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Ser docente de enfermagem, mulher e mãe: desvelando a vivência sob a luz da fenomenologia social

Resumos

A trajetória deste estudo voltou-se para a compreensão do ser docente de enfermagem, mulher e mãe ao conciliar a vida profissional, a maternidade e demais atividades do cotidiano. Participaram 11 mulheres, mães, docentes de instituições de ensino superior. Foi adotada a fenomenologia social para análise. O contexto de significados foi evidenciado a partir das categorias: dificuldade no desempenho de multiplicidade de atividades; cuidado de si mesma e conciliação dos papéis sociais. As mulheres priorizam o ser mãe, dispondo de pouco tempo para o cuidado de si mesma; e, embora tenham o desejo de investir na carreira docente, têm a expectativa de ter maior disponibilidade de tempo para o convívio com os filhos e com o companheiro. O estudo mostrou que os universos, profissional e pessoal, necessitam de interface que possibilite a convivência entre os diversos papéis exercidos pela mulher na sociedade.

Docentes de Enfermagem; Saúde da Mulher; Pesquisa Qualitativa


The trajectory of this study was focused on understanding the experience of being a nursing teacher, woman and mother and reconciling work, motherhood and other daily activities. Participants were 11 women, mothers, teachers at higher education Institutions. Social Phenomenology was adopted for the analysis. The context of meanings was evidenced by categories: Difficulty in performing multiple activities; care of oneself and conciliation of social roles. Women give priority to being a mother, so that they have less time to take care of themselves. In spite of desiring to invest in teaching, they expect to have more time available to be in touch with their children and partner. This study showed that the professional and personal worlds need an interface, which allows for co-existence between the different roles women play in society.

Faculty, Nursing; Women's Health; Qualitative Research


La trayectoria de este estudio se dirigió para la comprensión del ser docente de enfermería, mujer y madre, que debe conciliar la vida profesional, la maternidad y demás actividades de lo cotidiano. Participaron 11 mujeres, madres, y docentes de instituciones de enseñanza superior. Fue adoptada la Fenomenología Social para el análisis. El contexto de significados fue evidenciado a partir de las categorías: Dificultad en el desempeño de multiplicidad de actividades, Cuidado de sí misma, y Conciliación de los papeles sociales. Las mujeres le dan prioridad al ser madre, disponiendo de poco tiempo para el cuidado de sí misma; a pesar de que tengan el deseo de hacer inversiones en la carrera docente, tienen la expectativa de tener mayor disponibilidad de tiempo para la convivencia con los hijos y con el compañero. El estudio mostró que los universos, profesional y personal, necesitan de un medio de comunicación que posibilite una convivencia entre los diversos papeles ejercidos por la mujer en la sociedad.

Docentes de Enfermería; Salud de la Mujer; Investigación Cualitativa


ARTIGO ORIGINAL

IEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Ecola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: merighi@usp.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Brasil. E-mail: mariacristina.jesus@ufj.edu.br

IIIEnfermeira, Doutoranda, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. Professor Assistente, Centro Universitário de Caratinga, MG, Brasil. E-mail: selisvane@yahoo.com.br

IVEnfermeira, Especialista em Saúde da Família, Professor Assistente, Faculdade Estácio de Sá, Juiz de Fora, MG, Brasil. E-mail: deisemoura@hotmail.com

VEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Assistente, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: pavanpati@hotmail.com

Endereço para correspondência

RESUMO

A trajetória deste estudo voltou-se para a compreensão do ser docente de enfermagem, mulher e mãe ao conciliar a vida profissional, a maternidade e demais atividades do cotidiano. Participaram 11 mulheres, mães, docentes de instituições de ensino superior. Foi adotada a fenomenologia social para análise. O contexto de significados foi evidenciado a partir das categorias: dificuldade no desempenho de multiplicidade de atividades; cuidado de si mesma e conciliação dos papéis sociais. As mulheres priorizam o ser mãe, dispondo de pouco tempo para o cuidado de si mesma; e, embora tenham o desejo de investir na carreira docente, têm a expectativa de ter maior disponibilidade de tempo para o convívio com os filhos e com o companheiro. O estudo mostrou que os universos, profissional e pessoal, necessitam de interface que possibilite a convivência entre os diversos papéis exercidos pela mulher na sociedade.

