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Repercussões da gravidez entre adolescentes quilombolas

Resumo

Objetivo:

compreender as repercussões da gravidez para a vida de adolescentes quilombolas.

Método:

estudo qualitativo de abordagem exploratória e descritiva. Participaram dez mães quilombolas que vivenciaram a gravidez durante a adolescência. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada. Os dados foram submetidos aos procedimentos para análise de conteúdo.

Resultados:

foram elaboradas três categorias que evidenciaram o conhecimento das participantes acerca do ser quilombola, bem como as repercussões nos seus cotidianos após descoberta da gravidez e como configuravam o ser mãe-adolescente de acordo com as adaptações e expectativas da nova fase.

Conclusão:

a ocorrência da gravidez na adolescência repercutiu em vários aspectos da vida das adolescentes, com implicações relacionadas a aspectos psicológicos, educacionais, socioeconômicos e familiares; além das novas responsabilidades. Ainda, destaca-se o papel da enfermagem para acolher as adolescentes grávidas, a fim de atender às suas necessidades individuais e desenvolver estratégias de prevenção que possam contribuir para a redução da gravidez na adolescência em comunidades quilombolas.

Descritores:
Adolescentes; Gravidez na Adolescência; População Negra; Políticas de Saúde Pública; Enfermagem; Pesquisa Qualitativa

Abstract

Objective:

understand the impacts of pregnancy on the lives of quilombola adolescents.

Method:

this is a qualitative study using an exploratory descriptive design. Ten quilombola mothers who experienced pregnancy during adolescence participated in this study. Data were collected through semi-structured interviews and then submitted to content analysis.

Results:

three categories were identified, showing the knowledge of the participants about being a quilombola and about the impacts on their lives after discovering they were pregnant and how they handled the fact of being a mother-adolescent according to the adaptations and expectations of their new phase.

Conclusion:

pregnancy in adolescence had impacts on several aspects of the lives of adolescents, with psychological, educational, socioeconomic, and family implications, as well as new responsibilities. Also, this study highlights the role of pregnant adolescent reception of nursing professionals to meet the individual needs of adolescents and develop prevention strategies to help reduce pregnancy among quilombola adolescents.

Descriptors:
Adolescent; Pregnancy in Adolescence; African Continental Ancestry Group; Health Policy; Nursing; Qualitative Research

Resumen

Objetivo:

comprender las repercusiones de la gravidez en la vida de las adolescentes quilombolas.

Método:

estudio cualitativo con enfoque exploratorio y descriptivo. Participaron diez madres quilombolas que vivieron un embarazo en la adolescencia. La recolección de datos se llevó a cabo a través de entrevistas semiestructuradas. Los datos fueron sometidos a los procedimientos de análisis de contenido.

Resultados:

se elaboraron tres categorías que evidenciaron el conocimiento de las participantes sobre ser quilombola, así como los impactos en su rutina tras el descubrimiento de la gravidez y cómo se adecuaron para ser madres y adolescentes según las adaptaciones y expectativas de la nueva etapa.

Conclusión:

la existencia del embarazo adolescente repercutió en varios aspectos de sus vidas, con implicaciones relacionadas con los aspectos psicológicos, educativos, socioeconómicos y familiares; además de nuevas responsabilidades. Asimismo, se destaca el papel del proceso de atención de enfermería en la acogida de estas adolescentes, con el fin de atender sus necesidades individuales y desarrollar estrategias de prevención que puedan contribuir a la reducción del embarazo en este colectivo en las comunidades quilombolas.

Descriptores:
Adolescentes; Embarazo en Adolescencia; Grupo de Ascendencia Continental Africana; Política de Salud; Enfermería; Investigación Cualitativa

Destaques:

(1) Repercussões da gravidez no cotidiano das adolescentes quilombolas.

(2) Implicações nos aspectos psicológicos, educacionais, socioeconômicos e familiares.

(3) Descoberta da maternidade e adoção de novas responsabilidades.

(4) Desenvolver estratégias para prevenção da gravidez em adolescentes quilombolas.

(5) A enfermagem assume o papel de acolher essas adolescentes quilombolas grávidas.


Introdução

A gravidez na adolescência tem se tornado um sério problema de saúde pública11. Freitas MVP, Santos FR. Gravidez na adolescência: um problema de saúde pública no Brasil. Rev Jornada Pós-Graduação Pesqui [Internet]. 2020 [cited 2022 Apr 27];16(16): 227-31. Available from: Available from: http://revista.urcamp.tche.br/index.php/rcjpgp/article/view/3934
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. Dados do Ministério da Saúde (MS) apontam que mais de 20 mil meninas com menos de 15 anos engravidam todos os anos22. Ministério da Saúde (BR). Mais de 20 mil meninas com menos de 15 anos engravidam todos os anos [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2020/fevereiro/mais-de-20-mil-meninas-com-menos-de-15-anos-engravidam-todos-os-anos
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. Além disso, vários são os fatores que acarretam uma gravidez na adolescência, entre eles: os aspectos socioeconômicos, baixa escolaridade, diminuição da faixa etária tanto da menarca como da primeira relação sexual, falta de informação sobre os contraceptivos ou programas que apoiem os adolescentes33. Souza RRG, Bezerra MMM. Teenage Pregnancy And Pregnancy Perception By Young Primiparous. Rev Mult Psic. 2019;13(47):99-1014. https://doi.org/10.14295/idonline.v13i47.2100
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. Destaca-se que a gravidez precoce interfere no contexto pessoal-social, acarretando alterações biológicas, psicológicas, econômicas e familiares, abandono dos estudos e dependência financeira dos pais44. Duarte ES, Pamplona TQ, Rodrigues AL. Teenage Pregnancy And its Biopsychosocial Consequences. DêCiência Foco [Internet]. 2018 [cited 2022 Apr 27];2(1):45-52. Available from: Available from: http://revistas.uninorteac.com.br/index.php/DeCienciaemFoco0/article/view/145/43
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.

