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Transitologia, consolidologia e democracia na América Latina: uma revisão crítica

Transitology, consolidology and democracy in Latin America: a critical review

TRANSITOLOGIE, CONSOLIDOLOGIE ET DÉMOCRATIE EN AMÉRIQUE LATINE: UNE RÉVISION CRITIQUE

Resumos

Os objetivos centrais deste trabalho consistem em apontar os traços mais relevantes das conceitualizações já clássicas realizadas sobre os processos de transição e consolidação democrática na América Latina, discutir a noção de democracia nelas implícita e esboçar algumas objeções e críticas. Procura-se destacar a necessidade de uma concepção de democracia menos limitada e "conformista" que permita observar e julgar, de modo mais exigente, as democracias latino-americanas contemporâneas em termos de qualidade, densidade social e legitimidade popular.

democracia; transição política; teoria democrática; consolidação da democracia; América Latina


The main goal of this paper is to point to the most salient characteristics of classical conceptualizations of the processes of democratic transition and consolidation in Latin America, discussing the notions of democracy implicit therein and putting forth various objections and critique. I attempt to demonstrate the need for a less limited and "conformist" conception of democracy that can allow us to more stringently observe and judge contemporary Latin American democracies in terms of quality, social density and popular legitimacy.

democracy; political transition; democratic theory; consolidation of democracy; Latin America


Les principaux objectifs de ce travail sont la présentation des traits les plus importants des conceptualisations classiques, ayant lieu sous les processus de transition et consolidation démocratique en Amérique Latine, la discussion de la notion de démocratie y comprise et l'introduction de quelques objections et critiques.On cherche à souligner le besoin d'une conception de démocratie moins limitée et «conformiste» qui favoriserait qu'on observe et juge de façon plus rigoureuse les démocraties latino-américaines contemporaines en ce qui concerne la qualité, la densité sociale et la légitimité populaire.

démocratie; transition politique; théorie démocratique; consolidation de la démocratie; Amérique Latine


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TRANSITOLOGIA, CONSOLIDOLOGIA E DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA:

UMA REVISÃO CRÍTICA1 1 Este trabalho foi originalmente apresentado na mesa-redonda Consolidação da democracia: enfoques teóricos e processos político-institucionais, realizada durante o Seminário Internacional de Ciência Política: Política desde el Sur, entre 3 e 5 de outubro de 2001 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O evento foi organizado com o patrocínio do Departamento de Ciência Política da UFRGS, do seu Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e da Associação das Universidades do Grupo de Montevidéu.

Gabriel E. Vitullo

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

Os objetivos centrais deste trabalho consistem em apontar os traços mais relevantes das conceitualizações já clássicas realizadas sobre os processos de transição e consolidação democrática na América Latina, discutir a noção de democracia nelas implícita e esboçar algumas objeções e críticas. Procura-se destacar a necessidade de uma concepção de democracia menos limitada e "conformista" que permita observar e julgar, de modo mais exigente, as democracias latino-americanas contemporâneas em termos de qualidade, densidade social e legitimidade popular.

PALAVRAS-CHAVE: democracia; transição política; teoria democrática; consolidação da democracia; América Latina.

I. UM NOVO PARADIGMA NOS ESTUDOS SOBRE A DEMOCRATIZAÇÃO

No curso das últimas duas décadas, tem-se produzido uma volumosa literatura sobre os processos de democratização no mundo, que parte de uma série de postulados, conceitos e hipóteses que habilitaram a possibilidade de comparações internacionais, inclusive entre países à primeira vista muito diferentes. A transitologia tem tentado articular, de tal maneira, uma sistematização teórica a partir das experiências de mudança de regime político acontecidas, desde 1974, no sul da Europa e na América Latina, capaz de oferecer as ferramentas necessárias para estudar, ulteriormente, outras situações, muitas delas distantes do domínio de aplicação inicial.

A importante quantidade de livros, artigos e papers escritos sobre o tema tem dado lugar a essa nova subdisciplina que ganha cada vez maior espaço dentro da Ciência Política contemporânea. Como afirmam Guilhot e Schmitter (2000, p. 615), esses esforços acabaram constituindo a subdisciplina dedicada aos estudos da democratização ou, inclusive, sempre segundo esses autores, teriam dado origem a duas novas subdisciplinas estreitamente inter-relacionadas: a "transitologia" e a "consolidologia", que, por sua vez, têm proporcionado continuidade lógica à seqüência iniciada pelos estudos sobre os regimes autoritários e sua decomposição e ainda têm convertido a restauração e estabilização das instituições democráticas em um dos principais objetos da investigação politológica na e sobre a América Latina dos últimos tempos.

Nessa literatura, a transição é definida, exclusivamente, em sua acepção temporal ou cronológica. Por transição entende-se o período, de duração extremamente variável, que transcorre entre a queda de um regime e a tomada de completo controle das redes do poder por parte do regime que vem a substitui-lo. No caso concreto da transição democrática, esta é considerada terminada quando o novo regime logra instituições regulares e uma constituição majoritariamente acatada e quando as novas autoridades conseguem impor sua supremacia aos militares ou às nomenclaturas que anteriormente detinham o controle do aparelho estatal. Conforme destaca Guy Hermet (1993, p. 219-220), nesse tipo de análise não há conteúdos ou critérios substantivos que permitam determinar o início, decorrer e finalização da transição; o que conta é, fundamentalmente, o fator tempo.