Descritores: Docentes de Enfermagem; Saúde da Mulher; Pesquisa Qualitativa.

Introdução

A mulher tem conquistado independência econômica, o que atribui uma série de funções até então não assumidas, ou seja, se antigamente a mulher se dedicava à educação dos filhos e à manutenção do lar, hoje ela ainda abraça essas funções e a essas associa o mundo do trabalho. Soma-se à conquista do espaço profissional a responsabilidade que é imposta à mulher de ser reprodutora da espécie humana, independentemente das condições que permeiam seu mundo social. Sabe-se que a maternidade é evento importante na vida de toda mulher, no entanto, algumas vezes, os diversos papéis por ela assumidos - mãe, mulher e profissional - podem gerar conflito, ora prevalecendo um ora o outro, obrigando-a a conciliá-los(1).

É possível notar, ainda, que os avanços tecnológicos não somente acarretam benefícios como também colaboram com determinados problemas de saúde da humanidade(2). Nessa perspectiva, o cansaço mental e o nervosismo são manifestações que causam, frequentemente, a exaustão emocional entre mulheres que exercem a docência, visto que o ensinar é atividade altamente estressante com repercussões evidentes na saúde mental(3).

Dentre os papéis assumidos pela mulher, salienta-se o de mãe. Sob essa ótica, percebem-se sintomas de intenso sofrimento emocional de mulheres com filhos menores de cinco anos, caracterizando a dificuldade para conciliar os diversos papéis simultaneamente(4). Nessa situação, surgem os momentos difíceis, plenos de dúvidas e questionamentos.

O papel profissional docente de enfermagem consolida-se em meio a diversas atividades. Nas escolas públicas, essas atividades ocupam inúmeras horas semanais despendidas em reuniões e representações em colegiados, comissões e subcomissões. Somadas a essas atividades estão as exigências de produção científica, participação e apresentação de trabalhos em eventos, além das exigências dos programas de pós-graduação para o incremento da produtividade docente, expressa por publicação de artigos em revistas qualificadas pela Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Ensino Superior. No contexto das escolas privadas, o docente de enfermagem é responsável por expressiva carga horária em sala de aula, além de aulas práticas e estágios, reuniões extraclasse, projetos de extensão, orientações de trabalho de conclusão de curso, entre outras atividades.

O espectro ampliado de atividades docentes é fator que tem dificultado a conciliação das atividades profissionais com as familiares. Há que se considerar a especificidade do ensino teórico-prático de enfermagem que requer esforço multidimensional por parte do professor, com acompanhamento direto e individualizado do estudante nos cenários de prática. Para esse acompanhamento, faz-se necessário que o professor seja um aglutinador de conhecimentos, o que requer a busca constante por atualização na sua área de atuação.

O exercício da docência em Enfermagem exige, além dos saberes diversificados, aprendizagem contínua, considerada como fundamental na carreira profissional, alicerçada pelo aporte de saberes do professor(5). Não se pode desconsiderar, no âmbito da docência, o quanto esse aporte de saber necessita ser legitimado por meio de publicações que transportem conhecimento privado para a comunidade científica.

Como enfermeiras docentes, experienciando as atividades na docência, percebe-se a sobrecarga laboral que impacta, de modo diferenciado, a vida da mulher. A interação entre o trabalho doméstico e o remunerado é fundamental na compreensão desse impacto diferenciado do trabalho sobre a saúde de homens e de mulheres(6).

As seguintes inquietações nortearam este estudo: como é ser docente de enfermagem, mulher e mãe? Como é para essas mulheres, docentes de enfermagem e mães, conciliar a vida profissional e as atividades domésticas? Quais seriam as dificuldades enfrentadas por elas na vida profissional, no exercício da maternidade e no desenvolvimento das atividades domésticas? O que elas esperam da vida profissional, da maternidade e da vida doméstica?