Embora o Brasil tenha apresentado queda nos índices de fecundidade nos últimos anos55. Fundo de População das Nações Unidas (BR). Apesar da redução dos índices de gravidez na adolescência, Brasil tem cerca de 19 mil nascimentos, ao ano, de mães entre 10 a 14 anos [Internet]. Brasília: UNFPA; 2021 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/apesar-da-redu%C3%A7%C3%A3o-dos-%C3%ADndices-de-gravidez-na-adolesc%C3%AAncia-brasil-tem-cerca-de-19-mil#:~:text=De%20acordo%20com%20dados%20do,entre%2010%20a%2014%20anos
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-66. Ministério da Saúde (BR). 01 a 08/02 - Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://bvsms.saude.gov.br/01-a-08-02-semana-nacional-de-prevencao-da-gravidez-na-adolescencia
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, o índice de gestação na adolescência é alto, com 400 mil casos por ano. Quanto à faixa etária, os dados revelam que em 2014 nasceram 28.244 filhos de meninas entre 10 e 14 anos e 534.364 crianças de mães com idade entre 15 e 19 anos66. Ministério da Saúde (BR). 01 a 08/02 - Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://bvsms.saude.gov.br/01-a-08-02-semana-nacional-de-prevencao-da-gravidez-na-adolescencia
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. Entretanto, sua maior prevalência está nas regiões Norte e Nordeste77. Martinez EZ, Roza DL. Ecological Analysis of Adolescent birth rates in Brazil: Association with Human Development Index. Women Birth. 2020;33(2):191-8. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2019.04.002
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-88. Maestri T. Prevalência de Gestação em Adolescentes Escolares do Brasil e Fatores Associados [Internet]. 2019 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/9285
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, entre mulheres negras, com escolaridade e nível socioeconômico baixo. Diante disso, a desigualdade e discriminação social tornam as adolescentes brasileiras vítimas da exclusão e da miséria, evidenciando uma tendência cada vez maior de eventos que aumentam a pauperização e a consequente vulnerabilidade social, expondo a mulher negra, desde a mais tenra idade, a situações que a colocam em risco físico, psicológico e social99. Silva AJM. Significado da gravidez para adolescente quilombola: um olhar etnográfico da enfermagem [Dissertation]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2013 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/11060
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.

Apesar da existência da política nacional voltada para a adolescência1010. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2010 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_nacionais_atencao_saude_adolescentes_jovens_promocao_saude.pdf
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, compreendemos que ela não se atenta para as especificidades das diferentes adolescências, resgatando aspectos da etnia, história e transculturalidade. Nesse contexto, as comunidades quilombolas, compreendidas por afrodescendentes segundo critérios de autoatribuição, permeadas por singularidades culturais, sofrem com situações de vulnerabilidade social, que impactam em suas condições de saúde, principalmente as localizadas em áreas rurais1111. Rezende LC, Caram CS, Caçador BS, Brito MJM. Nurses’ practice in quilombola communities: an interface between cultural and political competence. Rev Bras Enferm. 2020;73(5):e20190433. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0433
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. Assim, ressalta-se o papel da assistência de enfermagem no planejamento de estratégias direcionadas à prevenção e ao acompanhamento da gravidez na adolescência, visto que a enfermeira está inserida no contexto dessas comunidades e conhece as reais necessidades e vulnerabilidades dessa população. Salienta-se que essas estratégias devem contemplar saúde sexual e reprodutiva, protagonismo juvenil, projeto de vida, além do envolvimento da família e ações multiprofissionais.

Destaca-se, ainda, a influência da desigualdade na saúde inerente ao contexto da adolescente negra e quilombola, justificando a necessidade de investigar essa temática. Além disso, em pesquisa sobre o estado dessa temática nas bases Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando-se os descritores quilombola, adolescentes e enfermagem, com o booleano and, constatou-se a inexistência de estudos que abordem a atenção da enfermagem às repercussões da gravidez para adolescentes quilombolas.

Diante do exposto, esta pesquisa objetiva compreender as repercussões da gravidez para a vida de adolescentes quilombolas. Seus resultados poderão fornecer subsídios para o planejamento da assistência de enfermagem voltado para adolescentes quilombolas que vivenciam a gravidez precocemente.

Método

Tipo de estudo

Estudo de campo, com abordagem qualitativa de caráter exploratório e descritivo1212. Lando F. Pesquisa exploratória, descritiva ou explicativa [Internet]. 28 abr. 2020 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://www.academicapesquisa.com.br/post/pesquisa-exploratoria-descritiva-explicativa
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, como base no Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)1313. Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57. https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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.

Local, período e participantes

O estudo foi desenvolvido na comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu, localizada no município de Cachoeira (BA), Brasil, entre os dias 25 e 30 de outubro de 2021. Participaram do estudo dez mães que vivenciaram a gravidez durante a adolescência, moradoras dessa comunidade. Optou-se pela realização do estudo com esse grupo pela escassez da temática voltada para a população quilombola.

Para a seleção das participantes, foram adotados os seguintes critérios de inclusão: mães quilombolas que tenham vivenciado a gravidez durante a adolescência, considerando um tempo máximo de três anos para que fosse possível falar da repercussão dessa gravidez a curto, médio e longo prazo. Os critérios de exclusão foram: mães com surdez, por limitação da pesquisadora em ajustar a técnica de coleta, bem como mães de crianças com necessidades especiais, considerando que essa condição implica mudanças no cotidiano do cuidado materno. Entretanto, não foi necessária a exclusão de nenhuma participante.

