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Significados da qualidade de vida no contexto da quimioterapia pelo paciente com câncer colorretal1 1 Artigo extraído da tese de doutorado "O significado de qualidade de vida no contexto da quimioterapia antineoplásica para o paciente com câncer colorretal", apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil, processo nº 2011/01147-0 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil, processo nº 303522/2010-0

Resumos

OBJETIVO:

o objetivo do estudo foi interpretar os significados atribuídos à qualidade de vida por pacientes com câncer colorretal em quimioterapia.

MÉTODO:

utilizamos o método etnográfico e o referencial teórico da antropologia médica. Os dados foram coletados por entrevistas semiestruturadas e observações participantes com dezesseis homens e mulheres, entre 43 e 75 anos, que realizavam quimioterapia em um hospital público universitário.

RESULTADOS:

os sentidos e significados descrevem as rupturas biográficas, a perda da normalidade da vida, o sofrimento pessoal e social, a necessidade de reagir às reações da quimioterapia que é uma etapa liminar para a cura. A qualidade de vida é avaliada como insatisfatória devido às limitações pessoais e sociais do tratamento e esta relacionada à retomada da normalidade da vida.

CONCLUSÕES:

os significados evidenciam a importância de se considerar aspectos socioculturais na conceituação e avaliação da qualidade de vida.

Qualidade de Vida Relacionada a Saúde; Quimioterapia; Neoplasias Colorretais; Antropologia Médica; Antropologia Cultural; Enfermagem Oncológica


OBJECTIVE:

this study's aim was to interpret the meanings assigned to quality of life by patients with colorectal cancer undergoing chemotherapy.

METHOD:

the ethnographic method and the medical anthropology theoretical framework were used. Data were collected through semi-structured interviews and participant observations with 16 men and women aged from 43 to 75 years old undergoing chemotherapy in a university hospital.

RESULTS:

the meanings and senses describe biographical ruptures, loss of normality of life, personal and social suffering, and the need to respond to chemotherapy's side effects; chemotherapy is seen as a transitional stage for a cure. Quality of life is considered unsatisfactory because the treatment imposes personal and social limitations and QoL is linked to resuming normal life.

CONCLUSIONS:

the meanings show the importance of considering sociocultural aspects in the conceptualization and assessment of quality of life.

Quality of Life Related to Health; Chemotherapy; Colorectal Neoplasms; Anthropology Medical; Anthropology, Cultural; Oncological Nursing


OBJETIVO:

el objetivo era interpretar los significados atribuidos a la calidad de vida de los pacientes con quimioterapia para el cáncer colorrectal.

MÉTODO:

se utilizó el método etnográfico y el marco teórico de la antropología médica. Los datos fueron colectados por medio de entrevistas semiestructuradas y observación participante con dieciséis hombres y mujeres, entre 43 y 75 años que fueron sometidos a la quimioterapia en un hospital público de enseñanza.

RESULTADOS:

los significados describen las rupturas biográficas, la pérdida de la vida normal, el sufrimiento personal y social, la necesidad de responder a las reacciones de la quimioterapia que es un paso previo a la curación. La calidad de vida se evaluó como insatisfactoria debido a las limitaciones personales y sociales del tratamiento y se relaciona con la reanudación de la vida normal.

CONCLUSIONES:

los significados ponen de relieve la importancia de considerar los aspectos sociales y culturales en la conceptualización y evaluación de la calidad de vida.

Calidad de Vida Relacionada a la Salud; Quimioterapia; Neoplasias Colorrectales; Antropología Médica; Antropología Cultural; Enfermería Oncológica


Introdução

O câncer repercute no imaginário social por representações de sofrimento, impotência, perdas e finitude. Mesmo com o aumento da sobrevivência dos pacientes oncológicos, ainda há desafios para desmistificar as crenças sobre a doença e as terapêuticas11. Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspectiva de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública. 2005;21(2):426-35..

Esta doença é a segunda maior causa de morbimortalidade da população mundial e brasileira, sendo um problema de saúde pública. Estimativas do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) indicam 576 mil casos novos no Brasil, para os anos de 2014/2015. Destes, 33 mil casos serão de câncer colorretal (CCR), que incide igualmente nos sexos, em indivíduos acima de 50 anos de idade22. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância Estimativa 2014 Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2013..

Os fatores etiológicos do CCR são a hereditariedade, o envelhecimento, os hábitos alimentares e as doenças inflamatórias colorretais pregressas33. Rocha JJR. Coloproctologia: Princípios e práticas. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2011..

A cirurgia, na maioria dos casos, é a primeira etapa do tratamento para a doença. Resulta em mudanças na sua imagem corporal e nas atividades sociais dos pacientes, devido à confecção da estomia temporária ou definitiva44. Dazio EMR, Sonobe HM, Zago MMF. The meaning of being a man with intestinal stoma due to colorectal cancer: an anthropological approach to masculinities. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(5):664-9..

