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A transição da doença para a sobrevivência: relatos de adolescentes que vivenciaram o câncer

Resumo

Objetivo:

conhecer a transição da doença para a sobrevivência de adolescentes que vivenciaram o câncer.

Método:

estudo de abordagem qualitativa, desenvolvido por meio do referencial teórico Interacionismo Simbólico, realizado com 14 adolescentes sobreviventes de câncer atendidos em um ambulatório de pacientes fora de terapia na cidade de São Paulo (SP). Foram realizadas e gravadas entrevistas individuais e em profundidade e os dados foram analisados e interpretados pelo referencial metodológico da análise temática.

Resultados:

quatro temas foram identificados: voltando para a escola; podendo viver como outros adolescentes; vivendo o agora e buscando um propósito na vida.

Conclusão:

a transição da doença para a sobrevivência do câncer se revelou cheia de inseguranças, dificuldades e desafios. Após a doença, os sobreviventes adquirem novos valores e novas prioridades de vida; uma reconstrução do self; além do sentimento de gratidão a Deus e às pessoas que participaram da trajetória percorrida durante o tratamento.

Descritores:
Adolescente; Sobreviventes de Câncer; Neoplasias; Sobrevivência; Enfermagem Pediátrica; Enfermagem Oncológica

Abstract

Objective:

to understand the transition from disease to survival of adolescents who had experienced cancer.

Method:

qualitative study, developed with the theoretical framework of symbolic interactionism, conducted with 14 adolescent cancer survivors treated at an outpatient clinic after cancer therapy, in the city of São Paulo. Individual in-depth interviews were performed and recorded, and the data were analyzed and interpreted using the methodological framework of the thematic analysis.

Results:

four themes were identified: going back to school, being able to live like other adolescents, living in the present moment, and seeking a purpose in life.

Conclusion:

the transition from disease to cancer survival was full of insecurities, difficulties, and challenges. After the disease, survivors acquire new values and new priorities in life, a reconstruction of the self. They also feel thankful to God and the people who were part of their treatment journey.

Descriptors:
Adolescent; Cancer Survivors; Neoplasms; Survivorship; Pediatric Nursing; Oncology Nursing

Resumen

Objetivo:

conocer la transición entre la enfermedad y la supervivencia de adolescentes que han sufrido cáncer.

Método:

estudio con enfoque cualitativo, desarrollado a través del referencial teórico del Interaccionismo Simbólico, realizado con 14 adolescentes supervivientes de cáncer atendidos en un ambulatorio, sin terapia, de la ciudad de São Paulo (SP). Se realizaron y grabaron entrevistas en profundidad individuales y los datos fueron analizados e interpretados utilizando el marco metodológico de análisis temático.

Resultados:

se identificaron cuatro temas: regreso al colegio; poder vivir como otros adolescentes; viviendo el presente y buscando un propósito en la vida.

Conclusión:

la transición entre la enfermedad y la supervivencia del cáncer se mostró llena de inseguridades, dificultades y desafíos. Después que termina la fase de la enfermedad, los supervivientes adquieren nuevos valores y prioridades en la vida; una reconstrucción del Self; además del sentimiento de gratitud hacia Dios y las personas que participaron del camino recorrido durante el tratamiento.

Descriptores:
Adolescente; Supervivientes de Cáncer; Neoplasias; Supervivencia; Enfermería Pediátrica; Enfermería Oncológica

Destaques:

(1) Sobreviventes de câncer necessitam de acompanhamento a longo prazo.

(2) Profissionais de saúde não estão preparados para assistir aos sobreviventes.

(3) Os adolescentes encaram a sobrevivência como uma nova oportunidade e sentem gratidão.

(4) Os adolescentes buscam sentido na sua sobrevivência.

(5) O planejamento da assistência é importante para auxiliar no período de transição.


Introdução

Até pouco tempo, o câncer era considerado uma doença fatal. Atualmente, ele se tornou uma doença com grandes possibilidades de sobrevivência11. Turcotte LM, Neglia JP, Reulen RC, Ronckers CM, Leewen FE, Morton LM, et al. Risk, Risk Factors, and Surveillance of Subsequent Malignant Neoplasms in Survivors of Childhood Cancer: A Review. J Clin Oncol. 2018;36(21):2145-52. https://doi.org/10.1200/JCO.2017.76.7764
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), (22. Howlader N, Noone AM, Krapcho M, Miller D, Bispo K, Kosary CL, et al. SEER Cancer Statistics Review, 1975-2017 [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Center Institute; 2020 [cited 2022 Mar 21]. Available from: Available from: https://seer.cancer.gov/csr/1975_2017/
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. Os avanços no tratamento do câncer infantil nos últimos 50 anos vêm melhorando significativamente e, com isso, a taxa de sobrevivência aumenta constantemente. Para crianças e adolescentes de 0 a 19 anos houve um aumento de mais de 85% na taxa de sobrevida global para aqueles com diagnóstico de câncer22. Howlader N, Noone AM, Krapcho M, Miller D, Bispo K, Kosary CL, et al. SEER Cancer Statistics Review, 1975-2017 [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Center Institute; 2020 [cited 2022 Mar 21]. Available from: Available from: https://seer.cancer.gov/csr/1975_2017/
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), (33. Miller KD, Nogueira L, Devasia T, Mariotto AB, Yabroff KR, Jemal A, et al. Cancer treatment and survivorship statistics, 2022. CA Cancer J Clin. 2022. https://doi.org/10.3322/caac.21731
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.

O conceito de sobrevivente foi descrito inicialmente por Fitzhugh Mullan, um médico sobrevivente de câncer. Em seu artigo “Seasons of survival”, ele definiu o sobrevivente com uma ideia genérica que se aplica a todos que tiveram o diagnóstico de câncer, independentemente do curso da doença. Para Mullan, a sobrevivência se inicia no momento do diagnóstico, pois nesse instante os pacientes são obrigados a enfrentar sua própria mortalidade e começam a fazer os ajustes necessários para seu futuro44. Mullan F. Seasons of survival: reflections of a physician with cancer. N Engl J Med. 1985;313(4): 270-3. https://doi.org/10.1056/NEJM198507253130421
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. O autor classificou a sobrevivência em três estações: sobrevivência aguda, período após o diagnóstico, em que as energias estão focadas em sobreviver ao tratamento; sobrevivência prolongada, período após o término do tratamento, em que o foco é lidar com as consequências físicas e psicológicas do tratamento; e sobrevivência permanente, período em que acredita-se que a recorrência seja improvável44. Mullan F. Seasons of survival: reflections of a physician with cancer. N Engl J Med. 1985;313(4): 270-3. https://doi.org/10.1056/NEJM198507253130421
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.

O termo sobrevivente, no meio biomédico, se refere aos indivíduos que tiveram uma doença com risco de morte e permanecem livres dela durante período mínimo de cinco anos22. Howlader N, Noone AM, Krapcho M, Miller D, Bispo K, Kosary CL, et al. SEER Cancer Statistics Review, 1975-2017 [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Center Institute; 2020 [cited 2022 Mar 21]. Available from: Available from: https://seer.cancer.gov/csr/1975_2017/
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), (33. Miller KD, Nogueira L, Devasia T, Mariotto AB, Yabroff KR, Jemal A, et al. Cancer treatment and survivorship statistics, 2022. CA Cancer J Clin. 2022. https://doi.org/10.3322/caac.21731
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. Esse é o conceito utilizado neste estudo.

Com o número cada vez maior de sobreviventes de câncer e o aumento das suas necessidades em relação à saúde, o National Cancer Institute (NCI) criou em 1996 o Office of Cancer Survivorship (OCS)55. National Cancer Institute. About Cancer Survivorship Research: Survivorship Definitions [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute; 2020 [cited 2021 Mar 27]. Available from: Available from: https://cancercontrol.cancer.gov/ocs/about/index.html
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, que, em parceria com o National Coalition for Cancer Survivorship (NCCS), elaborou novas diretrizes para o cuidado e pesquisa com sobreviventes de câncer. Por meio do documento “Lost in transition”, as organizações descreveram a sobrevivência do câncer como uma etapa distinta do cuidado do câncer e elaboraram recomendações para profissionais que atuam com os sobreviventes, garantindo que a assistência seja voltada às necessidades dessa população55. National Cancer Institute. About Cancer Survivorship Research: Survivorship Definitions [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute; 2020 [cited 2021 Mar 27]. Available from: Available from: https://cancercontrol.cancer.gov/ocs/about/index.html
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.

