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Compreendendo as dimensões dos cuidados intensivos: a teoria do cuidado transpessoal e complexo

Resumos

Trata-se de estudo descritivo, interpretativo e qualitativo, desenvolvido na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UTI do HU - UFSC). Objetivou-se compreender as dimensões de cuidado humano, experienciado em UTI, pelos profissionais de saúde, clientes e familiares, fundamentado no cuidado humano complexo. A Teoria do Cuidado Transpessoal e da Complexidade formaram o suporte teórico e de análise de dados. Dos discursos analisados, segundo Ricoeur, emergiram as seguintes dimensões de cuidar: cuidar de si, cuidado como valor individual, cuidado profissional x comum, cuidado como relação de ajuda, cuidado afetivo, cuidado humanizado, cuidado como atitude, cuidado como prática assistencial, cuidado educativo, cuidado como relação dialógica, cuidado aliado à tecnologia, cuidado amoroso, cuidado interativo, não-cuidado, ambiência do cuidado, cuidado como essência da profissão e finalidade do cuidado. Acredita-se num cuidado capaz de englobar as diversas dimensões aqui apresentadas, fundamentado na relação com o outro, no ser empático, sensível, afetuoso, criativo, dinâmico e compreensível na totalidade do ser humano.

cuidados intensivos; unidades de terapia intensiva; cuidados de enfermagem


This is a descriptive, interpretive and qualitative study carried out at the ICU of a Brazilian teaching hospital. It aimed to understand the dimensions of human caring experienced by health care professionals, clients and their family members at an ICU, based on human caring complexity. The Transpersonal Caring and Complexity theories support theory and data analysis. The following dimensions of care emerged from the themes analyzed according to Ricoeur: self-care, care as an individual value, professional vs. informal care, care as supportive relationship, affective care, humanized care, care as act/attitude, care practice; educative care, dialogical relationship, care coupled to technology, loving care, interactive care, non-care, care ambience, the essence of life and profession, and meaning/purpose of care. We believe in care that encompasses several dimensions presented here, based on the relationship with the other, on the empathetic, sensitive, affectionate, creative, dynamic and understanding being in the totality of the human being.

intensive care; intensive care units; nursing care


Este artículo es un estudio descriptivo, interpretativo y cualitativo, desarrollado en la UTI del HU/UFSC. Su objetivo fue comprender las dimensiones del cuidado experimentado en la UTI por profesionales de la salud, clientes y familiares, basándose para ello, en el cuidado humano complejo. La Teoría del Cuidado Transpersonal y de la Complejidad fueron el marco teórico utilizado para analizar los datos. De los discursos analizados, según Ricoeur, surgieron las siguientes dimensiones del cuidar: el cuidar de sí; el cuidado como valor individual; la relación de ayuda; la actitud; la práctica asistencial; la relación dialógica; la esencia de la profesión; el cuidado profesional versus el común; lo afectivo; lo amoroso; lo humanizado; lo educativo; lo interactivo; la alianza con la tecnología en el cuidado; el ambiente del cuidado y la finalidad del cuidado. Creemos en un cuidado capaz de englobar las diversas dimensiones aquí presentadas, que se basan en la relación con el otro, en ser empático, sensible, afectuoso, creativo, dinámico y comprensible en la totalidad del ser humano.

cuidados intensivos; unidades de terapia intensiva; atención de enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Compreendendo as dimensões dos cuidados intensivos: a teoria do cuidado transpessoal e complexo

Keyla Cristiane do NascimentoI; Alacoque Lorenzini ErdmannII

IDoutoranda, Bolsista CAPES, e-mail: keyla_nascimento@hotmail.com. Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

IIDoutor em Filosofia da Enfermagem, Professor Titular, e-mail: alacoque@newsite.com.br. Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil:

