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Reducionismo e holismo como perspectivas metodológicas da investigação ecológica

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Reducionismo e holismo como perspectivas metodológicas da investigação ecológica

Antônio Lineu Carneiro; Sônia Maria Marchiorato Carneiro

Professores do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná

O maior desafio da Ecologia, como de qualquer outra ciência, é o de ser útil e significativa ao homem. Mas o que significa isso nos dias de hoje? Mais que em outras épocas, a sociedade ressente-se dos problemas ambientais que afetam direta ou indiretamente a qualidade de vida. Sabe-se atualmente que a poluição, pelo uso descontrolado dos recursos naturais e pela urbanização acelerada - entre outros fatores - a agressão à natureza e às populações, humanas ou animais, atinge níveis catastróficos. Nesse sentido, portanto, há uma necessidade urgente não só de se prevenir, mas de remediar os problemas que estão afetando os ecossistemas e a qualidade de vida. É nessa perspectiva que a Ecologia, em interação com as demais ciências, afirma-se com particular importância: por meio dela, o homem pode compreender melhor a sua realidade ambiente e, conseqüentemente, saber como manejá-la em termos de planejamento, gerenciamento e tomadas de decisão em prol da proteção ambiental. No campo científico da Ecologia são várias as concepções explicativas do mundo em que vivemos, verificando-se contudo uma polarização em torno de abordagens ou reducionistas ou holísticas. Essa dualidade não é recente na história do pensamento humano, tendo-se expressado formalmente quando, no século III a.C., Aristóteles (384-322 a.C.) condenava o Atomismo filosófico de Demócrito (460-370 a.C.) como concepção insuficiente da corporeidade, propondo sua própria concepção (hilemorfismo) da natureza corpórea como unidade de um princípio potencial, indeterminado - a matéria, híle - e de um princípio atuante, diferenciador - a forma morfé. (Brugger, 1962, p.74, 260-262)

As tendências ao reducionismo (latim re-duc: idéia de condução a um início, volta a um mesmo ponto) ou ao holismo (grego hólos: idéia de conjunto, totalidade) têm alcançado predominância em certos momentos da história cultural e científica do Ocidente. Assim é que, quando a Ecologia surge como ciência - no final do século passado e início deste - ela é concebida e trabalhada em perspectiva reducionista, na linha do racionalismo científico moderno, fruto do Iluminismo do século XVIII. Tal enfoque caracteriza-se por uma visão mecanicista da natureza ou seja, na linha de leis gerais que engendram uma dinâmica determinista dos fatos em razão do princípio de causalidade, pelo qual todo fenômeno é efeito de uma causa. Os procedimentos empíricos (observação e experimentação) e analíticos (decomposição das partes elementares de um objeto, a fim de considerá-las em separado pela impossibilidade de se abarcar o todo) são as estratégias metodológicas fundamentais dessa linha de trabalho investigativo. As escolas ecológicas filiadas à abordagem reducionista do meio tinham como principal objetivo explicar a distribuição e a abundância dos organismos na natureza. Neste contexto, uma primeira tendência descrevia o meio como fator condicionador da distribuição dos organismos, ao passo que uma outra tendência - denominada fisioecologia - buscava analisar a tolerância e as adaptações dos organismos (em experimentos laboratoriais). Paralelamente a esta abordagem vêm a surgir na década de 1930 enfoques interacionistas, com ênfase nas interações dos organismos com o seu meio. Neste sentido, destacam-se os pesquisadores Tansley (1935) e Lindeman (1942) e ainda, pouco mais tarde, Eugene P. Odum (1953) que se dedicaram ao desenvolvimento de abordagens ecossistêmicas, voltadas às interações entre os seres vivos (nível ou âmbito biótico) e o meio-ambiente físico-químico (nível ou âmbito do abiótico). Conforme Sacarrão, essa abordagem radica-se num ponto de vista holístico, sefundo o qual: "todos os seres vivos e o ambiente físico funcionam como um todo, obedecendo a leis físicas e biológicas bem definidas" (Sacarrão, 1991, p.33)

As abordagens holísticas surgem hoje como uma perspectiva nova de estudo na Ecologia, apesar de conceitos que têm origem no passado, como o de que os organismos e os ambientes - tais como o homem e a natureza - formam uma unidade. Deste modo, a concepção holística, global, não é inteiramente nova nas ciências naturais. Esta concepção, de outra parte, deu origem a uma das teorias polêmicas da Ecologia atual, que é a teoria Gaia - lançada por James Lovelock (1979), em colaboração com Lynn Margulis. Nesta teoria a Terra é concebida como um ser vivo: um gigantesco conjunto orgânico de processos biológicos e fisioquímicos auto-regulados, no qual tudo é e todos somos Gaia (nome que os antigos Gregos, em sua cosmovisão holística, davam à Terra como divindade). Tal abordagem, já em sua origem clássica oriental, é uma reação à fragmentação e dissociação geradas pelas investigações de enfoque reducio-nista. As idéias de totalidade, interconexão, integração e unidade são fundamentais ao pensamento holístico, que se caracteriza por partir de um espaço indeterminado para estudar os fenômenos, reconhecendo as coincidências significativas (o sincronismo) ou o princípio das conexões acausais ou, ainda, a transcausalidade, segundo Progroff. (in: Brandão e Crema, 1991, p.94)