Diversas organizações norte-americanas de saúde vêm defendendo a importância dos cuidados de acompanhamento ao longo da vida para os sobreviventes de câncer55. National Cancer Institute. About Cancer Survivorship Research: Survivorship Definitions [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute; 2020 [cited 2021 Mar 27]. Available from: Available from: https://cancercontrol.cancer.gov/ocs/about/index.html
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. Diretrizes de acompanhamento em longo prazo foram estabelecidas pelo Children Oncology Group (COG) com o objetivo de monitorar os efeitos tardios em sobreviventes de câncer na infância55. National Cancer Institute. About Cancer Survivorship Research: Survivorship Definitions [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute; 2020 [cited 2021 Mar 27]. Available from: Available from: https://cancercontrol.cancer.gov/ocs/about/index.html
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), (66. National Cancer Institute. Efeitos tardios do tratamento para câncer infantil (PDQ®) [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute ; 2022 [cited 2022 Jul 21]. Available from: Available from: https://www.cancer.gov/types/childhood-cancers/late-effects-pdq
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. O American College of Surgeons (ACOS) também destacou a relevância do acompanhamento para sobreviventes de câncer em suas normas programáticas, incluindo um plano de cuidados de sobreviventes estruturado por suas instituições credenciadas77. American College of Surgeons. Commission on cancer [Internet]. Chicago, IL: ACS; 2020 [cited 2022 Jul 21]. Available from: Available from: https://www.facs.org/quality-programs/cancer/coc
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.

Sobreviventes de câncer na infância estão suscetíveis aos efeitos tardios do câncer. Trata-se de problemas de saúde que afetam o corpo ou a mente e podem ocorrer meses ou até anos após o término do tratamento do câncer66. National Cancer Institute. Efeitos tardios do tratamento para câncer infantil (PDQ®) [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute ; 2022 [cited 2022 Jul 21]. Available from: Available from: https://www.cancer.gov/types/childhood-cancers/late-effects-pdq
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), (88. Erdmann F, Frederiksen LE, Bonaventure A, Mader L, Hasle H, Robison LL, et al. Childhood cancer: survival, treatment modalities, late effects and improvements over time. Cancer Epid. 2021;71 (part B). https://doi.org/10.1016/j.canep.2020.101733
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. Entre os efeitos tardios podem ocorrer um segundo câncer; doença em órgão e tecidos; doenças de crescimento e desenvolvimento; problemas de aprendizagem e memória; desajuste social e psicológico, além de alterações de humor, sentimentos e comportamento66. National Cancer Institute. Efeitos tardios do tratamento para câncer infantil (PDQ®) [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute ; 2022 [cited 2022 Jul 21]. Available from: Available from: https://www.cancer.gov/types/childhood-cancers/late-effects-pdq
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), (88. Erdmann F, Frederiksen LE, Bonaventure A, Mader L, Hasle H, Robison LL, et al. Childhood cancer: survival, treatment modalities, late effects and improvements over time. Cancer Epid. 2021;71 (part B). https://doi.org/10.1016/j.canep.2020.101733
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.

Os efeitos tardios contribuem para uma alta carga de morbidade entre os sobreviventes de câncer na infância. Entre 60% e 90% desenvolvem uma ou mais condições crônicas de saúde e podem apresentar complicações graves, com risco de morte durante a vida adulta33. Miller KD, Nogueira L, Devasia T, Mariotto AB, Yabroff KR, Jemal A, et al. Cancer treatment and survivorship statistics, 2022. CA Cancer J Clin. 2022. https://doi.org/10.3322/caac.21731
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), (66. National Cancer Institute. Efeitos tardios do tratamento para câncer infantil (PDQ®) [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Institute ; 2022 [cited 2022 Jul 21]. Available from: Available from: https://www.cancer.gov/types/childhood-cancers/late-effects-pdq
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), (99. Norsker FN, Rechnitzer C, Cederkvist L, Holmqvist AS, Tryggvadottir L, Madanat-Harjuoja LM, et al. Somatic late effects in 5-year survivors of neuroblastoma: a population-based cohort study within the Adult Life after Childhood Cancer in Scandinavia study. Int J Cancer. 2018;143(12):3083-96. https://doi.org/10.1002/ijc.31631
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. Tais dados justificam a necessidade de avaliação e acompanhamento a longo prazo dos efeitos físicos e psicossociais persistentes relacionados ao tratamento1010. Andrés-Jensen L, Larsen HB, Johansen C, Frandsen TL, Schmiegelow K, Wahlberg A. Everyday life challenges among adolescent and young adult survivors of childhood acute lymphoblastic leukemia: An indepth qualitative study. Psycho-Oncol. 2020;1-8. https://doi.org/10.1002/pon.5480
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.

No entanto, para um acompanhamento efetivo dos efeitos tardios do câncer, é preciso também compreender e acompanhar o processo de transição, pois uma doença como o câncer tem grande potencial de incerteza que afeta o sobrevivente e sua família. Acompanhar os sobreviventes nessa transição requer estabelecer relação de longa duração entre os serviços de saúde e os adolescentes, com o objetivo de proporcionar um acompanhamento global, direcionado, multidisciplinar e que envolva o sobrevivente e sua família99. Norsker FN, Rechnitzer C, Cederkvist L, Holmqvist AS, Tryggvadottir L, Madanat-Harjuoja LM, et al. Somatic late effects in 5-year survivors of neuroblastoma: a population-based cohort study within the Adult Life after Childhood Cancer in Scandinavia study. Int J Cancer. 2018;143(12):3083-96. https://doi.org/10.1002/ijc.31631
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,1111. Neris RR, Nascimento LC. Childhood cancer survival: emerging reflections on pediatric oncology nursing. Rev Esc Enferm USP. 2021;55:e03761. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2020041803761
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. A compreensão da transição pode instrumentalizar profissionais de saúde para uma abordagem mais completa, focada nas necessidades dos sobreviventes. Atualmente, esforços de reabilitação estão sendo cada vez mais empregados nas enfermarias de oncologia pediátricas para apoiar a transição dos pacientes de volta às rotinas diárias o mais cedo possível com o objetivo de minimizar os danos ocasionados pelo tratamento1010. Andrés-Jensen L, Larsen HB, Johansen C, Frandsen TL, Schmiegelow K, Wahlberg A. Everyday life challenges among adolescent and young adult survivors of childhood acute lymphoblastic leukemia: An indepth qualitative study. Psycho-Oncol. 2020;1-8. https://doi.org/10.1002/pon.5480
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.

Em estudos internacionais, a transição vem sendo discutida como o “turning point”, descrito como um período após o final do tratamento e um ponto antes de se tornar um sobrevivente1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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. O termo é usado para descrever o “ponto de virada” do cuidado após o término do tratamento e o retorno para uma “vida normal”1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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. Neste estudo, o “turning point” é tratado como “a transição da doença para a sobrevivência”, marcado como o momento em que os adolescentes deixam de ser doentes e passam a ser sobreviventes de câncer.

Conhecer a transição da doença para a sobrevivência de adolescentes que tiveram câncer é importante para que esses aspectos possam ser inseridos no planejamento de intervenções específicas do cuidado em saúde direcionado a eles nessa etapa da vida. Diante disso, este estudo teve como objetivo conhecer a transição da doença para a sobrevivência de adolescentes que vivenciaram o câncer.

