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Repercussões físicas e psicológicas na saúde de trabalhadores de enfermagem em unidades COVID-19: pesquisa de métodos mistos* * Apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), processo nº 20/2551-0000274-8, Brasil.

Objetivo:

analisar como os trabalhadores de enfermagem de unidades hospitalares COVID-19 percebem as repercussões físicas e psicológicas do trabalho em sua saúde e os fatores associados à sua percepção.

Método:

estudo de métodos mistos paralelo-convergente realizado com 359 trabalhadores lotados em unidades COVID-19 de sete hospitais. Para a coleta de dados quantitativos foram utilizados um questionário contendo variáveis sociodemográficas, laborais e relacionadas às percepções de repercussões físicas e psicológicas e, para a qualitativa, entrevistas semiestruturadas. Para a análise utilizou-se estatística inferencial e análise temática de conteúdo.

Resultados:

trabalhadores diurnos, que tinham mais de um vínculo empregatício e trabalhavam mais de 41 horas/semana perceberam as repercussões físicas como mais moderadas/intensas, devido à sobrecarga e déficit de folgas. Enfermeiros e celetistas perceberam as repercussões psicológicas mais moderadas/intensas, atribuindo-as à sobrecarga gerencial e insatisfação trabalhista. Mulheres apresentaram 97% mais chance de perceberem repercussões físicas e três vezes mais chance de perceberem repercussões psicológicas, quando comparadas aos homens, referindo sobrecarga doméstica e familiar.

Conclusão:

sobrecargas laborais e familiares, intensificadas pelo contexto pandêmico, foram associadas à intensidade com a qual os trabalhadores da enfermagem perceberam repercussões físicas e psicológicas.

Descritores:
Enfermagem; Saúde do Trabalhador; COVID-19; Saúde Mental; Pandemias; Unidades Hospitalares


Objetivo:

analizar cómo los trabajadores de enfermería de unidades hospitalarias de COVID-19 perciben las repercusiones físicas y psicológicas del trabajo sobre su salud, e identificar los factores asociados a la percepción.

Método:

estudio de métodos mixtos de convergencia paralela realizado con 359 trabajadores de enfermería de unidades de COVID-19 en siete hospitales. Para la recolección de datos cuantitativos se utilizó un cuestionario que contiene variables sociodemográficas, laborales y relacionadas con la percepción de repercusiones físicas y psicológicas, y para los datos cualitativos se utilizaron entrevistas semiestructuradas. Para el análisis se utilizó estadística inferencial y análisis de contenido temático

Resultados:

os trabajadores diurnos, que tenían más de un trabajo y trabajaban más de 41 horas/semana, percibieron las repercusiones físicas como más moderadas/intensas, debido a la sobrecarga y falta de días libres. Los enfermeros CLT percibieron repercusiones psicológicas más moderadas/intensas, y las atribuyeron a la sobrecarga gerencial y la insatisfacción laboral. Las mujeres tenían 97% más probabilidades de percibir repercusiones físicas y tres veces más probabilidades de percibir repercusiones psicológicas, en comparación con los hombres, en referencia a la sobrecarga doméstica y familiar.

Conclusión:

las sobrecargas laborales y familiares, intensificadas por la pandemia, se asociaron con la intensidad con la que los trabajadores de enfermería percibieron las repercusiones físicas y psíquicas.

Descriptores:
Enfermería; Salud Laboral; COVID-19; Salud Mental; Pandemias; Unidades Hospitalarias


Objective:

to analyze how Nursing workers in COVID-19 hospital units perceive the physical and psychological repercussions of work on their health, as well as to identify the factors associated with their perceptions.

Method:

a parallel-convergent mixedmethods study conducted with 359 Nursing workers from COVID-19 units in seven hospitals. For the collection of quantitative data, a questionnaire containing sociodemographic and labor variables and related to perceptions of physical and psychological repercussions were used, and for qualitative data, semi-structured interviews were used. For the analysis, inferential statistics and thematic content analysis were used.

Results:

daytime workers, who had more than one employment contract and worked more than 41 hours/week perceived more moderate/intense physical repercussions, reporting overload and time off deficits. Nurses and CLT workers perceived psychological repercussions more moderately/intensely, mentioning managerial overload and job dissatisfaction. Women were 97% more likely to perceive physical repercussions and three times more likely to perceive psychological repercussions when compared to men, reporting household and family overloads.

Conclusion:

work and family overloads, intensified by the pandemic context, were associated with the intensity with which Nursing workers perceived physical and psychological repercussions.

Descriptors:
Nursing; Occupational Health; COVID-19; Mental Health; Pandemics; Hospital Units


Destaques:

(1) Aproximadamente metade dos trabalhadores perceberam repercussões físicas e a maioria, psicológicas.

(2) Mulheres apresentaram 97% mais chance de perceberem repercussões físicas.

(3) Mulheres apresentaram três vezes mais chance de perceberem repercussões psicológicas.

(4) As repercussões físicas foram percebidas pela sobrecarga de trabalho no turno diurno e com maior carga horária.

(5) Enfermeiros e celetistas perceberam repercussões psicológicas e desvalorização salarial.

Introdução

A pandemia COVID-19 configurou uma crise sanitária cujas repercussões sociais, econômicas e de saúde não tiveram precedentes recentes no mundo. Pessoas que desenvolveram a forma grave da doença exigiram cuidados de alta complexidade clínica. Os sistemas de saúde lutaram para gerenciar estas demandas, mobilizando recursos humanos, financeiros, materiais e de infraestrutura. Dentre os desafios potencializados pela pandemia, destacaram-se as repercussões físicas e psicológicas nos trabalhadores da saúde que atuaram no enfrentamento da doença ( 1Tracy DK, Tarn M, Eldridge R, Cooke J, Calder JDF, Greenberg N. What should be done to support the mental health of healthcare staff treating COVID-19 patients? Br J Psychiatry. 2020;217(4):537-9. https://doi.org/10.1192/bjp.2020.109.
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- 2Yuan L, Chen S, Xu Y. Donning and doffing of personal protective equipment protocol and key points of nursing care for patients with COVID-19 in ICU. Stroke Vasc Neurol. 2020;5(3):302-7. https://doi.org/10.1136/svn-2020-000456
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), compondo o que se chamou de linha de frente.

Trabalhadores da enfermagem da linha de frente enfrentaram um conjunto de situações adversas. Muitos atuaram fora de suas áreas de especialização e treinamento; outros enfrentaram escassez de recursos, inadequações na infraestrutura frente à demanda de pacientes gravemente doentes, com importantes taxas de mortalidade. Condutas no manejo dos doentes da COVID-19 estavam em constante atualização. Com disponibilidade de recursos humanos abaixo do ideal, os trabalhadores da enfermagem enfrentaram adversidades que testaram seu potencial de enfrentamento ( 2Yuan L, Chen S, Xu Y. Donning and doffing of personal protective equipment protocol and key points of nursing care for patients with COVID-19 in ICU. Stroke Vasc Neurol. 2020;5(3):302-7. https://doi.org/10.1136/svn-2020-000456
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).

