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Masculinidades transitórias no adoecimento pelo câncer de próstata* * Artigo extraído da tese de doutorado “A experiência do homem com câncer de próstata na perspectiva da antropologia das masculinidades”, apresentada à Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Apoio Financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil - Processos nº 161735/2012-6 e 305368/2014-1.

Resumos

Objetivo:

interpretar os significados atribuídos à experiência dos homens com o câncer de próstata sobre seus corpos e suas masculinidades durante o adoecimento, com base na concepção da antropologia médica e das masculinidades.

Método:

pesquisa etnográfica norteada pelo método narrativo e pelos referenciais teóricos da antropologia médica e das masculinidades com 17 homens. As informações foram colhidas por meio de entrevistas gravadas, observação direta e registros em diário de campo, os quais foram analisados pela análise temática indutiva.

Resultados:

os homens sofrem transformações corporais e identitárias durante o adoecimento pelo câncer de próstata, transitando por múltiplas masculinidades, resignando suas ações, ocupando posições subordinadas para com outros corpos sadios, marginalizadas em suas relações sociais e cúmplices no estabelecimento de suas relações afetivas.

Conclusão:

estas evidências potencializam e aprofundam os conhecimentos divulgados na literatura e contribuem para o fortalecimento de ações de cuidado de enfermagem ao lidar com os adoecidos.

Descritores:
Antropologia Médica; Neoplasias da Próstata; Masculinidade; Saúde do Homem; Enfermagem Oncológica; Pesquisa Qualitativa


Objective:

to interpret the meanings attributed by men with prostate cancer to the experience regarding their bodies and masculinities during illness.

Method:

ethnographic research with 17 men, guided by the narrative method and theoretical framework of medical anthropology and masculinities. The information was collected through recorded interviews, direct observation and field diary records, which were analyzed by inductive thematic analysis.

Results:

men undergo body and identity transformations when they get sick with prostate cancer, transiting through multiple masculinities, resigning their actions, and occupying subordinate positions in relation to other healthy bodies, which are marginalized in their social relationships and allied with regard to establishing their affective relationships.

Conclusion:

this evidence enhances and deepens the knowledge disclosed in the literature and contributes to the strengthening of nursing care actions when dealing with the sick.

Descriptors:
Anthropology Medical; Prostatic Neoplasms; Masculinity; Men’s Health; Oncology Nursing; Qualitative Research


Objetivo:

interpretar los significados atribuidos a la experiencia de los hombres con el cáncer de próstata sobre sus cuerpos y sus masculinidades durante la enfermedad.

Método:

investigación etnográfica orientada por el método narrativo y por los referenciales teóricos de la antropología médica y de las masculinidades con 17 hombres. Las informaciones fueron recogidas por medio de encuestas grabadas, observación directa y registros en diario de campo, los cuales fueron analizados por el análisis temático inductivo.

Resultados:

los hombres sufren transformaciones corporales y de identidad durante la enfermedad por el cáncer de próstata, transitando por múltiples masculinidades, resignando sus acciones, ocupando posiciones subordinadas para con otros cuerpos sanos, marginalizadas en sus relaciones sociales y cómplices en el establecimiento de sus relaciones afectivas.

Conclusión:

estas evidencias potencian y profundizan los conocimientos divulgados en la literatura y contribuyen para el fortalecimiento de acciones de cuidado de enfermería al lidiar con los enfermados.

Descriptores:
Antropología Médica; Neoplasias de la Próstata; Masculinidad; Salud del Hombre; Enfermería Oncológica; Investigación Cualitativa


Introdução

De acordo com as estatisticas americanas(11 American Cancer Society. Datos y Estadísticas sobre el Cáncer entre los Hispanos/Latinos de 2015-2017. Atlanta: American Cancer Society. [Internet]. 2015. [Acceso 28 feb 2018]; Disponible en: https://www.cancer.org/es/investigacion/datos-y-estadisticas-sobre-el-cancer-entre-los-hispanos.html
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), um em cada seis homens no mundo desenvolverá câncer de prostata (CP) ao longo de sua vida. Independente da cor e etinia da população, a doença ainda prevalece como uma ameça silenciosa a saúde dos homens latinos como a terceira causa de morte por enfermidades crônicas não transmissíveis(11 American Cancer Society. Datos y Estadísticas sobre el Cáncer entre los Hispanos/Latinos de 2015-2017. Atlanta: American Cancer Society. [Internet]. 2015. [Acceso 28 feb 2018]; Disponible en: https://www.cancer.org/es/investigacion/datos-y-estadisticas-sobre-el-cancer-entre-los-hispanos.html
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). Para o biênio de 2018 e 2019 foi estimado o risco de 66.120 casos novos para cada 100 mil homens brasileiros, incidência essa que é seis vezes maior em países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra(22 Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação geral de ações estratégicas. Coordenação de prevenção e vigilância. Estimativa 2018/2019. [Internet]. Brasília: INCA; 2018. 130 p. [Acesso 26 nov 2018]; Disponível em: http://www1.inca.gov.br/estimativa/2018/estimativa-2018.pdf
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).

