depoimentos foram identificados através da letra E, seguida pelo número correspondente à ordem no qual eles foram colhidos, sendo as entrevistas de número 1 e 2, realizadas com a mesma depoente enfermeira, a de número 3, com a depoente auxiliar de enfermagem e as de número 4 e 5, com as demais depoentes enfermeiras, totalizando cinco depoimentos a partir de quatro depoentes. Não se encontrou alunos do sexo masculino para participarem da pesquisa. Todos os nomes citados nos resultados são fictícios.

As fontes primárias foram os depoimentos orais das alunas, complementados com os documentos existentes no acervo do Arquivo Setorial Enfermeira Maria de Castro Pamphiro - EEAP/UNIRIO. Como fontes secundárias, foram utilizadas bibliografias relativas à História da Enfermagem, à Trajetória das Escolas de Enfermagem Brasileiras, à produção historiográfica do Laboratório de Pesquisa em História da Enfermagem e à História do Brasil.

Para análise dos depoimentos, foi utilizada a técnica da categorização temática, que é operação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com critérios previamente definidos(12).

Como se trata de pesquisa com seres humanos, a mesma atendeu à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), sendo elaborado termo de consentimento livre e esclarecido e foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNIRIO, obtendo aprovação.

Depois da realização da entrevista, foi entregue ao depoente uma carta de cessão que, após a leitura e conferência do material transcrito, o mesmo concedeu ao LAPHE o direito de arquivar as fitas com suas respectivas entrevistas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Quando se tenta definir o cotidiano, de imediato vem em mente o termo "dia-a-dia", termo esse que engloba a vida em que se vive, seja no lar, no trabalho, na escola, por onde se passa, por onde se constrói a vida, a história. Logo, ao se tentar identificar os fatores que estruturam a cotidianidade de um determinado grupo, observa-se que a mesma é dependente, quase que em sua totalidade, das relações estabelecidas entre aqueles que o compõem, sendo assim, "não se pode existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com o outro"(13).

A ordem(ação) dos veteranos

Os calouros deveriam incorporar a orientação dos veteranos quanto à utilização dos espaços no interior da EEAP, o qual representava a diferença, e certa obediência, dos mais novos em relação aos mais velhos. Quando se é inserido em um novo meio, logo se observa que "a realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetivos que foram designados como objetos antes de minha entrada em cena"(13).

Nos primeiros seis meses nós éramos chamadas de preliminares. Então, quem estava como preliminar, que hoje são os "calouros", se estivesse na fila e se chegasse uma do terceiro ou quarto período, ela tinha que dar a vez (E2).

Existia uma certa incompatibilidade das estudantes de enfermagem com relação às alunas do curso de auxiliar. As mais velhas exigiam respeito, pois elas já estavam ali e nós estávamos chegando, primeira turma de auxiliar de enfermagem (E3).

Éramos chamadas de 'prelis'. Não tínhamos direito a nada, só a estudar. Nós tínhamos sempre que sermos as últimas da fila. Em tudo as 'prelis' tinham que ser as últimas. (E4).

A convivência

As alunas buscavam, através da formação de grupos, se adaptarem aos novos costumes de vida e a tornarem o ambiente em que viviam o mais prazeroso possível, não sendo uma tarefa fácil para todas. "O indivíduo necessita estar inserido em grupos (na família, na escola, na comunidade), para que se estabeleça uma mediação entre ele e os costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores"(14).

A gente se sentia em casa. Quando não estávamos no estágio podíamos tocar piano, quem gostava de dançar dançava. Foi uma vida em família. Foi muito bom (E3).

A convivência era extraordinária. Imagine sermos colegas de sala e convivermos por 24 horas. Era tão boa que se formavam grupos, e não patotas. O que significava estudar, fazer as refeições, tudo em conjunto de cinco ou seis de acordo com as afinidades. O entrosamento era perfeito inclusive entre todos os grupos. Havia uma alegria reinante na Escola, não sei se porque nós éramos muito presas e tudo para nós era uma satisfação (E2).

Não tínhamos problema algum. A gente ia conhecendo as colegas no decorrer do tempo, as das outras turmas, as mais antigas eram as que sempre tinham as preferências e nós, sonhávamos chegar lá para termos as preferências e "maltratarmos" os outros. O relacionamento com as professoras era muito bom, e elas também (E4).

Os hábitos alimentares

A alimentação era realizada de forma adequada, ou seja, eram oferecidas cinco refeições diárias, servidas em seus devidos horários. O relato dessa atividade demonstra a disciplina com o horário e com a quantidade das refeições, de modo a padronizar uma organização quanto aos hábitos alimentares, os quais deveriam ser os mais distintos, independente das raízes regionais dessas alunas.

Nós tínhamos uma alimentação balanceada. Eram seis refeições diárias, primeiro o café da manhã, lanche às 10 horas, almoço, lanche às 15 horas, jantar e ainda tinha um simbólico chá das 22 horas. O chá, esse era infalível, na xícara de ágata, que conserva o calor. Todos os dias tinha esse chá. Tomava quem queria, não éramos obrigadas .(E2).

