Acessibilidade / Reportar erro

Fatores associados à notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes realizada por enfermeiros na Atenção Primária à Saúde1 1 Artigo extraído da dissertação de mestrado "Notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes em municípios cearenses", apresentada à Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil. Apoio financeiro da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), Brasil, processo nº 306061/2008-2

Resumos

OBJETIVO:

analisar os fatores associados à notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes, realizada por enfermeiros que atuam na Atenção Primária à Saúde.

MÉTODO:

estudo transversal, realizado com 616 enfermeiros. Foi utilizado um questionário contendo dados sociodemográficos, formação profissional, instrumentação e conhecimento sobre o tema, identificação e notificação de casos de maus-tratos. Análises bivariada e multivariada por regressão logística foram realizadas.

RESULTADOS:

predominaram enfermeiros do sexo feminino, na faixa etária entre 21 e 32 anos, não casados, com cinco ou mais anos de formado, com pós-graduação e com cinco ou mais anos de trabalho. O modelo logístico final evidenciou que fatores como tempo de trabalho de cinco ou mais anos, a unidade de saúde possuir a ficha de notificação, saber para onde encaminhar os casos, não ter medo de envolvimento legal e achar vantajosa a notificação na atenção primária facilitam a efetivação do ato notificatório.

CONCLUSÃO:

os resultados desta pesquisa, além de sensibilizar os enfermeiros para o problema, poderão ser utilizados pelos profissionais da gestão na orientação de estratégias para o cumprimento da notificação como dispositivo legal de garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

Notificação de Abuso; Violência; Criança; Adolescente; Atenção Primária à Saúde


OBJECTIVE:

to analyze the factors associated with the underreporting on the part of nurses within Primary Health Care of abuse against children and adolescents.

METHOD:

cross-sectional study with 616 nurses. A questionnaire addressed socio-demographic data, profession, instrumentation and knowledge on the topic, identification and reporting of abuse cases. Bivariate and multivariate logistic regression was used.

RESULTS:

female nurses, aged between 21 and 32 years old, not married, with five or more years since graduation, with graduate studies, and working for five or more years in PHC predominated. The final regression model showed that factors such as working for five or more years, having a reporting form within the PHC unit, and believing that reporting within Primary Health Care is an advantage, facilitate reporting.

CONCLUSION:

the study's results may, in addition to sensitizing nurses, support management professionals in establishing strategies intended to produce compliance with reporting as a legal device that ensures the rights of children and adolescents.

Mandatory Reporting; Violence; Child; Adolescent; Primary Health Care


OBJETIVO:

analizar los factores asociados a la notificación de maltrato en niños y adolescentes realizado por enfermeros que actúan en la Atención Primaria a la Salud.

MÉTODO:

estudio transversal realizado con 616 enfermeros. Fue utilizado un cuestionario conteniendo datos sociodemográficos, formación profesional, instrumentación y conocimiento sobre el tema, identificación, y notificación de casos de maltrato. Análisis bivariado y multivariado por regresión logística.

RESULTADOS:

predominaron enfermeros del sexo femenino, en la franja etaria de 21 a 32 años, no casados, con cinco o más años de graduación, con postgraduación y con cinco o más años de trabajo. El modelo logístico final evidenció que factores como tiempo de trabajo de cinco o más años, la unidad de salud poseer ficha de notificación, saber para donde encaminar los casos, no tener miedo de involucramiento legal y encontrar ventaja en la notificación en la atención primaria, son aspectos que facilitan la efectividad del acto de la notificación.

CONCLUSIÓN:

los resultados de esta investigación, además de sensibilizar a los enfermeros para el problema, podrán ser utilizados por profesionales de la gestión en la orientación de estrategias para el cumplimiento de la notificación como dispositivo legal de garantía de los derechos de niños y adolescentes.