A quimioterapia (QtA) é a segunda opção terapêutica. Consiste na utilização de drogas antineoplásicas, por várias vias de administração, de ação sistêmica, com o intuito de destruir células tumorais ou aliviar sintomas ocasionados pela doença. No CCR a QtA é indicada como tratamento neoadjuvante, adjuvante e/ou paliativo55. Bonassa EMA, Gato MIR. Terapêutica Oncológica para Enfermeiros e Farmacêuticos. 4ª ed. São Paulo: Atheneu; 2012..

Também são empregados os anticorpos monoclonais (AM) que possuem a capacidade de reconhecer e ligar-se a antígenos tumorais específicos, desencadeando respostas imunológicas capazes de poupar as células normais e diminuir os efeitos adversos derivados da toxicidade dos antineoplásicos convencionais66. Gates RA, Fink RM. Segredos em enfermagem oncológica. Respostas necessárias ao dia-a-dia. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009..

A QtA tem relevância no tratamento do CCR, criando expectativas e esperança de cura, mas persiste a crença de que é o pior dos tratamentos antineoplásicos, devido as suas reações adversas66. Gates RA, Fink RM. Segredos em enfermagem oncológica. Respostas necessárias ao dia-a-dia. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. - 77. Anjos ACY, Zago MMF. The cancer chemotherapy experience in a patient's view. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2006;1(14):33-40..

Nas condições crônicas, como no CCR, a qualidade de vida relacionada à saúde, ou simplesmente qualidade de vida (QV), é uma preocupação crescente entre os profissionais para orientar as tomadas de decisões para as intervenções de cuidado88. Warren N, Manderson L. Reframing disability and quality of life: a global perspective. London: Springer; 2013.. A Organização Mundial de Saúde definiu QV como a percepção do indivíduo sobre sua posição na vida, no contexto do sistema de valores nos quais ele vive e, em relação aos seus objetivos, expectativas e preocupações. Esse conceito compreende aspectos da saúde física, do estado psicológico, do nível de funcionalidade, da sociabilidade e suas relações com as características ambientais. Há concordância entre os profissionais de que o conceito é subjetivo, multidimensional e inclui elementos de avaliação positiva e/ou negativa99. Ferrans CE, Hacker ED. Quality of life as an outcome of cancer care. In: Yarbro CH, Wejcik D, Gobel BH. Cancer nursing: principles and practice. 7th ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers; 2011 p. 201-18. ..

Nos últimos anos, estudos1010. Nicolussi AC, Sawada NO. Fatores que influenciam a qualidade de vida de pacientes com câncer de colón e reto. Acta Paul Enferm. 2010;23(1):125-30. - 1111. King CR, Hinds PS. Quality of life: from nursing and patient perspectives. 3rd. ed. London: Jones & Bartlett Learning; 2012. foram realizados para a avaliação da QV de adoecidos com CCR, empregando diferentes instrumentos de mensuração, como o Functional Assessment of Cancer Therapy-Colorectal (FACT-C). Em alguns, os resultados apontaram QV satisfatória, em outros, foi insatisfatória. Em uma revisão integrativa1010. Nicolussi AC, Sawada NO. Fatores que influenciam a qualidade de vida de pacientes com câncer de colón e reto. Acta Paul Enferm. 2010;23(1):125-30., as autoras destacaram a associação da QV das pessoas com CCR à atividade física, seguimento com exames, avaliação psicossocial e aspectos inerentes à pessoa. Foi constatado que o diagnóstico e tratamento do câncer afetam vários domínios, mas que há ausência de estudos com evidências fortes. Em uma revisão sistemática1212. Jansen L, Koch L, Brenner H, Arndt V. Quality of life among long-term (≥5 years) colorectal cancer survivors - systematic review. European J Cancer. 2010;46(16):2879-88. os autores concluíram que os sobreviventes, após cinco anos da cirurgia, possuíam baixa QV física, piores escores de depressão, reportavam problemas intestinais e angústias devido à possibilidade de recidiva da doença.

Compartilhamos com a crítica1313. Dijkers M. What's in a name? The indiscriminate use of the quality of life label, and the need to bring about clarity in conceptualizations. Int J Nurs Studies. 2007;44:135-55. de que ao se aplicar instrumentos para a mensuração da QV está se dissociando as consequências da doença e dos tratamentos dos aspectos econômicos, da vida social e familiar, do cumprimento dos papeis sociais e das expectativas de futuro das pessoas. Desse modo, torna-se necessário compreender e interpretar a dimensão sociocultural da QV da pessoa1414. Costa MCS, Rossi LA, Lopes LM, Cioffi CL. The meanings of quality of life: interpretative analysis based on experiences of people in burns rehabilitation. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008;16(2):252-9..