A cura para o CP é um fenômeno investigado por múltiplas perspectivas cientificas e a cada ano novas descobertas são evidenciadas, paralelo a esta busca, a experiência de sobreviver ou viver com a doença ainda configura-se como um campo a ser fortalecido para o aprimoramento de novas técnicas de cuidado e implementação de políticas públicas. Pesquisadores(33 James LJ, Wong G, Craig JC, Hanson CS, Ju A, Howard K, et al. Men’s perspectives of prostate cancer screening: A systematic review of qualitative studies. PLoS One. 2017;12(11):1-23. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0188258
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) reconhecem que os tratamentos para o CP, com exceção da vigilância, geralmente resultam em efeitos colaterais desagradáveis que acabam por deixar o homem vulnerável em relação a aspectos que envolvem sua masculinidade. Dentre estes efeitos destacam-se a disfunção sexual, alterações na imagem corporal e o estigma social, vivenciados por quase todos submetidos a prostatectómica(33 James LJ, Wong G, Craig JC, Hanson CS, Ju A, Howard K, et al. Men’s perspectives of prostate cancer screening: A systematic review of qualitative studies. PLoS One. 2017;12(11):1-23. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0188258
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-44 Romanzini AE, Pereira MG, Guilherme C, Cologna AJ, Carvalho EC. Predictors of well-being and quality of life in men who underwent radical prostatectomy: longitudinal study. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2018;26(e3031):1-14. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2601.3031
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).

Frente a vulnerabilidade masculina resultante dos tratamentos, os homens transitam sofrendo transformações em seus corpos e em suas identidades sociais ao longo do seu fluxo de vida. Por mais que a transição seja um processo natural do ser humano, o adoecimento potencializa este fenômeno e proporciona novas experiências na maneira como estes enfrentam a doença(55 Munck B, Björklund A, Jansson I, Lundberg K, Wagman P. Adulthood transitions in health and welfare: a literature review. Nurs Open. 2018;5(3):254-60. doi: https://doi.org/10.1002/nop2.136
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). Dessa forma, compreender as transições masculinas durante o adoecimento pelo CP, configura-se como um passo na busca por fortalecer os tratamentos, educação e pesquisas voltadas a esta população.

A literatura cientifica tem evidenciado lacunas no conhecimento em torno da temática.

Para ilustrar esta questão, uma metassintese qualitativa(66 Araújo JS, Zago MMF. Masculinities of prostate cancer survivors: a qualitative metasynthesis. Rev Bras Enferm. 2019;72(1):231-40. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0730.
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) foi realizada nos bancos de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe - LILACS, Medical Literature Analysis and Retrieval System on-line - MEDLINE e Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature - CINAHL, segundo as recomendações do PRISMA, utilizando os descritores científicos do DeCS e MeSH masculinity e prostatic neoplasms, guiados pelo operador booleano and. Os filtros utilizados foram estudos em seres humanos, com a metodologia qualitativa, nos idiomas inglês, espanhol e português. Após a busca e a leitura dos títulos, resumos e resultados, os dados foram extraídos e sintetizados por dois pesquisadores distintos, os quais evidenciaram que entre as 21 referências selecionadas, prevaleceram discussões em torno das questões de saúde do homem relacionadas a sexualidade, alimentação, prevenção, diagnóstico e tratamento, deixando fora desse contexto as transições ocorridas no corpo e nas masculinidades durante o adoecimento.

Portanto, a relevância desta pesquisa justifica-se face a necessidade de conhecer, como o homem transita seu corpo e suas masculinidades frente ao adoecimento por CP? Objetivando responder este questionamento buscou-se interpretar os significados atribuídos à experiência dos homens com o CP sobre seus corpos e suas masculinidades durante o adoecimento, com base na concepção da antropologia médica e das masculinidades.

Método

Trata-se de uma pesquisa etnográfica norteada pelo método narrativo e pelos referenciais teóricos da antropologia médica(77 Langdon EJ, Wiik FB. Anthropology, health and illness: an introduction to the concept of culture applied to the health sciences. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2010;18(3):459-66. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692010000300023
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) e das masculinidades(88 Connell R. Masculinities. 2.ed. Berkeley (USA): University of California Press; 2005.).

A adoção deste desenho, justifica-se por sua característica de permitir ao pesquisador a utilização de múltiplas técnicas de coleta de dados (triangulações), como a observação participante, entrevista, anotações em diários de campo e análise de documentos, compondo assim um campo estruturado, pressupondo a organização e a hierarquização dos elementos do seu conteúdo(99 Cruz EV, Higgin BG. The use of focused ethnography in nursing research. Nurse Res. 2013;20(4):36-43. doi: 10.7748/nr2013.03.20.4.36.e305
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). O método também possibilita a interação constante entre o narrador e ouvinte por meio do círculo hermenêutico, próprio do seu rigor, como uma característica construtiva da narrativa (fusão de horizontes) que permite ao pesquisador chegar a informações sobre a cultura que não estão somente enraizadas nas experiências verbais, mas sim nas ações, com destaque para as transformações da vida(1010 Andrews M, Squire C, Tamboukon M. Doing narrative research. 2ed. Los Angeles: Sage; 2013. p. 41-63.-1111 Damasceno NFP, Malvezzi E, Sales CM, Sales A. Narratives as alternative in health research. Interface. (Botucatu, Brazil). 2018;22(64):133-40. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0815
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).