Notificación Obligatoria; Violencia; Niño; Adolescente; Atención Primaria de Salud


Introdução

Reconhecida mundialmente como problema social e de saúde pública em virtude do impacto que provoca na morbimortalidade da população e no cotidiano das experiências humanas( 11. Lima MADS, Rückert TR, Santos JLG, Colomé ICS, Costa AM. Atendimento aos usuários em situação de violência: concepções dos profissionais de unidades básicas de saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2009;30(4):625-32. ), a violência apresenta profundo enraizamento nas estruturas sociais, econômicas e políticas, bem como na consciência individual e na dinâmica cultural. Essa, quando dirigida a crianças e adolescentes implica tanto a transgressão do dever de proteção do adulto e da sociedade em geral como a banalização dos direitos da infância e adolescência, o que sinaliza a negação da garantia que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições especiais de crescimento e desenvolvimento.

A dimensão do problema pode ser evidenciada em estudos que apontam que as violências contra crianças, adolescentes e jovens estão entre as principais causas de morte e adoecimentos em vários países( 22. Troiano MA. Child Abuse. Nurs Clin North Am. 2011;46(4):413-22.

3. Liao M, Lee AS, Roberts-Lewis AC, Hong JS, Jiao K. Child maltreatment in China: An ecological review of the literature. Child Youth Serv Rev. 2011;33(9):1709-19.
- 44. Finkelhor D, Turner H, Ormrod R, Hamby SL. Violence, crime, and abuse exposure in a national sample of children and youth: an update. JAMA Pediatr. 2013;167(7):614-21. ), inclusive no Brasil( 55. Matos KF, Martins CBG. Mortalidade por causas externas em crianças, adolescentes e jovens: uma revisão bibliográfica. Rev Espaço para a Saúde. 2013;14(1):82-93. ). No cenário internacional, a magnitude desse fenômeno preocupa órgãos governamentais, pesquisadores e sociedade civil, pois as repercussões são significativas na vida futura desse grupo( 22. Troiano MA. Child Abuse. Nurs Clin North Am. 2011;46(4):413-22. , 66. Fenton MC, Geier T, Keyes K, Skodol AE, Grant BF, Hasin DS. Combined role of childhood maltreatment, family history, and gender in the risk for alcohol dependence. Psychol Med. 2013;43:1045-57. ).

No panorama nacional, como parte da estratégia de enfrentamento do problema, compete aos profissionais de saúde e educação a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes, tendo sido instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)( 77. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (BR). [Internet]. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 1990. [acesso 5 ago 2013]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). No setor saúde, essa prática é respaldada pela Portaria nº1.968/2001, que institucionalizou a notificação compulsória de maus-tratos contra crianças e adolescentes, atendidos no Sistema Único de Saúde (SUS)( 88. Portaria GM/MS n. 1.968, de 25 de outubro de 2001 (BR). [Internet]. Dispõe sobre a notificação, às autoridades competentes, de casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes atendidos nas entidades do Sistema Único de Saúde. (2001). [acesso 10 set 2013]. Disponível em: http://brasilsus.com.br/legislacoes/gm/12960-1968.
http://brasilsus.com.br/legislacoes/gm/1...
) e pela Portaria nº104/2011, que dispõe sobre a violência doméstica, sexual e/ou outras violências como o 45º evento de notificação compulsória( 99. Portaria n. 104, de 25 de janeiro de 2011 (BR). [Internet]. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo território nacional e estabelece fluxos, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais de saúde. (2011). [acesso 27 ago 2013]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0104_25_01_2011.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Como parte do modelo de atenção à saúde brasileira, a Atenção Primária à Saúde (APS) se configura em um nível privilegiado para a identificação e o manejo de situações de maus-tratos dirigidas à população infantojuvenil. Isso porque seu modelo visa a prevenção de doenças e/ou agravos e se utiliza da promoção da saúde como alicerce que favorece o enfrentamento da violência contra o grupo.