RESUMO

Trata-se de estudo descritivo, interpretativo e qualitativo, desenvolvido na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UTI do HU - UFSC). Objetivou-se compreender as dimensões de cuidado humano, experienciado em UTI, pelos profissionais de saúde, clientes e familiares, fundamentado no cuidado humano complexo. A Teoria do Cuidado Transpessoal e da Complexidade formaram o suporte teórico e de análise de dados. Dos discursos analisados, segundo Ricoeur, emergiram as seguintes dimensões de cuidar: cuidar de si, cuidado como valor individual, cuidado profissional x comum, cuidado como relação de ajuda, cuidado afetivo, cuidado humanizado, cuidado como atitude, cuidado como prática assistencial, cuidado educativo, cuidado como relação dialógica, cuidado aliado à tecnologia, cuidado amoroso, cuidado interativo, não-cuidado, ambiência do cuidado, cuidado como essência da profissão e finalidade do cuidado. Acredita-se num cuidado capaz de englobar as diversas dimensões aqui apresentadas, fundamentado na relação com o outro, no ser empático, sensível, afetuoso, criativo, dinâmico e compreensível na totalidade do ser humano.

Descritores: cuidados intensivos; unidades de terapia intensiva; cuidados de enfermagem

INTRODUÇÃO

A Enfermagem, como disciplina científica e como profissão a serviço da humanidade, tem o compromisso de contribuir para a melhoria das condições de viver e ser saudável. Essa ideia pode ser facilitada pelo desenvolvimento da consciência de cuidado presente na prática, no ensino, na teorização e na pesquisa.

Em razão da complexidade do conceito de cuidado, o mesmo não tem sido apenas preocupação dos estudiosos da enfermagem, mas de outras áreas de conhecimento como filosofia, teologia, educação, psicologia, antropologia(1-2). Porém, é na enfermagem que esse se sobressai, como essência e razão maior de sua existência, como disciplina e profissão.

Este artigo é fruto do processo de cuidar e pesquisar vivenciado numa unidade de terapia intensiva (UTI). A UTI é estruturada para prestar assistência especializada aos clientes em estado crítico, com risco de vida, dispondo de tecnologias cada vez mais aprimoradas na tentativa de preservar a vida do cliente em estado crítico, exigindo profissionais de saúde altamente capacitados(3). Os equipamentos favorecem o atendimento imediato, dão segurança para toda a equipe da UTI, porém, podem contribuir para tornar as relações humanas mais distantes. Talvez, se saiba mais sobre a máquina e pouco sobre o ser humano que está sendo cuidado.

O aperfeiçoamento tecnológico permite modificação gradual da dinâmica operacional nas UTIs. Como consequências dessa mudança, há a necessidade da tomada de decisões diante da morte e do morrer e o maior tempo de permanência dos pacientes críticos nessas unidades. Esses fatos têm levado à constatação da importância de que haja harmonia entre os profissionais que trabalham nas UTIs, os pacientes internados nessas unidades e os seus familiares(4). Portanto, torna-se necessário que haja busca pela melhoria do cuidado entre os atores envolvidos no assistir ao paciente crítico.

Essa realidade das práticas de enfermagem é preocupante. Assim, surge o questionamento: qual o significado do cuidado experienciado na UTI para os clientes internados, familiares dos mesmos e profissionais? Este estudo teve como objetivo compreender as dimensões de cuidado humano experienciado em uma UTI pelos profissionais de saúde, clientes e familiares, através do referencial de cuidado transpessoal e complexo.

SITUANDO O REFERENCIAL

O olhar da complexidade é um modo de compreender o mundo, integrando no real as relações que sustentam a coexistência entre os seres no universo, possibilitando o reconhecimento da ordem e da desordem, do uno e do diverso, da estabilidade e da mudança(5). A complexidade tenta dialogar com as diversas dimensões que constituem os fenômenos e objetos, enfim, com a realidade. Possui sete princípios fundamentais, complementares e interdependentes, quais sejam: sistêmico ou organizacional, holográfico, da retroatividade, da recursividade, da autonomia, dialógico e da reintrodução(6).