Para a antropologia médica, a doença não é apenas um processo biológico/corporal, mas o resultado da influência do contexto cultural e da experiência subjetiva de que o corpo está com problemas(77 Langdon EJ, Wiik FB. Anthropology, health and illness: an introduction to the concept of culture applied to the health sciences. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2010;18(3):459-66. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692010000300023
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). Já para a antropologia das masculinidades, teoria que observa as posições de poder estabelecidas nas relações de gênero, a saúde e a doença apresentam-se como mediadores das práticas pelas quais homens e mulheres se comprometem com o lugar masculino e o feminino na sociedade e seus efeitos na experiência corporal e na cultura(88 Connell R. Masculinities. 2.ed. Berkeley (USA): University of California Press; 2005.).

A pesquisa foi apreciada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo sob o protocolo nº 054/2013, sendo todos os preceitos éticos respeitados em seus processos, como determina a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todos os participantes, cujo anonimato foi assegurado substituindo seus nomes reais por fictícios.

Foi estabelecido como critérios de inclusão: homens com diagnóstico de CP há pelo menos seis meses em tratamento, maiores de 18 anos, independentemente do nível de escolaridade e socioeconômico, e que se autodeclararam em condições físicas e psíquicas para relatar sua experiência; Entre os homens em seguimento terapêutico em hospital universitário localizado no interior do estado de São Paulo, 17 foram selecionados para participar do estudo devido obedecerem aos critérios pré-estabelecidos.

Neste estudo os dados foram coletados pelo primeiro autor, de forma individualizada com cada participante por meio de entrevistas em profundidade (no mínimo quatro encontros com duração media de duas horas) e observação do contexto de pesquisa (como expressões corporais, sentimentais e factos subjetivos), sendo estas registradas em diário de campo, realizadas nas dependências do complexo hospitalar e nos lugares em que os participantes julgavam propícios para relatar sua experiência, como residências, feiras livres, locais de trabalho e de lazer. Os registros colhidos são produtos da vivência do pesquisador com o pesquisado durante vários momentos significativos da vida dos adoecidos, como acompanhamento durante consultas e exames, interação com familiares e amigos e no convívio social com outros homens. Cada encontro foi guiado por um roteiro inicial para auxiliar na coleta de dados, os clínicos foram copilados dos prontuários dos participantes e as informações de suas experiências foram evocadas por questões norteadoras como: Como é lidar com os tratamentos do CP? O que mudou na sua vida? O que faz para se cuidar? O que é ser homem para você? A sua vida como homem mudou? Ressalta-se que para cada participante, conforme expressavam suas experiências, outras questões foram sendo formuladas, de modo a acessar as nuances de cada história e ações apresentadas. Após cada encontro, os dados foram compilados e analisados com as possíveis reflexões registradas no diário de campo, obtendo-se assim o levantamento de novos questionamentos que foram aprofundados nos encontros posteriores. A imersão no campo durou 36 meses e só foi encerrada quando o objetivo traçado foi atingido, os dados começaram a repetir-se, acusando saturação, e novos sentidos não eram mais adicionados.

Sequencialmente, após a coleta de dados, foram construídas sínteses narrativas individuais seguidas de sínteses narrativas coletivas para melhor compreender as experiências narradas. Feito isso, os enredos foram submetidos a análise temática indutiva(1212 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006;3(2):77-101. doi: http://dx.doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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) e os aspectos semelhantes e particulares das narrativas foram integrados, sendo apresentados sob forma de uma síntese narrativa temática, esta é apresentada em itálico como interpretação primária, na forma textual como foram ditas, além de também exemplificarem a análise dos autores.

Em campo, partimos do princípio que o homem adoecido por CP detém a experiência que pretendíamos conhecer, ou seja, a compreensão primária. A este homem focalizamos nosso fazer etnográfico e por meio de entrevistas, observações, anotações em diário de campo, reflexões e vivência com ele, aprendemos sobre à sua experiência. Em seguida transcrevemos os dados obtidos, codificando-os para torná-los explicativos, analisamos esse texto e refletimos sobre às suas partes e seu todo para compreender os sentidos expressos em seu enredo. Nesse processo, sempre que surgiam novas lacunas de conhecimento que necessitavam de maiores explicações para compor suas experiências, retornávamos com os entrevistados para fortalecer a investigação. Quando as dúvidas eram sanadas (até aquele momento) submetíamos o texto da experiência dos homens ao processo de análise temática, a qual por meio da indução, característico do seu rigor, nos permitia realizar a fusão de horizontes (união do senso comum com o conhecimento cientifico) e construir de forma explicativa os enredos de sua experiência em estórias narradas as quais eram apresentadas aos entrevistados para validação, alcançando assim os significados, ou seja, uma compreensão secundária dos fatos. Todavia, mesmo após todo esse processo, durante a reflexividade, se as partes não se encaixassem ao todo e, se o todo não se encaixasse às partes do texto, retornávamos aos homens para sanar dúvidas e vivenciar novas perspectivas que auxiliavam a aprender mais sobre suas experiências e estruturar uma explicação compreensiva de suas narrativas. Esse ir e vir com os homens adoecidos, com a análise, com as narrativas e com a nossa reflexividade esteve presente durante todas as etapas desta pesquisa, e só foi possível o acesso porque adotamos como guia de nossas ações o círculo hermenêutico.

A Figura 1 sintetiza o percurso metodológico estruturado nesta investigação.