Método

Delineamento do estudo

Trata-se de um processo interpretativo secundário que buscou responder a uma questão de pesquisa, com objetivo e foco que transcendem o estudo original1313. Heaton J. Secondary analysis of qualitative data: An overview. Historical Social Research/Historische Sozialforschung [Internet]. 2008 [cited 2022 May 5]; 33(3):33-45. Available from: Available from: http://www.jstor.org/stable/20762299
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. Conduzimos esta análise secundária para entender a transição da doença para a sobrevivência dos adolescentes que tiveram câncer. A necessidade de realizar uma análise secundária surgiu a partir de indagações suscitadas na pesquisa original, que teve como objetivo conhecer a experiência de adolescentes sobreviventes de câncer infantil. Procuramos ir além da descrição de como a experiência é apoiada pela equipe e pela família para uma análise interpretativa necessária para descobrir padrões de comportamento humano ou experiência subjetiva1414. Thorne S. Interpretive description: Developing qualitative inquiry. 1. ed. Walnut Creek, CA: Left Coast Press; 2008.. Essa análise permitiu compreender as estratégias utilizadas por adolescentes para enfrentamento dessa transição com o objetivo de sobreviver ao câncer na infância. Essa abordagem sistemática fornece recursos para um olhar mais aprofundado do cotidiano desses adolescentes que vivenciam uma situação extremamente difícil e para buscar estratégias de cuidado voltadas às dificuldades vivenciadas no momento de transição, sem relativizar a sobrevivência1414. Thorne S. Interpretive description: Developing qualitative inquiry. 1. ed. Walnut Creek, CA: Left Coast Press; 2008..

Para esta pesquisa de abordagem qualitativa utilizou-se como referencial teórico o Interacionismo Simbólico. A escolha desse referencial teórico está relacionada à possibilidade de compreender o fenômeno “turning point”, pois utiliza-se do propósito de entender a causa da ação humana e como os indivíduos agem em relação às suas definições e crenças1515. Charon JM. Symbolic interacionism: an introduction, an interpretation, an integration. Hoboken, NJ: Prentice-Hall; 2010.. O sentido do evento “turning point” é atribuído pelos indivíduos por meio das relações estabelecidas durante a convivência social1515. Charon JM. Symbolic interacionism: an introduction, an interpretation, an integration. Hoboken, NJ: Prentice-Hall; 2010..

Cenário

A coleta dos dados no estudo primário ocorreu de março de 2018 a janeiro de 2019, por meio de entrevista individual e única. Participaram do estudo adolescentes sobreviventes de câncer que receberam alta do serviço de oncologia de um hospital público especializado em oncologia pediátrica de São Paulo e permanecem em acompanhamento no ambulatório de pacientes fora de terapia há pelo menos cinco anos, sem nenhum sinal de recorrência da doença. O período de cinco anos vem sendo destacado na literatura como um sinal de cura e sobrevivência22. Howlader N, Noone AM, Krapcho M, Miller D, Bispo K, Kosary CL, et al. SEER Cancer Statistics Review, 1975-2017 [Internet]. Bethesda, MD: National Cancer Center Institute; 2020 [cited 2022 Mar 21]. Available from: Available from: https://seer.cancer.gov/csr/1975_2017/
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), (33. Miller KD, Nogueira L, Devasia T, Mariotto AB, Yabroff KR, Jemal A, et al. Cancer treatment and survivorship statistics, 2022. CA Cancer J Clin. 2022. https://doi.org/10.3322/caac.21731
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.

O ambulatório escolhido como cenário da pesquisa é referência no atendimento de câncer infantil. Os adolescentes atendidos no hospital, ao completarem cinco anos que receberam alta do serviço de oncologia e permanecerem sem sinal da doença, são encaminhados para o ambulatório fora de terapia, onde são acompanhados por uma equipe multidisciplinar.

O recrutamento dos participantes ocorreu por conveniência por meio da agenda diária de consultas do ambulatório, onde a pesquisadora principal abordou os adolescentes enquanto eles aguardavam pela consulta na sala de espera.

Participantes

Participaram do estudo 14 adolescentes de 12 a 22 anos. Dos adolescentes abordados, dois não aceitaram participar do estudo. Os diagnósticos variaram entre: leucemia linfoide aguda (LLA); leucemia mieloide aguda (LMA); neuroblastoma; meduloblastoma; histiocitose de células Langerhans e tumor de Wilms. A Figura 1 apresenta a caracterização dos participantes.

Figura 1
Caracterização dos participantes.

Os critérios de inclusão na pesquisa foram ser adolescentes de 12 a 25 anos, sobreviventes de câncer, atendidos no ambulatório de fora de terapia, residentes na cidade de São Paulo ou na região metropolitana e que estivessem há pelo menos cinco anos sem nenhum sinal da doença. A opção pela faixa etária de 12 a 25 anos justifica-se pela alteração no perfil populacional nos últimos anos1616. Cousijn J, Luijten M, Ewing SWF. Adolescent resilience to addiction: a social plasticity hypothesis. Lancet Child Adolesc Health. 2018;2(1):69-78. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(17)30148-7
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, em que se observa o adiamento da autonomia e da independência dos jovens, assim como da maturidade intelectual. Apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerar a adolescência o período entre 10 e 19 anos1717. Word Health Organization. Adolescent and young adult health [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [cited 2022 May 10]. Available from: Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/adolescents-health-risks-and-solutions
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, autores vêm trabalhando com a faixa etária expandida de 12 a 25 anos1616. Cousijn J, Luijten M, Ewing SWF. Adolescent resilience to addiction: a social plasticity hypothesis. Lancet Child Adolesc Health. 2018;2(1):69-78. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(17)30148-7
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.

Os critérios de exclusão foram: adolescentes com déficit cognitivo, alguma dificuldade de comunicação, deficiência auditiva ou mutismo e adolescentes com outras doenças associadas. Não houve nenhuma exclusão de participantes neste estudo.

Coleta de dados

As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora principal, que utilizou a técnica do Romance Original, um método de entrevista intensiva e em profundidade na qual o entrevistado narra a própria história, podendo entender o relato como uma construção romanesca, uma reconstituição histórica da vida na primeira pessoa do singular1818. Mazorra L. A construção de significados atribuídos à morte de um ente querido e o processo de luto [Dissertation]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2009..

A questão norteadora utilizada foi: conte-me a sua vida como se fosse um livro. Para os adolescentes mais novos foi necessário que a pesquisadora fornecesse orientações que não interferissem no processo de construção da narrativa, como: “conte sua história como você gostaria que sua vida fosse apresentada” e “conte sobre as coisas que aconteceram na sua vida”. As entrevistas tiveram a duração de aproximadamente 50 minutos.

Das entrevistas realizadas, seis foram feitas na sala de espera do ambulatório fora de terapia; seis adolescentes optaram por realizar a entrevista em suas residências; um adolescente optou por realizar a entrevista na universidade onde estuda e uma adolescente optou por um shopping center. Durante as entrevistas, procuramos garantir maior privacidade para os adolescentes.

Foi dada ao participante a possibilidade da permanência do acompanhante durante a entrevista. Sete adolescentes optaram pela presença do acompanhante, sendo que oito estavam acompanhados de suas mães, um adolescente com o pai e a mãe, um participante com a tia, um adolescente com o esposo e um adolescente com uma amiga. Seis participantes realizaram a entrevista sozinhos. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra. Foram feitas anotações imediatamente após as entrevistas para evitar perda e alteração dos dados.

Os participantes foram identificados pela letra inicial maiúscula da palavra adolescente, seguida do número da ordem sequencial da entrevista e pelo gênero do participante.

Análise dos dados

Neste estudo, a análise temática indutiva foi utilizada por ser uma técnica de investigação flexível, na qual pode-se realizar uma rica e detalhada análise dos dados. Realizou-se a análise temática percorrendo seis fases1919. Braun V, Clarke V. Reflecting on reflexive thematic analysis. Qual Res Sport Exerc Health. 2019 Aug 8; 11(4):589-97. https://doi.org/10.1080/2159676X.2019.1628806
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:

(1) Familiarização com os dados, que consistiu na transcrição dos dados, leitura e releitura das entrevistas; (2) codificação inicial, compreendendo a criação dos primeiros códigos para serem agrupados de forma sistemática, confrontando os dados relevantes de cada código; (3) busca por padrões de respostas relacionadas, agrupando os códigos em temas potenciais, reunindo todos os dados relevantes para cada tema potencial; (4) revisão dos temas, com a averiguação da relação existente entre os temas encontrados, os dados e a codificação inicial, gerando um mapa temático de análise; (5) definição e nomeação dos temas, que compreenderam a organização dos dados recolhidos, de acordo com os temas já predefinidos, dando origem à descrição dos resultados; e (6) descrição dos resultados, a fase final da análise e as principais conclusões encontradas. A etapa analítica foi realizada pela autora principal e apresentada para ser discutida com o grupo de pesquisa.