O sistema organizacional de cuidados de enfermagem é constituído por atores sociais: os cuidadores e os que são cuidados, incluindo as pessoas de relação mais próxima dos que são cuidados, formando elos de ajuda mútua. São pessoas que agem, reagem, interagem, partilham, interdependem, ajudam-se, trocam experiências, diferenciam-se e integram-se, aproximam-se e distanciam-se, articulam-se, envolvem-se e negociam, convivendo com a harmonia conflitual. Ocupam um espaço físico e social e político-institucional(7). Esse sistema tem como emergências o cuidado que, pela intuição, razão e lógica de seus atores, permite o acontecer, os processos interativos de relações múltiplas inesgotáveis e imprevisíveis.

A noção de prioridade no atendimento/cuidado, mais forte no subsistema de cuidados intensivos, está ligada ao risco de vida, o qual oscila num real-escondido, certeza-incerteza, verdade-engano, onde as possibilidades, as probabilidades e as oportunidades estão em jogo nas prioridades elegidas, reconhecidas ou de rotina, onde a incerteza parece surgir na medida em que se toma consciência do risco(8).

O olhar do cuidado transpessoal, pela teoria de Jean Watson, sustenta-se nas suas crenças e valores acerca da vida humana, da saúde e da cura, fruto de suas experiências e observações(9). Watson privilegia o enfoque humanístico, atendendo o indivíduo biopsicossocial, espiritual e sociocultural, e que o objetivo da Enfermagem é ajudar as pessoas a atingir o mais alto grau de harmonia entre mente-corpo-alma(10).

Para Watson, o foco principal em Enfermagem está nos seus dez fatores de cuidado derivados de uma perspectiva humanista, combinada com uma base de conhecimentos científicos(10). São eles: 1) praticar o amor, a amabilidade e a coerência dentro de um contexto de cuidado consciente; 2) ser autêntico, estar presente, ser capaz de praticar e manter um sistema profundo de crenças, e um mundo subjetivo de sua vida e do ser cuidado; 3) cultivar suas próprias práticas espirituais e transpessoais de ser; 4) desenvolver e manter autêntica relação de cuidado, de ajuda e confiança; 5) estar presente e dar apoio na expressão de sentimentos positivos e negativos; 6) uso criativo do ser, de todas as formas de conhecimento, como parte do processo de cuidado para comprometer-se artisticamente com as práticas de cuidado e proteção; 7) comprometer-se de maneira genuína em experiência de prática de ensino e aprendizagem; 8) criar ambiente protetor em todos os níveis, onde se está consciente do todo, da beleza, do conforto, da dignidade e da paz; 9) assistir as necessidades humanas, conscientemente, administrando cuidado humano essencial, o qual potencializa a aliança mente, corpo, espírito; 10) estar aberto e atento à espiritualidade e à dimensão existencial de sua própria vida.

O CAMINHO PERCORRIDO

Trata-se de pesquisa qualitativa e interpretativa, com um olhar fenomenológico, que busca ampliar a compreensão do fenômeno: dimensões de cuidado existente em unidade crítica, ou seja, da UTI do Hospital Universitário (HU), Florianópolis. Teve como população alvo os profissionais de saúde que ali atuam (2 médicos, 1 fisioterapeuta, 3 enfermeiros e 4 técnicos de enfermagem), que concordaram em participar do estudo mediante assinatura do termo de consentimento pós-informação e uso do gravador. E, também, por clientes e familiares (6 clientes e 9 familiares) que deram entrada na UTI, no período de investigação, selecionados de acordo com os seguintes critérios: estar hospitalizado na unidade (ou com familiar hospitalizado na UTI), maiores de 18 anos, que estivessem orientados no tempo e espaço, que pudessem se expressar verbalmente e que consentiram em participar do estudo. Os dados foram coletados através de entrevistas em profundidade e observações efetuadas pela primeira pesquisadora, sob a orientação da segunda. Os sujeitos do estudo totalizaram 25 pessoas com idade variando entre 22 e 80 anos, número esse considerado suficiente pela saturação dos dados na análise preliminar que foi sendo realizada.