Nesse campo da saúde coletiva, o enfermeiro ganha destaque por deter formação acadêmica que o capacita para realizar ações que promovem a saúde, bem como o cuidado familiar( 1010. Oliveira RG, Marcon SS. Trabalhar com famílias no Programa de Saúde da Família: a prática do enfermeiro em Maringá-Paraná. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(1):65-72. ). Essa profissão vem incorporando novas práticas que extrapolam o modelo técnico-curativista em virtude da complexidade das demandas da APS( 1111. Aragão AS, Ferriani MGC, Vendruscollo TS, Souza SL, Gomes R. Primary care nurses' approach to cases of violence against children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(Spe):172-9. ). Nesse contexto, os maus-tratos em crianças e adolescentes e seus desdobramentos reverberam no cotidiano das equipes de saúde da família e requerem do profissional enfermeiro, e dos demais, cuidado ético e legal, respondendo aos dispositivos que legislam sobre o tema.

Em contrapartida, investigações apontam que a notificação da violência na APS tem se mostrado desafiadora por vários motivos, incluindo o despreparo na identificação e condução de casos e o receio de represálias pessoais e profissionais(11-12) . Nessa perspectiva, o estudo se mostra relevante ao elencar os fatores que facilitam o ato notificatório de maus-tratos em crianças e adolescentes, no que diz respeito ao papel profissional e cidadão do enfermeiro na APS, aspecto ainda pouco abordado na literatura.

Espera-se que os resultados forneçam dados para o planejamento de ações que contribuam para a reorientação das práticas que envolvam a gestão e a atenção da APS, com a finalidade de efetivar a notificação. Dessa forma, objetivou-se analisar os fatores associados à notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes, realizada por enfermeiros que atuam na APS.

Métodos

Realizou-se uma análise de corte transversal, que utilizou como fonte de informações o banco de dados de uma pesquisa mais ampla, intitulada "Violência envolvendo crianças e adolescentes: fatores condicionantes, processo de notificação e mecanismos de enfrentamento", que teve como objetivo analisar a notificação pelos profissionais (médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas) da Equipe de Saúde da Família de maus-tratos em crianças e adolescentes, em municípios cearenses. Este artigo se reporta, especificamente, aos profissionais enfermeiros.

O Estado do Ceará é composto por 184 municípios. Este estudo abrangeu 46,2% desses, totalizando 85 cidades investigadas, contemplando todas as regiões de saúde do Estado (Figura 1).

Figura 1 -
Mapa do Estado do Ceará evidenciando os municípios investigados

A população de enfermeiros foi obtida com base nos dados fornecidos pelo Departamento da Atenção Básica (DAB) que, na época da pesquisa, contava com 1.014 enfermeiros e, desses, 616 (60,7%) responderam a esta pesquisa.

A coleta de dados aconteceu nos anos de 2010 a 2012, por meio do envio de um conjunto de cartas-convite, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e questionários a todos os enfermeiros que trabalhavam na APS dos municípios participantes. Esses formulários, previamente organizados em envelopes lacrados e identificados por município, foram enviados aos gestores das Coordenadorias Regionais de Saúde e/ou às Secretarias Municipais de Saúde, que intermediaram a entrega aos enfermeiros de cada município. O retorno dos instrumentos preenchidos seguiu o fluxo inverso.

O questionário estruturado era composto por 32 questões adaptadas e revisadas, com os seguintes domínios analíticos: sociodemográfico, formação profissional, instrumentação e conhecimento sobre o tema, identificação e notificação de casos de maus-tratos em crianças e adolescentes.

O desfecho do estudo foi a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes e, como variáveis preditoras: sexo; idade; estado civil; tempo de formado; pós-graduação; tempo de trabalho na APS; e se participou de treinamento, conhece o ECA, conhece a ficha de notificação, ficha de notificação na Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS), confia nos órgãos de proteção, sabe para onde encaminhar os casos, medo de envolvimento legal, se lê sobre a temática, se o assunto é discutido no trabalho, se conhece instituição de assistência à vítima e a vantagem de instituir a notificação na APS.

