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Compreendendo o sofrimento humano frente à doença: manifestações, contexto e estratégias

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender a experiência do sofrimento frente à doença, utilizando um método de pesquisa secundário, metaestudo qualitativo. A principal fonte de dados foi o relato biográfico, baseado em estudo de caso que reflete a experiência narrada em primeira pessoa, nesse caso, frente à doença. A localização dos relatos foi feita através de pesquisa nos Arquivos de Memória da Fundação Index e em revistas especializadas na publicação desses materiais. Foram selecionados 20 relatos biográficos. Os resultados do estudo mostram que o sofrimento é um processo multidimensional, caracterizado pela ambiguidade de sentimentos. É fenômeno que envolve a família e a rede social. Os indivíduos doentes desenvolvem diferentes estratégias de enfrentamento e é evidente o medo de recaída ou deterioração.

Pesquisa Qualitativa; Acontecimentos que Mudam a Vida; Biografia como Assunto


The aim of this study is to understand the suffering of a patient with an illness, by using a secondary research method, that is, a qualitative meta-study. The primary data source of the meta-study includes "biographical reports". This project is based on a case study, in which the first-hand experiences of a patient with an illness were collected. The findings of the reports were compiled using the Archivos de la Memoria collection of the Index Foundation (Granada, Spain) and journals specialized in editing these materials. A selection of 20 biographical reports was targeted. The results of the meta-study show that suffering is a multidimensional process within a framework of ambiguous feelings. The suffering involves family and social network participation. Patients develop a range of strategies to overcome the illness. One of the effects is the fear of illness relapse or worsening.

Qualitative Research; Life Change Events; Biography as Topic


El propósito de este trabajo es comprender la experiencia del padecimiento ante la enfermedad mediante la utilización de un método de investigación secundaria, un meta estudio cualitativo. La fuente de datos primarios ha sido el relato biográfico, un diseño basado en el estudio de caso que recoge la experiencia en primera persona, en este caso, ante la enfermedad; la localización de relatos se ha hecho a través del fondo Archivos de la Memoria de la Fundación Index y de revistas especializadas en la edición de estos materiales. Se seleccionaron 20 relatos biográficos. Los resultados del meta estudio muestran que el padecimiento es un proceso multidimensional, caracterizado por la ambigüedad de sentimientos. Es un fenómeno que comparte la familia y la red social. Las personas enfermas desarrollan diferentes estrategias de afrontamiento y es manifiesto el miedo a la recaída o el empeoramiento.

Investigación Cualitativa; Acontecimientos que Cambian la Vida; Biografía como Asunto


ARTIGO DE REVISÃO

Compreendendo o sofrimento humano frente à doença: manifestações, contexto e estratégias1

César Hueso MontoroI; José Siles GonzálezII; Manuel AmezcuaIII; Candela Bonill de las NievesIV; Sonia Pastor MonteroV; Miriam Celdrán MañasVI

IPhD, Professor, Departamento de Enfermería, Facultad de Ciencias de la Salud, Universidad de Granada, Espanha

IIPhD, Professor Titular, Escuela Universitaria, Departamento de Enfermería, Universidad de Alicante, Espanha

IIIMSc, Professor, Departamento de Enfermería, Facultad de Ciencias de la Salud, Universidad de Granada, Espanha

IVPhD, Professor, Departamento de Enfermería, Universidad de Málaga, Espanha

VDoutoranda, Universidad de Alicante, Espanha. Hospital de Montilla, Espanha.

VIEnfermeira Especialista. Servicio Andaluz de Salud. Espanha

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender a experiência do sofrimento frente à doença, utilizando um método de pesquisa secundário, metaestudo qualitativo. A principal fonte de dados foi o relato biográfico, baseado em estudo de caso que reflete a experiência narrada em primeira pessoa, nesse caso, frente à doença. A localização dos relatos foi feita através de pesquisa nos Arquivos de Memória da Fundação Index e em revistas especializadas na publicação desses materiais. Foram selecionados 20 relatos biográficos. Os resultados do estudo mostram que o sofrimento é um processo multidimensional, caracterizado pela ambiguidade de sentimentos. É fenômeno que envolve a família e a rede social. Os indivíduos doentes desenvolvem diferentes estratégias de enfrentamento e é evidente o medo de recaída ou deterioração.