Esta pesquisa objetivou compreender como é ser docente de enfermagem, mulher e mãe, ao conciliar a vida profissional, a maternidade e as atividades domésticas. O significado dessa vivência se constitui em conhecimento que poderá contribuir para a reelaboração do vivido dessas docentes de enfermagem, frente às diferentes atividades às quais estão submetidas na vida cotidiana, com reflexos não somente na vida pessoal como também na profissional, envolvendo a produção de conhecimentos, a assistência e o ensino de enfermagem.

Método

A pesquisa qualitativa de natureza fenomenológica foi escolhida para este estudo, sendo essa concebida à luz da fenomenologia social. A abordagem possibilitou investigar esse grupo social de mulheres que vive uma determinada situação típica - mulheres, mães, no exercício da docência em enfermagem.

Os conceitos intersubjetividade, mundo social, ação social, situação biográfica, bagagem de conhecimentos e tipificação foram utilizados como fio condutor para a análise compreensiva dos discursos obtidos desse grupo social(7).

A intersubjetividade é precondição da vida social e a vivência é a fonte dos significados humanos. O significado indica uma atitude peculiar, por parte do sujeito, para o fluxo de sua própria consciência. Assim, o significado se constitui para a pessoa à medida que ela o vivencia e esse se torna visível ao olhar reflexivo. Por ação social entende-se a relação interpessoal em que um atua sobre o outro, estabelecendo um significado subjetivo. À medida que os significados vividos, individualmente, são contextualizados, na relação intersubjetiva, eles vão configurando um sentido social(7).

Para captar o ponto de vista subjetivo, faz-se necessário reportar-se à interpretação que o sujeito atribui à ação em termos de projetos, meios disponíveis, motivos, significados. A ação social é conduta dirigida para a realização de um determinado fim, e essa ação, os motivos-para, só pode ser interpretada pela subjetividade, pois somente a própria pessoa pode definir seu projeto de ação, seu desempenho social. O motivo-porque está relacionado às vivências passadas, aos conhecimentos disponíveis e é uma categoria objetiva (explicação posterior ao acontecimento)(8).

A situação biográfica permite à pessoa interpretar o mundo a partir do acervo de experiências prévias e de conhecimentos transmitidos por seus semelhantes - a bagagem de conhecimentos disponíveis. A tipicidade permite a compreensão entre as pessoas na interação social, e essa tipificação vai se tornando estável a ponto de levá-las a reconhecer as características de determinada ação como papéis sociais(7).

Como critério de inclusão, estabeleceu-se que as depoentes seriam docentes de enfermagem, mães de crianças com até 12 anos e que viviam com seus filhos e com o companheiro. Foram excluídas docentes que não coabitavam com o companheiro porque se acredita que o papel social de esposa pode impactar de modo diferenciado na vivência de ser docente de enfermagem, mulher e mãe. A inclusão de instituições de ensino público e privado se deu por considerar que haveria diferenciação da relação docente com os papéis de mulher e mãe, justificada pela flexibilidade de horário no cumprimento das atividades docentes que a instituição pública oferece, o que não é observado nas instituições privadas.

A região de inquérito se constituiu como sendo o mundo/vida de 11 mulheres, a maioria com um filho, média de tempo na docência de dois anos, sendo duas atuantes em instituições públicas e nove em instituições privadas. As instituições selecionadas localizam-se no Estado de Minas Gerais, sendo as mesmas em que as pesquisadoras deste estudo lecionam ou já lecionaram. A diferença entre o número de públicas e o de privadas se justifica pela desmarcação de três entrevistas que ocorreriam nas primeiras. Vale ressaltar que as docentes entrevistadas realizavam, prioritariamente, atividades de ensino.

A coleta de dados foi realizada no período de novembro de 2008 a junho de 2009, por meio de entrevista aberta, a partir das seguintes questões norteadoras: como é para você ser docente de enfermagem, mulher e mãe? Conte-me como é seu dia a dia como docente de enfermagem, mulher e mãe. Fale-me como é para você conciliar a vida profissional com a maternidade e outras atividades do cotidiano. Como docente de enfermagem, mulher e mãe, fale-me das suas expectativas. O total de mulheres participantes não foi estabelecido previamente, sendo a coleta de dados interrompida mediante o desvelamento do fenômeno. As entrevistas foram identificadas com a letra "E", seguida de um número ordinal, em decorrência da sequência em que foram realizadas, a saber: E1... E11.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de São Paulo, aprovada sob Protocolo nº750/2008, seguindo a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que versa sobre pesquisa com seres humanos(9).