A alimentação era ótima. Pela manhã era pão, queijo, geléia e leite, manteiga. Tinha dias que vinha bolo, café, leite, pão. Tinha dias que vinha biscoito com queijo. O almoço também era variado. Tinha feijão, arroz, galinha, carninha assada, às vezes era feito rocambole de carne com batata, mas sempre tinha uma salada, sempre de legumes. Nós comíamos sempre legumes. Era muito bom. O jantar, quando sobrava alguma coisa do almoço, a gente comia no jantar. Mas sempre tinha qualhada, variava, tinha sempre uma sobremesa. Não tinha ceia (E3).

A vestimenta

As alunas deveriam se vestir com os uniformes da Escola, após ultrapassarem a primeira etapa, de acordo com os seus respectivos cursos, os quais deveriam estar perfeitamente limpos e passados, de acordo com as normas.

A nossa roupa era o vestido azul e o avental branco engomado, já a enfermeira era só o vestido e a touca, tinha uma meia também. Tudo tinha a medida certinha. Eram todos do mesmo comprimento, tudo deveria estar limpinho além de termos que engraxar os sapatos (E3).

Ingressei na Escola em 1953 e fiquei interna, usando a minha própria roupa, rede no cabelo, meia cor da pele e sapato azul-marinho. Quando a gente vencia esta etapa é que íamos fazer estágio. Aí então é que ganhamos o uniforme, que era o vestido azul com a gola branca (...). Depois, com novas matérias, a gente ganhou o avental e a touca. O último uniforme era o de Saúde Pública, que era a saia azul com a blusa branca de gola (E4).

Os rituais

A Escola possuía alguns rituais, os quais, "simbolicamente, transmitem as ideologias sociais e culturais"(15), como a entrega da touca e da insígnia, onde o estudante de enfermagem marca a primeira etapa vencida no seu curso(6). A dama da lâmpada e o guarda bandeira, além dos rituais religiosos, também faziam parte das cerimônias realizadas na Escola.

Nos rituais da lâmpada e da bandeira os alunos eram escolhidos por nota. No caso da dama da lâmpada não sei se o comportamento estava como complemento, pois a postura pessoal e o comportamento eram muito estimados, não só no internato, como muito especialmente no tempo de estágio (E1).

Para irmos para o estágio a diretora nos chamava e nos dava duas toucas, duas para cada uma. Eram duas toucas, dois aventais e dois vestidos. E nós mesmas que cuidávamos das nossas toucas, aventais e vestidos. As estudantes de enfermagem não tinham aventais, só tinham a touca (E3).

A Escola tinha participações religiosas. Em festas levavam o padre para celebrar missas e tínhamos permissão para praticarmos a religião que quiséssemos desde que escrevêssemos no livro para onde iríamos (E2).

Quando recebíamos a touca era um dia muito solene (E4).

Assim, a preocupação de uma escola de enfermagem em perpetuar os rituais se justifica na intenção de consagrar um modelo de enfermeira para a sociedade, pois os rituais institucionais distinguem novas qualidades ao grupo(16).

O choque cultural

A EEAP era composta por alunos de diversas regiões do país, com os mais variados estilos culturais. Os deslocamentos internos da população tiveram sentido diferente conforme a região. O Nordeste apresentou elevada taxa negativa de migração interna como resultado da crise da borracha. O Sul e o Centro Sul apresentaram, ao contrário, taxas positivas. O núcleo de maior atração era o Distrito Federal(17).

Eu venho de uma cultura completamente diferente da do Rio de Janeiro. Tudo para mim foi um grande impacto. A cultura alimentar foi a primeira delas, a de vestuário foi outra e até no lazer. Porque naquela época o meu pai era tão repressor que não me deixava nem andar de bicicleta, nem aprender a nadar. Então eu cheguei aqui e vi que era completamente diferente de todas as rodas, e foi uma mudança tão radical que nos primeiros quatro meses de Escola eu chorava dia e noite, chegando ao ponto da diretora dizer que se eu continuasse assim, ela iria me mandar de volta para casa. Eu vinha de uma cultura repressora, do menor Estado do país, com um pai repressor. Daí vieram as minhas dificuldades (E2).

Além do dia-a-dia das alunas, a EEAP, desde sua criação em 1890, sempre recepcionou no seu espaço alunos e alunas, mas, na gestão da primeira diretora enfermeira, funcionou para as meninas oriundas de outros Estados da Federação o regime de internato, onde as alunas, que conviviam a maior parte do dia, deveriam se adaptar às regras estabelecidas por Maria de Castro Pamphiro. Caso algumas dessas regras fossem desrespeitadas, elas teriam que prestar esclarecimentos à diretora e, caso fosse necessário, recebiam advertência. Para conseguirem se divertir de modo que não fossem descobertas, criaram diversas estratégias. Tal ambiente pode ser considerado como "um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante separada da sociedade mais ampla, leva uma vida fechada e formalmente administrada", o qual é denominado instituição total(18).