A enfermagem atuou em um contexto de superlotação, sobrecarga e exaustão ( 3Liu Q, Luo D, Haase JE, Guo Q, Wang XQ, Liu S, et al. The experiences of health-care providers during the COVID-19 crisis in China: a qualitative study. Lancet Glob Health. 2020;8(6):e790-8. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30204-7
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). Em decorrência disso, há evidências relacionadas a repercussões físicas, como a contaminação pelo SARS-CoV-2 ( 4Nienhaus A, Hod R. COVID-19 among Health Workers in Germany and Malaysia. International J Environ Res Public Health. 2020;17(13):4881. https://doi.org/10.3390/ijerph17134881
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), dor, com destaque para a cefaleia, dispneia, tonturas, letargia, náuseas e lesões cutâneas. Estas repercussões se relacionaram, principalmente, às condições de trabalho e ao uso intenso de equipamentos de proteção individual (EPI) ( 5Pretto CR, Morais KCP, Mendes VC, Paiva AL, Silva RM, Beck CLC. The Impact of COVID-19 on the Physical Wellbeing of Nursing and Medical Personnel: An Integrative Review. Aquichan. 2022;22(2). https://doi.org/10.5294/aqui.2022.22.2.5
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- 6Danesh MK, Garosi E, Golmohamadpour H. The COVID-19 Pandemic and nursing challenges: A review of the early literature. Work. 2021;69(1):23-36. https://doi.org/10.3233/WOR-213458
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).

A pandemia COVID-19 afetou também a saúde mental dos trabalhadores da enfermagem. Sabe-se que o estresse vivenciado na linha de frente esteve relacionado a repercussões psicológicas, como sintomas ansiosos, depressão, distúrbios do sono e Burnout ( 5Pretto CR, Morais KCP, Mendes VC, Paiva AL, Silva RM, Beck CLC. The Impact of COVID-19 on the Physical Wellbeing of Nursing and Medical Personnel: An Integrative Review. Aquichan. 2022;22(2). https://doi.org/10.5294/aqui.2022.22.2.5
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- 7Alves CLM, Aguiar RS. Daños a la salud de los trabajadores de enfermería debido a la pandemia Covid-19: una revisión integradora. Enfermería Global. 2022;66:534-50. https://doi.org/10.6018/eglobal.501511
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). Em situações extremas, o trabalho pode estar associado ao transtorno de estresse pós-traumático, ideação suicida e suicídio na enfermagem ( 8Chidiebere Okechukwu E, Tibaldi L, La Torre G. The impact of COVID-19 pandemic on mental health of Nurses. Clin Ter. 2020;171(5):e399-400. https://doi.org/10.7417/CT.2020.2247
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).

Concorda-se que o sucesso na superação da pandemia COVID-19 passa pelo manejo das repercussões à saúde dos trabalhadores da enfermagem ( 8Chidiebere Okechukwu E, Tibaldi L, La Torre G. The impact of COVID-19 pandemic on mental health of Nurses. Clin Ter. 2020;171(5):e399-400. https://doi.org/10.7417/CT.2020.2247
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). Cuidados em Saúde do Trabalhador precisam ser concretizados a partir de iniciativas de promoção de bem-estar no trabalho; porém, seu planejamento precisa estar fundamentado em evidências ( 2Yuan L, Chen S, Xu Y. Donning and doffing of personal protective equipment protocol and key points of nursing care for patients with COVID-19 in ICU. Stroke Vasc Neurol. 2020;5(3):302-7. https://doi.org/10.1136/svn-2020-000456
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). Este estudo, portanto, fornece subsídios para compreender como a percepção das repercussões físicas e psicológicas se comporta de acordo com as características desta população – elementos que poderão orientar as ações de promoção à saúde no trabalho.

Estudo de revisão de literatura apontou a necessidade de promover pesquisas que explorem as interfaces entre COVID-19 e repercussões físicas e psicológicas de trabalhadores da enfermagem. Muito se tem produzido na China - onde surgiu a pandemia - por meio de pesquisas transversais; porém, é necessário aprofundar a produção de conhecimento em outros países ( 6Danesh MK, Garosi E, Golmohamadpour H. The COVID-19 Pandemic and nursing challenges: A review of the early literature. Work. 2021;69(1):23-36. https://doi.org/10.3233/WOR-213458
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) e por meio de outras abordagens metodológicas, como as qualitativas ( 9Zerbini G, Ebigbo A, Reicherts P, Kunz M, Messman H. Psychosocial burden of healthcare professionals in times of COVID-19 – a survey conducted at the University Hospital Augsburg. Ger Med Sci. 2020;18:Doc05. https://doi.org/10.3205/000281
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).

Até o momento não foram identificados estudos que analisem este objeto de estudo segundo a percepção dos próprios trabalhadores e à luz de metodologias mistas (qualitativas e quantitativas). Nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo analisar como os trabalhadores de enfermagem de unidades hospitalares COVID-19 percebem as repercussões físicas e psicológicas do trabalho em sua saúde e os fatores associados à sua percepção.

Método

Tipo do estudo

Estudo multicêntrico, de métodos mistos paralelo-convergente, que se caracteriza pela coleta e análise dos dados qualitativos e quantitativos de forma simultânea e independente, com atribuição igualitária de pesos nas etapas quantitativa e qualitativa (QUANT+QUAL) ( 10Creswell JW, Clark VLP. Designing and Conducting Mixed Methods Research. 3. ed. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2018. ). A escolha por esse delineamento metodológico se fundamentou na natureza complexa do fenômeno estudado, o que exigiu a complementariedade de diferentes fontes de evidência para alcance de resultados mais profundos. Foi realizada triangulação/mixagem de etapa quantitativa transversal correlacional, conduzida de forma concomitante com uma etapa qualitativa descritiva. Foram adotadas as recomendações do Mixed Methods Appraisal Tool (MMAT) para qualidade e transparência metodológica ( 11Hong QN, Fàbregues S, Bartlett G, Boardman F, Cargo M, Dagenais P, et al. The Mixed Methods Appraisal Tool (MMAT) version 2018 for information professionals and researchers. Educ Inf. 2018;34(4):285-91. https://doi.org/10.3233/EFI-180221
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).

Cenário

A pesquisa foi conduzida em sete hospitais de diferentes municípios do Rio Grande do Sul, Brasil. Para a escolha das instituições foi considerada a sua condição de referência no Plano de Contingência Estadual para o enfrentamento da COVID-19 em suas respectivas Mesorregiões. Portanto, foram incluídos hospitais das Mesorregiões Metropolitana, Centro-Oriental, Campanha Meridional, Centro-Ocidental, Sudeste e Noroeste (esta incluiu dois hospitais, lotados em cidades distintas).