A análise dos discursos teve como referencial para a sua interpretação a análise hermenêutica de Ricoeur que consiste em cinco momentos: a leitura inicial do texto, o distanciamento, a análise estrutural, a identificação da metáfora e a apropriação(11).

Na leitura inicial do texto, organizou-se o material, lendo vários depoimentos para captar os significados que emergem da leitura das falas. Com o distanciamento, buscou-se colocar as crenças e explicitações sobre o fenômeno pesquisado em suspensão, para poder olhá-lo como apresentado pelo sujeito. Através da análise estrutural, o significado velado foi temalizado e compreendido, gerando subtemas e temas do discurso produzido daquela realidade vivida pelo sujeito da pesquisa. A compreensão da metáfora ocorreu a partir da compreensão do texto. Os temas que descreveram as dimensões de cuidado pelos participantes do estudo foram englobados em categorias, analisados segundo o referencial teórico de Jean Watson e a complexidade. A apropriação foi o último momento da interpretação hermenêutica e significa estar apto para a compreensão da metáfora do mundo do texto. Esse método de análise possibilitou interpretar e compreender a experiência nos sistemas de cuidado em UTI, nas conexões entre o falante e o mundo no qual ele vive.

No desenvolvimento deste trabalho, respeitou-se o código de ética profissional e a Resolução 196/96, sendo iniciado após o consentimento da instituição e a aprovação pelo Parecer de n° 311/04 do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC.

EMERGINDO AS DIMENSÕES DO CUIDADO

O conjunto das transcrições dos discursos formou o corpo do texto. Essa construção gradual (discurso após discurso) permitiu que emergisse uma codificação parcial, crescente. Também os registros das observações foram incorporados na construção do corpo do texto, seguida da análise dos dados. O significado velado foi tematizado e compreendido, gerando subtemas e temas do discurso produzido naquele momento existencial, daquela realidade vivida pelo sujeito da pesquisa. Assim, a análise estrutural levou ao desvelamento dos subtemas e dos temas, obtidos através das convergências, chegando-se ao total de dezessete categorias ou dimensões do cuidado, conforme apresentação a seguir.

Cuidar de si

"O conhecimento complexo exige de nós que nos situemos na situação, compreendamo-nos na compreensão e conheçamo-nos ao conhecermos"(5). O cuidar de si passa pelo diálogo consigo mesmo e pelo diálogo com os outros. O despertar para o autoconhecimento e o cuidar de si é parte do processo de aprender a cuidar.

Acredito que só se transmite tranquilidade, atenção, calor humano às pessoas sob nossos cuidados, se antes tivermos resolvido esses conflitos, cuidando de nós mesmo (4P)*.

Ao experienciar o autocuidado/o cuidar de si, oportuniza-se a autorreflexão, o extravasamento das emoções, a absorção de vivências que se traduzem em conhecimento, a autopercepção como sujeito, cuja subjetividade e sensibilidade estão postos em ação.

Cuidado como valor individual

Valor é tudo o que, numa determina condição, contribui para o desenvolvimento e a melhoria dos componentes essenciais da condição humana, na convivência social(8). Os valores humanos têm identificações pessoais, individuais, mas também expressão na convivência social. Os valores individuais somam-se aos da classe profissional como amor, honestidade, espiritualidade, gosto, alegria, prazer em fazer e aperfeiçoamento constante, que são importantes no estabelecimento da atual visão de cuidado.

O cuidado humano está embutido em valores que priorizam a paz, a fraternidade, a religiosidade, a individualidade, o respeito e o amor [...] (22F).