O teste qui-quadrado (χ2) foi utilizado para analisar a associação entre o desfecho e as variáveis preditoras. Estabeleceu-se p<0,05 para significância estatística. Seguiram-se a essas análises os procedimentos de modelagem múltipla por meio de regressão logística, incluindo no modelo as variáveis preditoras que mostraram associação ao desfecho com significância p<0,25. Permaneceram no modelo múltiplo as variáveis no nível de significância p<0,05. A força de associação entre o desfecho e as variáveis preditoras foi expressa em valores estimados de Odds Ratio (OR) bruto e ajustado, com Intervalo de Confiança (IC) de 95%. Todos os questionários foram conferidos e inseridos no banco com dupla entrada, a fim de verificar a consistência dos dados, que foram digitados no programa SPSS (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos), versão 17.0. Para análise, utilizou-se o programa STATA (Stata Corp LP, College Station, TX 77845, USA), versão 11.0.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, sob Parecer nº072/2007.

Resultados

Os enfermeiros apresentaram média de idade de 32,5 anos (Desvio-Padrão - dp±7,6). Observou-se o predomínio do seguinte perfil: sexo feminino (86,4%), faixa etária de 21 a 32 anos (60,1%), não casados (51,7%), com cinco ou mais anos de formado (59,2%), com pós-graduação (83,1%) e com cinco ou mais anos de trabalho na APS (52,4%).

Em relação à identificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na sua prática profissional, 56,9% dos enfermeiros relataram não ter identificado casos de maus-tratos, enquanto 43,1% afirmaram positivamente. Desses, 69,7% identificaram essas situações por meio do relato da vítima, parentes ou outros. Quanto à notificação dos casos identificados, 58,4% não notificaram as ocorrências e 41,6% realizaram esse procedimento.

As variáveis tempo de formado (p=0,004) e tempo de trabalho na APS (p=0,004) apresentaram associação estatisticamente significativa com a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes, enquanto sexo, idade, estado civil e pós-graduação apresentaram p>0,05 (Tabela 1).

Tabela 1 -
Análise bivariada entre notificação de maus-tratos, dados sociodemográficos e formação profissional de enfermeiros. Atenção Primária à Saúde, CE, Brasil, 2010-2012

Participou de treinamento sobre a temática, conhece a ficha de notificação, ficha de notificação na UAPS, confia nos órgãos de proteção, sabe para onde encaminhar os casos, medo de envolvimento legal, lê sobre a temática e acha vantagem em instituir a notificação na APS apresentaram associação estatisticamente significante com o desfecho (p<0,05), enquanto as demais variáveis não apresentaram diferença estatística (Tabela 2).

Tabela 2 -
Análise bivariada entre notificação de maus-tratos, instrumentação e conhecimento de enfermeiros. Atenção Primária à Saúde, CE, Brasil, 2010-2012

As variáveis selecionadas (p<0,25) para a análise múltipla foram: tempo de formado, pós-graduação, tempo de trabalho na APS, participou de treinamento, conhece o ECA, conhece a ficha de notificação, ficha de notificação na UAPS, confia nos órgãos de proteção, sabe para onde encaminhar os casos, medo de envolvimento legal, lê sobre a temática, assunto é discutido no trabalho e acha vantagem instituir a notificação na APS.

Estão apresentados na Tabela 3 os resultados da regressão logística. No modelo logístico final, tempo de trabalho na APS, ficha de notificação na UAPS, sabe para onde encaminhar os casos, medo de envolvimento legal e acha vantagem em instituir a notificação na APS permaneceram associados ao desfecho.

Tabela 3 -
Análise multivariada entre notificação de maus-tratos e fatores associados. Atenção Primária à Saúde, CE, Brasil, 2010-2012

Tempo de trabalho na APS de cinco ou mais anos aumentou 3,09 vezes a chance de o enfermeiro notificar maus-tratos. A posse da ficha pela UAPS aumentou em mais de três vezes a efetivação da notificação. Da mesma forma, saber para onde encaminhar os casos de maus-tratos aumentou 3,33 vezes a prática da notificação. Não ter medo de envolvimento legal quase dobrou a chance do ato notificatório. E achar vantagem em instituir a notificação de maus-tratos na APS aumentou quase três vezes a chance do cumprimento dos dispositivos que legislam sobre o ato notificatório (Tabela 3).