Quatro eram hospitais de grande porte e três, de médio porte. Cinco eram filantrópicos e dois, públicos. Foram incluídas as unidades classificadas como COVID-19: uma unidade de triagem respiratória, cinco setores de urgência e emergência, quatro unidades de internação clínica e quatro Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

Período de coletas e equipe de pesquisa

A etapa de campo ocorreu entre setembro de 2020 e julho de 2021. As coletas de dados qualitativa e quantitativa conduzidas em paralelo foram realizadas por professores doutores em enfermagem, com experiência em pesquisas dessa natureza. Houve também a participação de duas mestrandas em enfermagem, previamente capacitadas para estas atividades.

População e critérios de seleção da etapa quantitativa

A população foram os trabalhadores da enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares) que estavam fixados nas unidades eleitas para o estudo. Foram excluídos os que estivessem em férias ou qualquer tipo de afastamento funcional. As instituições encaminharam à equipe de pesquisa listas com trabalhadores da enfermagem que respondia aos critérios de elegibilidade, que somava 470 indivíduos. Destes, 49 pertenciam à Mesorregião Metropolitana; 25, à Centro-Oriental; 114, à Noroeste; 104, à Campanha Meridional; 47, à Centro-Ocidental; e 131, à Sudeste. A amostra quantitativa do estudo foi constituída por 359 trabalhadores da enfermagem (76,4% da população elegível). Não houve perdas relacionadas à devolutiva dos instrumentos.

Coleta de dados quantitativos

A etapa quantitativa foi estendida a toda a população elegível, no sentido de se obter a maior amostra possível. Foi aplicado um questionário contendo as variáveis: sociodemográficas: sexo (masculino e feminino), faixa etária (até 33 anos e 34 anos e mais), cor da pele (brancos e não brancos), estado civil (com companheiro e sem companheiro), número de filhos (sem filhos, um filho e mais de um filho) e laborais: cargo (enfermeiro ou técnico de enfermagem), unidade de lotação (mais de uma unidade COVID-19, Unidade COVID-19 e não COVID-19, Outra unidade COVID-19, Internação COVID-19, Urgência e Emergência COVID-19 e UTI COVID-19), turno de trabalho (diurno, noturno e misto), vínculo trabalhista (Consolidação das Leis do Trabalho-CLT, estatutário, temporário, outro), carga horária semanal (até 40 horas, de 41 a 80 horas, superior a 80 horas), outro vínculo empregatício (sim/não) e tempo de profissão (menos de cinco anos, cinco anos e mais).

Também foram elaboradas duas questões: Você percebe repercussões físicas relacionadas ao seu trabalho em unidades hospitalares COVID-19? e Você percebe repercussões psicológicas relacionadas ao seu trabalho em unidades hospitalares COVID-19?, com as alternativas de resposta: o trabalho na linha de frente causou muitas repercussões (físicas/psicológicas) em minha saúde; o trabalho na linha de frente causou repercussões (físicas/psicológicas) moderadas em minha saúde; o trabalho na linha de frente causou poucas repercussões (físicas/psicológicas) em minha saúde; o trabalho na linha de frente não repercutiu (física/psicologicamente) em minha saúde. Os participantes deveriam assinalar a sentença que julgassem mais sinérgica com sua percepção.

Em seis hospitais, esta etapa foi conduzida de forma online. O questionário foi construído por meio do Google Forms (ferramenta do G Suite ®), onde as variáveis eram precedidas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) na íntegra com opção de assinalar a concordância. O link de acesso ao questionário foi encaminhado para os participantes elegíveis, por e-mail e/ou aplicativo de troca de mensagens, com intermédio das chefias de enfermagem e administradores hospitalares.

Uma das instituições solicitou que a coleta fosse realizada de forma presencial. Nesse caso, cada trabalhador foi abordado em seu local de trabalho por um membro da equipe de pesquisa e recebeu um envelope contendo o questionário impresso, acompanhado pelo TCLE em duas vias. A retirada do material foi agendada com cada participante, de acordo com sua disponibilidade.

Definição dos participantes da etapa qualitativa

A representatividade das sete instituições na etapa qualitativa foi priorizada ao se eleger um contingente de cinco depoentes por instituição. Todos foram eleitos a partir de sorteios aleatórios simples, realizados com auxílio de um aplicativo online ( https://app-sorteos.com/pt/apps/sorteio-de-nomes). Neste processo, doze trabalhadores não responderam, mesmo quando contatados por três vezes. Houve também cinco recusas formais atribuídas à sobrecarga de trabalho e de pesquisas. Nesses casos (ausência de resposta ou recusas), eram realizados novos sorteios até que se atingissem cinco participantes por instituição. Ao se concluírem as 35 entrevistas, o material foi submetido a uma pré-análise que identificou saturação teórica dos dados ( 12Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qualit [Internet]. 2017 Apr [cited 2022 Oct 11];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
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), o que determinou a conclusão desta etapa.

Coleta de dados qualitativos

A etapa qualitativa incluiu a realização de entrevistas semiestruturadas individuais. Em cinco hospitais, as entrevistas foram presenciais, no local de trabalho, em ambientes confortáveis, privativos e seguros, observadas as medidas de biossegurança. Duas instituições solicitaram a realização das entrevistas de forma online. Nesses casos, foi utilizada a plataforma digital Google Meet (ferramenta do G Suite ®). As interlocuções foram mediadas por perguntas disparadoras que estimularam os participantes a discorrerem sobre suas percepções relacionadas às repercussões físicas e psicológicas do trabalho na linha de frente do enfrentamento à COVID-19.

Foi realizada uma primeira entrevista, considerada piloto; como não foram necessários ajustes no roteiro de perguntas, ela foi incluída no banco de dados. As entrevistas foram gravadas em áudio, com anuência dos participantes, e tiveram duração aproximada de 22,5 minutos.

Ressalta-se que os 35 participantes da etapa qualitativa também responderam ao questionário online, portanto, integraram a etapa quantitativa. Esta conferência era realizada em ocasião das entrevistas semiestruturadas.

Tratamento e análise dos dados quantitativos, qualitativos e triangulação/mixagem dos dados

A análise quantitativa ocorreu por meio de tabulação e codificação dos dados em planilha Excel e posterior transferência para o software estatístico SPSS, versão 20.0. Os dados faltantes, bem como as variáveis com dados inferiores à população mínima da amostra ou superiores a 10%, não foram considerados na análise.

Foram utilizadas médias, frequências absolutas (n) e relativas (%) para a descrição da amostra. As perguntas referentes às percepções das repercussões físicas e psicológicas foram eleitas como variáveis dependentes. Para facilitar a análise, as respostas foram dicotomizadas em “percepção pequena ou ausente” e “percepção moderada ou intensa”. As percepções moderadas ou intensas de repercussões físicas e psicológicas foram associadas às características sociodemográficas e laborais (variáveis independentes), por meio dos testes exato de Fisher e Qui-quadrado de Pearson. Adotou-se o nível de significância estatística de 5%. Além disso, associações entre variáveis independentes e os desfechos de interesse foram estimadas por meio do cálculo de Razão de Chances ( Odds Ratio), com correspondentes seus Intervalos de Confiança a 95%.