Figura 1
Fluxo - Síntese do processo metodológico adotado

Resultados

O grupo de participantes foi composto por 17 homens (Fabio; Reinaldo; Antônio; Tony; Alexandre; Thiago; Miguel; Rodrigo; Joaquim; Lúcio; Marcos; Mateus; Lázaro; Murilo; Jesus; Vladimir e Cauã). Estes em sua maioria eram casados, católicos, residiam na cidade de Ribeirão Preto - São Paulo - Brasil, tinham moradia própria, eram aposentados, com ensino fundamental incompleto e idade entre 61 a 81 anos. Todos realizaram prostatectómica radical e vivenciaram as mazelas da disfunção erétil e da incontinência urinária. Cinco deles ainda foram submetidos a sessões de radioterapia e três, concomitante ao tratamento médico, utilizaram terapias complementares com ervas e chás medicinais.

As liminaridades vivenciadas pelos narradores quanto as suas experiências em relação ao CP e suas masculinidades demonstram que a mesma se tornou um exercício de constante visitação aos conceitos de sexo e sexualidade. Suas narrativas foram indissociáveis destes contextos, de forma que compreender como eles percebem a sua sexualidade e suas relações, torna-se fundamental para interpretar suas experiências. Assim, para os narradores o papel sexual que o homem exerce é um elemento incontestável da sua masculinidade, ser ativo ocupa o ponto máximo da cadeia sexual estabelecida culturalmente, como exemplificado nos trechos das narrativas: Eu sou homem porque eu aprendi desde criança a ser assim (apresentaram-se apreensivos e desconfortáveis ao falar desta questão) (Fabio; Reinaldo e Cauã). Meu pai me ensinava a jogar futebol, andar de cavalo, tanger o gado, dirigir, a fazer essas coisas de homem. Acima de tudo, a me comportar como tal, tendo noção no que devia fazer ou não, que era esperado que eu fizesse dentro do meu papel. Assim eu cresci, então não posso ser outra coisa a não ser o que me ensinaram ser. Homem é algo natural, por isso o que ele tem por natureza é que faz dele ser o que é (Tony; Alexandre; Jesus e Vladimir). O homem é uma espécie de líder, é mais respeitado do que a mulher, não em relação só a sexo mas em tudo. Quando se fala que aquela família não tem um homem dentro de casa, já tira o respeito um pouco, pois eu acho que o homem é que dar o suporte para família, ele nasceu para ter domínio de tudo. Eu não sou de ficar falando de mim, mas eu era um homem de exemplo. Quando eu falava e as pessoas me davam moral, paravam para me ouvir porque eu tinha meu valor. Acho que a minha cara séria ajudava, minha barba, a forma como eu me vestia, queira ou não, dizia muito do que eu era, me dava um certo ar de responsável (Antônio; Tony; Alexandre; Lúcio; Marcos; Lázaro e Murilo); Lembro muito do meu passado e sei que a minha vida sempre foi cheia de mulher, na hora que eu queria eu tinha! Eu gostava muito de me exibir, malhava e ficava andando para todo lugar sem camisa, todo mundo me olhava, era tão bom! A gente se sente desejado, valorizado. Tinha uma fama mesmo de pegador, até que eu casei e aquietei meu facho. Tudo ficou restrito à minha mulher, a gente se entendia e éramos muito felizes. Eu tinha disposição, macheza de ficar com ela e levar as coisas na vida. Nessa época eu trazia as coisas para casa, tinha moral ainda e era respeitado (Reinaldo; Tony; Alexandre; Thiago; Miguel; Lúcio; Marcos; Thiago).

A perspectiva sobre a vida sexual ativa é apresentada como um determinante social de masculinidade hegemônica, contudo, no adoecimento pelo CP os homens foram evidenciados como desertores desta função. Todos os narradores apresentaram disfunção sexual e traduziram o sentido desta experiência como um mal súbito que de repente ceifou sua vida como homem, e por mais que eles queiram restituir sua normalidade o corpo biológico não responde como gostariam, como refletem as narrativas: Eu sou homem, mas devido a doença eu deixei de fazer meu papel de homem. Isso é coisa da cabeça das pessoas, ninguém é 100%, todo mundo tem medo de algo e falha em algum ponto, nunca alcança uma macheza total, porque ninguém é super homem e nem o batman. Quando tirei a próstata pensei que esse homem que eu era ainda ia viver. Hum... só ilusão! As pessoas fazem questão de me lembrar que não posso mais nada, porque voltei a ser criança. Não sou ingênuo e sei que tudo que você faz é julgado pelos outros como certo e errado. Isso é o papel que a gente exerce para viver entre as pessoas; Desde quando fiz a cirurgia eu não me senti mais como um homem, porque por mais que eu queira, meu organismo não produzia mais o papel de homem. Tiraram de mim mais do que a próstata, tiraram minha vida enquanto sujeito macho. Mas a vida é assim, quando ela não te derruba ela te aleija. Hoje sou um cara meio empacado para fazer as coisas, não tenho mais força, não posso carregar peso. Quase tudo que eu fazia não faço mais, por isso falo que sou diferente do que eu era, porque sou cheio de limites (Fabio; Reinaldo; Antônio; Tony; Alexandre; Thiago; Miguel; Rodrigo; Joaquim; Lúcio; Marcos; Mateus; Lázaro; Murilo; Jesus; Vladimir e Cauã).