Por fim, quatro temas foram identificados: voltando para a escola; podendo viver como outros adolescentes; vivendo o agora e buscando um propósito na vida.

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética (aprovação número: 68985317.3.0000.5392). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pelo responsável pelo adolescente e pelo pesquisador. O Termo de Assentimento também foi assinado pelo adolescente e pelo pesquisador.

Rigor

A análise rigorosa dos dados desenvolvida pelas pesquisadoras e apoiada pelas narrativas que ilustram os resultados deram credibilidade ao estudo2020. Doyle L, McCabe C, Keogh B, Brady A, McCann M. An overview of the qualitative descriptive design within nursing research. J Res Nurs. 2020 Aug 18;25(5):443-55. https://doi.org/10.1177/1744987119880234
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), (2121. Dodgson JE. Reflexivity in Qualitative Research. J Hum Lact. 2019 May 8;35(2):220-2. https://doi.org/10.1177/0890334419830990
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; a apresentação da caracterização dos participantes indicaram a transferibilidade; os critérios presentes na lista de verificação Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ)2222. Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care [Internet]. 2007 Dec 6 [cited 2020 May 20];19(6):349-57. Available from: Available from: http://intqhc.oxfordjournals.org/content/19/6/349
http://intqhc.oxfordjournals.org/content...
) atribuíram confiabilidade; e a apresentação das limitações e dos aspectos positivos do estudo, além da reflexividade dos pesquisadores, denotaram a confirmabilidade do estudo2020. Doyle L, McCabe C, Keogh B, Brady A, McCann M. An overview of the qualitative descriptive design within nursing research. J Res Nurs. 2020 Aug 18;25(5):443-55. https://doi.org/10.1177/1744987119880234
https://doi.org/10.1177/1744987119880234...
), (2121. Dodgson JE. Reflexivity in Qualitative Research. J Hum Lact. 2019 May 8;35(2):220-2. https://doi.org/10.1177/0890334419830990
https://doi.org/10.1177/0890334419830990...
.

Resultados

O final do tratamento conduziu os adolescentes a uma transição na vida, quando deixaram de ser pacientes com câncer para se tornarem sobreviventes, ou seja, como indivíduos incluídos em um meio social além do contexto da doença. Essa nova etapa exigiu readaptação dos adolescentes à nova fase da vida.

As mudanças após o fim do tratamento iniciam-se com a dificuldade de adaptação escolar, mas, com o tempo, os adolescentes se acostumam com a nova realidade e buscam a normalidade em suas vidas. Eles se percebem como adolescentes normais e se propõem a viver o agora, visando aproveitar a vida e o tempo presente, sem deixar de buscar um propósito na vida.

Voltando para a escola

Retornar para as atividades cotidianas pode ser uma tarefa intimidadora para adolescentes sobreviventes de câncer. Frequentar a escola com os sinais deixados pelo tratamento, como a alopecia, a astenia e outras consequências do tratamento, gera medo e insegurança.

Alguns adolescentes não frequentaram a escola durante o período de tratamento. Temendo a discriminação pelos efeitos colaterais, alguns pais optaram por deixar os filhos fora da escola durante o tratamento do câncer.

Eu tava no pré. Tava no pré e ela [a mãe] não deixou eu ir pra escola, sem o cabelo. Eu não fui. Tanto que eu perdi um ano. (A12, feminino)

Eu fiquei muito tempo atrasada na escola, mas eu ia de vez em quando, e, na época que o meu cabelo estava caindo, teve essa rejeição, na escola. Muitos amigos falavam, zombava, dava risada. Mas é uma fase que a gente passa, né? (A5, feminino)

Após um longo período afastado da escola, o retorno após o término do tratamento se apresentou cheio de incertezas e inseguranças. A aparência física modificada pelos sinais do tratamento ocasionou dificuldade de aceitação das outras crianças, prejudicando o convívio no ambiente escolar.

Ah, no começo era um pouco difícil, né? porque o nosso cabelo cai, e aí tem aquela dificuldade de você ir pra escola. Tem a aceitação das pessoas, de você estar do lado delas, com uma aparência assim, diferente do dia a dia, né? do que a que o ser humano está acostumado, né? (A5, feminino)

Eu ia pra escola de touca, porque o meu cabelo tinha caído. (A1, masculino)

Apesar da dor e do sofrimento, o hospital era um ambiente conhecido por eles, enquanto a escola se tornou um local inóspito, com espaço para bullying devido à condição física resultante do tratamento.

Na escola é que nem de qualquer criança, mas a gente sofre um pouco de bullying […] me chamam de gordo. Eu me sinto triste, mas ignoro e passa. (A3, masculino)

Na escola, os moleques ficam me incomodando, eles ficam me zoando, eles ficam me chamando de cabeçudo. Eu fico me sentindo mal. Me sentindo triste e saio de perto deles. Mas, aí, quando estou aqui [no ambulatório] ninguém consegue me incomodar. (A14, masculino)

A transição do hospital para a nova vida como sobreviventes foi desafiadora para os adolescentes. Em suas narrativas, eles descreveram a segurança que sentiam no ambiente hospitalar e o acolhimento da equipe de saúde e revelaram a dificuldade em conviver com novas pessoas que não conheciam e não se sensibilizaram com sua história de vida. A transição do ambiente hospitalar para a vida escolar causou solidão e desamparo.

Eles dão muito apoio pra gente [a equipe hospitalar], no momento que a gente tá mais caído assim, mais desanimado. Eles vêm, falam pra gente uma palavra positiva; dão uma incentivada; falam experiências de outras pessoas que já passaram por eles e se recuperaram. Entendeu? […] sempre tem alguém lá do seu lado, como os médicos, as enfermeiras, pra apoiar a gente. Colocar a gente pra cima. Mas fora do hospital não é assim. (A11, feminino)

Assim, eu tinha um amor muito grande pelos enfermeiros, médicos, mãe, familiar, e saí pra um mundo que eu não conhecia, um mundo de pessoas estranhas, de pessoas que não entendiam o sofrimento, não entendiam porque não passou. Essa parte foi a mais difícil. As pessoas olharem, talvez com compaixão, isso não teve! Pra mim foi a parte mais difícil. […] dentro do hospital para mim era como se fosse o céu e fora era como se fosse um lugar de monstros. Que eu não tinha paz, sabe? Eu tentava, mas a todo tempo tinha pessoas que queriam me deixar pra baixo, me deixar triste. (A13, feminino)

Podendo viver como outros adolescentes

Com o tempo, a nova realidade foi se modificando e os adolescentes se acostumando com a nova vida como sobreviventes. Foram realizadas as adaptações necessárias para se estabelecer uma rotina normal a qualquer jovem da sua idade.

Podendo viver como outros adolescentes representa o sobrevivente acreditando poder viver da mesma forma que os outros adolescentes que não tiveram câncer, podendo realizar atividades esportivas, trabalhando e estudando como qualquer jovem da sua idade.

Ah, eu acho que hoje minha vida é normal. Sou uma menina normal, igual às outras. Hoje eu sou igual às outras. Não vejo diferença. Sou comum, tudo que as outras meninas fazem, eu também sei fazer. E elas são inteligentes e eu também sou. Não tem nada, assim, ter o câncer pra mim, tipo, não me mudou em nada. Entendeu? Tipo, é como se eu não tivesse nada. Se eu não contar, ninguém sabe […]. (A6, feminino)

Minha vida é supernormal, isso que a gente passou não atrapalha em nada, eu lembro muito pouco. (A8, feminino)

O desejo de ter uma vida comum, como qualquer adolescente com a mesma idade, permeia a vida dos sobreviventes de câncer. Eles almejam deixar a experiência do câncer para trás e que ela não interfira nas atividades do seu dia a dia.