A análise qualitativa adotou os procedimentos da análise temática de conteúdo: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados obtidos e interpretação ( 13Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. ). Na pré-análise, foi realizada seleção de material pertinente para responder ao objetivo do estudo, o qual foi submetido à leitura flutuante e compreensiva. A exploração do material envolveu a decomposição do texto em unidades de registro (UR) com auxílio do software NVivo. As UR foram organizadas por afinidade semântica e agrupadas nos dois eixos analíticos apresentados nos resultados deste estudo.

O tratamento dos dados obtidos e a interpretação ocorreram em concomitância com a triangulação/mixagem dos dados. A integração dos achados oriundos das diferentes fontes de evidência ocorreu por meio da fusão de dados qualitativos e quantitativos, os quais, após serem analisados de forma independente, foram comparados para o encontro de complementariedades ou diferenças, em um design convergente. Para concretizar essa integração, foram utilizadas estratégias de matrizes de exibição conjunta ( joint-displays), ou seja, representações visuais que ilustram as descobertas QUAL+QUANT e que tem como característica a apresentação visual da triangulação/mixagem nos desenhos de métodos mistos ( 14Oliveira JLC, Magalhães AMM, Matsuda LM, Santos JLG, Souto RQ, Riboldi CO, et al. Mixed Methods Appraisal Tool: strengthening the methodological rigor of mixed methods research studies in nursing. Texto Contexto Enferm. 2021;30:e20200603. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2020-0603
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). Para isso, foi utilizado o software CmapTools versão 6.04, uma ferramenta que viabiliza a construção de mapas mentais e conceituais.

Aspectos éticos

Na apresentação dos achados qualitativos, os depoentes estão identificados pela letra T (que inicia a palavra “trabalhador”), sucedida pela caracterização do sexo (feminino ou masculino) e da idade em anos. Foram observados os preceitos éticos estabelecidos pelas Resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto obteve aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa local em 2020, com Protocolo 4.206.065. Adicionalmente, foram aprovadas as Emendas 4.363.162 e 4.395.923 (ambas em 2020) pelo mesmo Comitê de Ética, permitindo a flexibilização de coletas presenciais e online, conforme as políticas internas das instituições e o curso da pandemia.

Resultados

Dos 359 (100%) participantes houve predomínio de trabalhadores que se identificaram como mulheres (n=278, 85%) com média de idade de 33 (±12,42) anos, brancos (n=260, 79,5%), casados ou em união estável (n=175, 53,5%).

Em relação ao cargo, prevaleceram técnicos em enfermagem (n=250, 76,4%), vinculados ao regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (n=212, 64,8%) e com carga horária semanal de até 40h (n=200, 61,1%). Na amostra estudada, 37,6% (n=135) estavam lotados em UTI COVID-19; 18,7% (n=67), em Unidades de Internação COVID-19; 11,7% (n=42), em Unidades de Triagem Respiratória ou Unidades de Urgência e Emergência COVID-19; 11,7% (n=42) referiram estar lotados em outras unidades COVID-19 (denominadas de outras formas, mas com processo de trabalho similar); e 7% (n=25) estavam lotados em mais de um setor COVID-19.

Dos 359 (100%) trabalhadores, 45,1% (n=162) tiveram percepção moderada ou intensa de repercussões físicas relacionadas ao trabalho em unidades hospitalares COVID-19, ao passo que 54,9% (n=197) tiveram percepção pequena ou ausente. Em relação às repercussões psicológicas, 53,8% (n=193) as perceberam de forma moderada ou intensa, ao passo que 46,2% (n=166) tiveram percepção pequena ou ausente.

Nas entrevistas semiestruturadas, repercussões físicas e psicológicas se mostraram relacionadas entre si e vinculadas ao estresse e sobrecarga das unidades COVID-19, como sugerem os depoimentos: [...] descontava no alimento, por causa da ansiedade. Notei um ganho de peso. Qualidade do sono péssima. Três horas, quatro horas da manhã eu acordo em alerta. Dor de cabeça constante. É estresse. Sensação de frustração por tentar manejar o paciente e não conseguir [...] perde-se muito paciente aqui [...] eu fui vendo essa necessidade de buscar ela [psicóloga]. Porque a gente não está conseguindo mais. A gente já não está mais dormindo. Ansiedade, alimentação, dor de cabeça, a dor de estômago, gastrite. Eu não tinha antes. É uma questão do estresse. [...] A gente está chegando no esgotamento, e aí para uma depressão é um pulo [...] (T9, fem., 39 anos). [...] volta e meia algum colega fica doente, depressivo ou com sintomas da COVID-19. Muitos já foram afastados. Eu mesma no início da pandemia fui afastada, mas acredito que seja por essas questões [psicológicas], porque chegava no meio da tarde eu estava com falta de ar, dor de cabeça, dor no peito, só que era o meu psicológico que fazia isso. Estamos nos judiando muito. A gente sai daqui exausta, com sintomas que não eram para acontecer. Cansar é normal, mas o psicológico tem que estar bem [...] (T26, fem., 39 anos)

A Figura 1 ilustra a joint-display representativa da integração dos dados qualitativos e quantitativos. Na sequência, serão apresentados ambos os eixos de análise que discorrem sobre os achados do estudo.

Figura 1 -
Joint-display ilustrativa da triangulação/mixagem QUAL+QUANT dos achados relacionados às repercussões físicas e psicológicas e fatores associados dos trabalhadores de enfermagem de unidades hospitalares COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil, 2020-2021

Percepção de repercussões físicas e sua interface com aspectos sociodemográficos e laborais de trabalhadores da enfermagem de unidades hospitalares COVID-19

Buscaram-se associações entre a percepção de repercussões físicas com variáveis sociodemográficas e laborais. Os resultados da análise sugerem que: trabalhadores de turno misto apresentaram 60% menos chance de perceberem repercussões físicas de forma moderada ou intensa quando comparados com trabalhadores diurnos (p=0,003); trabalhadores com carga horária entre 41 e 80 horas semanais apresentaram 73% mais chance de perceber repercussões físicas moderadas ou intensas quando comparados aos que trabalhavam até 40 horas semanais (p=0,025); quem possuía mais de um vínculo empregatício apresentava 52% mais chance de perceber repercussões físicas moderadas ou intensas quando comparados a quem possuía apenas um vínculo (p=0,031); e aquelas que se identificaram como mulheres apresentaram 97% mais chance de perceber repercussões físicas de forma moderada ou intensa quando comparadas aos que se identificaram como homens (p=0,017). Estes achados estão apresentados na Tabela 1.