A enfermagem enfrenta desafios para o cuidar do adoecido pelo CCR, que envolve conhecimentos técnicos e humanistas. Se faz mister que os profissionais conheçam as experiências dos adoecidos oncológicos em relação à doença, aos tratamentos e aos vários processos socioculturais envolvidos, tal como a QV. A perspectiva antropológica pode contribuir para essa compreensão e ampliar o conhecimento para a aplicação da integralidade do cuidado de enfermagem.

Este estudo busca responder às questões: Quais os significados dados à QV durante a QtA para o CCR? Como os adoecidos percebem que ela está afetada? Por que eles pensam assim? O objetivo é interpretar os significados atribuídos à QV pelo adoecido pelo CCR em QtA.

Método

A pesquisa foi desenvolvida pela metodologia etnográfica e antropologia médica.

A antropologia médica segue uma abordagem interpretativa que tem, como conceito central, a cultura como um padrão de significados incorporados em símbolos, e por meio destes as pessoas se comunicam, desenvolvem seus conhecimentos e suas ações na vida social. Esta abordagem teórica propõe a compreensão e interpretação dos significados humanos e valoriza a subjetividade dos sujeitos aos fenômenos da doença, tratamentos e QV. Na visão da cultura como um sistema simbólico, saúde e doença são processos com uma sequência de eventos para a pessoa e, por meio deste sistema, passa a entendê-los1515. Langdon EJ. Cultura e processos de saúde e doença. In: Jeolás LS, Oliveira M, organizadores. Anais do seminário sobre cultura, saúde e doença. Londrina (PR): Editora Fiocruz; 2003 p. 91-105. ..

A etnografia é uma descrição densa com a finalidade de interpretar os significados de discursos e ações dos adoecidos pelo CCR, em QtA, integrando-os ao contexto cultural1414. Costa MCS, Rossi LA, Lopes LM, Cioffi CL. The meanings of quality of life: interpretative analysis based on experiences of people in burns rehabilitation. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008;16(2):252-9. - 1515. Langdon EJ. Cultura e processos de saúde e doença. In: Jeolás LS, Oliveira M, organizadores. Anais do seminário sobre cultura, saúde e doença. Londrina (PR): Editora Fiocruz; 2003 p. 91-105. ..

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Protocolo n° 1412/2011) e todos os adoecidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para assegurar o anonimato, os seus nomes são fictícios.

Os participantes foram contatados no ambulatório de coloproctologia de um hospital universitário do interior do Estado de São Paulo. Os dados foram coletados neste serviço e no domicílio dos adoecidos, no período de março de 2012 a julho de 2013.

As técnicas de coleta de dados foram a observação participante e a entrevista semiestruturada gravada, norteada pelas questões: Como está a sua vida com este tratamento? Neste momento, o que é QV de vida para você? O que influencia a sua QV durante a QtA? Estas questões foram ampliadas para se aprofundar os discursos dos adoecidos. Foram realizadas 36 entrevistas e observações, com duração média de 70 minutos cada.

As transcrições dos discursos, das observações e dos registros do diário de campo foram integrados em textos e submetidos à análise temática indutiva1616. Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006; 3(2):77-101.. Este é um processo de codificação dos dados, sem o encaixe em categorias preexistentes. A análise é orientada para a identificação de temas ou padrões de sentidos e significados latentes ou implícitos, indo além dos conteúdos.

A análise etnográfica dos dados seguiu dois processos analíticos principais: a identificação de sentidos e a construção de núcleo temático. Os sentidos são as descrições do processo vivido pelos adoecidos, com suas ideias e ações sobre a doença, os tratamentos, principalmente a QtA e a QV, explicadas por meio de motivações e justificativas comuns e/ou significativas, extraídas da sua história cultural. A partir dos sentidos, construímos o núcleo de significados por meio de temas, com base no referencial teórico. A aplicação do círculo hermenêutico deu-se quando os pesquisadores dialogaram com os dados de cada participante e o todo dos dados, identificando temas e os relacionando com a teoria, a literatura, para elaborar argumentos para os significados expressos e relativizados para o contexto estudado1414. Costa MCS, Rossi LA, Lopes LM, Cioffi CL. The meanings of quality of life: interpretative analysis based on experiences of people in burns rehabilitation. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008;16(2):252-9..

Para garantir o rigor do estudo, o engajamento com os participantes do estudo foi prolongado; a participação no estudo foi independente do sexo, idade, nível socioeconômico e educacional, a fim de obter diferentes perspectivas; houve a realização de várias entrevistas e observações com as mesmas questões, em momentos distintos; as características sociais e clínicas dos participantes foram consideradas na análise e interpretação dos dados e discutidas entre os pesquisadores do estudo1717. Padgett DK. Qualitative methods in social work research: challenges and rewards. 2rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2008..