A minha mãe falou que eu estava curado. Teve até uma festinha assim, todo mundo em casa […] aí, podia seguir com a vida normal. (A9, masculino)

Queria viver como os outros vivem, sem nenhuma doença, sem nenhuma preocupação de saúde, de alguma coisa acontecer. Hoje eu vivo como qualquer outra pessoa, eu estudo, eu trabalho [pausa] eu pratico esportes, eu brinco, eu corro, eu pulo. Eu faço tudo que qualquer outra pessoa faz. A doença não interferiu em nada. (A10, masculino)

Querendo viver o agora

O desejo de deixar o câncer no passado, de viver a vida sem pensar ou sem permitir que a doença vivenciada possa privá-los de algo ou lhes tornem diferentes de seus amigos ou familiares são atributos dos adolescentes na transição. O sobrevivente conduz sua vida tentando vivê-la da melhor forma possível, mantendo-se preocupado em aproveitar e valorizar cada dia.

Querer viver o agora é a estratégia de continuar sua trajetória, sem permitir que o câncer os defina ou interfira na vida que levam, querendo viver um dia de cada vez, sem a presença constante do passado.

[…] eu acho que, assim, se a gente pensar tanto, muito no futuro ou muito no passado, acho que não tem necessidade… sabe, tem que viver o agora, até porque você não sabe se você vai estar aqui amanhã, então eu vivo agora. (A7, feminino)

Eu não penso em nada. Eu simplesmente, vivo a minha vida. […] Eu simplesmente sigo. Tanto que eu até esqueço que eu tive. Porque no meu dia a dia não interfere isso, a não ser quando eu vou no médico… E se eu ficar doente de novo, se acontecer alguma coisa, eu não quero saber, porque [pausa], talvez, eu não cure. Então, por que eu vou querer saber? (A12, feminino)

Os adolescentes revelam um olhar diferente para a vida após vivenciarem o câncer. Eles demonstram uma enorme vontade de viver e viver bem, sem se preocupar com a aprovação das outras pessoas ou com a preocupação da incerteza do futuro.

Acho que eu sou um adolescente meio que do contra, que prefere mais ficar com os amigos, tipo, praticando um esporte, que é uma coisa saudável, do que ir para uma festa beber, como os moleques de hoje em dia fazem. (A2, masculino)

Acho que qualquer doença, como o câncer, ela ensina muito a gente […]. A gente acaba ficando com uma essência diferente. Todas as crianças que estão lá, elas são diferentes, porque todos nós que passamos por algo grave de doença. Mas temos algo em comum, somos iguais em relação a como a gente vai levar a vida daqui pra frente. (A13, feminino)

Buscando um propósito na vida

A busca por um sentido ou significado na vida ocupa um espaço de grande importância na vida dos adolescentes sobreviventes de câncer. Eles se sentem gratos a Deus e atribuem a cura a um desígnio divino. Os adolescentes acreditam que tiveram uma segunda oportunidade e buscam um propósito para estarem vivos.

Eu penso que se eu passei por isso é porque em algum momento Deus sabia que eu ia sair dessa, eu ia levar aprendizado pra alguém e ia crescer muito bem, passando por tudo que passei. É a segunda chance que Deus me deu. […] Eu sempre entendi que se aconteceu tudo isso, tem algum propósito. Eu não sobrevivi por nada. Sou grata por isso! (A13, feminino)

Minha mãe conta que muita gente tem câncer e que foi um milagre de Deus eu ter me livrado dessa doença. (A3, masculino)

Tem que ser forte, né? Não desistir, nunca desistir, perseguir naquilo que quer, né? Que Deus tem um propósito pra todos… tem que pensar positivo, né? Pra mim, eu sou uma vencedora! (A6, feminino)

A busca do sentido da vida se comprova pela intenção de ajudar pessoas doentes, revelada pelos adolescentes, que acreditam poder replicar todo o cuidado recebido. Eles demonstram a tendência de realizar cursos na área da saúde ou serviços de voluntariado, sempre visando ajudar o próximo.

Penso em poder ajudar as pessoas, as crianças. Como os médicos que me curaram, eu quero ser igual a eles também, que trata de câncer […] Como os médicos puderam me ajudar, eu gostaria de poder ajudar alguém, fazer a pessoa não morrer, né? (A10, masculino)

Se eu conseguir juntar eles [a família], porque eu acho que é a minha missão, seria daora, né? Ajudar todo mundo. (A4, masculino)

Ah, eu acho que sou diferente no meu jeito de ser com as pessoas, de tratar as pessoas bem, de sempre falar as coisas na cara, de ser sincero, você tem que ser sincero com as pessoas. (A2, masculino)

Discussão

Uma doença como o câncer impõe inúmeras alterações na vida de quem passa por essa experiência. À medida que o tratamento é finalizado, faz-se necessário o retorno às atividades do dia a dia como a reintegração escolar e outras atividades sociais. Retornar ao cotidiano pode não ser tarefa fácil para os sobreviventes de câncer, uma vez que o isolamento e a solidão são comuns nesse período1010. Andrés-Jensen L, Larsen HB, Johansen C, Frandsen TL, Schmiegelow K, Wahlberg A. Everyday life challenges among adolescent and young adult survivors of childhood acute lymphoblastic leukemia: An indepth qualitative study. Psycho-Oncol. 2020;1-8. https://doi.org/10.1002/pon.5480
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), (2323. Lea S, Martins A, Fern LA, Bassett M, Cable M, Doig G, et al. The support and information needs of adolescents and young adults with cancer when active treatment ends. BMC Cancer. 2020 Jul 28;20:697. https://doi.org/10.1186/s12885-020-07197-2
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.

Adolescentes sobreviventes de câncer enfrentam uma série de desafios pessoais após o término do tratamento: se sentem emocionalmente instáveis, desconectados socialmente e cansados fisicamente. Além disso, eles se incomodam com a falta de empatia por seus pares1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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, condição que também foi enfrentada pelos participantes deste estudo.

A fase de ausência do meio social, principalmente na escola, pode criar atrasos significativos nas metas de vida desses adolescentes sobreviventes de câncer. As sequelas físicas e sociais do tratamento do câncer que se manifestam nessa fase podem impactar significativamente o bem-estar2424. Kim Y, Ritt-Olson A, Tobin J, Haydon M, Milan J. Beyond depression: correlates of well-being in young adult survivors of childhood cancers. J Cancer Surviv. 2022 Feb. https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186-z
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. Abordagens ou atitudes inadequadas de outras pessoas, tanto no ambiente escolar como no familiar, podem interferir em suas perspectivas, contribuindo para piorar a qualidade de vida e causar sofrimento2323. Lea S, Martins A, Fern LA, Bassett M, Cable M, Doig G, et al. The support and information needs of adolescents and young adults with cancer when active treatment ends. BMC Cancer. 2020 Jul 28;20:697. https://doi.org/10.1186/s12885-020-07197-2
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), (2424. Kim Y, Ritt-Olson A, Tobin J, Haydon M, Milan J. Beyond depression: correlates of well-being in young adult survivors of childhood cancers. J Cancer Surviv. 2022 Feb. https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186-z
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), (2525. Braga TR, Mattos CX, Cabral IE. Participatory health education on school (re)inclusion of the adolescent cancer survivor. Rev Bras Enferm. 2021 Mar 24;74(1):e20200006. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0006
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), (2626. Yamasaki F. Adolescent and young adult brain tumors: current topics and review. Int J Clin Oncol . 2022;27(3):457-64. https://doi.org/10.1007/s10147-021-02084-7
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, transformando o retorno à escola em um obstáculo.

Entre as dificuldades encontradas no retorno às atividades escolares, se destaca o convívio com outros adolescentes. O apoio de colegas e professores é muito importante nesse processo de reinserção escolar, no entanto, as mudanças na aparência podem resultar em desmotivação, ansiedade e negatividade2626. Yamasaki F. Adolescent and young adult brain tumors: current topics and review. Int J Clin Oncol . 2022;27(3):457-64. https://doi.org/10.1007/s10147-021-02084-7
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, levando ao afastamento social2525. Braga TR, Mattos CX, Cabral IE. Participatory health education on school (re)inclusion of the adolescent cancer survivor. Rev Bras Enferm. 2021 Mar 24;74(1):e20200006. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0006
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.