Descritores: Pesquisa Qualitativa; Acontecimentos que Mudam a Vida; Biografia como Assunto.

Introdução

O fluxo de dados científicos levou à irrupção de novos métodos de pesquisa baseados na integração, síntese e análise secundária de documentos que difundem os resultados da pesquisa primária. A incorporação de metodologias inovadoras em pesquisas, como a pesquisa qualitativa, permite compreender respostas humanas que ocorrem frente a situações de saúde ou doença, tornando-se fonte de recomendações úteis para prática clínica e susceptível de ser abordada, através dos métodos de pesquisa secundária(1). A parceria entre a pesquisa qualitativa e a metodologia de pesquisa secundária foi realizada em boa parte do quadro de referência deste trabalho.

Os elementos conceituais que fazem parte do eixo desta pesquisa são o sofrimento e a doença, conceitos que foram revistos na literatura científica e publicada em um artigo anterior, integrado ao projeto do qual também surgiu este trabalho(2). Do artigo anterior, nota-se a conceituação da doença como fenômeno integrado por três dimensões: (a) dimensão biológica (doença/objeto), que guarda estreita relação com a visão mecanicista da doença, baseando-se na anormalidade ou disfunção fisiológica ou estrutural de base orgânica; (b) dimensão subjetiva (doença/paciente); que é aquela que aborda a doença sob a perspectiva êmico, ou seja, é a resposta à pergunta de como os pacientes se sentem, quais são suas experiências, como isso afeta sua vida e (c) a dimensão simbólica/social, que se refere ao significado que a sociedade projeta sobre o doente. No que se refere ao sofrimento, entender-se-ia como uma experiência vivida como um todo, resultante do processo pelo qual um indivíduo vivencia e experimenta sua doença.

Este estudo segue a linha de outros trabalhos, aqueles que se destacam entre as pesquisas desenvolvidas sobre experiência frente a doenças crônicas como diabetes ou hipertensão(3-6), a respeito de processos oncológicos(7-12), ou aqueles que tomaram como indivíduos do estudo pacientes com doenças agudas(13-14).

Este trabalho baseia-se em um metaestudo qualitativo que já foi trabalhado com narrativas de doentes expostos sob a forma de relato biográfico, modalidade de narrativa com base em postulados da fenomenologia, que tem por finalidade a obtenção de dados qualitativos sobre temáticas concretas de indagação que, neste caso, corresponde à vivência e experiência frente à doença(15). O objetivo foi descrever e compreender a experiência do sofrimento do indivíduo frente a situação de doença ou problema de saúde. Para esse efeito, foram estabelecidos como objetivos específicos identificar e caracterizar os tipos de manifestações do sofrimento, descrever o contexto em que se produz em nível individual, familiar e social, em relação à rede de assistência de saúde, conhecer as estratégias de tipo físico, emocional e social para gerenciar o sofrimento e descrever as consequências do mesmo.

Metodologia

Uma revisão integrativa foi feita com abordagem qualitativa do tipo metaestudo qualitativo. Dada às características deste trabalho, catalogou-se como uma análise de metadados que se baseia na seleção dos estudos homogêneas, sob o ponto de vista teórico e metodológico(16-18).

Esse tipo de trabalho envolve uma sequência composta por diversas fases: (a) identificação do tema e a questão da pesquisa; (b) estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão dos estudos, bem como a definição de informações que serão extraídas dos estudos selecionados; (c) a avaliação dos estudos incluídos na revisão e (d) interpretação dos resultados, apresentação da revisão ou síntese do conhecimento. Com base no que precede, a sequência deste trabalho se sustentou nessas quatro fases, conforme descrito abaixo.

A - A questão que guiou esta revisão foi a seguinte: quais vivências e experiências estão presentes nos pacientes que sofrem uma doença?

B - foi tomada como fonte de dados relatos biográficos que abordaram a experiência frente à doença. O relato biográfico(19-20) é um tipo de estudo primário qualitativo que é obtido através de uma entrevista profunda, realizada por um pesquisador a um informante, portanto, no caso de um documento que contém a narrativa de uma experiência vivida por um indivíduo e expressa em suas próprias palavras. A análise da entrevista atinge nível de descrição mínima, e o autor se limita a transcrever e organizar dados em áreas de atuação, reproduzindo literalmente a narrativa feita pelo informante. Portanto, essa narração torna-se material que será incluído nos estudos da revisão integrativa, porque, no conjunto de outros relatos e através de técnicas de análise qualitativa, podem ser extraídas conclusões significativas sobre fenômenos compartilhados por diferentes relatos(21). Na mesma linha de raciocínio abordada neste artigo, encontram-se estudos semelhantes em outras áreas de atuação(22).