Discussão

Apesar de o estudo se reportar aos fatores associados ao ato notificatório entre os enfermeiros da APS, os dados mostram que predomina a não notificação, mesmo em situações identificadas de maus-tratos em crianças e adolescentes. É possível inferir que a organização do processo de trabalho no contexto da APS para o enfrentamento de demandas sociais não está respondendo às diretrizes políticas e aos princípios que tentam reorientar o modelo de atenção à saúde.

Essa fragilidade na prática de enfermeiros diante da notificação também é verificada em outras regiões brasileiras( 1111. Aragão AS, Ferriani MGC, Vendruscollo TS, Souza SL, Gomes R. Primary care nurses' approach to cases of violence against children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(Spe):172-9. , 1313. Silva MAI, Ferriani MGC. Domestic violence: from the visible to the invisible. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2007;15(2):275-81. ) e em países inseridos em diferentes contextos socioculturais( 1414. Eisbach SS, Driessnack M. Am I sure I want to go down this road? Hesitations in the reporting of child maltreatment by nurses. J Spec Pediatr Nurs. 2010;15(4):317-23.

15. Smith JS, Rainey SL, Smith KR, Alamares C, Grogg D. Barriers to the mandatory reporting of domestic violence encountered by nursing professionals. J Trauma Nurs. 2008;15(1):9-11.
- 1616. Natan MB, Faour C, Naamhah S, Grinberg K, Klein-Kremer A. Factors affecting medical and nursing staff reporting of child abuse. Int Nurs Rev. 2012;59(3):331-7. ). Em Israel, pesquisa empreendida com 143 enfermeiros e 42 médicos revelou que 60,0% dos profissionais não relataram casos de maus-tratos( 1616. Natan MB, Faour C, Naamhah S, Grinberg K, Klein-Kremer A. Factors affecting medical and nursing staff reporting of child abuse. Int Nurs Rev. 2012;59(3):331-7. ). Nos EUA, apesar de os sistemas de atendimento serem mais aprimorados e a notificação ter sido estabelecida há mais tempo, ainda verificam-se barreiras que impedem os enfermeiros de efetivarem esse ato( 1515. Smith JS, Rainey SL, Smith KR, Alamares C, Grogg D. Barriers to the mandatory reporting of domestic violence encountered by nursing professionals. J Trauma Nurs. 2008;15(1):9-11. ).

Uma das explicações para a subnotificação encontrada pode ser a internalização equivocada do vocábulo "notificação", pois, cultural e historicamente, encontra-se associado à denúncia( 1717. Dobke VM, Santos SS, Dell'Aglio DD. Abuso sexual intrafamiliar: da notificação ao depoimento no contexto processual-penal. Temas Psicol. 2010;18(1):167-76. ). Nesse sentido, considerando a questão da aproximação do profissional de saúde que atua na APS com a comunidade e o território - seguindo a lógica do modelo de saúde brasileiro -, o enfermeiro pode estar adquirindo uma postura retraída no enfrentamento de questões delicadas e complexas, como é o caso da violência. Essa barreira é entendida aqui como fator de dificuldade no enfrentamento da questão, pois a subnotificação gera desconhecimento da magnitude do problema por parte da gestão em saúde, que depende de informações de nível local para a implantação de políticas de enfrentamento.

A associação entre a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes com maior tempo de trabalho na APS, apontada na análise, demonstra que profissionais com maior experiência profissional se sentem mais preparados para lidar com a problemática. Sobre esse achado, é possível partir da hipótese de que o profissional que desenvolve atividades na APS há mais tempo pode ter tido mais oportunidades de vivenciar situações de violência e, portanto, pode ter tido mais aproximação com o manejo adequado de casos. A importância da experiência em serviço é sinalizada em estudo( 1818. Angelo M, Prado SI, Cruz AC, Ribeiro MO. Vivências de enfermeiros no cuidado de crianças vítimas de violência intrafamiliar: uma análise fenomenológica. Texto Contexto Enferm. 2013;22(3):585-92. ), que mostra que "o contato cotidiano com a violência à criança desperta no profissional um estado de atenção que o mobiliza a identificar sinais de alerta para detectar a violência".