Nesse sentido, o cuidado proporciona às pessoas sensação de harmonia com elas mesmas e com o meio, prestando cuidados não só ao físico como também demonstrando afeto, simpatia, atenção e respeito por tudo que rodeia a subjetividade do outro. Através das relações de cuidado os sentimentos de fé e de crença são evidenciados. Praticar e manter um sistema de crenças, de fé e esperança apresenta-se como fator de cuidado(10).

Cuidado profissional x comum

Encontra-se, nos discursos dos participantes, várias referências de cuidado profissional distinguindo-o do cuidado comum.

Cuidado profissional tem tecnologia e é mais especializado (1C). O cuidado comum é praticado pela família com carinho, conforto, atenção, dedicação, afeto (16F).

Cuidado profissional é o cuidado desenvolvido por profissionais com conhecimentos científicos na área da saúde, dotados de habilidades técnicas que auxiliam indivíduos, famílias e comunidades a melhorar ou recuperar sua saúde. Os profissionais tiveram preparo técnico- formal e adquiriram visão profissional de saúde, doença e de cuidados(12).

O cuidado comum compreende atitudes, técnicas e processos desenvolvidos segundo valores culturais, ajudando as pessoas a se cuidarem em situações de saúde e de doença. O cuidado profissional e o cuidado comum acontecem nos seres, a partir dele, para eles, através deles, coexistindo na natureza e na estrutura da organização da vida dos seres, nos seus vários domínios, biológicos, antropológicos, psicológicos, sociológicos e outros(8).

Cuidado como relação de ajuda

Evidenciou-se nos discursos o cuidado como forma de estar com o outro, estabelecendo, assim, relação de ajuda e de confiança:

Cuidado é ajudar a outra pessoa a melhorar, para depois poder cuidar de si (7P).

O estar com o outro, no cuidado como relação de ajuda, requer aproximação. Assim, para haver relação de cuidado, o profissional precisa desenvolver a capacidade de aproximação, observando o ser cuidado em todas as dimensões, percebendo as situações numa relação de respeito e confiança. Nessa relação, exprime e compartilha seu conhecimento, sensibilidade e habilidade técnica, ajudando o outro a crescer. O outro compartilhará o seu ser, seus rituais, suas características pessoais que mobilizam o sistema de cuidado.

Cuidado afetivo

O cuidado afetivo está presente nas atitudes dos profissionais de saúde com vários tipos de sentimentos, em suas relações de cuidado vivenciadas na UTI. Descobrindo sentimentos positivos e negativos no cotidiano tem-se informações a respeito do ser humano que é cuidado. O decodificar os significados dessas expressões e sentimentos das pessoas, presentes nas suas ações, é processo complexo e necessário, para facilitar a aproximação e a relação com os seres cuidados. O estar presente e vivenciar uma autêntica relação afetiva, empática, não se configura apenas como um vai-e-vem para permitir o avançar e retroceder das percepções e sentimentos e sim provocar "quebras", o "aterrissar em outros espaços", o esperar insights não só o conhecimento das situações, mas atentar para o que pode ter de diferente, do qual pode emergir formas ambíguas, intuitivas e criativas do pensar/agir(8).

Cuidado humanizado

Os profissionais de saúde/enfermagem vêm constituindo uma profissão humanística, centrando o foco da atenção no cuidado ao ser humano e no toque afetivo.

O cuidado deve ser assim, de ser humano para ser humano, então é humanizado, não é? Eu fui cuidado como um ser humano; existia confiança, segurança, respeito, sabe (18C).

Na humanização do cuidado, o cuidador mostra-se como um ser humano que respeita e valoriza o ser cuidado em sua existencialidade, compreendendo-o como um ser que tem suas próprias vivências e experiências e que essas acompanham o seu existir(13).

O toque afetivo é essencial quando se transforma numa atitude, pela mão que se estabelece a relação(2). Tocar representa o próprio cuidado, a sensibilidade e a solidariedade do profissional. O toque revela-se como atitude humanística, fortalecendo o vínculo e proporcionando o encontro entre cuidador e ser cuidado.