Poder retornar à escola é um componente importante do período de sobrevivência, está associado a uma melhor qualidade de vida e representa a retomada da “vida normal”. Adolescentes e adultos jovens sobreviventes de câncer2727. Psihogios AM, Schwartz LA, Deatrick JA, Hoeve ESV, Anderson LM, Wartmsn EC, et al. Preferences for cancer survivorship care among adolescents and young adults who experienced healthcare transitions and their parents. J Cancer Surviv . 2019;13(4):620-31. https://doi.org/10.1007/s11764-019-00781-x
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atribuem grande valor a viver “como todos os outros”, buscando se concentrar no seu bem-estar e tentando se afastar de preocupações futuras2626. Yamasaki F. Adolescent and young adult brain tumors: current topics and review. Int J Clin Oncol . 2022;27(3):457-64. https://doi.org/10.1007/s10147-021-02084-7
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), (2727. Psihogios AM, Schwartz LA, Deatrick JA, Hoeve ESV, Anderson LM, Wartmsn EC, et al. Preferences for cancer survivorship care among adolescents and young adults who experienced healthcare transitions and their parents. J Cancer Surviv . 2019;13(4):620-31. https://doi.org/10.1007/s11764-019-00781-x
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), (2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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), (2929. Darabos K, Ford JS. “Basically, You Had Cancer and Now You Don’t”: Exploring the Meaning of Being a “Cancer Survivor” Among Adolescents and Young Adult Cancer Survivors. J Adolesc Young Adult Oncol. 2020 Aug;9(4):534-9. https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176
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. Suas percepções sobre uma vida normal estão pautadas no bom convívio social, construção de bons relacionamentos, prática de esportes, sair com amigos, frequentar a escola. Essas atividades são consideradas pelos adolescentes como parte do crescimento positivo e saudável.

Viver com a sensação de normalidade, de algo culturalmente aceitável pela sociedade, relacionado a se sentir inteiro e capaz de estabelecer metas e ter um propósito de vida, isso faz parte de uma vida equilibrada. Para o sobrevivente de câncer, é necessário o preparo para se alcançar esse equilíbrio.

Grande parte dos sobreviventes aprendeu ao longo do tempo que, ao envelhecer ou entrar em uma nova fase de suas vidas, eles continuamente se deparavam com situações que os confrontavam novamente com as consequências de sua experiência com o câncer2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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.

A possibilidade do aparecimento de novos sintomas e a incerteza do futuro são estressores que podem desencadear emoções negativas2929. Darabos K, Ford JS. “Basically, You Had Cancer and Now You Don’t”: Exploring the Meaning of Being a “Cancer Survivor” Among Adolescents and Young Adult Cancer Survivors. J Adolesc Young Adult Oncol. 2020 Aug;9(4):534-9. https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176
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. Sentimentos de incerteza durante o período de transição para a sobrevivência são multifatoriais, envolvem não somente fatores médicos, mas sociais e pessoais. Eles podem não estar limitados à doença em si, ao medo da recorrência e aos efeitos tardios, mas a demandas psicossociais sobre o que esperar ao retornar a vida após o tratamento1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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), (2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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.

Programas de acompanhamento contínuo são necessários para monitorar os possíveis efeitos tardios, oferecer apoio emocional, educação em saúde e buscar melhorias na qualidade de vida desses adolescentes sobreviventes de câncer1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
https://doi.org/10.1097/ANS.000000000000...
), (2929. Darabos K, Ford JS. “Basically, You Had Cancer and Now You Don’t”: Exploring the Meaning of Being a “Cancer Survivor” Among Adolescents and Young Adult Cancer Survivors. J Adolesc Young Adult Oncol. 2020 Aug;9(4):534-9. https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176
https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176...
), (3030. Denzler S, Otth M, Scheinemann K. Aftercare of Childhood Cancer Survivors in Switzerland: Protocol for a Prospective Multicenter Observational Study. JMIR Res Protoc. 2020 Aug 26;9(8):e18898. https://doi.org/10.2196/18898
https://doi.org/10.2196/18898...
), (3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
https://doi.org/10.1097/ncc.000000000000...
), (3232. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, VanHecke A, Verhaeghe S. Coping Strategies of Adolescent and Young Adult Survivors of Childhood Cancer: A Qualitative Study. Cancer Nurs . 2021 Dec 01;44(6):e395-e403. https://doi.org/10.1097/NCC.0000000000000865
https://doi.org/10.1097/NCC.000000000000...
), (3333. Jin Z, Griffith MA, Rosenthal AC. Identifying and Meeting the Needs of Adolescents and Young Adults with Cancer. Curr Oncol Rep. 2021;23(2):17. https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011-9
https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011...
), (3434. Ho L, Li WHC, Cheng AT, Ho E, Lam K, Chiu SY, et al. Relationships among hope, psychological well-being and health-related quality of life in childhood cancer survivors. J Health Psychol. 2021 Sep;26(10):1528-37. https://doi.org/10.1177/1359105319882742
https://doi.org/10.1177/1359105319882742...
. Modelos de gestão de atendimento a sobreviventes de câncer estão sendo desenvolvidos por todo o mundo. Eles visam manejar as consequências do tratamento e auxiliar os sobreviventes nas adaptações necessárias no período de transição da doença para a cura1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
https://doi.org/10.1097/ANS.000000000000...
), (2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.0...
), (2929. Darabos K, Ford JS. “Basically, You Had Cancer and Now You Don’t”: Exploring the Meaning of Being a “Cancer Survivor” Among Adolescents and Young Adult Cancer Survivors. J Adolesc Young Adult Oncol. 2020 Aug;9(4):534-9. https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176
https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176...
), (3030. Denzler S, Otth M, Scheinemann K. Aftercare of Childhood Cancer Survivors in Switzerland: Protocol for a Prospective Multicenter Observational Study. JMIR Res Protoc. 2020 Aug 26;9(8):e18898. https://doi.org/10.2196/18898
https://doi.org/10.2196/18898...
), (3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
https://doi.org/10.1097/ncc.000000000000...
), (3232. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, VanHecke A, Verhaeghe S. Coping Strategies of Adolescent and Young Adult Survivors of Childhood Cancer: A Qualitative Study. Cancer Nurs . 2021 Dec 01;44(6):e395-e403. https://doi.org/10.1097/NCC.0000000000000865
https://doi.org/10.1097/NCC.000000000000...
), (3333. Jin Z, Griffith MA, Rosenthal AC. Identifying and Meeting the Needs of Adolescents and Young Adults with Cancer. Curr Oncol Rep. 2021;23(2):17. https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011-9
https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011...
), (3434. Ho L, Li WHC, Cheng AT, Ho E, Lam K, Chiu SY, et al. Relationships among hope, psychological well-being and health-related quality of life in childhood cancer survivors. J Health Psychol. 2021 Sep;26(10):1528-37. https://doi.org/10.1177/1359105319882742
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Profissionais de saúde e pacientes precisam estar preparados para a transição entre ser um doente de câncer e um sobrevivente1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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), (2424. Kim Y, Ritt-Olson A, Tobin J, Haydon M, Milan J. Beyond depression: correlates of well-being in young adult survivors of childhood cancers. J Cancer Surviv. 2022 Feb. https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186-z
https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186...
. Manter a saúde psicossocial e o bem-estar psicológico dos sobreviventes é tarefa a ser compreendida e desenvolvida por profissionais de saúde. Enfermeiros são peças fundamentais para o apoio aos sobreviventes no período de transição, para que as principais demandas e anseios dos sobreviventes nesse momento sejam compreendidas1111. Neris RR, Nascimento LC. Childhood cancer survival: emerging reflections on pediatric oncology nursing. Rev Esc Enferm USP. 2021;55:e03761. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2020041803761
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.

Com o fim do tratamento, a gestão do cuidado deixa de ser focada na doença para ser focada no bem-estar. O cuidado da sobrevivência do câncer se concentra na gestão de comorbidades, prevenção da recorrência do câncer, câncer secundário e promoção da qualidade de vida1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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. A orientação e educação dos sobreviventes e suas famílias durante o período de transição se baseiam em proporcionar acesso a recursos, apoio para uma mudança de comportamentos relacionados à saúde, sempre com objetivo de atingir um estado de bem-estar1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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O período de transição abordado em estudos internacionais como “turning point “ pode ser descrito como um momento de retorno a uma “vida normal”, como um reingresso ao cuidado habitual com um provedor de atenção primária ou mudança de cuidados focados na doença e reentrada para cuidados focados no bem-estar ou recuperação, um retorno à saúde normal1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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A compreensão do “turning point” pode ser utilizada para reconhecer retratos em evolução do self e identificar alterações de identidade dos adolescentes, sobretudo entre os sobreviventes jovens, que podem, como parte do processo de entrar na idade adulta, se identificar com outras identidades3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
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.