O grupo de participantes foi composto por quatro homens e doze mulheres, com idades entre 43 e 75 anos, residentes na cidade local do estudo e região, com escolaridade variável de 1º grau incompleto (6) a nível superior completo (3). Suas atividades profissionais também são variáveis, mas com baixo status social: marceneiro, cabeleireira, panfleteiro, diarista, dona de casa, entre outras. Todos tinham o diagnóstico de adenocarcinoma tubular há pelo menos seis meses; quatro tinham estadiamento II, três com estadiamento III e nove com estadiamento IV; nove tinham metástases hepática e/ou pulmonar. Dez estavam realizando a QtA com esquema de oxaliplatina e capecitabina; três usavam apenas a capecitabina; um tinha esquema de 5Fluoracil e ácido folínico; um seguia a associação de oxaliplatina, 5Fluoracil e bevacizumabe; e um fazia a associação de oxaliplatina, capecitabina e bevacizumabe.

Resultados e discussão

Os sentidos da doença, da QtA e da QV

Um dos sentidos mais destacados pelos adoecidos foi o aspecto moral do CCR, pela vida pregressa, Se eu não tivesse bebido e fumado tanto, não tinha acontecido isso (Mário, 59 anos); outras vezes como consequência de um problema familiar insolúvel, O meu câncer é da mágoa! Tive que deixar a minha vida e cuidar da família. Dizem que mágoa vira doença (Tatiane, 47 anos). Na visão do leigo, as explicações para a causa da doença podem envolver aspectos psíquicos, sociais, espirituais e biológicos, atribuídos a comportamentos morais e sobrecarga de emoções11. Tavares JSC, Trad LAB. Metáforas e significados do câncer de mama na perspectiva de cinco famílias afetadas. Cad Saúde Pública. 2005;21(2):426-35..

Com o diagnóstico da doença socialmente estigmatizada, os adoecidos prepararam-se para enfrentar os tratamentos. O primeiro é a cirurgia, procedimento inicialmente pensado como resolutivo para o CCR, Quando eu fui para a cirurgia, eu achava que era um tumor e não câncer! Que a doença iria acabar ali com a cirurgia (Taciana, 53 anos). A notícia da confecção da estomia, temporária ou definitiva, trouxe o conflito entre o viver e o morrer, Eu sabia que não teria jeito. Tinha que fazer a cirurgia e usar a bolsinha, senão eu iria morrer. É a minha chance de ficar viva(Daniela, 45 anos). A resignação44. Dazio EMR, Sonobe HM, Zago MMF. The meaning of being a man with intestinal stoma due to colorectal cancer: an anthropological approach to masculinities. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(5):664-9., processo passivo de lidar com o caos da situação, é a forma encontrada pelos participantes para lidar com a imagem do corpo e a função intestinal alteradas.

Com a evolução da doença, houve a decisão médica da necessidade da QtA para assegurar o resultado da cirurgia e novo desafio surge, Receber a notícia da quimio foi pior do que receber a notícia de que estava com câncer! (Cristiane, 53 anos); Acho que aquele tumor nasceu de novo e tem que fazer a quimio para matar a raiz (Tatiane, 47 anos). Observamos nesses relatos a crença sobre o sofrimento causado pela terapêutica de curar ou matar, fundamentada no senso comum.

São as reações fisiológicas das drogas que mais assustam os adoecidos Eu sabia que não era algo simples. Você não imagina tudo aquilo! (João, 49 anos); Os dez primeiros dias foram horríveis. Eu pensava que meu organismo ia acostumar com os efeitos, mas não acostuma! (Daniela, 45 anos).

Após iniciar a QtA, os participantes ficaram na expectativa pelos eventos adversos do tratamento, reconhecidos como os mais devastadores, como a alopecia, náuseas e vômitos, comuns aos diversos esquemas medicamentosos empregados, Eu vomitava, tinha tontura o dia todo (Daniela, 45 anos); Eu pensei que meu cabelo iria cair, que ficaria careca (Mário, 59 anos). As náuseas e vômitos impuseram mudanças na alimentação, Eu cheguei a ficar só com caldo de arroz, era a única coisa que parava no meu estômago. Tive que fazer várias mudanças na minha alimentação (Cristina, 72 anos).

Para os que recebem a QtA oral (anticorpos monoclonais) as reações são diferentes, mas limitantes, O médico me disse das reações, mãos e pés com pele áspera e escurecida. Me deu muitas aftas e o meu pé ficou ruim (Mario, 59 anos); O pé ficou cascorento e a pele fininha, rachou um pouco, mas o cabelo não caiu! Eu tive sorte! (Rogério, 48 anos, garçom).