Cuidado como ato, atitude

O cuidado é visto como uma ação, ideia de movimento, de realização de uma atividade, de atuar junto a um agente, de executar algo para ou junto ao outro ser, de agir em benefício da saúde do outro.

Cuidado é o conjunto de atitudes do profissional, para se prestar um atendimento ao paciente grave e sua família a fim de manter as condições de vida desse (14C).

O cuidado é um ato de familiarização, de compreensão, de demonstração de habilidades técnicas e de sentimentos próprios de cada cuidador que vivência o processo de cuidar. Esse processo é cíclico, de relações e organização do cuidado por atitudes como: estar com, tomar conta de, auxiliar a fazer, orientar e educar.

Cuidado como prática assistencial

Essa dimensão inclui a realização de procedimentos técnicos e refere-se, também, ao compromisso e responsabilidade entre os envolvidos na relação de cuidado.

São as atividades de assistência e de apoio para um membro da família ou para o cliente, a fim de recuperar a saúde (25P).

O cuidado como prática assistencial inclui a execução de procedimentos técnicos e apoio ao cliente na sua integralidade como ser complexo, orientado pelos dez fatores de cuidado de Watsom. Sustenta-se pela sistematização da assistência ou processo de enfermagem sob a responsabilidade do enfermeiro.

Cuidado educativo

O cuidado educativo se refere às informações, ao ensino e aos programas de educação formal e informal(2). É mola propulsora da busca de conhecimento para a evolução da sociedade; não há como dissociar o cuidado da educação(9). O cuidado educativo é exercício do pensar crítico, do espírito de cidadania e contínua busca por novos horizontes.

Cuidado é ter conhecimento, é conhecer as ações de saúde desenvolvidas (18C).

A prática educativa potencializa a equipe de enfermagem à prática de cuidado mais autêntica. O reeducar a si próprio significa sair de uma minoria; significa que os cuidadores sentem a necessidade do problema e vão ajudar outros seres a mudar(6).

Cuidado como relação dialógica

Nos sistemas de cuidados, os relacionamentos humanos se constroem mediante o encontro do ser cuidado e cuidador,que se expressa por uma relação de diálogo. Essa relação se evidencia quando o cuidador ao se voltar para o ser cuidado com reciprocidade e carinho consegue conceber e ser concebido como ser humano.

[...] quando tô num procedimento, eu vou conversando, não só aquela coisa mecânica, quando existe uma comunicação verbal eu acho que o paciente se sente mais seguro (11P).

As falas desvelam que a relação dialógica se concretiza a partir da intenção do cuidador em ser autêntico, estar presente e ser capaz de experienciar um mundo subjetivo de cuidado com o outro. Despertando para o cuidar repleto de sensibilidade, o cuidador vivencia esse momento por inteiro, valorizando não só os aspectos técnico-científicos, mas essencialmente o ser humano, promovendo o encontro do cuidado. Esse encontro dialógico é fruto da compreensão da expressividade do outro, de forma amorosa e respeitosa, percebendo os sentimentos e emoções do ser cuidado, respeitando seu modo de ser e estar no mundo.

Cuidado aliado à tecnologia

Esse se evidencia como algo valorizado na medida certa. A tecnologia é uma forma de facilitar o cuidado ao cliente, por vezes, imprescindível para manter uma vida, porém, atenta-se para a necessidade de evitar maior preocupação com o equipamento do que com o cliente, pois o cuidar não se limita à tecnologia.

[...] a evolução da tecnologia precisa acontecer, mas precisamos ter princípios para a sua utilização, é impossível se pensar na assistência aos pacientes graves sem o suporte tecnológico, ele facilita nossa atuação e mantém a vida do paciente em muitos casos (4P).