Outra liminaridade vivenciada pelos narradores foi quanto ao controle do corpo, no qual o descontrole sobre o esfíncter urinário foi simbolizado como algo que proporciona um sentimento inferioridade, pois os homens se identificam como diferentes dos demais por estar constantemente molhados e com um odor fétido que incomoda as pessoas ao seu redor, o que os impedem de trabalhar. Por ser tratado de forma diferente pela família e sociedade, ele permanece em constante vigilância, como exemplificado no discurso: Essa operação desgraçou minha vida enquanto homem, porque se antes o meu problema era viver com a urina presa, hoje é viver com ela solta. A urina que antes vivia presa hoje vive solta e isso faz a gente se isolar do mundo pois não dá mais para viver em sociedade doente. Por mais que a gente use fralda, uma meia, absorvente feminino e pano para conter o xixi na cueca, não tem jeito, a calça fica toda molhada e é só vergonha (Tony; Marcos; Mateus e Jesus). Usar essas coisas é muito constrangedor, fere o princípio do macho pois essas coisas são de mulher. Comecei a perceber com o tempo que as pessoas se afastavam de mim, no início eu não entendia direito o que era, chegaram até me demitir por conta disso, mas um dia minha filha falou que era porque o cheiro da minha urina às vezes ficava demais e eles não se sentiam bem. Eu me senti um pano de chão de banheiro, um inútil mesmo. Fico mais na minha aqui mesmo, atualmente sei que não sou igual a outros caras, por isso me isolo do mundo, não saio do quarto para nada, porque com essa urina não dá para viver mais normal. O mundo fora de casa acabou pra mim depois do câncer (Fabio; Thiago; Miguel; Joaquim; Lúcio; Marcos e Lázaro); Hoje em dia estou todo lascado mesmo, mas ninguém precisa ficar sabendo disso para me julgar. Fazendo uma comparação com o que eu era, eu sou um novo homem, voltei a ser criança, porque não ando livre mais, não fodo, não fumo, não bebo, não fico mais entre os amigos, faço xixi nas calças, uso absorvente, o que falta mais para mim? Só falta mesmo o câncer me levar, porque nem eu mesmo me reconheço. Só queria ser normal novamente, igual a todos os homens por aí. Quero ter macheza, ter caráter, trabalhar e não deixa faltar nada em casa (Reinaldo; Murilo; Jesus; Vladimir e Cauã).

Ancorado à disfunção sexual, a anorgasmia também esteve presente como uma liminaridade nas experiências dos narradores. O sêmen foi compreendido como um passaporte, uma identidade que todo homem tem e que precisa comprovar durante o ato sexual. Para os narradores, perder a ejaculação foi como perder uma parte de si, significado como um processo constrangedor que fere à sua identidade e dificulta à sua interação conjugal e social como descreve o relato: Eu não consigo mais gozar, fiquei seco e a minha ejaculação agora é interna. É muito constrangedor essas coisas, porque só o homem que consegue no final da transa mostrar que gozou, a mulher, se ela quiser fingir ela finge tranquila, mas o homem, ele não tem nem como esconder (Tony; Rodrigo; Joaquim; Lúcio; Mateus; Murilo e Vladimir). A gosma (sêmen) para minha mulher é como se fosse uma espécie de comprovante que eu estou gostando da transa. Para o pessoal da rua isso é meio que um carimbo, porque todo homem no final goza para mulher ver. Para fugir dessa regra, eu procuro disfarçar, quando vou transar falo pra minha mulher que gozei em um pano e ela não vê ou a gente tenta fazer no banheiro e na hora tiro e ela pensa que saiu na água. Isso me mata aos poucos! Me sinto muito pequeno por causa disso! O esperma meio que é meu passaporte, minha identidade, hoje que não tenho mais percebo que é isso. Tentei reverter essa situação, fui ao médico e comecei a tratar, sei que é artificial, porque essa dureza toda não sou eu, é o remédio, de um jeito ou de outro quando tomo isso, acabo sendo um homem artificial, porque só posso transar com remédio (Reinaldo; Antônio; Tony; Alexandre; Rodrigo; Joaquim; Lúcio; Marcos; Mateus; Lázaro).

Na busca por retomar os padrões hegemônicos, mesmo se sentindo como homens artificiais, os narradores não somaram esforços para equilibrar o corpo biológico, visto que às suas relações sexuais com suas parceiras foram abaladas devido a disfunção erétil e a falta de desejo sexual, assim eles continuaram a exercer essa prática, pois tratava-se de um preceito para o cumprimento de uma obrigação moral, como ilustrado no trecho da narrativa: Me olhando não consigo ver mais nada do que eu era além das lembranças. Se eu não melhorar, assim não dá para viver, pois quem vive de lembrança é museu. Eu quero ser homem de verdade, não quero ser homem doente (choros)... penso que estou vivendo com saúde relativamente satisfatória, tenho que pensar assim, vestir uma máscara para sair na rua como se nada tivesse acontecendo para ninguém me julgar que não sou mais homem e seguir (Alexandre; Lázaro; Joaquim; Murilo e Jesus). Aí fora tem muito homem que fez a cirurgia e está pior do que eu... tem cara que vira até gay! Eu gosto de mulher, só não dou mais conta! Sou um homem pela metade agora. O homem que não sente mais atração, não sente mais tesão e nem fica mais com a mulher direito, não pode ser considerado homem de verdade! Foi isso que aprendi desde criança, mais sei também que as pessoas só me veem como homem se eu comer alguém, caso contrário não sirvo para nada. Para ser sincero, depois da cirurgia eu não sei mais que prazer tem o sexo de verdade, pois a vontade é quase nada. Eu continuo fazendo sexo, só que agora eu faço forçado porque o problema é só comigo e não posso decepcioná-la (Fabio; Reinaldo; Alexandre; Miguel; Joaquim; Marcos e Mateus).