Tabela 1 –
Percepção de repercussões físicas segundo as variáveis sociodemográficas e laborais de trabalhadores da enfermagem de unidades hospitalares COVID-19 (n=359). Rio Grande do Sul, Brasil, 2020-2021

Os achados qualitativos contribuíram para a compreensão da sobrecarga que existia entre os trabalhadores do turno diurno, com duplo vínculo empregatício e sobreposição de jornadas de trabalho, devido à sobrecarga e ao déficit de dias de folga sentidos por esses grupos de trabalhadores. As repercussões físicas se manifestavam na forma de alterações do sono, do padrão alimentar, fadiga e exaustão. Além disso, verificou-se o sentimento de responsabilização das mulheres em relação às demandas domésticas e maternais, as quais representavam mais um fator de sobrecarga. A triangulação/mixagem destes achados com as associações estatisticamente significativas pode ser visualizada na Figura 2:

Figura 2 -
Triangulação/mixagem QUAL+QUANT relacionada à percepção de repercussões físicas na saúde de trabalhadores de enfermagem de unidades hospitalares COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil, 2020-2021

Percepção de repercussões psicológicas e sua interface com aspectos sociodemográficos e laborais de trabalhadores da enfermagem de unidades hospitalares COVID-19

Ao associar a percepção de repercussões psicológicas com variáveis sociodemográficas e laborais, identificou-se que: técnicos em enfermagem possuíam 54% menos chance de perceberem repercussões psicológicas de forma moderada ou intensa quando comparados aos enfermeiros (p=0,003); trabalhadores contratados via CLT, também denominados celetistas, possuíam duas vezes mais chance de perceber repercussões psicológicas de forma moderada ou intensa quando comparados aos estatutários (p=0,004); aquelas que se identificaram como mulheres apresentavam três vezes mais chance de perceber de forma moderada ou intensa as repercussões psicológicas quando comparadas aos que se identificaram como homens (p=<0,001). A Tabela 2 evidencia esses achados:

Tabela 2 -
Percepção de repercussões psicológicas segundo as variáveis sociodemográficas e laborais de trabalhadores da enfermagem de unidades hospitalares COVID-19 (n=359). Rio Grande do Sul, Brasil, 2020-2021

Os achados qualitativos contribuíram para a compreensão do desgaste mental que existia entre os enfermeiros, por serem referência em suas equipes e pelas cobranças institucionais, e pelos celetistas, devido às insatisfações trabalhistas (como desvalorização salarial e pouco reconhecimento). Mostraram, também, que as mulheres, muitas vezes, sentiam-se angustiadas ante às demandas maternais em um contexto de estresse laboral; e também diante do medo de serem vetores de contaminação de suas famílias. A triangulação/mixagem destes achados com as associações estatisticamente significativas pode ser visualizada na Figura 3:

Figura 3 -
Triangulação/mixagem QUAL+QUANT relacionada à percepção de repercussões psicológicas na saúde de trabalhadores da enfermagem de unidades hospitalares COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil, 2020-2021

Discussão

O trabalho com os pacientes de COVID-19 potencializou o adoecimento físico e psicológico em trabalhadores da enfermagem devido ao alto risco de contaminação, mas também devido à carga física e psíquica do cotidiano na linha de frente ( 15Souza DO. Health of nursing professionals: workload during the COVID-19 pandemic. Rev Bras Med Trab. 2020; 18(4): 464-71. https://doi.org/10.47626/1679-4435-2020-600
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). A percepção moderada ou intensa de danos psicológicos foi maior que a de danos físicos, o que corrobora resultados de estudo de revisão internacional de literatura que evidenciou que dentre o conjunto de produções relacionadas à saúde dos trabalhadores da enfermagem da linha de frente do enfrentamento à pandemia, as repercussões psicológicas foram mais reportadas do que as físicas, como consequência do cotidiano estressor das unidades COVID-19 ( 6Danesh MK, Garosi E, Golmohamadpour H. The COVID-19 Pandemic and nursing challenges: A review of the early literature. Work. 2021;69(1):23-36. https://doi.org/10.3233/WOR-213458
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).

Por outro lado, os achados qualitativos sugerem que repercussões físicas e psicológicas se relacionaram entre si como resposta ao estresse e sobrecarga da linha de frente. A COVID-19 repercutiu na saúde e na força de trabalho da enfermagem, como consequência dos riscos ocupacionais, agravados pela precarização das condições de trabalho, insuficiência de insumos e crise sanitária. Trabalhadores da enfermagem necessitaram elaborar estratégias para cuidar de si e de suas equipes, ao mesmo tempo em que gerenciavam as repercussões da pandemia em sua vida pessoal e em suas famílias ( 16Catania G, Zanini M, Hayter M, Timmins F, Dasso N, Ottonello G, et al. Lessons from Italian front-line nurses’ experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative descriptive study. J Nurs Manag. 2021;29(3):404-11. https://doi.org/10.1111/jonm.13194
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). Portanto, o trabalho na linha de frente impôs uma nova realidade aos trabalhadores, cujos desafios muitas vezes impactaram sua saúde física e psicológica.

As repercussões físicas se direcionaram para um grupo de trabalhadores formados por aqueles que acumulavam empregos, trabalhavam mais de 41 horas semanais, lotados no turno do dia (caracterizado pelo regime de plantões diários, inclusive em feriados e finais de semana) e mulheres (historicamente relacionadas às duplas ou triplas jornadas de trabalho). Isso aponta para um perfil: pessoas que vivenciam sobrecarga de mais de um emprego, cujos plantões ocupavam grande parte de seus dias, e que se somavam também a demandas familiares.

Estudo brasileiro mostrou que os trabalhadores da enfermagem enfrentaram, na COVID-19, um trabalho exaustivo, caracterizado por aumento de atividades e diminuição do tempo de descanso. Essa conjuntura incluiu a pressão da pandemia no tocante à vida familiar e doméstica, sobretudo para as mulheres; também foi reforçada pela precarização das condições de trabalho e pela fragilização profissional da enfermagem, influenciada por baixos salários e flexibilização trabalhista – reflexo de uma conjuntura neoliberal. Sob a égide da política neoliberal, a pandemia de COVID-19 trouxe um recrudescimento da precariedade do trabalho, influenciando na saúde de trabalhadores e trabalhadoras da enfermagem ( 17Rezio LA, Oliveira E, Queiroz AM, Sousa AR, Zerbetto SR, Marcheti PM, et al. Neoliberalism and precarious work in nursing in the COVID-19 pandemic: repercussions on mental health. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210257. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0257
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).

Importa a discussão de cada fator que se mostrou associado às repercussões físicas. Os dados sugerem que trabalhadores de turno misto apresentaram 60% menos chance de perceberem repercussões físicas de forma moderada ou intensa quando comparados com trabalhadores diurnos. Esse resultado destoa de outros estudos realizados com trabalhadores da enfermagem, os quais têm evidenciado repercussões físicas e psicológicas relacionadas ao trabalho noturno ( 18Zhan YX, Zhao SY, Yuan J, Liu H, Liu YF, Gui LL, et al. Prevalence and Influencing Factors on Fatigue of First-line Nurses Combating with COVID-19 in China: A Descriptive Cross-Sectional Study. Curr Med Sci. 2020;40(4):625-35. https://doi.org/10.1007/s11596-020-2226-9
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- 19Cattani AN, Silva RM, Beck CLC, Miranda FMD, Dalmolin GL, Camponogara S. Evening work, sleep quality and illness of nursing workers. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE00843. https://doi.org/10.37689/actaape/2021AO00843
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). Porém, os dados qualitativos ajudam a explicar isso ao mostrarem que, no turno exclusivamente diurno, as escalas se organizavam em plantões quase que diários, que se estendiam nos finais de semana e feriados, aumentavam a frequência de exposições dos trabalhadores à COVID-19 e a sensação de sobrecarga laboral.