A transição para os cuidados pós-tratamento pode ser mais difícil do que se espera, alguns adolescentes tentam processar a experiência do câncer e encontrar uma “nova identidade”3333. Jin Z, Griffith MA, Rosenthal AC. Identifying and Meeting the Needs of Adolescents and Young Adults with Cancer. Curr Oncol Rep. 2021;23(2):17. https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011-9
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. Fatores como os desafios físicos e psicossociais associados aos sintomas contínuos relacionados ao câncer ou ao tratamento levam os adolescentes sobreviventes à busca da reconstrução do self3333. Jin Z, Griffith MA, Rosenthal AC. Identifying and Meeting the Needs of Adolescents and Young Adults with Cancer. Curr Oncol Rep. 2021;23(2):17. https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011-9
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. O sobrevivente pode buscar a alteração de identidade pela necessidade de bem-estar psicológico e melhora da autoestima3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
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O câncer infantil é uma experiência que está intimamente associada a um processo de construção ou reconstrução de identidade2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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), (2929. Darabos K, Ford JS. “Basically, You Had Cancer and Now You Don’t”: Exploring the Meaning of Being a “Cancer Survivor” Among Adolescents and Young Adult Cancer Survivors. J Adolesc Young Adult Oncol. 2020 Aug;9(4):534-9. https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176
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. A identidade relacionada ao passado pode refletir uma luta, um paradoxo de identidade, entre não desejar que o câncer defina sua vida atual e formar uma identidade presente, que inclui refletir e honrar sua experiência de câncer ao mesmo tempo que busca se separar dessa experiência, levando o sobrevivente para a vida pós-câncer2929. Darabos K, Ford JS. “Basically, You Had Cancer and Now You Don’t”: Exploring the Meaning of Being a “Cancer Survivor” Among Adolescents and Young Adult Cancer Survivors. J Adolesc Young Adult Oncol. 2020 Aug;9(4):534-9. https://doi.org/10.1089/jayao.2019.0176
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.

É fato que um sobrevivente de câncer na infância tem sua identidade alterada durante o percurso da doença. Os adolescentes, apesar de acreditarem que não são representados pela doença, sabem que o câncer teve grande importância em suas vidas3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
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. Eles conseguem perceber que as rupturas biográficas do câncer mudaram ao longo do tempo, passando de uma necessidade de autoproteção, de não serem destruídos pela doença, para definirem seu câncer como uma integração parcial em seu senso de si.

Após a conclusão do tratamento, à medida que os pacientes reingressam na vida, a autoidentidade vai sendo reformada, reintegrada e renegociada às vezes como sobrevivente, vítima ou apenas uma pessoa que teve câncer. Esse momento de reformar a identidade é recuperar a capacidade de ver a si mesmo além do câncer1212. Wood SK. Transition to cancer survivorship: a concept analysis. ANS Adv Nurs Sci. 2018 Apr/Jun;41(2):145-60. https://doi.org/10.1097/ANS.0000000000000190
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Os sobreviventes adquiriram uma forma mais flexível e otimista de pensar. Esses comportamentos são atribuídos à vivência do câncer e são descritos na literatura como traços de crescimento pessoal e maturidade2424. Kim Y, Ritt-Olson A, Tobin J, Haydon M, Milan J. Beyond depression: correlates of well-being in young adult survivors of childhood cancers. J Cancer Surviv. 2022 Feb. https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186-z
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Sobreviventes de câncer na infância revelam alto índice de satisfação com suas vidas atuais2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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), (3535. Datillo TM, Olshefsky RS, Nahata L, Hansen-Moore JA, Gerhardt CA, Lehmann V. Growing up after childhood cancer: maturity and life satisfaction in young adulthood. Sup Care Cancer. 2021;29:6661-8. https://doi.org/10.1007/s00520-021-06260-3
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, e essa satisfação pode estar relacionada à forma de se identificar como adultos2424. Kim Y, Ritt-Olson A, Tobin J, Haydon M, Milan J. Beyond depression: correlates of well-being in young adult survivors of childhood cancers. J Cancer Surviv. 2022 Feb. https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186-z
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. A promoção da habilidade de alcançar um senso de vida adulta pode ser impactante entre adolescentes sobreviventes de câncer que lutam para encontrar a normalidade em suas vidas. Consequentemente, isso pode auxiliá-los a lidar com as consequências da experiência do câncer2424. Kim Y, Ritt-Olson A, Tobin J, Haydon M, Milan J. Beyond depression: correlates of well-being in young adult survivors of childhood cancers. J Cancer Surviv. 2022 Feb. https://doi.org/10.1007/s11764-022-01186-z
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A gratidão a Deus também tem importante destaque nos relatos dos adolescentes, que revelam ter tido uma segunda oportunidade, um presente divino ou uma benção. Os adolescentes acreditam que alcançaram a cura por um propósito divino e carregam a alta percepção de esperança de vida3636. Nilsen M, Stalsberg R, Sand K, Haugan G, Reidunsdatter RJ. Meaning Making for Psychological Adjustment and Quality of Life in Older Long-Term Breast Cancer Survivors. Front Psychol. 2021 Sep;12:734198. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.734198
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. Relatos similares foram descritos em um estudo realizado com a população indígena no Canadá, em que os sobreviventes atribuíram a cura a um presente, um plano do Criador ou parte de uma jornada espiritual3737. Gifford W, Thomas O, Thomas R, Grandpierre V, Ukagwu C. Spirituality in cancer survivorship with First Nations people in Canada. Sup Care Cancer. 2019 Dec;27:2969-76. https://doi.org/10.1007/s00520-018-4609-z
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A percepção de esperança entre os sobreviventes de câncer infantil foi correlacionada com bem-estar psicológico e qualidade de vida em uma pesquisa realizada em Hong Kong. No estudo, constatou-se que níveis mais baixos de esperança estão associados a sintomas depressivos e baixa autoestima3333. Jin Z, Griffith MA, Rosenthal AC. Identifying and Meeting the Needs of Adolescents and Young Adults with Cancer. Curr Oncol Rep. 2021;23(2):17. https://doi.org/10.1007/s11912-020-01011-9
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. A crença na vontade divina e a busca de um propósito se tornam fatores motivadores para os adolescentes, minimizando os efeitos negativos relacionados à sobrevivência.

Na população geral, o bem-estar espiritual está relacionado à presença de propósito ou significado na vida e tem sido associado com a diminuição da ansiedade e com outros benefícios à saúde, como a melhora da memória, menor risco de incapacidade e menor mortalidade3838. Sleight AG, Boyd P, Klein WMP, Jensen RE. Spiritual peace and life meaning may buffer the effect of anxiety on physical well-being in newly diagnosed cancer survivors. Psychooncology. 2021 Jan;30(1):52-8. https://doi.org/10.1002/pon.5533
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. Assim, o sobrevivente de câncer com maior senso de significado também está associado à melhor qualidade de vida, melhor bem-estar físico, emocional e equilíbrio mental3838. Sleight AG, Boyd P, Klein WMP, Jensen RE. Spiritual peace and life meaning may buffer the effect of anxiety on physical well-being in newly diagnosed cancer survivors. Psychooncology. 2021 Jan;30(1):52-8. https://doi.org/10.1002/pon.5533
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.