As unidades de significados foram obtidas a partir da leitura e descrição das ações vividas e expressas pelas mulheres nos depoimentos. Isso possibilitou a categorização dos dados e a compreensão do fenômeno investigado à luz do referencial teórico-filosófico(10). As categorias desveladas foram: dificuldade no desempenho de multiplicidade de atividades; cuidado de si mesma e conciliação dos papéis sociais.

Resultados e discussão

O contexto de significados, vivenciados pela mulher em seu cotidiano, se mostrou a partir da dificuldade no desempenho de multiplicidade de atividades (motivos-porque), o que configurou a categoria 1.

As enfermeiras participantes do estudo consideram um desafio exercer a docência de enfermagem, sendo mulher e mãe, e salientaram a dificuldade para conciliar trabalho e família.

Eu acho que é um desafio (...) porque a gente tem que se doar em casa, conciliar jornada de trabalho. (...) Conciliar isso com a minha função familiar de mãe e esposa é muito difícil (E1). Na verdade não é fácil ser mãe, ser mulher e ser docente. Mas, apesar disso, eu acho que é gratificante (...) apesar de ser difícil, de ser um desafio, de ser cansativo, porque a gente se desgasta (E5). Acho difícil trabalhar, ser mãe, esposa. (...) algo fica sempre a desejar (...) (E6).

As mulheres expressam em suas falas a dificuldade que permeia o cotidiano no que diz respeito à vivência dos papéis de docente de enfermagem, mulher e mãe. Tais papéis trazem consigo exigências multidimensionais, difíceis de ser conciliadas. Isso provoca sensação de que sempre há algo a ser feito, perfazendo um ciclo de funções e atribuições diárias que agrega valor desafiador ao vivido.

A bagagem de conhecimentos, valores, crenças e motivos configuram o modo de ser e agir no mundo(7). Assim sendo, considerando o caráter biográfico da história da mulher, a bagagem de conhecimentos consolida-se por meio da sedimentação do que fora construído ao longo de sua existência, influenciando a sua forma de ser e perceber o mundo de significados.

Esses papéis exercidos por essa mulher são frutos de visão de mundo que congrega uma série de tipificações, admitidas no seio do grupo social em que tal experiência é vivenciada. Isso sinaliza que o fato de essa vivência ser caracterizada por ela como desafiadora traz, por si só, conotação de enfrentamento de situação que é típica desse grupo social, e não fruto somente de sua experiência individual. Isso prediz que, apesar das dificuldades vivenciadas, a motivação para se desafiar diariamente dá a esse ciclo de atribuições um viés de satisfação, incorporado a essa multiplicidade de atividades.

Apesar da dificuldade relatada, observa-se que essas mulheres contam com uma rede de apoio composta pelo companheiro, familiares e ajudantes, o que possibilita melhor conciliação da multiplicidade de atividades.

Quando tenho que estar na faculdade, em hospitais ou unidades de saúde pela manhã, deixo em casa minha filha sob os cuidados de minha mãe (E7). (...) eu não tenho um suporte familiar por perto. Todo mundo mora longe e isso é complicadíssimo. Mas, por outro lado, eu tenho duas funcionárias que me ajudam muito (...) (E8). (...) eu tenho o meu esposo, um companheiro que me permite compartilhar tudo. Tenho a minha família, que me dá um apoio significativo (...). Mas, se eu não tivesse a minha família e o meu marido, eu não sei como seria (E11).

As falas supracitadas mostram que a mulher percebe-se como centro do ato de cuidar no âmbito familiar, ainda que conte com uma rede de apoio. Tal evidência foi também encontrada em estudo fundamentado na rede de signiûcações que investigou os sentidos construídos sobre a maternidade, cuidados infantis e o trabalho realizado por mulheres da classe média e popular. Constatou-se, nesse estudo, que as mães continuaram a se ver como a responsável pela educação e cuidados infantis, mesmo quando podiam contar ou dividir as atividades domésticas com uma rede social de apoio(11).