O trecho destaca que a experiência moral também permeia os sentidos que os homens atribuem à sua masculinidade ao lidarem com as transformações do corpo. Quer seja do processo saúde doença, quer seja das masculinidades ou até mesmo do social, o significado de transição traduziu a experiência dos homens deste estudo e os acompanharam em tempos de crise identitária, onde reconhecer a si e seguir a vida se tornou um processo constante de ressignificação da realidade, como exemplificado no trecho: Mudei muito e tem hora que nem eu me conheço mais. É incrível como a gente se transforma, aquela moral que levamos anos para construir, que a gente vem falando e fazendo desde quando se é garotinho e não deixava ninguém fora a mãe tocar na gente, de repente vai embora, e quando percebemos estamos aí todo solto. Sou outro cara mesmo, estou doente e é o jeito viver assim agora (Reinaldo; Alexandre; Thiago; Miguel; Rodrigo; Vladimir e Cauã).

Frente aos rearranjos da liminaridade e do sentimento de medo de ser punido pela experiência moral, os narradores reagiram com base em sua cultura implementando estratégias compensatórias para lidar com a transição ao novo homem, utilizando a ação de se resignar como uma consequência normativa para seguir a vida. A narrativa ilustra este aspecto e mostra que em momentos de crise os homens também se resignam o que permite que se adaptem à nova identidade: Sou um homem diferente e quanto antes eu aceitar isso eu viverei melhor. Mudei muito e tem hora que nem eu me conheço mais. É incrível como a gente se transforma, aquela moral que levamos anos pra construir, que a gente vem falando e fazendo desde quando se é garotinho e não deixava ninguém fora a mãe tocar na gente, de repente vai embora, e quando percebemos estamos aí todo solto (...) (Tony; Alexandre; Thiago; Miguel; Rodrigo e Joaquim). É o jeito aceitar a vida assim, não tenho outra escolha. Eu sou homem e essas coisas não podem me abalar, sou o pilar da minha família e se eu cair todo mundo cai, então tenho que segurar a barra. Não tem para onde eu correr! A gente vai se controlando e vai aprendendo a viver no automático. Ser como o homem de antigamente já não importa mais... o que importa é o que eu vou ser daqui para frente (Fabio; Reinaldo; Marcos; Mateus; Lázaro; Murilo; Jesus; e Vladimir).

Discussão

Pesquisadores(1313 Langelier DM, Cormie P, Bridel W, Grant C, Albinati N, Shank J, Daun JT, Fung TS, Davey C, Culos-Reed SN. Perceptions of masculinity and body image in men with prostate cancer: the role of exercise. Support Care Cancer. 2018;26(10):3379-88. doi: https://doi.org/10.1007/s00520-018-4178-1
https://doi.org/10.1007/s00520-018-4178-...
-1414 Medina-Perucha L, Yousaf O, Hunter MS, Grunfeld EA. Barriers to medical help-seeking among older men with prostate câncer. J Psychosoc Oncol. 2017;35(5):531-43. doi: 10.1080/07347332.2017.1312661
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) advogam que o processo de adoecimento do corpo abala a manutenção da masculinidade hegemônica, pois apresenta dilemas na identidade, incluindo subordinação, passividade, reconhecimento de emoções e dependência. Especificamente no câncer, os homens reconfiguram sua identidade física e social e buscam preservar seus “status” de masculinidade familiar ao máximo possível, todavia, a liminaridade é um processo inevitável, pois o desequilíbrio biológico reflete diretamente sobre as ações sociais alterando a identidade masculina.

Frente aos sentidos empregados a viver com incontinência urinária, disfunção sexual e todas as transformações ocorridas provenientes dos tratamentos para o CP, apresentados neste estudo, evidenciou-se que as experiências dos homens, mesmo com o advento da evolução de técnicas terapêuticas avançadas, ainda são escritas por momentos conflitantes que interferem na maneira como os adoecidos lidam com suas vidas no mundo social. Dessa forma, destaca-se que não basta apenas restabelecer o tratamento para o corpo biológico sem implementar cuidados para restabelecer o corpo social, pois o homem transita sua vida em um fluxo contínuo de histórias e rupturas, sendo as masculinidades imbricadas no seguimento deste fluxo.

Frente ao processo globalizante que permeia a cultura masculina, as masculinidades nunca ocupam uma mesma posição dentro da cocha de retalhos, elas estão sempre alocando-se, modificando e adicionando novos significados por meio das experiências(88 Connell R. Masculinities. 2.ed. Berkeley (USA): University of California Press; 2005.). Nesta perspectiva, interpreta-se que os sentidos apresentados nas narrativas, evidenciam que durante o adoecimento, os homens sofrem transições em suas masculinidades pois choram, sofrem, transformam as funções dos seus corpos, apresentam fragilidades e adoecen, ressignificando suas experiências hegemônicas e adotando novas reconfigurações identitárias, as quais trazem à tona múltiplas masculinidades. Dentre as novas configurações adotadas por estes, compreende-se que os corpos masculinos ocuparam posições subordinadas para com outros corpos sadios, marginalizadas em suas relações sociais e cúmplices no estabelecimento de suas relações afetivas.