A tecnologia, como parte do cuidado dos seres humanos, foi criada pelo ser humano, em seu benefício, sem pretender que supere a dimensão da essência desse ser.

Cuidado amoroso

Apreende-se o cuidado como ato de amor, troca entre cuidador e ser cuidado, em que ambos compartilham o amor para o alcance dos resultados bem-sucedidos.

Existem muitas pessoas aqui que a gente vê que trabalham por amor, porque existe a atenção, o sorriso (2F).

O amor como dimensão do cuidado atua como elemento facilitador, energético, de nutrição e ternura que engrandece o cuidado. Através do desenvolvimento dos próprios sentimentos, pode-se realmente interagir de modo sensível com outra pessoa(10). Nas relações de cuidado pode-se transcender o mundo físico e material e entrar em contato com o mundo subjetivo do indivíduo. O cuidado amoroso implica em compartilhar, ter atitudes em relação ao outro de sensibilidade, confiança, comunicação, compreensão, empatia, comprometimento, visão do outro como único, percepção da sua existência, aceitação, respeito, receptividade, competência, toque, sorriso, envolvimento, momentos de encontro, presença e outros.

Cuidado interativo

O cuidado na saúde é processo de interações e associações entre os seres, sendo parte organizador do sistema de saúde, parte organizador dos sistemas de cuidados, coorganizando-se junto aos demais sistemas sociais(8). São ligações, informações e conexões num cuidado interativo ou relacional, indicadas através do relato a seguir.

Cuidado é um processo de interação entre os profissionais, o paciente e familiares, onde vivenciam uma situação de instabilidade, com a finalidade de restabelecer a saúde desta pessoa (11P).

O cuidado interativo se estabelece a partir de forças internas, ou seja, pela troca entre o mundo interior e exterior do ser cuidador e do ser cuidado, de maneira subjetiva e de modos e momentos únicos e com pessoas diferentes, por isso são genuínas.

Não-cuidado

Aparece, subentendido no diálogo com alguns profissionais da saúde, o como não gostaria de ser cuidados/as. O não-cuidado é utilizar-se de artefatos para não se aproximar muito do ser cuidado, realizando um cuidado com pressa, mantendo-se à distância das pessoas. Nessas circunstâncias, os clientes e familiares se sentem inibidos para se expressar ou solicitar ajuda. Certas expressões utilizadas podem parecer esquivas ou formas de não-cuidado: estou com pressa, não tenho muito tempo, seja rápido, dentre outras, limitando o espaço e a aproximação, distanciando o ser cuidado do profissional.

Não-cuidar é realizar as atividades com pressa e distração (23F).

Ampliar a compreensão do cuidado, a fim de aprimorar a relação com o ser cuidado, deve representar preocupação importante para os profissionais de saúde.

Cuidado como essência da vida e da profissão

O cuidado se mostra como valor essencial à vida das pessoas. O cuidado é a essência, o ideal moral da enfermagem, cuja finalidade é proteção, engrandecimento e preservação da dignidade humana(10).

O cuidado profissional é a essência da Enfermagem, e envolve ações desenvolvidas em comum acordo entre duas pessoas, a que cuida e a que é cuidada (7P).

O cuidado, entendido como ideal moral da enfermagem, representa um conjunto de esforços transpessoais direcionados ao ser cuidado para auxiliá-lo a obter autoconhecimento e autocontrole, promovendo e preservando sua existência. E o cuidado como essência da profissão é o comprometimento e o compromisso do profissional em cuidar para dar sentido à vida. Essa essência do cuidado é ser e fazer diferencial na relação de cuidado.

Ambiência do cuidado

clientes e familiares consideram o ambiente hostil, sentem-se inseguros e com medo, pela diferença entre o ambiente hospitalar e o ambiente de procedência do cliente/familiares. A UTI, para o cliente, é pouco aconchegante e impessoal, ele percebe a padronização imposta pela instituição, que não considera as individualidades. É uma estrutura física bem equipada, com recursos tecnológicos modernos, mas que eventualmente pode passar ao cliente frieza e indiferença como forma de ser cuidado.