Não se pode negar, entretanto, que a presença ativa de outras pessoas no suporte do cuidado à família possibilita à mulher sensação de que as atividades que são de sua responsabilidade estão sendo realizadas por pessoas de sua confiança.

A interação com o outro, caracterizada pela rede de apoio, permite à mulher vivenciar melhor o exercício de seus papéis. Isso vai ao encontro de uma interpretação schtuziana, que concebe o sujeito nunca sozinho, mas sempre posto em uma relação social, marcada pelas ações e intenções em um dado tempo histórico cultural, sendo essa relação intersubjetiva(8).

As enfermeiras descrevem a realização de múltiplas atividades do cotidiano que envolvem, além do trabalho docente, as próprias de esposa, mãe e também membro responsável pela família. Essas múltiplas atividades são salientadas pelas participantes do estudo como sobrecarga laboral, caracterizada pela dupla jornada de trabalho, em especial quando não contam com rede de apoio, o que leva a mulher ao estresse, ao cansaço e a sentimentos de angústia, devido à necessidade de assumir o papel de gestora do lar e a docência de enfermagem.

(...) É uma correria. Tantas horas eu tenho que levar menino na escola, tal horário eu estou trabalhando, tal horário mercado, pagar conta de luz, água, telefone. Porque essas coisas marido não faz, a gente que tem que fazer (E4). Tudo tem hora. Não posso fazer nada que saia do planejamento, porque senão fica complicado (...). É a questão da organização, do gerenciamento (E5). Você ter que dar conta de tanta coisa, me angustia. Tenho que traçar as metas do dia, como mãe, como docente, como dona de casa (...) é muito cansativo (E8).

Em estudo realizado em um hospital público, com mulheres trabalhadoras de enfermagem, constatou-se que as atividades remuneradas não as desvinculavam de suas tarefas domésticas e do cuidado com os filhos. Mesmo valorizando o trabalho remunerado, como meio de manutenção de sua independência, ainda permanece incorporado intrinsecamente na mulher, como parte de suas funções, acompanhar a trajetória de desenvolvimento de sua prole(12).

As múltiplas atividades do cotidiano estão levando a mulher a deixar em segundo plano o cuidado de si mesma (motivos-porque), significado esse que compôs a categoria 2. As mulheres deste estudo descrevem sua rotina de vida e apontam atividades de gerência da casa, cuidado com os filhos, estudo, preparação e execução de atividades de ensino e enfatizam que a dinâmica laboral a que estão submetidas não lhes permite dispor de tempo para cuidar de si mesmas.

A "mulher" acaba ficando um pouco de lado. Passo a maior parte do tempo trabalhando e, o tempo que eu estou em casa, acabo me dedicando mais ao meu filho (E2). (...) quase não sobra tempo para mim. A questão da "mulher" fica um pouco de fora (E3). (...) você fica envolvida com muita coisa e se esquece de você. Você faz para os outros (...). Eu sou um ser humano, eu preciso também de ter um tempo para mim e isso, às vezes, me incomoda um pouco (E5).

Foi observado, na fala das depoentes, que a ausência de tempo para o cuidado de si gera certa insatisfação de caráter intrínseco. Essa mulher percebe-se com necessidade de cuidado, porém, dá ênfase às atividades cotidianas, relacionadas aos papéis assumidos em detrimento de si mesma. Tal fato foi constatado também em um estudo com mulheres trabalhadoras de enfermagem, no qual foi evidenciado, em suas falas, que a multiplicidade de papéis assumidos por elas acaba por fazê-las abdicar do seu lado mulher(12).

A prioridade para "ser mãe" foi evidenciada pelas mulheres docentes de enfermagem em seus depoimentos. A maioria delas lamenta não ter condições de dedicar mais tempo aos seus filhos e algumas salientam que o "ser mulher" fica em segundo plano para suprir a necessidade de maior dedicação à família.