A duração da QtA é um aspecto de preocupação para os adoecidos, Eu não vejo a hora de tudo isso acabar! (Cristiane, 53 anos). As reações potencializam o sofrimento, mesmo quando entendidas como passageiras, mas são suportadas por serem de menor gravidade do que a doença.

O cansaço é uma outra reação adversa relatada por todos os participantes,Com a quimioterapia eu não faço mais nada como antes. Agora é tudo devagar (Cristina, 72 anos); Eu sinto muita fraqueza. É difícil até para me levantar da cama (Maria Helena, 75 anos).

A racionalidade dos adoecidos leva-os a associar a resistência física à capacidade de persistência dos seus corpos, como uma forma de barganha com Deus, consigo mesmo e com a sociedade; essa forma de pensar e agir mantém a esperança no tratamento1818. Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing and the human condition. Berkeley: University of California Press; 1988., Não adianta ficar lamentando, tem que aceitar, fazer o tratamento. Tudo vai dar certo (Helena, 60 anos); Tenho que pensar positivo para terminar logo o tratamento (Cristiane, 53 anos).

Mesmo com as limitações, os adoecidos sentem-se na obrigação moral de as superarem para aguentar. Hoje estou com azia, mas não é tão forte (Helena, 60 anos). Uma prática para superar as limitações é minimizar a doença e os eventos adversos da QtA, é considerar-se não doente e pensar na possibilidade de cura, Não penso na doença. Eu não sei se não cai na real. Eu quero acreditar que vou ter a cura (Taciana, 53 anos); Eu não me sinto doente, vamos esperar as quimios acabarem (Maria, 57 anos). Essa estratégia de superação segue uma lógica construída nas experiências pessoais com outros pacientes, familiares e grupo social, para lidarem com o que não tem explicação para o senso comum, reforçando a identidade individual e o corpo social1818. Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing and the human condition. Berkeley: University of California Press; 1988..

Porém, a dificuldade de manter o trabalho profissional ou mesmo as atividades domésticas é o que mais repercutiu como lamento entre os participantes, independente do sexo e da idade, Sou cabelereira, tinha um salão. Meu foco sempre foi trabalhar. É difícil pra mim saber que posso ter que fechar o salão. Esta aposentadoria que não dá para viver. Minha vida mudou muito!(Lucimara, 43 anos); Ainda me preocupo com a marcenaria, estou envolvido com os orçamentos, com os clientes. Quando os clientes fecham um negócio grande, eles querem falar comigo, e eu tenho que transmitir que estou bem! (João, 49 anos). Para os adoecidos, é difícil imaginar que seus familiares e as outras pessoas os considerem menos capazes de responder às responsabilidades pessoais e sociais de sustento financeiro da família, receberem a rotulação de doente com câncer e sofrerem compaixão. Uma prática sociocultural empregada nesta situação é a do isolamento social, restringindo suas atividades ao espaço familiar, pois este é o que lhes amenizam o sofrimento44. Dazio EMR, Sonobe HM, Zago MMF. The meaning of being a man with intestinal stoma due to colorectal cancer: an anthropological approach to masculinities. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(5):664-9. , 1818. Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing and the human condition. Berkeley: University of California Press; 1988..

A relação do casal também é afetada, mas não é relatada pela maioria dos adoecidos, apenas uma abordou esta questão, A gente não teve mais relação sexual, nunca mais! Ele não me toca, acho que de medo. Ele fala que tem medo de me machucar (Helena, 60 anos).

Comum a todos os participantes foi a atribuição do sentido de possibilidade de cura pela QtA, As mudanças que ocorreram na minha vida eu não junto à quimioterapia, mas a doença. A quimioterapia eu ligo à cura! Sempre uma chance de cura! (Helena, 60 anos).

Para nove participantes, a terapia não alcançou o resultado desejado, e a confirmação médica de metástases foi um marco, Em seis meses eu fiz a cirurgia, faço a quimio e já apareceram novos tumores (Lucimara, 43 anos); Do futuro eu não sei! (Cristiane, 53 anos). Para estes, a finitude é pensada, Eu não quero morrer! (Maria, 57 anos). Estes discursos corroboram os resultados da pesquisa que identificou que 81% dos pacientes americanos investigados com CCR, em estágio IV, em quimioterapia, não compreenderam que a terapia, neste estágio, é paliativa, mesmo tendo sido informados pela equipe médica; os autores também esclareceram que não houve associação entre o nível educacional, o status funcional e a tomada de decisão de realizá-la, com as crenças irreais sobre a terapêutica1919. Weeks JC, Catalano PJ, Angel C, Finkelman MD, Mack JW, Keating NL, Schrag D. Patient's expectations about effects of chemotherapy for advanced cancer. N England J Med. 2012;367(17):1616-25., como neste estudo.