As experiências de adoecimento dos narradores foram moldadas por uma masculinidade central, ou seja, uma masculinidade hegemônica moderada por domínios identitários de um passado regresso que pertenceram antes da doença e que hoje tentam reivindicar, reagindo logicamente às adversidades por meio do seu agenciamento, almejando voltar a sua capacidade de exercer o controle das funções do seu corpo. Assim, circunscreve nesta relação um homem real do presente e um homem idealizado do passado, um paradoxo que para os narradores vem acompanhado de incertezas quanto ao futuro. Frente a este paradoxo, com base nas experiências narradas e a reflexividade sobre os dados reunidos neste estudo, integrou-se os sentidos elaborados e interpretou-se que a liminaridade foi uma forma expressiva que os atos culturais masculinos assumiram na experiência do homem adoecido e, por esta característica, compreendeu-se que esta narrativa tem como significado central a transição da identidade.

Transição é um conceito antropológico que se apresenta ao longo das diversas fases de uma experiência e que implica em uma mudança ou reação lógica frente a um evento(55 Munck B, Björklund A, Jansson I, Lundberg K, Wagman P. Adulthood transitions in health and welfare: a literature review. Nurs Open. 2018;5(3):254-60. doi: https://doi.org/10.1002/nop2.136
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). Trata-se de um conceito onde é compartilhada a sensação de incertezas e perturbações da identidade, pois as pessoas transitam em um espaço onde não são identificados nem com uma coisa nem com outra, ou talvez com as duas ao mesmo tempo, devido às identidades não se encaixarem mais facilmente às categorias e simplesmente transitarem(1515 Joly E. Integrating transition theory and bioecological theory: a theoretical perspective for nurses supporting the transition to adulthood for young people with medical complexity. J Adv Nurs. 2016;72(6):1-12. doi: https://doi.org/10.1111/jan.12939
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). O processo, a percepção e a ruptura são características universais da transição, a qual tem como objetivo final atingir um “status” de bem-estar(1515 Joly E. Integrating transition theory and bioecological theory: a theoretical perspective for nurses supporting the transition to adulthood for young people with medical complexity. J Adv Nurs. 2016;72(6):1-12. doi: https://doi.org/10.1111/jan.12939
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-1616 Recksiedler C, Stawski RS. Marital transitions and depressive symptoms among older adults: examining educational diferences. Gerontology. 2018;27:1-12. doi: https://doi.org/10.1159/000493681
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).

O processo de transição é dinâmico e múltiplo dentro de uma experiência, podendo ser classificados em quatro tipos: situacionais, saúde/doença, organizacionais e desenvolvimentistas(1515 Joly E. Integrating transition theory and bioecological theory: a theoretical perspective for nurses supporting the transition to adulthood for young people with medical complexity. J Adv Nurs. 2016;72(6):1-12. doi: https://doi.org/10.1111/jan.12939
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,1717 Al-Yateem N, Docherty C. Transition: a concept of significance to nursing and health care professionals. J Nurs Educ Pract. 2015;5(5):35-40. doi: https://doi.org/10.5430/jnep.v5n5p35
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). Pontua-se que neste estudo fixou-se a atenção para a transição de saúde/doença, pois considera-se ser mais representativo da experiência do homem com CP em todo processo que lida com a nova identidade.

No adoecimento certamente o homem adquire experiências de transição que são confrontados por rupturas de alguns laços que suportam e fortalecem os sentimentos de segurança no mundo hegemônico, tal como os que foram apresentados nas narrativas. A transformação desses laços põe as masculinidades em um jogo de disputas que rearranjam suas identidades.

Todavia, ao conjugar as transformações e transições em um discurso antropológico, há de clarificar-se que o conceito que rege a transição não é o mesmo que rege a transformação, pois na cultura eles não se comunicam como sinônimos. A transformação converge para uma situação na vida e transição é a experiência sobre esta situação, ou seja, a transformação pode ocorrer externa a um fenômeno e a transição só pode ocorrer pela vivência deste fenômeno(1818 Kralik D, Visentin K, Van Loon A. Transition: a literature review. J Adv Nurs. 2006;55(3):320-9. doi: https://doi.org/10.1111/j.1365-2648.2006.03899.x
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). Nesta perspectiva, é possível tecer que nem toda transformação gera uma transição, mas certamente toda transição, seja ela concedida ou não, gera uma transformação.

Enquanto ciência, a Enfermagem avança com o auxílio de vários enfoques filosóficos, pois a profissão toma como ótica às transições decorrentes do processo saúde e doença, além de outros fenômenos da vida. Está regido sobre a competência do enfermeiro a prestação de assistência aos outros que lidam com as mudanças no seu corpo e no seu bem-estar (1515 Joly E. Integrating transition theory and bioecological theory: a theoretical perspective for nurses supporting the transition to adulthood for young people with medical complexity. J Adv Nurs. 2016;72(6):1-12. doi: https://doi.org/10.1111/jan.12939
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,1717 Al-Yateem N, Docherty C. Transition: a concept of significance to nursing and health care professionals. J Nurs Educ Pract. 2015;5(5):35-40. doi: https://doi.org/10.5430/jnep.v5n5p35
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). Assim aponta-se que é de suma importância identificar e caracterizar as transições que os homens vivem no curso de suas vidas, para que posteriormente possa-se desenvolver um plano de cuidados individualizado às necessidades reais.