A abordagem às participantes ocorreu após interlocução com a coordenação da associação quilombola local, que possibilitou selecionar as mães elegíveis para o estudo e contatá-las individualmente em seus domicílios.

Ainda que a pesquisa qualitativa não delimite previamente o número de participantes, considerando que a coleta de dados aconteça até que seja possível compreender o objeto de estudo, foi delimitado inicialmente que a entrevista ocorreria com dez mães e essa foi coincidentemente a quantidade de entrevistas realizadas para chegar-se à saturação dos dados empíricos. Ressalta-se que nenhuma participante se recusou ou desistiu de participar do estudo.

Instrumentos e coleta de dados

Foi utilizada como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada1414. Costa D. Entrevista semiestruturada: saiba suas vantagens e diferenças! [Internet]. 01 set. 2022 [cited 2022 Sep 10]. Available from: Available from: https://www.gupy.io/blog/entrevista-semiestruturada
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. O instrumento foi um roteiro composto pela primeira parte com dados sociodemográficos e a segunda parte com tópicos norteadores da entrevista: fale sobre o que significa para você morar em uma comunidade quilombola; fale como foi para você a experiência da gravidez; conte o que mudou em sua vida após sua primeira gravidez; conte o que mudou em sua vida após o nascimento do(a) seu(sua) filho(a).

A coleta de dados foi realizada pela pesquisadora graduanda em enfermagem, que tem aproximação com esse campo de estudo por residir no local. Ressalta-se que todas as exigências éticas foram cumpridas. Para viabilizar a coleta de dados, foi feito contato com o presidente da associação de moradores local, o qual emitiu um termo de anuência autorizando a coleta de dados.

As entrevistas foram realizadas no domicílio das participantes nos turnos da manhã ou tarde, de acordo com a disponibilidade de cada uma. Tiveram uma média de vinte minutos, registradas em aparelho gravador de voz, sem interferência de terceiros. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas de modo que garantissem a fidedignidade dos dados coletados.

Para preservar a identidade das participantes e assegurar a confidencialidade, foram utilizados os códigos de identificação: MQ1, MQ2 (mulher quilombola), sequencialmente, até MQ10. A coleta de dados foi encerrada quando se atingiu a saturação teórica dos dados, ou seja, a repetição das narrativas das participantes.

Diante da concordância das mulheres elegíveis, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Não foram necessários o uso do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido e autorização do seu responsável, uma vez que todas as mães já tinham mais que 18 anos. Dessa forma, foi esclarecido o procedimento para coleta de dados e solicitada às mulheres permissão para gravar seus depoimentos.

Tratamento e análise dos dados

Foi utilizada análise de conteúdo de Minayo1515. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciên Saúde Coletiva. 2012;17(3):621-6. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
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com estabelecimento das categorias temáticas de acordo com as unidades de significação, por meio dos seguintes passos para a operacionalização:

  1. Ordenação dos dados: foi realizado um mapeamento dos dados obtidos no trabalho de campo, com a transcrição de gravações das entrevistas, releitura do material e organização dos relatos. Essa releitura do material e organização dos relatos possibilitou maior aproximação com o conteúdo emergido pelos relatos, possibilitando a etapa seguinte.

  2. Classificação dos dados: por meio de uma leitura exaustiva e repetida dos textos, foram estabelecidas as categorias temáticas de acordo com as unidades de significação. Nesta etapa, foi elaborado o quadro síntese das unidades de significação, por meio do qual estabeleceram-se as dimensões de análise e foram criadas três categorias: 1. identidade quilombola no olhar das mulheres; 2. repercussões da gravidez na adolescência; e 3. descoberta da identidade materna.

  3. Análise final: foram estabelecidas articulações entre os dados e os referenciais teóricos da pesquisa por meio de um diálogo entre os autores.

Aspectos éticos

A pesquisa seguiu os critérios éticos das Resoluções nº 466/20121616. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 [Internet]. Diário Oficial da União, 13 jun. 2013 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html/
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e 510/20161717. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016 [Internet]. Diário Oficial da União, 24 mai 2016 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html
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) para pesquisas envolvendo seres humanos e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com parecer nº 5.053.597.

Resultados

Participaram do estudo dez mães. Entre as características sociodemográficas das participantes, a idade variou entre 18 e 22 anos. Com relação à escolaridade, apenas duas avançaram para o ensino superior, uma para o ensino médio, enquanto sete não completaram o ensino fundamental.

No que se refere à ocupação, a maioria (oito) desenvolvia atividades em comum, como pescava peixes, limpava mariscos, fazia faxinas e vendia roupas, enquanto duas só estudavam. A raça/cor foi estabelecida por autoclassificação: oito se autodeclararam pretas e duas se autodeclararam pardas. No que diz respeito ao estado civil, oito estavam solteiras, porém duas delas referiram manter um relacionamento amoroso (união estável) com um companheiro, pai da criança. Quanto ao número de filhos, somente uma das participantes tinha dois filhos. As outras tinham um filho cada. No que corresponde à renda mensal familiar, só duas famílias apresentavam uma renda de até um salário mínimo e as demais recebiam valores mais baixos.

A partir da análise das entrevistas, foram estabelecidas as seguintes categorias: identidade quilombola pelo olhar das mulheres, repercussões da gravidez na adolescência e a descoberta da identidade materna.