Os critérios de inclusão são, por um lado, relatos biográficos nos quais os participantes, protagonistas dos mesmos, narraram em primeira pessoa experiência do sofrimento frente uma doença, excluindo os que trataram sobre as doenças mentais ou relacionadas a transtornos da imagem corporal. Por outro lado, outro critério de seleção dos trabalhos foi a diversidade dos perfis dos protagonistas dos relatos, portanto, representam diferentes perfis do trabalho selecionado. Assim, os critérios de diversificação empregados foram: tipo de doença (se divide entre doenças agudas e crônicas), idade dos participantes, gênero dos participantes e situação familiar (buscou-se representar diferentes situações no nível da responsabilidade familiar: ser casado ou ter um parceiro, ter ou não filhos).

A busca e seleção de relatos foram fontes específicas que publicaram esse tipo de material, principalmente o fundamento documental Arquivos da Memória do Laboratório de Pesquisa Qualitativa da Fundação Index (http://www.index-f.com/memoria/me_inicio.php), embora, também tenham consultadas revistas científicas especializadas, como é o caso da Index de Enfermería ou a Cultura de los Cuidados. O período de coleta de dados foi a partir de 2004.

C - Para garantir a idoneidade dos trabalhos selecionados, cada um foi examinado minuciosamente com o apoio de um guia adaptado para este estudo de leitura crítica de estudos qualitativos descritivos(23). Uma vez selecionados os relatos, contataram-se os autores originais para informá-los sobre a inclusão de seu trabalho neste metaestudo, com sua participação na análise e integração dos resultados.

D - Como já mencionado na alínea B, a revisão integrativa, dadas as características do material selecionado, permitiu integrar resultados através de métodos convencionais de análise qualitativa que vão além da exposição e discussão dos resultados encontrados, em diferentes trabalhos incluídos. Para a interpretação dos resultados, optou por metodologia de análise, adaptada à proposta de outros autores(20,24), que se resumiu a seis Passos. Passo 1: definição do mapa de categorias ou o paradigma de análise - definiu-se um sistema de categorias com base na matriz descrita para codificação axial(25) que permite a análise do fenômeno de estudo como um processo. As categorias incluídas e seus respectivos códigos foram: manifestações do sofrimento (tipos e características); contexto individual (percepções, experiências, sentimentos); contexto familiar (pessoas reconhecidas dentro do contexto familiar, percepções, experiências, sentimentos e interações que ocorrem na relação paciente/família); contexto da rede social/laboral (dimensões semelhantes à categoria anterior, mas em relação à rede social/laboral); contexto profissional/rede institucional sanitária (dimensões semelhantes à categoria anterior, mas em relação à rede institucional sanitária); condições intermediárias (fatores físicos, emocionais ou socioculturais que condicionam o sofrimento); ações/interações (ações de tipo físico, emocional ou social e interações envolvidas no processo de enfrentamento); consequências (efeitos de tipo físico, emocional ou social que ocorrem na pessoa como consequência do sofrimento e do processo de enfrentamento). Passo 2: organização e leitura compreensiva de todos os relatos. Foram separadas aas falas do de cada sujeito, codificando a fala por um código de referência composto pela inicial "R" e o número correspondente (por exemplo, R13). A leitura compreensiva serviu para testar a validade do paradigma de análise sobre os relatos selecionados. A análise intracaso foi feita antes de se realizar a análise conjunta das narrativas. Passo 3: segunda leitura para codificar os relatos nas categorias descritas. Passo 4: uma vez concluída a fase anterior, a análise de conteúdo quantitativo(20) foi realizada para descrever e analisar o peso ou o volume do texto dedicado para cada categoria definida e, dessa forma, orientar a discussão dos resultados encontrados. Passo 5: examine das distintas categorias com as narrações atribuídas para desenvolver conceitos e proposições que descrevem cada categoria, bem como classificações e tipologias que contribuirão para a melhor compreensão dos mesmos. Passo 6: interpretação e elaboração, expondo, em cada categoria os conceitos, proposições e tipologias que surgiram, incluindo ilustrações na forma de transcrições literais inéditas dos relatos.