Outra hipótese que emerge é que esses enfermeiros podem ter aperfeiçoado o modo de lidar com as condições de maus-tratos, incluindo a decisão de notificar, a partir do amadurecimento profissional e de capacitações sobre o tema. A Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SESA) tem promovido treinamentos sistemáticos sobre o enfrentamento de violências, com foco na reorientação da prática de profissionais da APS. Alguns dos enfermeiros que compuseram a amostra do estudo podem ter sido alvo dessas capacitações, justificando o aumento da chance de notificar.

A presença da ficha de notificação na UAPS também se mostrou associada à notificação realizada por enfermeiros. Sobre esse aspecto, outras investigações já mostraram que a existência de protocolos que firmem condutas na unidade de saúde propicia a instrumentação dos profissionais para a atuação no tema, mesmo que esse instrumento não seja a ficha de notificação, pois podem existir outras formas de padronização da comunicação das formas de violências às autoridades competentes( 1919. Deslandes S, Mendes CHF, Lima JS, Campos DS. Indicadores das ações municipais para a notificação e o registro de casos de violência intrafamiliar e exploração sexual de crianças e adolescentes. Cad Saúde Pública. 2011;27(8):1633-45. ).

Dessa forma, a gestão deve garantir, no mínimo, o material necessário para uma prática de qualidade na APS. Queixas de profissionais e usuários sobre a fragilidade da estrutura física e a insuficiência de insumos em unidades de saúde são frequentemente apontadas pela mídia brasileira e confirmadas pela literatura( 2020. Conill EM. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cad Saúde Pública. 2008;24(Supl. 1): s7-s16. - 2121. Senna MCM, Costa AM, Silva LN. Atenção à saúde em grandes centros urbanos: desafios à consolidação do SUS. Soc Debate. 2010;16(1):121-37. ). Esse resultado confirma que a resolução dessas carências é prioritária, pois compromete o fluxo de atendimento do serviço, inviabilizando procedimentos que culminem com soluções preconizadas na legislação.

Foi evidenciado que saber para onde encaminhar os casos aumenta a chance de os profissionais notificarem. De alguma forma, isso pode refletir o compromisso dos enfermeiros com a saúde integral de crianças e adolescentes em situação de violência e sua confiança nos órgãos de apoio e proteção. Estudos destacam o enfermeiro como profissional importante no manejo de casos de maus-tratos na APS, especialmente quando comparados a outras categorias profissionais( 1111. Aragão AS, Ferriani MGC, Vendruscollo TS, Souza SL, Gomes R. Primary care nurses' approach to cases of violence against children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(Spe):172-9. - 1212. Lima MCCS, Costa MCOC, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, et al. Atuação profissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana de Saúde Pública. 2011;35(Supl 1):118-37. ).

Por outro lado, ao encaminhar os casos de violência e ter a sensação de dever cumprido (de acordo com a legislação), o enfermeiro "encerraria" a sua coparticipação no acompanhamento desse caso? Ensejaria que esses casos fossem monitorados por outras categorias profissionais que formam a rede de apoio e proteção a esse grupo? Como as condições de violências ainda não foram internalizadas no processo de trabalho em saúde, muitas vezes, os profissionais não se percebem habilitados e com competências para o enfrentamento do problema. Pesquisa( 1111. Aragão AS, Ferriani MGC, Vendruscollo TS, Souza SL, Gomes R. Primary care nurses' approach to cases of violence against children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(Spe):172-9. ) evidencia relatos de enfermeiros da APS que demonstraram encarar o problema dos maus-tratos infantojuvenis como competência de outros profissionais (assistente social e psicólogo).