Identidade quilombola pelo olhar das mulheres

Essa categoria evidenciou o conhecimento das participantes acerca do ser quilombola e como caracterizam a identidade étnica da própria comunidade, conforme narrativas abaixo:

Então, pra mim, ser quilombola é lutar por direitos que são nossos, é seguir forte na luta, priorizando nossos direitos, costumes, valorizando a nossa cultura. (MQ6)

Morar numa comunidade quilombola significa resistência devido a todos os processos de luta, de resistência que nossos ancestrais travaram. […] A própria palavra já diz, né? Resistência, resistir a várias formas de opressão, principalmente ao preconceito, racismo, né? (MQ1)

Ao mesmo passo que se fala sobre a valorização cultural, uma das participantes ressaltou:

Hoje muita coisa vai se perdendo também, né? […] o samba de roda, as festas no candomblé, antes tinha as rodas de capoeira também, as rezas nas ruas. Aqui mesmo hoje em dia tem muitas igrejas evangélicas que antes não tinha, meu avô disse que só tinha o candomblé e a igreja católica. (MQ6)

Além disso, as participantes também falaram sobre o ambiente de convivência, o modo de subsistência da comunidade e os direitos que têm por pertencer e morar em uma comunidade quilombola:

Aqui é muito tranquilo, a gente não tem violência […] o presidente da associação dar as cestas básicas a gente, né? pra comunidade toda, lá funciona para muitas coisas […] porque nem todo mundo tem condições grandes aqui, a gente vive da pesca, da roça. (MQ5)

Acho que quilombola por ser quilombola merece esses benéficos todos, né? […] o presidente do quilombo corre atrás e traz pra gente, né? […] Cestas básicas, trouxe esse fogão a lenha também que é muito bom, temos moradia também, minha casa minha vida, é muito bom. (MQ4)

Repercussões da gravidez na adolescência

Nesta categoria, discutiremos as implicações no cotidiano dessas adolescentes após a descoberta da gravidez, correlacionando, principalmente, com os aspectos psicológico, educacional, socioeconômico, familiar e social.

No que se refere ao aspecto psicológico diante da experiência de ter engravidado na adolescência, as participantes citaram diversos sentimentos, além do desejo da maternidade.

Não foi uma gravidez planejada, então foi uma surpresa que a gente não planejou. […] aquilo mexeu muito comigo psicologicamente, eu era cheia de planos, sonhos e o início, né? O descobrimento foi realmente uma surpresa, um baque […] tudo isso gerou um sentimento de angústia, eu não posso dizer que foi algo bom, que foi tranquilo, foi um período, uma fase muito difícil, a gente fica triste, a gente rejeita no primeiro momento, eu ficava triste, chorava, dizia que não era possível. (MQ1)

Senti tudo, medo de cuidar dele e aí fazer coisa errada, sentia raiva de mim também porque eu fiz a burrada de engravidar cedo e perder minha juventude toda, né? (MQ8)

Foi boa, eu queria engravidar. […] Planejei. […] Eu não me arrependi, não, mas tive muitas dificuldades, né? porque era tudo novo pra mim. (MQ3)

Tendo em vista a perspectiva futura das participantes, observou-se abandono escolar da maioria como consequência advinda da gravidez na adolescência, como revelam MQ3, MQ4 e MQ5. No entanto, para aquelas que estavam no ensino superior, foram identificados o trancamento e a interrupção das atividades.

Parei de estudar porque não dava para tomar conta do meu filho e estudar, né? (MQ3)

Eu não ia conseguir estudar e cuidar do meu filho, eu ficava muito cansada de cuidar dele, não tinha forças pra nada, nem estudar. (MQ4)

Eu não sabia o que fazer, tinha acabado o ensino médio e com muitos projetos na mente. […] Em seguida, eu passei na faculdade, alguns meses depois da gravidez e, mais uma vez, fiquei desesperada. Tive que trancar minha faculdade e voltar pra comunidade. (MQ5)

Eu precisei interromper várias atividades que eu poderia está desenvolvendo na universidade e minha trajetória foi dificultosa nesse sentido, houve falhas, né? Eu não consegui viver plenamente a universidade, né? Não participei de vários seminários, debates, né? Tudo por conta da gravidez. (MQ1)

Além do abandono escolar narrado pelas participantes, existiu também a necessidade de elas começarem a trabalhar. Esses trabalhos se resumiam, principalmente, à pesca de peixes, pesca e limpeza de mariscos, além de outras atividades, como realização de faxina:

Eu trabalho, faço faxina pra dar as coisas a ele, o pai dele não dar nada a ele. Ele pega bolsa família, já é uma ajuda também. (MQ2)

Me viro catando siri e pescando, eu não tinha que fazer nada disso antes, porque eu tinha minha mãe e meu pai pra me dar as coisas […], mas tive que começar a trabalhar, catar siri pra poder ter um dinheiro pra comer, né? (MQ4)

No tocante ao aspecto familiar, observou-se a reação dos familiares das participantes com a notícia da gravidez:

Logo no começo não foi muito boa, não, foi muitas críticas, né? Falava que eu era muito nova pra ter engravidado. Mas também tive ajuda dos povos tudo da minha família, aí foi mais fácil. (MQ3)

Não gostou, né? porque eu era muito nova, né? Falaram que eu era nova, né? que não tinha idade pra ter filho ainda. Mas minha mãe me ajudou também nos primeiros dias depois que meu filho nasceu, né? (MQ4)

Ainda com relação ao apoio familiar, também foi observada a reação dos companheiros das participantes ao descobrirem a gravidez:

Ele ficou do meu lado, veio conversar com minha mãe. Não foi algo fácil de lidar, pois a gente já imagina as dificuldades, mas eu tive esse apoio, tanto emocional como financeiro, pois ele já trabalhava, então pra mim foi fácil quando comparado a várias adolescentes que não têm apoio emocional e nem financeiro. (MQ1)

Ele gostou, ele queria, eu que não gostei muito porque sou eu que cuido, né? Ele só me ajuda um pouquinho. Ajuda só pra dar comida, mas não ajuda a cuidar, tomar conta da criança, aí eu tenho que me virar sozinha. (MQ5)