O holismo, portanto, enfatiza o significado, o sentido e a finalidade do objeto de estudo, orientando-se metodologicamente por uma visão de síntese e valorizando os aspectos qualitativos e experiências (o caráter consciencial subjetivo, e intersubjetividade e os valores) em contraposição à exatidão logicista do método analítico. A Ecologia, por ter hoje o objetivo de explicar e prever fenômenos naturais relativos às condições de existência dos seres vivos ou seja, à biodinâmica dos organismos, compreende um campo de estudo bastante amplo e complexo. Assim, um estudo ecológico, em que nível for (população, associações, ecossistema etc.), demandará concepções científicas mais abrangentes, pois as abordagens reducionistas são por si sós insuficientes para darem conta da complexidade biológica - constituída pelas conexões e relações de interdependências dos organismos e destes com o seu meio. Nesta perspectiva, um estudo em nível de um ecossistema (como conjunto de componentes abióticos e bióticos que num determinado espaço e tempo trocam matéria e energia) torna-se importante na medida em que apreende a unidade funcional, isto é, a própria dinâmica vital desse complexo biológico. Segundo Samuel Murgel Branco, um ecossistema não deixa de ser um modelo físico do conceito geral de natureza ou biosfera, como o sistema solar é o modelo físico do conceito de universo (Branco, 1989, p. 58). A natureza, por ser dinâmica, depende de um equilíbrio que implica um sincronismo de movimento e de ações, a saber, de relações e transformações energéticas que, ao mesmo tempo, mantêm a sua atividade unitária e proporcionam respostas eficientes, adaptativas, dos organismos a fatores intrínsecos ou extrínsecos que podem provocar interferências e levar a alterações genéticas, isto é, transmissíveis. Um ecossistema, com efeito, tem uma grande capacidade de auto-regulação, incorporando as variações ambientais como condições de clima, disponibilidade de energia e alimento etc.; ele não é dinâmico apenas em termos de sua manutenção atual, mas está em evolução contínua, de modo que apesar de não existir - provavelmente - um determinismo causal nesse processo, há uma certa orientação finalística, desencadeada pela seleção do melhor adaptado como se houvera uma vontade própria da natureza. Sabe-se que as interferências de origem geoastronômicas (por exemplo, o substrato físico em que o universo biótico se apóia) ocorrem de maneira lenta e segundo uma certa tendência probalística, sendo que ambos esses fatores permitem um adaptação progressiva dos organismos ao meio. No momento em que a ação antrópica começa a ser muito rápida no meio natural, sem uma direção previsível, os dinamismos da natureza entram em dificuldades para coordenar e construir os processos adaptativos e, portanto, para se manterem em contínuo e perfeito funcionamento, ocasionando, conseqüentemente processos de degradação dos ecossistemas e da vida (Branco, 1989, p.124). A percepção e a compreensão desse complexo de elementos e fenômenos inter-relacionados e interagentes - que é um ecossistema - exigem a utilização de diferentes métodos e abordagens, em vista de síntese e não de uma simples análise do objeto de estudo. De acordo com Crema: "A ênfase excessiva na análise - na parte - conduz ao reducionismo escotomizante, enquanto a focalização unilateral na síntese - no todo - conduz ao globalismo obscurecedor: dois caminhos opostos que conduzem à alie- nação e ao desequilíbrio. (Brandão e Crema, 1991, p. 96)

É necessário, pois, visualizar a análise e a síntese como métodos complementares, não antagônicos, de investigação. A análise é um processo investigativo importante na medida em que é seguida por uma integração sintética; isto é, a análise decompositivo-discriminativa deve ser sucedida e não substituída por uma síntese unificadora de elementos de um todo ou conjunto. Este enfoque holístico, em outras palavras, apresenta uma "visão inclusiva que vivifica e articula a dinâmica do todo-e-as-partes", facultando ao pesquisador o exercício da interdisciplinaridade. (Crema, in: Brandão e Crema, 1991, p.97)

Essa tendência integrativa leva o homem não só a entender a natureza, mas a desenvolver um respeito pelas coisas da natureza, da qual ele faz parte. A compreensão da complexidade das inter-relações que mantêm o equilíbrio de um ecossistema possibilitará ao homem uma maior sensibilidade para com o meio, enquanto sua realidade-ambiente. Uma interferência desordenada sobre um de seus elementos constitutivos pode originar reações em cadeia, acarretando a desorganização de todo o sistema, de modo muitas vezes irreversível - fenômeno denominado hoje impacto ambiental ou, simplesmente, degradação do ambiente. A Ecologia, na linda de pensamento holístico, poderá sem dúvida contribuir significativamente para a efetividade das políticas ambientais, passado pela mediação fundamental da Educação e, em conseqüência, contribuir para a melhoria da qualidade de vida, que é hoje um dos direitos básicos constitutivos da cidadania, no sentido de que todos possam usufruir de um ambiente sadio - tanto físico como biológico e sociocultural.

  • BRANCO, Samuel Murgel. Ecossistêmica: uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo: Edgar Blücher, 1989.
  • BRANDÃO, Dênis M.S.; CREMA, Roberto. O novo paradigma holístico: ciência, filosofia, arte e música. São Paulo: Summus. 1991.
  • BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Herder, 1962.
  • LANA, Paulo. O que é ecologia Curitiba: NIMAD, 1994.
  • LIKIENS, G. E. The ecosystem approach: its use and abuse. Germany: Ecology Institut, 1992.
  • LUTZEMBERGER, J. et al. Política e meio ambiente. Porto Alegre: Marcado Aberto, 1986.
  • SACARRÃO, G. da F. Ecologia e biologia do ambiente: I - a vida e o ambiente. Portugal: Publicações Europa-Americana, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1996
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