A literatura revela que algumas pessoas encontram mais significado em suas vidas depois da experiência do câncer3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
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), (3636. Nilsen M, Stalsberg R, Sand K, Haugan G, Reidunsdatter RJ. Meaning Making for Psychological Adjustment and Quality of Life in Older Long-Term Breast Cancer Survivors. Front Psychol. 2021 Sep;12:734198. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.734198
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), (3737. Gifford W, Thomas O, Thomas R, Grandpierre V, Ukagwu C. Spirituality in cancer survivorship with First Nations people in Canada. Sup Care Cancer. 2019 Dec;27:2969-76. https://doi.org/10.1007/s00520-018-4609-z
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), (3838. Sleight AG, Boyd P, Klein WMP, Jensen RE. Spiritual peace and life meaning may buffer the effect of anxiety on physical well-being in newly diagnosed cancer survivors. Psychooncology. 2021 Jan;30(1):52-8. https://doi.org/10.1002/pon.5533
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), (3939. Krok D, Telka E. Meaning in life in cancer patients: relationships with illness perception and global meaning changes. Health Psyc Report. 2018;6(2):172-82. https://doi.org/10.5114/hpr.2018.71636
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. Busca-se o sentido existencial, integrando as mudanças, criando um novo eu no processo de tornar-se sobrevivente do câncer. Essa busca por significado de vida ou processo de criação de significado está ligada ao bem-estar psicológico. Pacientes podem desenvolver o chamado “sofrimento existencial do câncer” como a “busca por sentido” após passarem por uma doença como o câncer3636. Nilsen M, Stalsberg R, Sand K, Haugan G, Reidunsdatter RJ. Meaning Making for Psychological Adjustment and Quality of Life in Older Long-Term Breast Cancer Survivors. Front Psychol. 2021 Sep;12:734198. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.734198
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), (3737. Gifford W, Thomas O, Thomas R, Grandpierre V, Ukagwu C. Spirituality in cancer survivorship with First Nations people in Canada. Sup Care Cancer. 2019 Dec;27:2969-76. https://doi.org/10.1007/s00520-018-4609-z
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), (3838. Sleight AG, Boyd P, Klein WMP, Jensen RE. Spiritual peace and life meaning may buffer the effect of anxiety on physical well-being in newly diagnosed cancer survivors. Psychooncology. 2021 Jan;30(1):52-8. https://doi.org/10.1002/pon.5533
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), (3939. Krok D, Telka E. Meaning in life in cancer patients: relationships with illness perception and global meaning changes. Health Psyc Report. 2018;6(2):172-82. https://doi.org/10.5114/hpr.2018.71636
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. No entanto, esse processo só é benéfico quando o significado é encontrado, enquanto uma busca sem encontrar sentido pode refletir negativamente no bem-estar do sobrevivente3939. Krok D, Telka E. Meaning in life in cancer patients: relationships with illness perception and global meaning changes. Health Psyc Report. 2018;6(2):172-82. https://doi.org/10.5114/hpr.2018.71636
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A busca de significado pode alcançar vertentes de altruísmo. Os adolescentes apresentam tendências a trabalhos voluntários e relações de ajuda a outras pessoas doentes, revelam também a vontade de realizar cursos na área da saúde, com o objetivo de ajudar pacientes com câncer. Jovens que vivenciam o câncer propendem a optar por cursos universitários na área da saúde sugestionados pelas suas experiências2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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. Alguns sobreviventes aderiram à defesa de causas como tumores cerebrais, câncer de pulmão, outros se envolveram na luta por políticas e práticas de cuidados para melhorar a visibilidade e a compreensão dos pacientes e sobreviventes de câncer3131. Hammond C, Teucher U. An abundance of selves: young adults’ narrative identities while living with cancer. Cancer Nurs. 2017 Jan/Feb;40(1):58-65. https://doi.org/10.1097/ncc.0000000000000344
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Os sobreviventes buscam viver o presente, aproveitando o que a vida lhes proporciona. Os adolescentes demonstraram maior valorização da vida, o câncer se tornou um fator de estímulo à espiritualidade e de aspectos existenciais do funcionamento humano. Acredita-se que isso aconteça pela associação direta do câncer com a morte, resultando em sensação de proximidade com a finitude e na crença de uma nova oportunidade de vida.

Encarando a vida como uma nova segunda chance, os adolescentes tentam viver sem pensar no futuro, vivendo o dia a dia, sem se preocupar com acontecimentos que possam fugir do seu controle. Isso se torna uma alternativa para lidar com as incertezas da vida com menor sofrimento2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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Adolescentes sobreviventes do câncer adquirem, após a doença, novas prioridades na vida, novos valores e novas filosofias da vida. A experiência do câncer lhes permitiu compreender o valor inestimável da vida2828. Belpame N, Kars MC, Deslypere E, Rober P, Hecke AV, Verhaeghe S. Living as a Cancer Survivor: A Qualitative Study on the Experiences of Belgian Adolescents and Young Adults (AYAs) after Childhood Cancer. J Ped Nurs. 2019;49:e29-e35. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2019.07.015
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, a vivência do câncer infantil os fez entender a importância das novas oportunidades e experimentarem o sentimento da gratidão, motivando-os na busca de uma vida mais significativa e com objetivos claros3636. Nilsen M, Stalsberg R, Sand K, Haugan G, Reidunsdatter RJ. Meaning Making for Psychological Adjustment and Quality of Life in Older Long-Term Breast Cancer Survivors. Front Psychol. 2021 Sep;12:734198. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.734198
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O estudo contribui para a ampliação do conhecimento sobre a experiência do adolescente que está vivenciando a transição do fim do tratamento para a cura, tema ainda pouco explorado na realidade brasileira. Confirma-se a importância de expandir os programas destinados aos sobreviventes, os quais devem se articular com os serviços hospitalares e as ações comunitárias, a fim de melhorar o bem-estar e a qualidade de vida dessa população.

Apontamos como limitação deste estudo a coleta de dados ter sido realizada apenas em um serviço de saúde de tratamento de câncer na capital de São Paulo. Vemos a necessidade da realização de outros estudos, abordando a experiência de adolescentes e jovens que passaram pelo tratamento de câncer em diferentes centros de saúde e em diferentes cidades.

Conclusão

Este estudo possibilitou compreendermos a transição vivenciada por adolescentes sobreviventes de câncer, assim como as muitas dificuldades enfrentadas na transição da vida como doentes de câncer e sobreviventes. A vida após o câncer se mostrou cheia de inseguranças, dificuldades e desafios.

Esta pesquisa nos permitiu adentrar esse universo da vivência após a cura de uma doença tão significativa e nos revelou uma série de ferramentas e estratégias que esses adolescentes utilizam para se fortalecer e se reconhecer enquanto indivíduos.

Após a doença, os adolescentes adquiriram novas prioridades e novos valores de vida. A experiência vivida também os levou a uma maturidade precoce, desenvolvendo o sentimento de gratidão a Deus e à família. Para eles, há um propósito para sua sobrevivência, que os leva a serem mais altruístas e a buscarem viver bem por acreditarem ter uma segunda chance.

O desenvolvimento de ações e programas de saúde direcionados ao acompanhamento desses adolescentes sobreviventes de câncer é fundamental devido ao aumento do número de sobreviventes em todo o mundo. Incentivos a pesquisas, propostas práticas e políticas públicas para assistir essa população precisam ser encorajados. Sugere-se que sejam realizadas pesquisas com crianças e adolescentes sobreviventes de câncer, com o objetivo de identificar as necessidades de saúde e dificuldades dessa população para propor e testar novos métodos de acompanhamento de sobreviventes, por meio da ampliação de cuidados que vão desde estratégias de autogestão até rastreamento de efeitos tardios. Há também a necessidade de propostas de modelos de cuidados compartilhados entre o serviço de saúde de origem do adolescente e o serviço de atenção primária à saúde para que o acompanhamento desses sobreviventes seja realizado integralmente e de forma eficaz.

Acredita-se que este artigo possa contribuir como direcionador para novos estudos com adolescentes sobreviventes de câncer. Vemos a necessidade de se conhecer melhor as demandas de saúde dessa população para o desenvolvimento de cuidados específicos e individualizados.

Neste estudo, destacou-se a importância da continuidade do relacionamento entre equipe de saúde e o sobrevivente de câncer, mesmo após o término do tratamento, pois a relação de confiança e o vínculo com a equipe que participou de seu tratamento motivam os adolescentes a continuarem o acompanhamento no ambulatório. Isso reforça a importância da reciprocidade e da parceria no cuidado e da transparência nos relacionamentos, sobretudo ao se cuidar de crianças e adolescentes.

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Editado por

Editora Associada: Lucila Castanheira Nascimento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
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