A repressão como estratégia para manter a ordem

A diretora mantinha um regime repressor no espaço da EEAP, tendo como objetivo garantir a ordem e o respeito por parte das alunas. O horário deveria ser respeitado de forma rigorosa. Existia grande controle das inspetoras em relação às saídas e retornos das alunas, além dos horários das refeições, de dormir, estudar, dentre outros. Essas instituições eram consideradas "estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu. (...) O novato tem que se inserir numa nova cultura: linguagem, crenças e horários"(18).

A atitude que geralmente a diretora tomava caso burlassem as regras era suspensão. Você ficava no internato sem ir à aula, que era no próprio prédio, para acabar depois de formada. Foi o que aconteceu comigo. Paguei 45 dias de suspensão, só por dez ou doze dias que eu tive caxumba e ela (a diretora) disse que eu me deixei contaminar (E2).

Após o jantar nós íamos terminar os trabalhos que tínhamos para fazer, alguma roupa para consertar, os sapatos para limpar, além de termos a hora certa para dormir, que era às 9 horas. Não podíamos passar das nove horas (E3).

Tivemos que nos adaptar aos horários das aulas, das refeições, ao horário do banho, à hora do recolhimento, a tudo isso. [...] Eu me lembro que só podíamos sair de quinze em quinze dias para irmos em casa, que eu me lembre era na sexta-feira que podíamos ir em casa e voltávamos no domingo à noite, até às 22 horas, porque a gente assinava a entrada e a saída no livro que ficava na portaria. Às 22 horas tínhamos que estar dentro da Escola (E4).

As formas de resistência

As alunas buscavam diversos meios para resistirem ao sistema rigoroso implantado na EEAP. Ao serem descobertas deveriam prestar esclarecimentos à diretora e, caso fosse necessário, recebiam advertência. O que demonstra uma característica das instituições, onde "os dirigentes tendem a se sentir superiores e corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentirem-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados"(18).

O Aloprado foi um jornal que nós criamos, na minha turma havia duas meninas muito "levadas", uma carioca e uma mineira, (...) elas eram altamente inteligentes. Um dia resolveram criar um clube e um jornal. O clube foi batizado de "Conosco Ninguém Podemos" e o jornal de "O Aloprado". No jornal nós publicávamos as mais variadas coisas, a nossa intimidade em código, o que era lido não era entendido e nem se sabia quem era quem (E1).

As estratégias encontradas pelos alunos

Para conseguirem burlar a rigidez estabelecida pela diretora, os alunos elaboravam diversos planos. Era a forma encontrada por eles de se "libertarem" do sistema repressor existente na Escola e conseguirem se divertir da forma que desejassem. Os castigos dados por ela, na maioria das vezes, estavam relacionados aos estágios. Então, quem fosse descoberto, teria que cumprir uma carga horária maior de estágio.

Não falávamos a verdade, dizíamos que iríamos para a Igreja Nossa Senhora do Brasil, mas na verdade íamos para a Praia Vermelha e, quando voltávamos, era como se tivéssemos ido à missa. Porque para irmos à missa, nós podíamos sair duas vezes no domingo. Se disséssemos que tínhamos ido à praia só poderíamos voltar às 21 horas, mas se disséssemos que tínhamos ido à missa, nós tínhamos o direito de voltar 9h30, 10h, colocar uma roupa e sair definitivamente (E2).

A gente às vezes fugia, mas a Luísa colocava a cadeira na frente e ficava nos olhando. Não dava para nós sairmos para irmos à Rádio Nacional. O nosso fraco era a Rádio Nacional e andarmos de bonde.(E3).

CONCLUSÃO

No espaço da EEAP, na época em que foi dirigida por Maria de Castro Pamphiro, o cotidiano das alunas, vindas de várias partes do país, com os mais variados estilos culturais, tornou-se para essas jovens um desafio. Mesmo tendo se deparado com novos costumes, normas e hierarquia fortemente pré-estabelecida, elas se adequavam a essas regras e mantinham convivência considerada harmoniosa nas relações entre si. Elas procuraram formar grupos para produzirem novas formas de convivência, similares ao familiar, onde se adaptavam aos novos costumes alimentares, às regras estabelecidas pela diretora, às novas formas de se vestirem, e tais estratégias favoreciam a sobrevivência do grupo durante as 24h de cada dia, com pessoas, inicialmente desconhecidas, mas, posteriormente, familiares. A questão hierárquica tinha no tempo de permanência na instituição um diferencial. Na medida em que se tinha maior tempo de permanência, as juniores tornavam-se veteranas. Entretanto, a relação hierárquica era mais dura em relação às alunas do curso de auxiliar de enfermagem. Desse modo, as alunas que viveram o processo de profissionalização no espaço social da EEAP mantinham a hierarquia e o controle sobre as alunas preliminares.

Nesse contexto, também foram observadas estratégias de resistência com o objetivo de burlar as regras implantadas na Escola. As alunas produziram modos de resistência e de escape para burlar o controle sobre os corpos jovens e femininos, similares às estratégias das moças da sociedade para transcenderem do espaço familiar ao público, enfim, total mudança no dia-dia de cada uma delas.

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    Project awarded at IV Week - Professor Glete De Alcântara and I Scientific Presentation on History of Nursing, 2007;
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      27 Nov 2007
    • Aceito
      29 Set 2008
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