De lá pouca coisa a gente lembra. Sei que a gente passa muita sede, seca os lábios, a gente não fala, fica quieto, não tem contato com ninguém, é assustador (20C).

Aludem que o ser que cuida também sofre influências do ambiente, as quais influenciam no processo de cuidar. O ser que cuida necessita de ambiente aconchegante e confortável, pois é aí que mantém a interação para o desempenho de suas atribuições.

A promoção de um ambiente de apoio, de proteção biofísica, psicofísica, psicossocial e/ou interpessoal é um dos requisitos para o cuidado. A interdependência existente entre os ambientes internos e externos da pessoa influencia o estado de saúde e de doença(10). Existe entre o ambiente e o ser humano um processo de interação constante que pode facilitar, criar ou impedir a relação de cuidado entre os seres humanos.

Sentido/finalidade do cuidado

Surge como finalidade essencial do processo de cuidar, a melhora clínica do ser cuidado, a sua recuperação, ou seja, o cuidado é uma forma de restabelecer a saúde do ser cuidado, ajudar o outro a crescer e a se realizar, de melhor morrer, contribuindo para a qualidade do processo de ser e viver dos seres humanos.

O grande resultado é a melhora do paciente ou ver pelo menos que ele está bem, que tu pode fazer alguma coisa para a melhora dele (16 F).

O cuidado centra-se nas necessidades e desejos dos seres humanos envolvidos na relação de cuidado. A saúde/doença é perpassada pelos movimentos do viver nos limites das sensações, conforto e desconforto, na esperança de novos momentos, na possibilidade de estar numa situação e de se preparar para a outra. A saúde está no sistema organizacional de cuidado onde o saudável está no viver os altos e baixos, num vai-e-vem de alegrias e tristezas, na harmonia conflitual, regulada pelo limite de interseção da morte e da vida(8).

CONCLUSÕES

Os conteúdos emergidos das reflexões sobre os discursos presentes nas relações de cuidado, vivenciadas nos sistemas organizacionais de cuidados, pela complexidade e cuidado transpessoal, mostram as dimensões do cuidado.

A pesquisa qualitativa com um olhar fenomenológico e análise interpretativa de Ricoeur foi um processo dinâmico e possibilitou ampliar a compreensão do fenômeno: dimensões de cuidado existente em uma UTI. Os momentos vividos e compartilhados com os seres participantes do estudo foram de cumplicidade, reciprocidade, interesse e solidariedade. Eles proporcionaram visualizar novos caminhos e assumir atitudes diferentes frente ao cuidado e às pessoas, ou seja, um cuidado humano com sensibilidade, empatia e satisfação.

Espera-se propiciar aos colegas enfermeiros/as o prazer de exercitar o cuidado transpessoal e complexo no cotidiano do cuidado de enfermagem, nas suas múltiplas facetas e dimensões de estruturas e interações. Também, que reflitam sobre o cuidado realizado na UTI. Acredita-se num cuidado que se constitua das diversas dimensões de cuidar aqui apresentadas, fundamentado na relação com o outro, no ser empático, sensível, afetuoso, criativo, dinâmico e compreensível na sua totalidade como ser humano. Atrás de todos aqueles fios, tubos, lâminas, ruídos e luzes de alarmes há seres humanos cuidando e seres humanos recebendo cuidados, na esperança de viver um pouco mais e melhor.

REFERÊNCIAS

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  • Understanding the dimensions of intensive care: transpersonal caring and complexity theories

    Keyla Cristiane do NascimentoI; Alacoque Lorenzini ErdmannII
  • *
    The letters P, F and C stand for Health Professionals, Family members and Clients, respectively, and numbers refer to codes given to each participant in the study.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Recebido
      18 Jul 2007
    • Aceito
      01 Abr 2009
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