Resultados e Discussão

Depois de consultadas as fontes de pesquisa, localizaram-se 36 relatos que cumpriram o primeiro critério de inclusão. Uma vez aplicado o segundo critério, juntamente com a leitura crítica, foram selecionados 20 relatos (Figura 1).


 

Na Figura 2 são apresentadas as características dos protagonistas dos relatos selecionados, com base em critérios da diversificação utilizada. Por meio de resumo, encontrou-se que a metade dos participantes apresentou, como problema de saúde, uma doença aguda e a outra metade uma doença crônica. Treze dos participantes são homens e sete mulheres. A idade oscilou entre 26 e 79 anos; 6 participantes tinham menos de 40 anos e 5 mais de 65; o maior número de participantes, em especial 11, concentrava-se nas idades entre 40 e 65 anos. A situação familiar dos participantes mostrou-se variada.


A respeito da análise quantitativa de dados, a percentagem de texto (a narração do participante incluída no relato biográfico) foi de 56,20%. As categorias codificadas aglutinaram o contexto individual e profissional. Aquelas de menor representação referiam-se ao contexto sociolaboral e todas as categorias que aludiam às consequências ou efeitos do sofrimento, nesse caso nenhuma das citadas chegou a 5% da distribuição, em relação ao volume do texto codificado; com representação média situando-se as categorias contexto familiar, ações e condições envolvidas (Figura 3).


A seguir estão os principais resultados encontrados, após a análise integrativa qualitativa dos resultados nos trabalhos selecionados, seguindo o paradigma de análise já definido.

Manifestações do padecimento: o padecimento é definido como processo multidimensional e dinâmico, cuja origem desencadeou a aparição súbita ou insidiosa de uma doença ou um problema de saúde.

Fui até aos 35 anos sem qualquer sintoma da doença. Porque é claro, segundo me disseram a doença digestiva não é de agora (R02).

Eu tinha como dorzinha no peito desde o verão passado. A coisa é que foi como uma espécie de falta de ar e, em seguida, me deu opressão nos braços (R05).

Junto à doença, apresentavam-se manifestações colaterais consequentes da internação, de tratamento ou de complicações. Tudo isso define o que pode ser denominado como processo de gestão do sofrimento.

Contexto do sofrimento: a ambiguidade de sentimentos e reações emocionais caracteriza o discurso dos participantes, mostrado, também, em outros estudos(11,13,26). Geralmente, a notícia do diagnóstico é recebida com pessimismo, acompanhado de descrença, sofrimento e aflição.

Quando o médico me disse "Senhora você tem câncer", claro que caíram duas lágrimas (R08).

Detectou um problema no coração; você acha que você, eu, um homem que trabalhou vida toda, não funcionava o coração (R14).

Que sintomas começam a sentir desde o início? São uma tremenda ameaça, uma enorme incerteza e uma vulnerabilidade muito grande (R19).

As reações emocionais passam, em alguns casos, pela resignação e outras pela impassibilidade.

Viver com a diabetes todos os dias, parece que é pesado porque todos temos lutas boas e ruins, e quando chega as ruins, se esquece da diabetes e de viver como é possível (R09).

Estou doente, mais para eles do que para mim. Há momentos em que fui, por exemplo, urinando sangue, porque quando disse que já passaram muitos dias. Fui me segurando, sofri e não me dei conta (R12).

Uma das categorias que surge em outros estudos(5,14), para ilustrar as sensações notadas pelos participantes, é o medo, que, neste estudo, se vêem quem está em tratamento, juntamente com as sensações como a incerteza frente ao que poderá acontecer.

Eu tenho muito medo da anestesia e especialmente ao acordar. Que tenho pavor. É algo que você não controla, não sabe o que fazer ou como serão as coisas. Isso é o que me dá raiva, o não controlar (R07).

Experiências no hospital é outro ponto abordado pelos participantes, que destacam em particular as situações ocorridas na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). A UTI é percebida como um lugar individual especial. A alta tecnologia desse ambiente gera confiança e segurança no assunto, mas também dependência.