Quanto ao aspecto social, foram relatadas mudanças sociais diante da nova fase estabelecida:

Parei também de sair com meus amigos pra tudo que é canto, essas coisas, né? porque a gente tem que ter responsabilidade com criança, cuidar dela. (MQ5)

Eu tive que me afastar dos meus amigos, tudo isso gerou um sentimento de angústia. (MQ1)

Descoberta da identidade materna

Nesta categoria, as participantes configuravam o ser mãe enquanto adolescente, principalmente em relação às adaptações e expectativas como a nova fase imposta:

No decorrer da gravidez a gente vai ajustando os planos, né? a gente vai se adaptando, se planejando, né? Então passei a criar novas responsabilidades, adquiri mais responsabilidades, então, após a vinda do meu filho, tive que aprender a ser mãe, aprender a cuidar de uma criança, né? para que ela não viesse a ficar doente tudo por conta dos cuidados que eu tinha que ter até ele completar uma idade e hoje já é mais fácil. (MQ1)

Eu tive que aprender, né? tive que aceitar, não podia fazer nada mesmo. A minha maior dificuldade foi porque eu não sabia cuidar de uma criança, na hora de dar mama a ele foi ruim porque eu não tinha leite. (MQ4)

Discussão

Nas comunidades quilombolas, há sentimentos de etnicidade, empoderamento identitário e pertencimento com o território1818. Salomão FV, Castro CV. The Quilombola Identity: Ethnic Territoriality and Juridical Protection. Cadernos do Programa de Pós Graduação em Direito/UFRGS. 2018;13(1). https://doi.org/10.22456/2317-8558.73034
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, que passam então a ser interpretados como modos de sobrevivência material e simbólica para a identidade quilombola e para sua contínua reafirmação1818. Salomão FV, Castro CV. The Quilombola Identity: Ethnic Territoriality and Juridical Protection. Cadernos do Programa de Pós Graduação em Direito/UFRGS. 2018;13(1). https://doi.org/10.22456/2317-8558.73034
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. Dessa forma, ao narrarem sobre o ser quilombola, as participantes recordaram em suas falas o processo de resistência às diversas formas de opressão que os negros, remanescentes de quilombo, enfrentaram no passado em busca de condições de vida dignas. Atrelados ao pensamento das participantes, muitos estudos referem que os quilombos representaram a mais significativa manifestação de resistência cativa que ocorreu no Brasil, e passaram a ser sinônimo de luta por direitos1919. Fiabani A. Quilombos y Comunidades Remanentes: Resistencia contra la Esclavitud y Afirmación en la Lucha por la Tierra. Rev Estudios Brasileños [Internet]. 2018 [cited 2022 Apr 27];5(10):39-52. Available from: Available from: https://www.academia.edu/38414493/Quilombos_e_comunidades_remanescentes_resist%C3%AAncia_contra_a_escravid%C3%A3o_e_afirma%C3%A7%C3%A3o_na_luta_pela_terra
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As participantes também pontuaram a discriminação racial sofrida e a importância da valorização cultural, visto que, ainda hoje, são alvos de preconceitos relacionados a celebrações da sua cultura. Essa exclusão social é fruto de uma construção histórica baseada na escravização e marginalização dessa população, que por muito tempo não teve acesso a direitos básicos. Alguns grupos étnico-raciais ainda são afetados com a discriminação e têm dificuldades para se inserir na sociedade brasileira2020. Rê E, Siqueira ICVT, Romualdo JR, Valentim JPF, Paes LGRA. Desigualdade Racial no Brasil: Uma Realidade Atual [Internet]. 2021 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://www.politize.com.br/equidade/blogpost/desigualdade-racial-no-brasil/
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- como pode ser constatado pelo maior índice de analfabetismo, violência, fome, dificuldade de acesso aos serviços de saúde, entre outros.

Os povos quilombolas constituem um importante segmento da população que até hoje ainda luta pelo seu lugar de direito na sociedade. Suas questões envolvem o paradoxo do reconhecimento de sua identidade e especificidades; reconhecimento, titulação e posse de suas terras; preservação e valorização de sua cultura; luta contra o racismo e a discriminação racial, entre outros2121. Santos DM. Os Quilombolas e sua Inserção nas Políticas Públicas: Subsídios à Discussão da Política de ATER quilombola. Rev Políticas Públicas. 2017;21(2):1019-43. https://doi.org/10.18764/2178-2865.v21n2p1019-1043
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Ao falar sobre a valorização cultural, uma das participantes ressaltou que a comunidade em questão vem vivenciando um processo de transculturalidade, em que as culturas tradicionais não existem mais. Esse processo acontece devido a alguns grupos adotarem aspectos de várias culturas, formando uma espécie de híbrido ou nova cultura2222. Weissmann L. Multiculturality, transculturality, interculturality. Constr Psicopedag [Internet]. 2018 [cited 2022 Apr 27];26(27):21-36. Available from: Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1415-69542018000100004&lng=pt&nrm=iso
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, ou seja, esse processo implica tanto a perda da identidade cultural da comunidade como a captação de novos fenômenos culturais. Nesse sentido, destaca-se a importância de o profissional de saúde, especialmente o enfermeiro, resgatar as práticas populares de saúde junto à população quilombola, de modo a valorizar os cuidados transgeracionais que são típicos das comunidades tradicionais.

Constatou-se que as participantes consideram a vivência na comunidade quilombola como algo bom, vantajoso, pois, segundo elas, o ambiente não oferece riscos. Ao mesmo tempo, elas definem o ser quilombola como sujeito de direitos ao mencionarem que a comunidade recebe vários benefícios, que são adquiridos por meio da representação local, uma vez que a população apresenta baixo nível socioeconômico e as pessoas retiram seu sustento principalmente da pesca e agricultura.