(...) às vezes, eu deixo um pouco a desejar, não no papel de mãe porque mãe fica o tempo todo lambendo a cria, mas no papel de mulher mesmo (E1). Vejo que sou mais mãe que profissional, mais profissional que esposa e mulher (E6). (...) eu não consigo ir numa academia à noite, porque eu fico morrendo de dó em deixá-la [filha]. Tudo passa a ser ela a prioridade (E10). O filho realmente está em primeiro lugar, mas você tem a necessidade também de estar programando aula, seu comprometimento com o trabalho (E11).

O modo como a mulher descreve sua posição frente às atividades laborais e familiares constitui-se em conhecimento concebido pela sociedade como significante e evidencia a tipificação de crenças e convicções que fazem parte da experiência vivida e do mundo da vida, na sua dimensão social.

A mulher tem como projeto a conciliação dos papéis sociais (motivos-para). Essa categoria 3 constitui o que, no referencial da fenomenologia social, é denominado antecipação de conduta futura antevista por via da fantasia. O ator da ação social se vê imaginando a ação futura que realizará(8).

A conciliação da multiplicidade de papéis exercida pelas mulheres deste estudo está amparada no desejo de obterem mais tempo para se dedicar à família e ao trabalho, com investimento na carreira docente, aliado à intensificação do convívio familiar.

A expectativa de ter maior disponibilidade para o cuidado à família é algo predominante nas falas das enfermeiras que participaram deste estudo. Embora a maioria se refira à necessidade e importância de investimento na carreira docente, com a realização do mestrado e doutorado, ao projetarem ações para o futuro, mantêm a maternidade como centro da ação social.

Pretendo engravidar de novo. Entre o mestrado e o doutorado, pretendo ter um novo filho (E1). Preciso esperar um pouco, me sentir mais segura como mãe ... Preciso de um tempo para mim para depois pensar no futuro [profissional] (E3). (...) eu pretendo fazer mestrado, apesar de que, para isso, eu preciso ter tempo para leitura e estudo e, estando o meu filho nessa idade: 8 meses, eu sei que é difícil (...). [Tenho] (...) a expectativa de poder dar mais tempo para os meus filhos: acompanhar na escola, nas atividades, viagens (E11).

A importância que o sujeito dá ao seu mundo vida, ao seu interesse por objetos e contextos é o que se denomina relevância na fenomenologia social. O conjunto de interesses e de relações na atitude natural situa-se sobre a experiência da angústia fundamental do sujeito e não se separa do motivo pragmático. Sob essas perspectivas, podem emanar os temores, as esperanças, os desejos e os projetos pessoais(8).

A totalidade de enfermeiras que participaram do estudo tem como projeto investir na carreira docente. Quer cursar a pós-graduação stricto sensu e se preparar melhor para as atividades didáticas, entretanto, não vê a projeção profissional dissociada do plano familiar.

Quero continuar na docência, que é algo que eu escolhi desde que formei. (...) Quero crescer na docência e continuar conseguindo conciliar meu lado mãe, mulher (E2). (...) Eu quero estudar também (...). Pretendo fazer um mestrado agora, no próximo ano. (...) eu quero fazer um doutorado (...). Porque, se você tem um crescimento, você melhora o salário, melhora a qualidade de vida, aí eu vou poder dar um futuro melhor para o meu filho, a minha vida pessoal ficar melhor (E4).

A sociedade, através dos tempos, impôs à mulher o papel de ser mãe e esposa, portanto, funções relacionadas à esfera familiar. Percebe-se, pelas falas das participantes deste estudo, que, ainda hoje, com o incremento da mulher no mundo do trabalho, tais imposições, outrora emergentes, continuam latentes no universo subjetivo da mulher.

A cobrança direta da sociedade no cumprimento do papel feminino, como mãe e esposa, ainda hoje permeia o imaginário social das mulheres, conforme observado nas falas das depoentes. As docentes de enfermagem esboçam o desejo de galgar sucesso no âmbito profissional, com investimentos necessários à carreira docente. Não vislumbram, no entanto, que tais objetivos possam ser alcançados sem que projetem, concomitantemente, sua satisfação quanto aos papéis exercidos no plano familiar. Além disso, enquanto meio pelo qual ela contribui no orçamento familiar, o trabalho assume um papel viabilizador de projetos pessoais e familiares, colocando a mulher em uma posição de coprovedora de sua família(13).