E colocam no mesmo quarto, que eu não sabia que era o UTI de transplantes. Deixa sozinho e o vê completamente perdido, sem perder a esperança (R01).

Você tem medo de deixar a UTI, porque na UTI praticamente te dão a vida, acho que o pessoal de plantão não é capacitado profissionalmente e tem certa ansiedade ao sair (R03).

É significativa a crítica latente no discurso de alguns participantes em relação à gestão hospitalarda instituição sanitária; enfatizando, assim, que o processo de hospitalização deve ser medido, respeitando as características individuais dos pacientes, uma situação que coloca uma parada.

Percebe que o paciente muitas vezes paga as consequências, também por falta de pessoal, por falta de conhecimento ou falta de preparação do pessoal que tem que ser em um dado momento, gerenciando uma máquina ou tecnologia. São falhas do sistema (R03).

A experiência da doença afeta significativamente não só a pessoa, mas também, de maneira particular, a rede familiar. Emerge um processo coletivo de sofrimento em que a família e o indivíduo padecem para lidar com o problema, compartilhando bilateralmente o medo, a incerteza e a preocupação. Geralmente um membro da família, habitualmente o parente mais próximo (o casal, a mãe), é que assume a maior parte da responsabilidade pelo tratamento. Em alguns casos, a pessoa que sofre considera que é uma carga para a sua família, criando no indivíduo a percepção de dependência, aumentando o seu desconforto e alterando as relações familiares(13).

Não faz nenhuma graça ser sempre chamado para trazer isto ou aquilo, que ajudam a tomar banho, me vestir. E, além disso, está sempre pensando que outros sofrem, mas bem, a vida é assim (R10).

De acordo com outros estudos(5), a relação familiar pode levar à desintegração ou coesão familiar. Nos relatos analisados não foi identificado nenhum caso de desintegração familiar e, sim, houve manifestação do aumento da intensidade da coesão familiar. A família tornou-se o principal recurso terapêutico, tanto físico como emocional, para gerenciar o sofrimento(26-27).

Minha esposa está acompanhando os tratamentos. Ela é responsável por tudo. Apoio total, todos os dias, ela que sempre vem comigo, me dá conselhos (R11).

As restrições físicas e emocionais, que geralmente estão presentes nessa condição, não só afetam o indivíduo nas atividades da vida diária, mas, de maneira concreta, quebram ou alteram suas relações sociais e sua atividade laboral(3-5). A rede social também adota um papel central como recurso de apoio, especialmente como agente emocional, visto muitas vezes em ações como a visita.

Você valoriza a amizade de longas datas que estavam lá contigo dando-lhe ânimo e também lhe dando o adeus (R01).

Até todas as visitas que verá para recuperação é essencial (R03).

Trabalho e sofrimento constituem uma díade conflitiva, com caráter simbiótico, de modo que a doença se torna fator que invalida e impede que o paciente leve seu ritmo normal de trabalho(12-13); por outro lado, como evidenciam os resultados deste estudo, trabalho, por sua vez, é uma desvantagem para gerir eficazmente o sofrimento, já que é uma preocupação adicional.

Não foi só minha doença, mas a pressão externa que recebi... que cada dois por três me chamaram a perícia médica com o que isso significava para mim, uma tensão enorme, porque o perito me disse que daria alta, porque fazia muitos meses de recaídas (R17).

Finalmente, em alguns relatos analisados, ficou patente a demanda dos participantes por permanecer em casa, induzindo a se pensar no exercício da consciência e convencimento desde os serviços sanitários que mostram à cidadania e aos próprios profissionais as vantagens do atendimento domiciliar especializado, principalmente nos casos em que esse atendimento pode ser viável. O hospital tornou-se uma espécie de templo da doença, completamente hermético para o paciente e, assim, é percebido por ele.

A decisão que me aplicavam líquidos por via intravenosa foi minha, porque naquela época eu acreditava que os benefícios de estar em casa eram infinitamente superiores a um novo começo... queria ter a sensação de estar em casa, apesar de amigos e visitas, que lhe dá muita segurança, se colocou em sua realidade e ajuda a se adaptar (R19).