Foi perceptível também como a presença de um líder quilombola repercute de forma positiva para elas, pois sua atuação permite a conquista de benefícios e direitos para a comunidade. Porém, os depoimentos das participantes traduzem o não protagonismo das mulheres, na medida em que se acomodam frente ao contexto vivido, não revelando perspectivas futuras para além do que lhes é oferecido pela política governamental e/ou local. Desse modo, ressalta-se a necessidade de os profissionais de saúde repensarem suas práticas com vistas à ressignificação da imagem do adolescente e promoção de práticas alternativas e criativas que valorizem o protagonismo juvenil2323. Vieira MF Netto, Deslandes SF. Family Health Strategies to tackle violence involving adolescentes. Ciênc Saúde Coletiva. 2016;21(5):1583-96. https://doi.org/10.1590/1413-81232015215.145420
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No que diz respeito a projetos futuros, não se evidenciam planejamentos por essas mulheres a médio e longo prazo, acrescido do abandono de planos anteriores à gestação. Comparados aos achados de estudo com adolescentes grávidas2424. Miura PO, Tardivo LSLPC, Barrientos DMS, Egry EY, Macedo CM. Adolescence, pregnancy and domestic violence: social conditions and life projects. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 1):e20190111. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0111
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, houve semelhança dos resultados apenas com as meninas que sofreram violências, o que nos leva a associar o contexto histórico do quilombo com a ausência de projetos de vida.

Ao se pensar nos direitos atribuídos aos remanescentes quilombolas, é importante definir políticas públicas que sejam capazes de viabilizar o processo de promoção da equidade social e igualdade de direitos a esse segmento, visto que ainda subsiste um imensurável débito herdado do processo histórico e social que envolve a formação do país, cujas influências até hoje são determinantes das suas condições existenciais2121. Santos DM. Os Quilombolas e sua Inserção nas Políticas Públicas: Subsídios à Discussão da Política de ATER quilombola. Rev Políticas Públicas. 2017;21(2):1019-43. https://doi.org/10.18764/2178-2865.v21n2p1019-1043
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Quanto à participação local, destaca-se que cada quilombo se organiza, em geral, com os terrenos familiares. Enfatiza-se também a organização política e jurídica local dos quilombos, além da possibilidade de acessar programas governamentais ou projetos de financiamentos junto a outras instituições2525. Cardoso LFC. Recognition, disrespect and quilombola political organization in the struggle for territory in Marajó Island. Cronos [Internet]. 2013 [cited 2022 Apr 27];14(2):93-107. Available from Available from https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/download/6088/pdf
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Do ponto de vista político, os profissionais de saúde precisam conhecer as políticas governamentais que subsidiam os quilombos e, ao mesmo tempo, se articular com a representação local de modo a desenvolver uma maior aproximação com essas comunidades.

A gravidez entre adolescentes de comunidades quilombolas repercute em várias mudanças na vida de meninos e meninas e está relacionada a grandes consequências emocionais, educacionais, sociais e econômicas2626. Moraes-Partelli AN, Coelho MP, Freitas PS. Unplanned Pregnancy in Quilombola Communities: Perception of Adolescentes. Texto Contexto Enferm. 2021;30:e20200109. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2020-0109
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. Vale destacar que uma gravidez não planejada ou não desejada pode gerar distintos sentimentos na gestante2727. Cunha ACS, Borges JLF, Ribeiro MES, Savino BAC, Domingos GP, Oliveira CHN. Psychosocial Effects of Pregnancy in Adolescence: A Cross Section Study. J Develop. 2020;6(7):47412-24. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-395
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, tais como insegurança, medo e vergonha, bem como perda de autonomia e maiores riscos de depressão e suicídio. Desse modo, destaca-se que a enfermeira, ao realizar o pré-natal, deve atentar-se para quais sentimentos da adolescente estão envolvidos na gestação, bem como acolhê-la e encaminhá-la para serviços especializados em atenção à saúde mental.

Por outro lado, a gravidez pode ser desejada pelas jovens como via de acesso a um novo estatuto de identidade e de reconhecimento por meio do papel materno2828. Dias ACG, Teixeira MAP. Adolescent Pregnancy: A Look at a Complex Phenomenon. Paidéia. 2010;20(45):123-31. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2010000100015
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. A maternidade, nesses casos, pode ser vista como uma ocupação, um papel que dá sentido à vida da jovem. Na falta de outros projetos de vida ou diante da dificuldade de estabelecer planos alternativos, a gravidez pode ser percebida pela adolescente como uma forma de reconhecer a si mesma, de marcar seu próprio espaço na família e de ser reconhecida nos seus ambientes de convívio2828. Dias ACG, Teixeira MAP. Adolescent Pregnancy: A Look at a Complex Phenomenon. Paidéia. 2010;20(45):123-31. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2010000100015
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Devido a vários elementos sociais, políticos e culturais, a maioria das adolescentes negras, pobres e moradoras das periferias brasileiras geralmente não consegue construir sua respectiva trajetória escolar e profissional para se inserir no mercado de trabalho e garantir, consequentemente, uma independência financeira2929. Santos ES, Conceição IM, Moura PA. Gravidez e Abandono Escolar de Adolescentes Negras: Qual o Papel da Escola da Escola nesse Contexto? Anais [ Internet]. 2017 Jun 29;(10) [cited 2020 Mar 1]. Available from: Available from: https://eventos.set.edu.br/enfope/article/view/5268/1789 . In: 10 ENFOPE, Aracaju, SE. Anais... UNIT, 2017.
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. Portanto, elas também acabam encontrando na gravidez uma perspectiva de autonomia.