O fato de o enfermeiro não ter medo de envolvimento legal também favoreceu o cumprimento da notificação de casos de maus-tratos. O dado ratifica que é imprescindível uma rede de proteção e apoio às pessoas que sofrem violências, bem como aos profissionais responsáveis pelo ato notificatório. Instaurar e articular essa rede compete aos gestores, envolvendo as três esferas governamentais. Essa rede deve estar integrada a outros segmentos sociais, chamando-se a atenção para a importância do suporte do Ministério Público na responsabilização dos perpetradores, minimizando possíveis represálias pessoais e profissionais.

Investigação sinaliza que é real o dilema de o profissional da atenção primária, mesmo ciente de sua obrigação legal, optar pela "política da boa vizinhança", a fim de garantir sua própria segurança no ambiente de trabalho, quando exposto às situações que colocam em risco a sua integridade física e moral( 1111. Aragão AS, Ferriani MGC, Vendruscollo TS, Souza SL, Gomes R. Primary care nurses' approach to cases of violence against children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(Spe):172-9. ).

Outro aspecto relevante desta pesquisa é que enfermeiros que relataram considerar vantagem a instituição da notificação na APS estão mais propícios a realizar esse procedimento. Atendendo a concepção sociossanitária, possivelmente esses profissionais reconhecem a importância do vínculo com o território vivo e entendem o núcleo familiar como força motriz no resgate de valores. Além disso, percebem a violência como um problema do setor saúde, reconhecendo o conceito de saúde multidimensional tratado na Constituição brasileira( 2222. Constituição (1988) (BR). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. ).

Diante dessas interpretações que se pressupõem válidas, cabe apontar as limitações do estudo. A adesão de 60,7%, apesar de constituir a maioria dos enfermeiros, pode-se supor que represente os mais comprometidos com as ações de saúde; os que tenham mais afinidade com a temática; e/ou os que apresentem maior conhecimento decorrente de capacitações prévias. Não obstante essas ponderações, que justificariam percentuais significativos de notificações realizadas, evidenciaram-se fragilidades na identificação e no cumprimento da notificação de maus-tratos. Acrescenta-se, ainda, que os achados da população estudada, de nível primário, não são generalizáveis para o conjunto geral de enfermeiros, embora os dados apresentados também estejam em consonância com a literatura que retrata outros níveis de atenção à saúde.

Conclusão

Este estudo elucidou aspectos relacionados à notificação, por enfermeiros da APS, de maus-tratos em crianças e adolescentes. O modelo logístico evidenciou que fatores como tempo de trabalho na APS de cinco ou mais anos, UAPS possuir a ficha de notificação, saber para onde encaminhar os casos, não ter medo de envolvimento legal e achar vantajosa a notificação na APS facilitam o cumprimento desse dispositivo legal de garantia dos direitos do grupo.

Acredita-se que esses resultados, aqui, além de sensibilizar os enfermeiros para o problema, poderão ser utilizados pelos profissionais da gestão na orientação de estratégias para efetivação do ato notificatório. Esta pesquisa revela a necessidade de incluir, no planejamento dos serviços de saúde da APS, processos de educação permanente que instiguem a reflexão dos profissionais da atenção e da gestão, para identificar fatores intervenientes que estão perpetuando as subnotificações de violências contra crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, fragilizando a efetivação de um sistema de garantia de direitos.