Outro nível de análise sobre a rede social refere-se à percepção que a sociedade tem sobre a doença, situações emergentes de estigmatização. No entanto, ao entrar em nuances, encontra-se, também, um relato (R15) que está em consonância com a ideia da aceitação social da doença(7,27).

De vez em quando para ver que estou sentado no ônibus e há pessoas que não querem se sentar ao meu lado, notei isso muitas vezes (R16).

Eu não me considero um doente, sim incapaz por conta das complicações, sei que tenho limitações (...) A diabetes não é uma doença, porque podemos fazer quase tudo (R15).

Se algo define a relação entre os profissionais e os doentes, sob a perspectiva desses últimos, é a confiança, que avalia a tese de outros autores(28), quando afirmam que a relação profissional é baseada no respeito mútuo e confiança, não só na dependência tecnológica do sistema sanitário. Embora haja fatos concretos que revelam experiências desagradáveis no tratamento recebido pelos profissionais, a percepção generalizada é boa.

Nunca observei que deixei me enganar, sempre fui muito confiante com o médico e a enfermeira (R08).

Tratamento em linha geral, tanto da enfermagem como os médicos e funcionários tem sido bom. O sistema funciona graças a grandes profissionais, há pessoas que funcionam muito bem e colegas são grandes profissionais. Há outros que deixam muito a desejar, que não pode corrigir, acontece em todos os grupos, não irá corrigir-nos, o que pode ficar melhor, é claro (R03).

Um elemento central também abordado, nos relatos analisados, é a importância da informação que os profissionais de saúde devem fornecer e compartilhar com o paciente, para evitar que esse apresente déficit de conhecimento sobre seu problema (29).

Estratégias e fatores intermediários: os resultados expostos demonstram a diversidade dos fatores que influenciam o sofrimento. Na experiência vivida da doença, a análise da situação percorre um trajeto que se limita ao fato biológico, mas que ultrapassa também o meramente objetivo, bem como demonstram diversas alusões ao papel da religião e de Deus, tanto na causalidade como no controle e cura da doença(4).

Atribuo à culpa, porque a culpa é atribuída. Houve uma falha por qualquer motivo (...) Eu divino nada, que são coisas do corpo e já está. Estão aí e é o que acontece (R05).

Sou um homem religioso. Isso me ajudou profundamente a entender que a vida não pertence a nós, pelo menos para mim, pertence a Deus, para outros será outra coisa, ou genética. E como não nos pertence, foi decidido que até aqui já tinha chegado (R01).

Outro interesse foi relacionado à identificação e à definição de ações que os participantes desenvolveram para lidar com o sofrimento. As ações encontradas foram classificadas em três tipos: ações voltadas à dimensão biológica da doença (tratar ou aderir à inércia terapêutica); ações voltadas para a dimensão subjetiva (adaptação) ou ações voltadas para a dimensão simbólica/social, como a interação com outros pacientes em circunstâncias similares, também constatável em outros pesquisas(4), afetando positivamente, por sua ve, a dimensão anterior.

Adapta-se à vida e pronto. Se não se tivesse me adaptado, já tinha me jogado da varanda (R05).

No chão conheci um rapaz paraplégico. Quando estava com depressão veio para o meu quarto com a bola de basquete e foi passar acima da cama (R06).

A necessidade de uma resposta diagnóstica e terapêutica para o paciente que sofre esgota todas as suas possibilidades existentes, razão pela qual expõe várias opiniões profissionais sobre seu problema ou busca soluções em terapias alternativas, fato mostrado também em outros estudos(3).

Então me disse o médico que tinha que operar. E metade de um ano antes tinha operado uma tia, mas não, de verdade deixava morrer antes de passar por esta operação. Foi um pouco louca. Bons médicos riram, mas fiz um tratamento com um naturista em seguida. Estava indo bem. Porque todos esses anos sem nenhum problema! (R07).

Foi feita alusão, por alguns participantes, sobre a utilização de novas tecnologias de informação e comunicação para a busca de informação.

A informação que recebi foi muito completa. Bem, então me informei muito na internet. A quantidade de coisas lá fora (...) Pelo menos para saber o que vou fazer quero saber. O saber como é o processo (R07).

Para lidar com o tédio e a solidão, caracterizada pela internação, os pacientes necessitam de distração, desenvolvem, então, mecanismos como o jogo ou se apoiam no acompanhamento de profissionais, familiares e amigos(13).