Mesmo assim, a esperança pela normalidade da vida mantém-se acesa Eu quero voltar às minhas atividades, conviver com as pessoas. Eu quero a minha vida de volta! (Cristina, 72 anos).

Por esses sentidos entendemos que a cirurgia e a QtA geram rupturas nas vidas44. Dazio EMR, Sonobe HM, Zago MMF. The meaning of being a man with intestinal stoma due to colorectal cancer: an anthropological approach to masculinities. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(5):664-9. dos adoecidos, sofrimento pessoal e social. A indicação médica da QtA é uma segunda chance para a retomada da normalidade da vida. Os adoecidos usam a racionalidade leiga, com influências do modelo biomédico, com justificativas e motivações que lhes dão sentidos e sustentam suas práticas para lidarem com o que vivem. Essa racionalidade revela as relações entre os mundos individual, social, cultural e espiritual. A lógica é de lutar contra a doença e os efeitos adversos do tratamento, buscar estratégias para evitar a continuidade do sofrimento2020. Silva LF, Alves F. Compreender as racionalidades leigas sobre saúde e doença. Physis. 2011;21(4):1207-29..

Os adoecidos esperam alcançar a recuperação do corpo individual e social por considerar que seus corpos são resistentes e conseguem manter o controle da vida. Apesar dos problemas, das decepções com os tratamentos, ainda é possível manter a expectativa de que Algo bom ainda vai acontecer comigo (Helena, 60 anos). A esperança lhes dão forças para continuar lutando e retomar seus projetos de vida. Esse modo de pensar é uma característica cultural do ser humano e correspondem à expectativa social moral de não desistir2121. Wilson TR, Birks Y, Alexander DJ. Pitfalls in the interpretation of standardized quality of life instruments for individual patients? A qualitative study in colorectal cancer. Qual Life Res. 2013;22:1879-88..

Na perspectiva dos participantes, a QtA é uma etapa liminar para a cura, na experiência de ter CCR. Esse processo define a posição de passagem entre doença e cura; um período de indefinição que acompanha o adoecido a uma posição social esperada - ter câncer e estar curado1818. Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing and the human condition. Berkeley: University of California Press; 1988..

Estes sentidos ressaltam o que é valorizado ou o que precisa ser realizado na vida cotidiana para sobreviver, preservar a autoestima e senso de normalidade2222. Víctora C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. Rev Eletrôn Comun Inform Inov Saúde (RECIIS).[Internet]; 2011 [acesso 12 jul 2014]; 5(4):1-17. Disponível em: http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/viewFile/552/944
http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index...
, comuns a outros resultados de estudos qualitativos na temática2323. Richer MC, Ezer H. Living in it, living with it, and moving on: dimensions of meaning during chemotherapy. Oncol Nurs Forum. 2002;29(1):113-9. - 2424. Sales CA, Silva AA, Ribeiro MA, Wauters NM. A existencialidade da pessoa com neoplasia em tratamento quimioterápico. Acta Scientiarum. Health Sciences. 2003;25(2):177-82..

O sentido de QV é exemplificado nos discursos Não sei te explicar o que é QV. Só penso em sarar e não ter mais a doença, não precisar fazer mais quimioterapia. QV é estar com saúde, poder trabalhar, poder viver sossegado, é isso! (Mario, 59 anos); É voltar ao que era normal para mim! (João, 49 anos). Os atributos associados à QV relacionam-se com a normalidade da vida, não estar doente, ter independência e poder trabalhar. Entre grupos de adoecidos da sociedade urbana brasileira, a prioridade do trabalho, mesmo o doméstico, implica em valor moral44. Dazio EMR, Sonobe HM, Zago MMF. The meaning of being a man with intestinal stoma due to colorectal cancer: an anthropological approach to masculinities. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(5):664-9. , 1414. Costa MCS, Rossi LA, Lopes LM, Cioffi CL. The meanings of quality of life: interpretative analysis based on experiences of people in burns rehabilitation. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008;16(2):252-9.. Este sentido é construído nas relações entre as pessoas, incluindo o julgamento pessoal sobre sua vida atual, suas experiências e expectativas de futuro.

Os significados da QV

Para os participantes foi difícil falar sobre QV devido ao seu emprego genérico na linguagem cotidiana.

Um dos temas focalizado por todos os adoecidos foi a importância do retorno ao padrão de normalidade, na perspectiva conceitual de QV, Tenho dúvidas se vou voltar a ser normal (Maria 57 anos). Para adoecidos crônicos brasileiros, a normalidade refere-se a ter a saúde como antes da doença e poder desempenhar seus papéis sociais, principalmente trabalho, relacionamentos sociais, familiares e lazer44. Dazio EMR, Sonobe HM, Zago MMF. The meaning of being a man with intestinal stoma due to colorectal cancer: an anthropological approach to masculinities. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(5):664-9.. Esta categoria é um atributo para a saúde que enfatiza a doença como a justificativa para o descontrole da vida atual.