As docentes de enfermagem, portanto, como qualquer outra trabalhadora que associa o trabalho às demais atividades do cotidiano, necessitam dedicar tempo suficiente aos seus interesses pessoais, para que possam viver com tranquilidade suas atividades como mulher, mãe e trabalhadora(14).

Considerações finais

A sociedade contemporânea convive com uma mulher diferenciada daquela que subsistia há algumas décadas, ancorada apenas nos papéis de esposa e mãe. A mulher de hoje apresenta avanços outrora a ela não oportunizados, especialmente no âmbito profissional. O ser mulher, mãe e trabalhadora constitui facetas que comumente delineiam a configuração da mulher moderna, a qual exerce multiplicidade de funções.

Essas funções determinam, portanto, papéis sociais que necessitam ser conciliados no cotidiano dessas mulheres. Tal conciliação remete a um desafio diário, na medida em que a associação de diversas frentes de ação traz desgaste substancial, decorrente da rotina intensa de atividades que lhes são impostas.

Por outro lado, nota-se que viver esse desafio cotidiano remete as mulheres ao ideário de superação constante, motivado pelo desejo de conciliação dos papéis exercidos, os quais contribuem para o alcance de suas realizações, em todos os âmbitos de suas vidas.

A compreensão do ser docente de enfermagem, mãe e mulher traz consigo significação mais dimensionada da maternidade por parte das mulheres deste estudo, que reforçaram em seus depoimentos o sentimento de responsabilização pelo cuidado de suas famílias, sendo que o papel de mãe transcendeu um universo de significações, remetendo-o como o eixo central da ação social dessas mulheres.

Apesar das expectativas pretendidas na carreira docente, ficou evidenciado que tal ascensão só trará a essas mulheres a sensação de plena realização se for associada à dimensão familiar. Isso ratifica que a importância da vida profissional não está atrelada apenas a um avanço conquistado socialmente, mas também a uma possibilidade de inserção diferenciada da mulher no seio familiar. Essa inserção agrega aporte econômico e afetivo, pois os frutos colhidos com o trabalho serão valorizados na medida em que podem ser revertidos para a mulher e sua família.

A maior implicação da conciliação dos papéis está alocada na esfera do ser mulher, que, de fato, se encontra muitas vezes esquecido no cotidiano das depoentes deste estudo. As funções por elas realizadas atuam de modo refratário, isto é, elas se veem fazendo mil coisas ao mesmo tempo e nada por si mesmas. O outro, o trabalho, as atividades domésticas e, em especial, o filho ocupam todo o seu tempo, traduzido no pouco olhar que voltam para si.

Viver as implicações e conflitos, contudo, que podem existir na multiplicidade desses papéis, é tomado como natural e intrínseco ao momento e contexto vivenciado. Não foi evidenciada insatisfação da mulher quando diante de tantas funções e exigências sociais, embora tais configurações, necessárias ao ser mãe, mulher e docente de enfermagem, venham acompanhadas de postura desafiadora, típica do SER mulher na contemporaneidade.

Cabe acrescentar que, na vertente fenomenológica, a análise do fenômeno não se esgota, é perspectival. Nesse sentido, sugerem-se novas pesquisas com outros grupos sociais de mulheres, mães e docentes de enfermagem, incluindo aquelas que atuam em programas de pós-graduação stricto sensu.

Referências

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  • Ser docente de enfermagem, mulher e mãe: desvelando a vivência sob a luz da fenomenologia social

    Miriam Aparecida Barbosa MerighiI; Maria Cristina Pinto de JesusII; Selisvane Ribeiro da Fonseca DomingosIII; Deíse Moura de OliveiraIV; Patrícia Campos Pavan BaptistaV
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2011

    Histórico

    • Recebido
      24 Out 2009
    • Aceito
      08 Abr 2010
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