Quer seja do processo saúde doença, quer seja das masculinidades ou até mesmo do social, o significado de transição traduziu a experiência dos homens deste estudo e os acompanharam em tempos de crise identitária, onde reconhecer a si e seguir a vida se tornou um processo constante de ressignificação da realidade. Nesta perspectiva, frente aos rearranjos da liminaridade e do sentimento de medo de ser punido pela experiência moral, os narradores reagiram com base em sua cultura implementando estratégias compensatórias para lidar com a transição ao novo homem, utilizando a ação de se resignar como uma consequência normativa para seguir a vida.

Sobre a perspectiva do senso comum resignar recebe uma conceituação equivalente a aceitar algo, permitir ou consentir. Contudo, sob a lente da antropologia resignação é uma sensação de tensão que os indivíduos experimentam entre lutar por algo ou simplesmente desistir(1919 Pedrolo FT, Zago MMF. A imagem corporal alterada do laringectomizado: resignação com a condição. Rev Bras Cancerol. [Internet]. 2000 [Acesso 26 jun 2018]; 46(4):407-15. Available from: http://www1.inca.gov.br/rbc/n_46/v04/pdf/artigo6.pdf
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). Frente a esta situação tornam-se impotentes, pois não detém mais de elementos necessários para influenciar seu futuro e chegar a qualquer lugar possível ou visível de alguma saída. Assim, ser resignado consiste em um processo de aceitação ao vivenciar uma situação adversa mesmo quando esta exige mudanças que só é possível a um grande preço ou risco, sem necessitar exatamente que essas alterações sejam desejadas por aqueles que a assumem(2020 Hörberg U, Sjögren R, Dahlberg K. To be strategically struggling against resignation: the lived experience of being cared for in forensic psychiatric care. Issues Ment Health Nurs. 2012;33(11):743-51. doi: https://doi.org/10.3109/01612840.2012.704623
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).

No contexto investigado evidenciou-se que as identidades masculinas se resignaram frente à experiência de adoecimento, pois não entraram em conexão com os preceitos da masculinidade hegemônica, apesar de a reconhecerem como um padrão a ser seguido. Ao resignar-se os homens sentiram-se oprimidos por seus próprios sentimentos e apresentaram dificuldade de gerir suas identidades masculinas.

Frente a uma doença como o câncer reconhecida por ser estigmatizada, mutiladora, geradora de incertezas e responsável por desencadear tantas mudanças no corpo biológico e social, os homens posicionam-se “entre a cruz e a espada”, ou eles aceitavam as mazelas e incorporavam uma nova identidade ou eles permaneciam estáveis e sofriam as consequências do adoecimento. Em meio a esta “encruzilhada” resignar-se foi a maneira encontrada pelos narradores de continuar sobrevivendo de alguma forma, nem que seja ancorado nas lembranças do seu passado, pois o presente é desafiador e o futuro é incerto na nova identidade masculina que habita em seus corpos.

As experiências apresentadas nesta pesquisa são relevantes para o avanço do conhecimento sobre a temática, pois destacam as ações e subjetividades presentes durante as transições corporais e indenitárias dos adoecidos, além de elucidarem os dilemas morais enfrentados na defesa de suas masculinidades. Evidências estas, significativas para a prescrição de cuidados de enfermagem integralizados e, consequentemente, aumento na qualidade de vida.

Contudo, por tratar-se de uma pesquisa que evidenciou as masculinidades locais, destaca-se que a mesma apresenta limitações, uma vez que sumariza as experiências dos homens inseridos em uma dada cultura, sendo as masculinidades influenciadas pela cultura e a cultura apresentar-se de forma múltipla, coexistem outras masculinidades em níveis regionais e globais que se relacionam as apresentadas, as quais ampliariam a compreensão sobre o fenômeno estudado.

Conclusão

As narrativas permitiram evidenciar que o CP proporciona aos adoecidos liminaridades nas experiências em lidar com a disfunção sexual, incontinência urinária, crise identitária, perda da masculinidade hegemônica, dentre outros. Frente a estas complicações, o homem que era forte e viril deu lugar ao homem dependente e isolado que reage logicamente a doença transformando-se em um novo homem. Nesta perspectiva, conclui-se que o homem é capaz de transitar por múltiplas masculinidades na busca por preservar seu “status” masculino.

As masculinidades apresentadas potencializam e aprofundam os conhecimentos divulgados na literatura sobre as experiências dos adoecidos pelo CP, contribuem para fortalecer os tratamentos, educação e pesquisas voltadas a esta população e auxiliam os enfermeiros em suas ações de cuidado ao lidar com os adoecidos. No entanto, enfatiza-se a necessidade de futuros estudos que privilegiem o caráter analítico da experiência de outros sujeitos envolvidos no processo de cuidado como familiares, cuidadores e profissionais de saúde.

  • *
    Artigo extraído da tese de doutorado “A experiência do homem com câncer de próstata na perspectiva da antropologia das masculinidades”, apresentada à Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Apoio Financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil - Processos nº 161735/2012-6 e 305368/2014-1.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2019
  • Aceito
    07 Set 2019
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