No início, a QtA não impede as atividades cotidianas. Com a sua continuidade, todas as suas atividades são limitadas, mesmo as domésticas. Neste contexto, a sua responsabilidade pessoal e social são cobradas, Existe uma cobrança da sociedade para que eu esteja bem, isso irá influenciar a qualidade do serviço da marcenaria. É dessa marcenaria que tiramos o nosso sustento e das famílias dos meus empregados. A doença e o tratamento mudaram a vida de todos nós (João, 49 anos); Não dou mais conta de fazer quase nada. Não dá ânimo de fazer nada(Alice, 62 anos).

Mesmo com as decepções com o não alcance do resultado esperado com a QtA, há a esperança de uma segunda chance de vida, é preciso continuar lutando. Os participantes esperam alcançar a recuperação do corpo individual e social, por considerarem seus corpos resistentes.

Esses significados atribuídos à doença e à QtA nos leva a considerar essee processo como uma experiência moral2222. Víctora C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. Rev Eletrôn Comun Inform Inov Saúde (RECIIS).[Internet]; 2011 [acesso 12 jul 2014]; 5(4):1-17. Disponível em: http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/viewFile/552/944
http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index...
. Por moral, ressalta-se o que é valorizado ou o que precisa ser realizado na vida cotidiana para sobreviver, no contínuo do que é certo/errado, bom/injusto, preconizado no mundo social. Além do sofrimento pessoal e social, o aspecto moral de ser improdutivo gera incertezas e necessidade de preservação nos adoecidos.

Nesse contexto, o corpo não é apenas um meio de relação com o mundo, é meio de identificação de pessoa com CCR em QtA e pode constituir um obstáculo para a manutenção de sua identidade e integração social. Para lidar com as limitações culturalmente não aceitas, os adoecidos usam uma lógica compensatória, procurando resignar-se com a experiência moral por que passam, ao considerar a normalidade do seu passado, mas possibilita a esperança de um futuro de cura. Nesta lógica compensatória1414. Costa MCS, Rossi LA, Lopes LM, Cioffi CL. The meanings of quality of life: interpretative analysis based on experiences of people in burns rehabilitation. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008;16(2):252-9., a reintegração social, que garantiria a QV, está relacionada ao voltar ao que era normal, poder trabalhar, estar inteira, como um processo integrado à experiência do adoecimento dos participantes, independentemente de suas características sociais, educacionais, de gênero e de idade, pois a vida é o valor simbólico máximo do ser humano77. Anjos ACY, Zago MMF. The cancer chemotherapy experience in a patient's view. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2006;1(14):33-40. , 1414. Costa MCS, Rossi LA, Lopes LM, Cioffi CL. The meanings of quality of life: interpretative analysis based on experiences of people in burns rehabilitation. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008;16(2):252-9..

Esses significados evidenciam que os participantes possuem QV insatisfatória devido à perda do controle da vida pelo adoecimento, pelas reações da QtA. Percebem que esta terapêutica não garante a sua cura e que, no final do tratamento, permanece a incerteza do futuro, apesar de todo o sofrimento vivenciado na experiência moral. Os elementos conceituais de QV, na perspectiva dos adoecidos, mostram as inter-relações dos comportamentos e valores humanos ao contexto social e da doença88. Warren N, Manderson L. Reframing disability and quality of life: a global perspective. London: Springer; 2013. , 1313. Dijkers M. What's in a name? The indiscriminate use of the quality of life label, and the need to bring about clarity in conceptualizations. Int J Nurs Studies. 2007;44:135-55. , 2121. Wilson TR, Birks Y, Alexander DJ. Pitfalls in the interpretation of standardized quality of life instruments for individual patients? A qualitative study in colorectal cancer. Qual Life Res. 2013;22:1879-88. , 2525. Moons P, Budts W, Geest SD. Critique on the conceptualisation of quality of life: a review and evolution of different conceptual approaches. Int J Nurs Studies. 2006;43:891-901..

Estes resultados destacam que a QV é um conceito subjetivo e que é dependente das várias dimensões da vida; é dinâmico, pois se altera com o tempo, em decorrência da progressão da doença, inclusão de novas terapêuticas, capacidade interna do adoecido, mudanças de valores e das ações, e é essencialmente um julgamento individual88. Warren N, Manderson L. Reframing disability and quality of life: a global perspective. London: Springer; 2013. , 1313. Dijkers M. What's in a name? The indiscriminate use of the quality of life label, and the need to bring about clarity in conceptualizations. Int J Nurs Studies. 2007;44:135-55. , 2424. Sales CA, Silva AA, Ribeiro MA, Wauters NM. A existencialidade da pessoa com neoplasia em tratamento quimioterápico. Acta Scientiarum. Health Sciences. 2003;25(2):177-82..