Quando não queria levantar colocavam música de discoteca e levantavam dando voltas na cadeira de detentor até que me animavam a sair. Quando não eram meus pais que me enfiavam na cafeteria com eles ou cafeteria pública (R06).

Consequências: em relação às consequências ou efeitos do sofrimento, trata-se da dimensão menos explorada, no entanto, há resultados que são merecedores de destaque e comentário. Assim, a situação de sofrimento vivida ativa no paciente uma atitude de maior cuidado em relação aos aspectos preventivos e terapêuticos de sua doença, principalmente pelo medo de novas recaídas ou deterioração.

Dava-me medo de uma recaída (R13).

Isso sim, que me preocuparia, talvez tenha algo e a dor não me diz. Não me sinto avisada (R07).

Encontra-se, aqui, novamente, dualidade de reações frente à nova situação, enquanto alguns participantes buscam alternativas para minimizar a presença do problema, outros pacientes aderem de forma dependente, ocasionando a falta de vontade ou frustração frente às limitações que a doença provoca.

Disse muitas vezes: nunca vou aceitar isso, não agora, ou amanhã, nem daqui duzentos anos, não vou aceitar (R04).

Agora traço as próximas metas. Tenho sonho da primeira comunhão da minha neta (R08).

Considerações finais

Através da revisão integrativa dos relatos biográficos de pacientes doentes, é possível compreender o fenômeno do sofrimento sob a perspectiva daqueles que o vivenciam, narrando-os na primeira pessoa. Por outro lado, a simbiose entre os métodos de revisão integrativa e a pesquisa qualitativa incentiva à geração de conhecimento útil e compreensível para os profissionais da saúde que, diariamente, estão na posição de quem toma decisões, frente à complexidade das respostas humanas que ocorrem em indivíduos que sofrem.

Além da pertinência temática de se pesquisar na mesma linha de raciocínio, destacam-se vários pontos que se aprofundam na metodologia apresentada neste trabalho: é necessário considerar este estudo como um reflexo de continuidade, especialmente porque vinculou-se com um fundo documental como Arquivos da Memória que, anualmente, incorpora uma média de 50 relatos biográficos de diversas temáticas, sendo uma delas a experiência frente à doença. Na verdade, a revisão periódica dos relatórios de pesquisa secundária é tãoaceitável como é necessário, também, avaliar a pertinência de suas conclusões. Por último, seria interessante considerar estudos nessa linha de raciocínio focados na experiência frente a doenças concretas, que permitem compreensão mais profunda do fenômeno, com estudos em populações que partilham uma mesma causa ou um mesmo tipo de sofrimento.

Conclusões

Em relação aos objetivos deste estudo, as principais conclusões que emergem são as seguintes:

- o padecimento frente à doença é um processo multidimensional que se manifesta sob diferentes formas (complicação, tratamento, entre outras); todas elas levam a uma experiência de sofrimento;

- manifesta-se ambiguidade de sentimentos em indivíduos que sofrem, sendo o medo a dimensão nuclear característica na percepção individual da doença. Além disso, a família compartilha o sofrimento e se torna a principal fonte de apoio, tanto física como psicológica; questão também inerente à rede social. Finalmente, os indivíduos sofrem a demanda da confiança profissional e informações sobre seu processo;

- O processo de sofrer tem conotações biológica e sobrenatural, destacando-se, por exemplo, o papel da religião como fator intermediário. As ações do indivíduo são desenvolvidas em torno da tripla dimensão de seu processo, destacando-se a inércia terapêutica, a utilização de terapias alternativas, os mecanismos de adaptação e a interação com outros indivíduos que apresentam processos ou circunstâncias similares.

- As consequências ou efeitos do sofrimento se manifestam em torno do medo da recaída ou deterioração, e da ativação de medidas preventivas.

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  • Corresponding Author:
    César Hueso Montoro
    Universidad de Granada
    Facultad de Ciencias de la Salud. Departamento de Enfermería
    Avenida de Andalucía, s/n
    18071, Granada, España
  • 1
    Paper extracted from Doctoral Dissertation "El padecimiento de la persona ante la enfermedad. Metaestudio cualitativo a través del relato biográfico" presented to Universidad de Alicante, Spain.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      22 Jul 2011
    • Aceito
      19 Mar 2012
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