Estudo de revisão de literatura investigou as repercussões do trabalho em turnos na saúde e na vida de trabalhadores em geral. Os autores discutem que turnos longos não são a única variável negativa. Jornadas de trabalho que se estendem em finais de semana, feriados em geral e datas festivas repercutem negativamente nas relações sociais, familiares e conjugais dos trabalhadores, fragilizando dimensões importantes de sua vida ( 20Silva I, Costa D. Consequences of Shift Work and Night Work: A Literature Review. Healthcare (Basel). 2023;11(10): 1410. https://doi.org/10.3390/healthcare11101410
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).

Importa também destacar que a COVID-19 caracterizou importante incremento de carga de trabalho para a enfermagem, tornando o turno laboral mais complexo. Isso se somou a um contexto de distanciamento social, vivido mais intensamente pelos trabalhadores da linha de frente devido ao medo de transmitir o vírus para seus familiares ( 21Borges FES, Aragão DFB, Borges FES, Borges FES, Sousa ASJ, Machado ALG. Fatores de risco para a Síndrome de Burnout em profissionais da saúde durante a pandemia de COVID-19. Rev Enferm Atual In Derme. 2021;95(33):e-021006. https://doi.org/10.31011/reaid-2020-v.94-n.32-art.835
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). Portanto, pode-se considerar que, em alguns momentos, a atuação nas unidades COVID-19 absorveu os trabalhadores, causando um desequilíbrio da relação entre trabalho e vida pessoal. A percepção moderada/intensa de repercussões físicas, nesses casos, pode ser resultado da somatória de sobrecarga laboral, estresse e insatisfação.

Trabalhadores com carga horária entre 41 e 80 horas semanais apresentaram 73% mais chance de perceber repercussões físicas moderadas ou intensas quando comparados aos que trabalhavam até 40 horas semanais. Além disso, quem possuía mais de um vínculo empregatício apresentava 52% mais chance de perceber repercussões físicas moderadas ou intensas quando comparados a quem possuía apenas um vínculo. As anunciações qualitativas sugerem que os indivíduos que atuavam em mais de um local de trabalho (e que consequentemente duplicavam sua carga horária) se sentiam sobrecarregados, cansados e também percebiam repercussões físicas.

A duplicação da jornada de trabalho é algo recorrente na enfermagem. Uma das causas é a influência do modelo neoliberal sobre os regimes de contratação, motivo pelo qual a profissão, muitas vezes, não é financeiramente rentável, fazendo com que os trabalhadores busquem mais de um vínculo empregatício para obter retribuição material por seu trabalho. Sabe-se também que a organização do trabalho da enfermagem em turnos dá margem para que as pessoas consigam conciliar atividades em dois ou mais locais, motivo pelo qual isso se tornou uma prática quase cultural entre os trabalhadores ( 22Soares SSS, Lisboa MTL, Queiroz ABA, Silva KG, Leite JCRAP, Souza NVDO. Double working hours in nursing: paradigma of prosperity or reflection of the neoliberal model? Rev Baiana Enferm [Internet]. 2021 [cited 2022 Oct 3];35:e38745. Available from: https://doi.org/10.18471/rbe.v35.38745
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).

Estudo chinês realizado com trabalhadores da enfermagem que atuaram na COVID-19 evidenciou a associação entre jornadas de trabalhos mais extensas e maiores escores de fadiga ( 18Zhan YX, Zhao SY, Yuan J, Liu H, Liu YF, Gui LL, et al. Prevalence and Influencing Factors on Fatigue of First-line Nurses Combating with COVID-19 in China: A Descriptive Cross-Sectional Study. Curr Med Sci. 2020;40(4):625-35. https://doi.org/10.1007/s11596-020-2226-9
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). O aumento da jornada de trabalho e/ou sobreposição de vínculos empregatícios se intensificou com a COVID-19, devido à elevada contaminação das equipes, absenteísmo e dificuldades de retenção de força de trabalho. O aumento da jornada de trabalho está descrito como um elemento que potencializa a sobrecarga e aumenta a possibilidade de repercussões físicas ( 7Alves CLM, Aguiar RS. Daños a la salud de los trabajadores de enfermería debido a la pandemia Covid-19: una revisión integradora. Enfermería Global. 2022;66:534-50. https://doi.org/10.6018/eglobal.501511
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).

No que diz respeito às repercussões psicológicas, foram percebidas mais intensamente pelo grupo de trabalhadores formados por enfermeiros, celetistas e mulheres. É importante analisar individualmente os fatores que se mostraram associados às repercussões psicológicas.

Técnicos em enfermagem possuíam 54% menos chance de perceber repercussões psicológicas de forma moderada ou intensa quando comparados aos enfermeiros. Os achados qualitativos evidenciaram a sobrecarga dos enfermeiros no que diz respeito ao gerenciamento do cuidado. Estudo de métodos mistos evidenciou a associação entre a suspeição de Transtornos Mentais Comuns e a categoria profissional enfermeiro; estes identificavam importantes pressões laborais relacionadas ao gerenciamento do cuidado ( 23Centenaro APFC, Andrade A, Franco GP, Cardoso LS, Spagnolo LML, Silva RM. Common mental disorders and associated factors in nursing workers in COVID-19 units. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20220059. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2022-0059en
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), o que se aproxima destes achados.

O gerenciamento do cuidado corresponde à mobilização de um conjunto de atividades e decisões que possibilitam ao enfermeiro a liderança da equipe. Esta exige conhecimento e competências físicas e emocionais que o deixem preparado para agir mediante um conjunto de situações adversas ( 24Dias CFC, Rabelo SK, Lima SBS, Santos TM, Hoffmann DR. Management of nursing care in the hospital context: experience repor. Braz J Health Rev. 2021 Mar 20;4(2):5980-6. https://doi.org/10.34119/bjhrv4n2-158
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). A COVID-19 acrescentou complexidade ao gerenciamento do cuidado de enfermagem. Além do aumento da demanda e da sobrecarga de trabalho, enfermeiros se envolveram na reorganização das unidades e das equipes, na previsão e provisão de mais insumos, no estabelecimento de novas rotinas, protocolos e capacitação ( 25Araujo PMCG, Bohomol E, Teixeira TAB. Nursing management in an accredited public general hospital in the response to the COVID-19 pandemic. Enferm Foco [Internet]. 2020 [cited 2021 Jun 17];11(1.ESP). Available from: http://revista.cofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/3650/826
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).