As dificuldades que essas mulheres - quando adolescentes grávidas - tiveram para continuar as rotinas de estudo, seja por questões financeiras, falta de apoio familiar ou condições emocionais, evidenciam que a evasão escolar se caracteriza como achado primordial para entender que a maternidade na adolescência afeta diretamente a construção dos projetos de vida. Além disso, a gravidez nessa faixa etária impacta diretamente a perpetuação do ciclo da pobreza e miséria3030. Andrade BG, Assis CA, Lima DC, Neves LF, Silva LA, Fracolli SLA, et al. Apoyo Social y Resiliencia: Una Mirada sobre la Maternidad en la Adolescencia. Acta Paulista Enferm. 2022;35;eAPE03341. https://doi.org/10.37689/acta-ape/2022AO03341
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, pois, para assumir as novas responsabilidades, as adolescentes abandonam os estudos, ingressam no mercado de trabalho despreparadas e em vínculos precários.

Essa repercussão da gravidez na adolescência, não somente em comunidades quilombolas, sinaliza que a atuação dos profissionais de saúde, destacando a enfermagem, deve ser balizada pela intersetorialidade, de modo a garantir que estratégias intersetoriais produzam resultados positivos em relação ao estado de saúde, nível de educação e qualidade de vida de adolescentes, se articulando com a ação de outros setores e profissionais para subsidiar a menor evasão escolar3131. Souza LB, Aragão FBA, Cunha JHS, Fiorati RC. Intersectoral actions in decreasing social inequities faced by children and adolescents. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2021;29:e3427. https://doi.org/10.1590/1518-8345.4162.3427
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Ainda que a gravidez na adolescência se constitua maior dificuldade de enfrentamento para jovens negras e pobres, ela é motivadora do rompimento com as condições socioeconômicas das mães, que vislumbram na formação de ensino superior um possível elemento de transformação socioeconômica3232. Silva JMS. Mães Adolescentes Negras na UFBA: As Intersecções entre Maternidade, Raça, Trabalho e Ensino [Master’s thesis]. Salvador: Universidade Federal da Bahia. 2017 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/27167
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, condição que não está presente somente entre as mulheres quilombolas.

Ficou evidente a preocupação das participantes em relação à condição financeira dos pais ao terem de lidar com a chegada de mais um membro na família, associada à instabilidade do meio de subsistência familiar. Por esse motivo, elas precisam trabalhar para contribuir com a renda familiar e prover suas próprias necessidades e as do(a) filho(a). Nesse contexto, a evasão escolar se apresenta como consequência da gravidez na adolescência3232. Silva JMS. Mães Adolescentes Negras na UFBA: As Intersecções entre Maternidade, Raça, Trabalho e Ensino [Master’s thesis]. Salvador: Universidade Federal da Bahia. 2017 [cited 2022 Apr 27]. Available from: Available from: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/27167
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e acaba reduzindo as chances de essas jovens migrarem para o mercado de trabalho formal. Tal fato repercute no aspecto socioeconômico, evidenciado entre as participantes pela maioria estar em situação de informalidade, como a pesca, limpeza de mariscos e diarista em faxinas.

Além dos sentimentos decorrentes da descoberta da gravidez, as participantes tiveram de lidar com a opinião e aceitação da gravidez pelos pais, que, inicialmente, emitiram críticas, sentimentos de insatisfação e demonstraram preocupação com o futuro de suas filhas.

De modo geral, as adolescentes relatam que no início da gestação, quando revelaram a gravidez para seus pais, não receberam o apoio esperado3333. Andrade LJA, Silva FAB, Sobreira MVS, Sobreira TRS, Fonseca AA, Sá RGO. Analysis of direct actions to pregnant adolescents assisted by the CRAS of a municipality of sertão paraibano. Temas Saúde. 2020;20(3):24-38. https://doi.org/10.29327/213319.20.3-2
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. Entretanto, com o passar do tempo, a gravidez foi aceita pela família, que proporcionou o apoio essencial para que as adolescentes pudessem lidar com a gestação3333. Andrade LJA, Silva FAB, Sobreira MVS, Sobreira TRS, Fonseca AA, Sá RGO. Analysis of direct actions to pregnant adolescents assisted by the CRAS of a municipality of sertão paraibano. Temas Saúde. 2020;20(3):24-38. https://doi.org/10.29327/213319.20.3-2
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. Assim, percebe-se que a figura materna emerge como “porto seguro”, permitindo a adolescente vivenciar o processo de gestar e parir com tranquilidade3434. Matos GC, Soares MR, Escobal APL, Quadro PP, Rodrigues JB. Family support network for pregnancy and childbirth in adolescence: a Moscovian approach. J Nurs Health. 2019;9(1):e199106. https://doi.org/10.15210/jonah.v9i1.12754
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No que diz respeito aos cuidados da criança serem atribuídos à mãe, há também a mudança de comportamento do pai adolescente em relação ao cuidar dos filhos1111. Rezende LC, Caram CS, Caçador BS, Brito MJM. Nurses’ practice in quilombola communities: an interface between cultural and political competence. Rev Bras Enferm. 2020;73(5):e20190433. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0433
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. Durante a gravidez, ele partilha todos os cuidados e, posteriormente, atribui às mulheres a responsabilidade pela educação, criação e cuidado com essas crianças no lar, cabendo ao homem apenas o papel de provedor dos recursos financeiros da família.

Verificou-se que a gravidez reflete alterações no ciclo social das participantes, ao ponto de apresentaram novas condutas, expressando responsabilidade e cuidado devido à chegada do filho, assim como sentimentos de angústia por precisarem se afastar frequentemente do convívio com os amigos.