Reference

  • 1
    Lima MADS, Rückert TR, Santos JLG, Colomé ICS, Costa AM. Atendimento aos usuários em situação de violência: concepções dos profissionais de unidades básicas de saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2009;30(4):625-32.
  • 2
    Troiano MA. Child Abuse. Nurs Clin North Am. 2011;46(4):413-22.
  • 3
    Liao M, Lee AS, Roberts-Lewis AC, Hong JS, Jiao K. Child maltreatment in China: An ecological review of the literature. Child Youth Serv Rev. 2011;33(9):1709-19.
  • 4
    Finkelhor D, Turner H, Ormrod R, Hamby SL. Violence, crime, and abuse exposure in a national sample of children and youth: an update. JAMA Pediatr. 2013;167(7):614-21.
  • 5
    Matos KF, Martins CBG. Mortalidade por causas externas em crianças, adolescentes e jovens: uma revisão bibliográfica. Rev Espaço para a Saúde. 2013;14(1):82-93.
  • 6
    Fenton MC, Geier T, Keyes K, Skodol AE, Grant BF, Hasin DS. Combined role of childhood maltreatment, family history, and gender in the risk for alcohol dependence. Psychol Med. 2013;43:1045-57.
  • 7
    Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (BR). [Internet]. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 1990. [acesso 5 ago 2013]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
  • 8
    Portaria GM/MS n. 1.968, de 25 de outubro de 2001 (BR). [Internet]. Dispõe sobre a notificação, às autoridades competentes, de casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes atendidos nas entidades do Sistema Único de Saúde. (2001). [acesso 10 set 2013]. Disponível em: http://brasilsus.com.br/legislacoes/gm/12960-1968.
    » http://brasilsus.com.br/legislacoes/gm/12960-1968
  • 9
    Portaria n. 104, de 25 de janeiro de 2011 (BR). [Internet]. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo território nacional e estabelece fluxos, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais de saúde. (2011). [acesso 27 ago 2013]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0104_25_01_2011.
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0104_25_01_2011
  • 10
    Oliveira RG, Marcon SS. Trabalhar com famílias no Programa de Saúde da Família: a prática do enfermeiro em Maringá-Paraná. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(1):65-72.
  • 11
    Aragão AS, Ferriani MGC, Vendruscollo TS, Souza SL, Gomes R. Primary care nurses' approach to cases of violence against children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(Spe):172-9.
  • 12
    Lima MCCS, Costa MCOC, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, et al. Atuação profissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana de Saúde Pública. 2011;35(Supl 1):118-37.
  • 13
    Silva MAI, Ferriani MGC. Domestic violence: from the visible to the invisible. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2007;15(2):275-81.
  • 14
    Eisbach SS, Driessnack M. Am I sure I want to go down this road? Hesitations in the reporting of child maltreatment by nurses. J Spec Pediatr Nurs. 2010;15(4):317-23.
  • 15
    Smith JS, Rainey SL, Smith KR, Alamares C, Grogg D. Barriers to the mandatory reporting of domestic violence encountered by nursing professionals. J Trauma Nurs. 2008;15(1):9-11.
  • 16
    Natan MB, Faour C, Naamhah S, Grinberg K, Klein-Kremer A. Factors affecting medical and nursing staff reporting of child abuse. Int Nurs Rev. 2012;59(3):331-7.
  • 17
    Dobke VM, Santos SS, Dell'Aglio DD. Abuso sexual intrafamiliar: da notificação ao depoimento no contexto processual-penal. Temas Psicol. 2010;18(1):167-76.
  • 18
    Angelo M, Prado SI, Cruz AC, Ribeiro MO. Vivências de enfermeiros no cuidado de crianças vítimas de violência intrafamiliar: uma análise fenomenológica. Texto Contexto Enferm. 2013;22(3):585-92.
  • 19
    Deslandes S, Mendes CHF, Lima JS, Campos DS. Indicadores das ações municipais para a notificação e o registro de casos de violência intrafamiliar e exploração sexual de crianças e adolescentes. Cad Saúde Pública. 2011;27(8):1633-45.
  • 20
    Conill EM. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cad Saúde Pública. 2008;24(Supl. 1): s7-s16.
  • 21
    Senna MCM, Costa AM, Silva LN. Atenção à saúde em grandes centros urbanos: desafios à consolidação do SUS. Soc Debate. 2010;16(1):121-37.
  • 22
    Constituição (1988) (BR). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
  • 1
    Artigo extraído da dissertação de mestrado "Notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes em municípios cearenses", apresentada à Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil. Apoio financeiro da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), Brasil, processo nº 306061/2008-2

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2014
  • Aceito
    15 Out 2014
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: rlae@eerp.usp.br