Enfermeiros que estiveram à frente do gerenciamento das unidades, em especial, precisaram enfrentar o impacto da pandemia e garantir disponibilidade de insumos, reforçar as estratégias de comunicação e sustentar novos protocolos do processo de trabalho ( 16Catania G, Zanini M, Hayter M, Timmins F, Dasso N, Ottonello G, et al. Lessons from Italian front-line nurses’ experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative descriptive study. J Nurs Manag. 2021;29(3):404-11. https://doi.org/10.1111/jonm.13194
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). Portanto, além da pressão clínica do cuidado ao paciente grave da COVID-19, os enfermeiros precisaram gerenciar um processo de trabalho em transformação, o que potencializou sua sobrecarga mental.

Trabalhadoras que se identificaram como mulheres apresentaram 97% mais chance de perceberem repercussões físicas e três vezes mais chance de perceberem repercussões psicológicas moderadas ou intensas quando comparadas aos que se identificaram como homens. Nas entrevistas, percebeu-se que o grupo feminino, em diversos momentos, destacava as demandas familiares e maternais como um elemento que potencializava sua sobrecarga, o que pode ser relacionado aos papéis de gênero que estimulam, muitas vezes, a responsabilização das mulheres sobre os cuidados domésticos.

Resultados de pesquisa realizada com trabalhadores da enfermagem hospitalares evidenciou que as mulheres apresentaram mais repercussões físicas quando comparadas aos homens ( 19Cattani AN, Silva RM, Beck CLC, Miranda FMD, Dalmolin GL, Camponogara S. Evening work, sleep quality and illness of nursing workers. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE00843. https://doi.org/10.37689/actaape/2021AO00843
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). Existem evidências de que a COVID-19 tem repercutido sobretudo na saúde de mulheres jovens, com filhos, o que pode ser consequência do impacto social da pandemia ( 7Alves CLM, Aguiar RS. Daños a la salud de los trabajadores de enfermería debido a la pandemia Covid-19: una revisión integradora. Enfermería Global. 2022;66:534-50. https://doi.org/10.6018/eglobal.501511
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- 23Centenaro APFC, Andrade A, Franco GP, Cardoso LS, Spagnolo LML, Silva RM. Common mental disorders and associated factors in nursing workers in COVID-19 units. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20220059. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2022-0059en
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).

Pesquisas com trabalhadores da saúde e enfermagem que atuaram na COVID-19 evidenciaram associações entre a variável sexo (mulheres) com maiores escores de ansiedade ( 24Dias CFC, Rabelo SK, Lima SBS, Santos TM, Hoffmann DR. Management of nursing care in the hospital context: experience repor. Braz J Health Rev. 2021 Mar 20;4(2):5980-6. https://doi.org/10.34119/bjhrv4n2-158
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) e mostraram que mulheres apresentaram piores resultados de saúde mental quando comparadas com os homens ( 26Lai J, Ma S, Wang Y, Cai Z, Hu J, Wei N, et al. Factors Associated With Mental Health Outcomes Among Health Care Workers Exposed to Coronavirus Disease 2019. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e203976-6. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2020.3976
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).

Em seus depoimentos, pessoas que se identificaram como mulheres mostraram também autorresponsabilização, pensando que não estavam atendendo de forma suficiente às demandas afetivas dos filhos, e também se preocupando com o risco de contaminá-los pelo SARS-CoV-2. Outras pesquisas confirmam que trabalhadores da saúde e enfermagem que atuaram na pandemia carregaram importantes preocupações sobre o bem-estar e saúde de suas famílias, temendo sobretudo serem vetores de transmissão da COVID-19 ( 1Tracy DK, Tarn M, Eldridge R, Cooke J, Calder JDF, Greenberg N. What should be done to support the mental health of healthcare staff treating COVID-19 patients? Br J Psychiatry. 2020;217(4):537-9. https://doi.org/10.1192/bjp.2020.109.
https://doi.org/10.1192/bjp.2020.109...
, 3Liu Q, Luo D, Haase JE, Guo Q, Wang XQ, Liu S, et al. The experiences of health-care providers during the COVID-19 crisis in China: a qualitative study. Lancet Glob Health. 2020;8(6):e790-8. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30204-7
https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30...
, 7Alves CLM, Aguiar RS. Daños a la salud de los trabajadores de enfermería debido a la pandemia Covid-19: una revisión integradora. Enfermería Global. 2022;66:534-50. https://doi.org/10.6018/eglobal.501511
https://doi.org/10.6018/eglobal.501511...
, 27Martínez-Ponce D, Amat-Traconis MA, Cala-Rosabal LY, Chapan-Xolio E, Valenzuela-Velázquez L, Lecourtois-Amézquita MG. Psychological repercussions on nursing staff due to the COVID-19 pandemic: A cross-sectional study. J Healthc Qual Res. 2022:S2603-6479(22)00069-0. https://doi.org/10.1016/j.jhqr.2022.08.005
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).

Estudo de revisão de literatura investigou aspectos de saúde mental da enfermagem durante a COVID-19. Um dos elementos destacados foi a influência das questões de gênero na profissão. A enfermagem é historicamente composta por uma força de trabalho majoritariamente feminina. Socialmente, o trabalho no cuidado ao outro ultrapassa a jornada de trabalho e se projeta no espaço familiar, nas relações com seus filhos e demais entes ( 28Moreira AS, Lucca SR. Psychosocial support and mental health of nursing professionals in the fight against COVID-19. Enferm Foco [Internet]. 2020 [cited 2022 Sep 14];11(1):155-61. Available from: http://revista.cofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/3590/819
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).

Por fim, encontrou-se que os participantes celetistas possuíam duas vezes mais chance de perceberem repercussões psicológicas de forma moderada ou intensa quando comparados aos estatutários. Os achados qualitativos sugerem que isso pode ser reflexo da defasagem salarial, causando sentimentos de desvalorização.

No Brasil, a CLT, responsável por regular as leis que regem os contratos de trabalho, passou por alterações em suas leis, tendo como objetivo atender a projetos políticos neoliberais; o resultado foi a perda ou flexibilização de um conjunto de direitos trabalhistas. Sabe-se que existem fragilidades nas CLT e que, devido a isso, trabalhadores da enfermagem algumas vezes se encontram vulneráveis a riscos ocupacionais, sobrecarregados e sem a devida compensação financeira. Projeta-se que, nos próximos anos, a insatisfação dos trabalhadores da enfermagem poderá influenciar o esvaziamento da profissão, semelhante ao que já ocorre em alguns países do mundo ( 29Farias SNP, Souza NVDO, Andrade KBS, Varella TCMML, Soares SSS, Carvalho EC. Brazilian labor reform and implications for nursing work: a case study. Rev Esc Enferm USP. 2021;55:e20210230. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0230
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).