Desse modo, a utilização das abordagens teórico-metodológicas interpretativas, as quais focalizam o contexto sociocultural, as situações vivenciadas no sistema de assistência à saúde, bem como as terapêuticas e suas consequências, favorecem o aprofundamento da análise e discussão dos elementos conceituais sobre QV, durante o tratamento oncológico.

É importante refletir sobre tornar concreta a qualidade e a quantidade dos elementos conceituais de QV. Qualidade não pode tomar o lugar da quantidade e vice-versa. Embora a quantidade seja um tipo de qualidade, o contrário não é verdadeiro. Os instrumentos de QV, em geral, estão medindo quantidade e não qualidade88. Warren N, Manderson L. Reframing disability and quality of life: a global perspective. London: Springer; 2013..

Considerando a prevalência do CCR no país, a falta de resposta clínica com a utilização das atuais terapêuticas, indicadas pelas altas taxas de cura insatisfatórias, é preciso buscar outros indicadores, além da QV, que possam subsidiar a manutenção ou indicação de tratamentos, em diferentes fases da evolução da doença.

Por outro lado, ao se pensar na análise da QV de pessoas com câncer, é preciso atentar para os aspectos éticos dos resultados, pois, esta avaliação refere-se à vida do outro88. Warren N, Manderson L. Reframing disability and quality of life: a global perspective. London: Springer; 2013..

A perspectiva antropológica assegurou a consistência dos dados e de sua análise, mediante o trabalho de campo, observação participante e entrevistas em profundidade, que facilitaram a proximidade dos pesquisadores às situações vividas pelos participantes, bem como da construção dos sentidos e significados da QV88. Warren N, Manderson L. Reframing disability and quality of life: a global perspective. London: Springer; 2013..

Conclusão

Neste estudo, acompanhamos um grupo de pessoas com CCR em QtA para interpretar os sentidos e significados atribuídos à QV, durante o tratamento. Empregamos a abordagem metodológica etnográfica e a antropologia médica, na corrente interpretativa.

Com a identificação dos sentidos para o câncer e a terapia, descrevemos as experiências pela configuração da nova identidade como pessoa com câncer e suas reações ao diagnóstico; suas crenças sobre a doença; as mudanças no corpo pela cirurgia; as rupturas biográficas; a valorização da normalidade da vida anterior ao adoecimento; o sofrimento e a necessidade de reagir.

Os adoecidos reconheceram que a cirurgia não foi resolutiva e que a QtA seria necessária. Essa terapêutica gerou novas rupturas e novas limitações, que repercutiram nas dimensões pessoal, familiar e social. Essa experiência revelou-se como um período de intenso sofrimento, com o sentido de luta pela vida. Os participantes buscaram por teias para se ajustarem a nova situação, apesar da incerteza do futuro.

Os sentidos e significados do câncer e seus tratamentos implicou numa experiência moral devido ao sofrimento pessoal e social gerados, tentando preservar o senso de autoestima, com rejeição à impossibilidade de cura.

Neste contexto, a QtA é um processo liminar que transforma a vida, provoca perdas, mas lhe é atribuído valor por permitir manter a esperança na cura, apesar de seus eventos adversos.

Estes sentidos deram origem ao núcleo temático principal: qualidade de vida como a possibilidade de retomada da normalidade da vida anterior ao adoecimento. A QV é apresentada em relação à nova identidade pessoal e social, marcada pela perda do controle da vida, pelas limitações no trabalho, altamente valorizado por estas pessoas, como possibilidade de preservar a autonomia. O seu significado está relacionado à retomada da normalidade da vida pessoal e social anterior ao adoecimento.

A QV na QtA, na perspectiva dos participantes, independentemente do sexo, ocupação e faixa etária, é expressa por um simbolismo crítico sobre a doença, devido à experiência moral e não ao tratamento. Está relacionada à sua capacidade de manejo de seu papel social, principalmente ao retorno da atividade laboral, para se sentir normal, e no contexto em análise foi considerada como insatisfatória.

Com estas considerações nos posicionamos a favor de maiores investimentos para a utilização do conhecimento científico de diferentes perspectivas em complementaridade, ou seja, no desenvolvimento de estudos de abordagem qualitativa sobre a experiência com a QV no câncer para agregar diferentes dimensões, e agregá-las aos resultados da sua mensuração.

Os significados apresentados evidenciam a importância da ampliação do foco da QV pelos enfermeiros, que atuam na assistência ao adoecido pelo CCR, incluindo-se as referências socioculturais do contexto das pessoas que vivem o processo da doença e da QtA, ultrapassando a dimensão biológica e a técnica do cuidar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2015
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2014
  • Aceito
    08 Jan 2015
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