A primiparidade precoce repercute na vida pessoal, familiar, social e educacional da adolescente, que, ao engravidar, enfrenta inúmeras mudanças no seu cotidiano. Na maior parte dos casos, a gravidez altera sua vida escolar e gera distanciamento do seu grupo de convivência e de seus projetos de vida3535. Resta DG, Marqui AB, Colomé ICS, Jahn AC, Eisen C, Hesler LZ, et al. Maternity in Adolescence: Meanings and Implications. Rev Min Enferm [Internet]. 2010 [cited 2022 Apr 27];14(1):68-74. Available from: Available from: https://cdn.publisher.gn1.link/reme.org.br/pdf/v14n1a10.pdf
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Com relação aos amigos, o apoio social é de extrema importância para aceitação da gravidez, pois, ao se sentir amparada, a adolescente encara a gravidez como um evento positivo. É necessário, portanto, que sejam implementadas estratégias para estimular maior vínculo entre a jovem e seus familiares, parceiro e amigos para que ela se sinta amparada3434. Matos GC, Soares MR, Escobal APL, Quadro PP, Rodrigues JB. Family support network for pregnancy and childbirth in adolescence: a Moscovian approach. J Nurs Health. 2019;9(1):e199106. https://doi.org/10.15210/jonah.v9i1.12754
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A maternidade na adolescência é um período de constantes e intensas mudanças, em que o tornar-se mãe é um desafio3636. Santos SS, Menêses AG, Pinho DLM, Jesus CAC. The theory of attainment of the maternal role in adolescence: a reflection for the practice. Rev Min Enferm. 2020;24:e-1316. https:/doi.org/10.5935/1415-2762.20200053
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, bem como referido pelas participantes. As reflexões tecidas acerca dos conceitos envolvidos no tornar-se mãe nesse período permitiram a compreensão das mudanças em seus diversos âmbitos.

As falas direcionam para uma maternidade que vai se constituindo à medida que se vivencia, pois, de fato, apenas uma das mães revelou o desejo de engravidar. As demais, por viverem uma gravidez inesperada, não estavam previamente preparadas para maternar.

Constatou-se que a descoberta e a vivência da maternidade para as participantes revelaram a criação de novas responsabilidades para nova fase, em que apresentaram, principalmente, precauções para o bem-estar da criança, assim como receios em relação aos cuidados com o recém-nascido. As adolescentes, à medida que vão se adaptando à nova condição de ser mãe, superam as dificuldades iniciais, desenvolvem e solidificam o vínculo, o amor e a cumplicidade com o filho, por meio da vivência ao longo dos dias, fato que mostra sua relação com a criança. É, portanto, de modo gradual que a adolescente constrói sua concepção de mãe, vivendo da sua maneira e com ritmo próprio para desenvolver esse reconhecimento do filho, assumindo suas responsabilidades e passando a se sentir mais segura e confiante quanto à capacidade de ser mãe3434. Matos GC, Soares MR, Escobal APL, Quadro PP, Rodrigues JB. Family support network for pregnancy and childbirth in adolescence: a Moscovian approach. J Nurs Health. 2019;9(1):e199106. https://doi.org/10.15210/jonah.v9i1.12754
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As limitações desta pesquisa relacionam-se à escassez da literatura sobre repercussões da gravidez em adolescentes no contexto da comunidade quilombola, a qual limita a interlocução com outros estudos. Entretanto, esta investigação amplia o acervo teórico acerca da temática e contribui para ampliar o conhecimento dos profissionais de saúde em relação à gravidez na adolescência e para o desenvolvimento de políticas de saúde voltadas aos adolescentes, principalmente aos que estão em situações de maior vulnerabilidade social. Destaca-se o papel da enfermagem no cuidado de adolescentes quilombolas grávidas pela proximidade da enfermeira com a comunidade e pelas possibilidades que o pré-natal abrange.

Conclusão

As repercussões decorrentes da gravidez na adolescência em uma comunidade quilombola desencadearam implicações relacionadas aos aspectos psicológicos e emocionais; questões educacionais, associadas ao grande índice de evasão escolar, o que, consequentemente, diminuiu as oportunidades profissionais; e aspectos socioeconômicos, especialmente porque as adolescentes já estavam em uma condição de vulnerabilidade associada ao contexto de um quilombo. Com relação ao apoio familiar, houve rejeição inicial. No entanto, as adolescentes relataram receber assistência positiva do companheiro. No que tange ao aspecto social, emergiu o distanciamento dos vínculos sociais em virtude das adaptações à nova fase.

A descoberta da identidade materna desvela-se por sentimentos de aceitação da maternidade, inseguranças em relação aos cuidados com a criança, bem como por processos de adaptações que vão se constituindo à medida que a maternidade é vivenciada de fato. Em vista disso, é importante que haja o fortalecimento de políticas de saúde voltadas a esse grupo populacional que objetivem disseminar informações sobre medidas preventivas e educativas, respeitando-se, sobretudo, seus aspectos étnicos, históricos e socioculturais. Assim, destaca-se o papel da enfermagem no desenvolvimento de estratégias intersetoriais de prevenção que possam contribuir, efetivamente, para a promoção da saúde, com intervenções que foquem o protagonismo juvenil, estímulo à elaboração de projetos de vida e sexualidade segura, bem como o acolhimento das adolescentes grávidas no sentido de atender às suas necessidades individuais, destacando-se as particularidades por serem mulheres negras e quilombolas.

References

  • *
    Este artigo refere-se à chamada temática “Saúde dos adolescentes e o papel do enfermeiro”. Editado pela Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. A publicação deste suplemento foi apoiada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Os artigos passaram pelo processo padrão de revisão por pares da revista para suplementos. As opiniões expressas neste suplemento são exclusivas dos autores e não representam as opiniões da OPAS/OMS.

Editado por

Editora Associada: Lucila Castanheira Nascimento

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Aceito
    16 Set 2022
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