Em estudo com trabalhadores da enfermagem no contexto da COVID-19, estes foram questionados sobre os principais elementos que os desmotivavam para o trabalho. Na amostra estudada, 64% citaram a remuneração; 54% a jornada de trabalho; e 40% a insuficiência de benefícios trabalhistas ( 30Gonçalves E, Gomes MFP, Santos MS, Bravo DS, Valverde VRL, Fracolli LA. Repercussions of the COVID-19 Pandemic for Physical and Mental Health of Nursing Professionals. Rev Saúde Pública Paraná. 2022;5(3):1-23. https://doi.org/10.32811/25954482-2022v5n3.644
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). Outra pesquisa, também conduzida com trabalhadores da enfermagem durante a COVID-19, evidenciou que a remuneração, os benefícios e condições para promoções despontavam como alguns dos principais fatores de insatisfação com o trabalho ( 31Pirino MVB, Nascimento CL Sobrinho, Dini AP. Professional satisfaction in nursing during the COVID-19 pandemic. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2023;31:e3894. https://doi.org/10.1590/1518-8345.6364.3894
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).

Pesquisa realizada com trabalhadoras da enfermagem durante a COVID-19 mostrou que estas sentiam a diminuição da presença do Estado na garantia dos direitos trabalhistas da categoria. A reivindicação pelo piso salarial e pela jornada de 30 horas semanais foi reforçada por elas nesse período ( 17Rezio LA, Oliveira E, Queiroz AM, Sousa AR, Zerbetto SR, Marcheti PM, et al. Neoliberalism and precarious work in nursing in the COVID-19 pandemic: repercussions on mental health. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210257. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0257
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), destacando que questões salariais e de jornada de trabalho são fatores que permeiam a saúde mental de trabalhadores da enfermagem na maior parte das instituições hospitalares do Brasil.

É importante ponderar que a influência do neoliberalismo no Brasil sobre a enfermagem (especialmente sobre aqueles que não gozam a estabilidade de um cargo público, como os celetistas) é uma realidade anterior à pandemia. Há um ciclo de retrocessos nos direitos sociais trabalhistas, em que recentemente foram removidos alguns direitos garantidos dos trabalhadores e se alteraram regras de aposentadoria para parcela significativa da população. Desta maneira, reforça-se que a lógica neoliberal na organização do trabalho em saúde produz desgastes e adoecimento nos trabalhadores da enfermagem ( 17Rezio LA, Oliveira E, Queiroz AM, Sousa AR, Zerbetto SR, Marcheti PM, et al. Neoliberalism and precarious work in nursing in the COVID-19 pandemic: repercussions on mental health. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210257. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0257
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).

Ademais, destaca-se que os trabalhadores da enfermagem que compuseram a linha de frente devem ser acompanhados cuidadosamente, a partir de ações institucionais para reconhecer as repercussões do trabalho em sua saúde e para mitigar os efeitos que podem ser herdados a longo prazo ( 9Zerbini G, Ebigbo A, Reicherts P, Kunz M, Messman H. Psychosocial burden of healthcare professionals in times of COVID-19 – a survey conducted at the University Hospital Augsburg. Ger Med Sci. 2020;18:Doc05. https://doi.org/10.3205/000281
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). Torna-se necessário reconhecer os fatores associados às repercussões físicas e psicológicas do trabalho na linha de frente para subsidiar ações de promoção à saúde no trabalho no período pós-pandêmico, durante o qual as instituições precisarão de uma força de trabalho saudável e engajada na reorganização do sistema de saúde.

Além disso, é de suma importância que os trabalhadores da enfermagem obtenham o devido reconhecimento por seus esforços despendidos ao longo do enfrentamento da crise sanitária. Promover saúde ocupacional, valorização profissional e mitigar as repercussões físicas e psicológicas do trabalho na linha de frente deve ser um investimento das instituições e da sociedade como reconhecimento da importância da enfermagem no Brasil.

Este estudo agrega informações que fortalecem o registro histórico da forma como a pandemia COVID-19 se interseccionou com a trajetória da Enfermagem brasileira. Esta pesquisa ilumina os elementos que potencializaram a repercussão da pandemia COVID-19 na saúde física e mental daqueles que atuaram na linha de frente. Sabe-se que todos os trabalhadores estiveram expostos a estressores físicos e psicológicos. No entanto, com este estudo é possível reforçar o olhar para o grupo dos trabalhadores compostos pelas mulheres, enfermeiros, celetistas, que acumularam horas de trabalho, vínculos empregatícios e que somaram muitos turnos, pois sugere-se que formaram grupos especialmente vulneráveis. Ao longo do período pós-pandêmico, estes grupos necessitarão de um cuidado especial, subsidiado pela pesquisa, para que o adoecimento não seja um legado de sua atuação na linha de frente.

Este estudo apresenta como limitação a temporalidade em que os dados foram coletados. Ao longo de um ano, as coletas foram atravessadas por diferentes fases da pandemia, caracterizadas por curvas de maior contágio (e, consequentemente, de maior pressão sobre os serviços de saúde), intercaladas por momentos de maior controle pandêmico e de início da vacinação dos trabalhadores da saúde. Estender a coleta ao longo deste período foi importante para a obtenção de uma taxa de resposta abrangente e para sistematizar as entrevistas. Além disso, o trânsito nos setores COVID-19 e a coleta na modalidade online representaram desafios que culminaram em um tempo maior na etapa de campo. Portanto, é importante considerar que as respostas dos entrevistados podem ser reflexo dos diferentes momentos que caracterizaram esse recorte temporal.

Conclusão

Repercussões físicas foram percebidas moderada ou intensamente por 45,1% dos trabalhadores, especialmente pelos diurnos, que possuíam mais de um vínculo empregatício e mais de 41 horas/semana, os quais referiram sobrecarga e déficit de folgas. Repercussões psicológicas foram percebidas de maneira moderada ou intensa por 53,8% dos trabalhadores, especialmente os enfermeiros e celetistas, que referiram sobrecargas gerenciais e insatisfações trabalhistas. Mulheres apresentaram 97% mais chance de perceber repercussões físicas e três vezes mais chance de perceber repercussões psicológicas moderadas/intensas quando comparadas aos homens, referindo sobrecarga de demandas domésticas e maternais. Portanto, pode-se concluir que sobrecargas laborais e familiares, intensificadas pelo contexto pandêmico, estiveram associadas à intensidade com a qual os trabalhadores da enfermagem perceberam repercussões físicas e psicológicas.

Referencias

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  • *
    Apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), processo nº 20/2551-0000274-8, Brasil.
  • Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
  • Como citar este artigo

    Centenaro APFC, Silva RM, Franco GP, Cardoso LS, Spagnolo LML, Bonow CA, et al. Physical and psychological repercussions on Nursing workers’ health in COVID-19 units: A mixed-methods research study. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2023;31:e4002 [cited ano mês dia]. Available from: URL . https://doi.org/10.1590/1518-8345.6669.4002

Editado por

Editora Associada:

Maria Lucia do Carmo Cruz Robazzi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2023
  • Aceito
    07 Jul 2023
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