Como primeiro traço geral compartilhado por todos os trabalhos que abordam esses assuntos, vale mencionar que surgem, em boa medida, como reação ao estruturalismo predominante na academia em décadas anteriores. Aquela postura teórico-metodológica indicava como responsáveis pela quebra dos regimes democráticos precedentes, entre outros fatores, a debilidade da burguesia nacional, a pobre estruturação das classes sociais, o predomínio de uma cultura política autoritária e a dependência dos grandes centros econômicos e financeiros internacionais. A nova vertente mudou o foco e decidiu concentrar sua atenção nas elites políticas e suas eleições, opções e estratégias. A democracia passou a ser vista, a partir de então, como o resultado das habilidades, tomadas de decisões e estratégias racionais desdobradas pelos grupos dirigentes e atores políticos mais relevantes. Desde essa nova ótica, os diversos quadros e situações políticas dependerão, fundamentalmente, das "jogadas" levadas a cabo por um número limitado de participantes e de suas interações contingentes. Como explica Javier Santiso (1993, p. 975), o espaço qualitativo fundamental em cujo interior podem dar-se os processos de democratização fica agora definido pelos atores e as ações e caminhos que eles escolham e já não mais pelas grandes questões econômicas ou sociais.

A disposição das elites, seus cálculos e os pactos que celebrem determinarão, segundo essa perspectiva, as probabilidades de uma abertura para a democracia e os traços mais marcantes que esta última virá a assumir. Os líderes político-partidários mais destacados e as decisões por eles adotadas passam a ser a matéria-prima principal com que haverão de trabalhar os investigadores dedicados a explicar os processos de mudança de regime. Para eles, a catalisação da democratização não derivaria de fatores macroestruturais, mas dos gestos e atitudes de certos indivíduos-chave. Nessas análises, as distinções substanciais entre um sistema político e outro se explicam pelo tipo de funcionamento das elites dirigentes e pelos graus de compromisso, cooperação e confiança que manifestem, assim como pelo nível de diferenciação e de unidade que demonstrem. Esses atributos seriam cruciais para poder compreender a estabilidade ou instabilidade política de um sistema e para poder prever o tipo de saída – autoritária ou democrática – que terá uma determinada crise.

Como forma de justificar essa mudança epistemológica, sobretudo por parte daqueles que no passado aderiam ao estruturalismo – como é o caso, citando só um exemplo, de Guillermo O'Donnell –, a nova corrente alega a necessidade de um excepcionalismo metodológico, o que configura outro de seus elementos caracterizadores. Os autores que aderem ao novo paradigma justificam-no pelo excepcional das próprias situações sob estudo; consideram que as ciências sociais normais têm sido pensadas para períodos de estabilidade política e, conseqüentemente, não serviriam para analisar mudanças de regime, transições ou períodos de crises agudas. Conforme Di Palma (1990) e O'Donnell, Schmitter e Whitehead (1986), nessas circunstâncias as explicações estruturais tradicionais devem ficar suspensas. Para eles, as transições configuram situações políticas extremamente imprevisíveis, momentos históricos em aberto, nos quais a direção que virá a assumir a mudança dependerá, essencialmente, das eleições e estratégias adotadas pelos principais agentes políticos. Em tais circunstâncias, para a transitologia e de acordo com o que expressa Dobry (2000, p. 606), não existem determinismos nem causalidades estruturais.

Os representantes dessa escola esclarecem, entretanto, que não pretendem construir uma teoria válida para toda época. Afirmam reiteradamente que suas conceitualizações seriam aplicáveis tão-somente a situações excepcionais ou anormais. Supõem que tais construções teóricas deverão ser deixadas de lado uma vez terminada a transição, dando lugar a um processo de regularização metodológica. De acordo com a análise de Guilhot e Schmitter (2000, p. 622) – indiscutíveis protagonistas desse tipo de investigações –, o fato de suspender temporariamente os constrangimentos estruturais seria uma manifestação do caráter histórico que tem dado nascimento a essas teorias, sendo seu objetivo principal a produção de uma série de hipóteses práticas suscetíveis de serem utilizadas pelos atores políticos concretos nos processos de democratização.

Outra característica definitória desses trabalhos é a concepção seqüencial ou gradualista que assumem. Há presente neles uma forma persistente de interpretar a realidade que pressupõe a existência de etapas ou estágios diferentes que irão abrindo o caminho para uma paulatina resolução dos problemas e déficits que sofre todo processo de democratização. Por detrás dessa idéia está o exemplo da democracia britânica ou, em versões mais atualizadas, como menciona Dobry (2000, p. 589), o caso da democratização espanhola e o papel conciliador desempenhado por Adolfo Suárez. Nunca dizem, explicitamente, que seja esse o único caminho possível para levar uma transição a bom termo, mas defendem, de maneira reiterada, a postura de que sua adoção oferece maiores possibilidades de implantação firme e duradoura da democracia. As distintas situações são comparadas e avaliadas tendo como parâmetro, invariavelmente, esses casos "ideais".

A tendência a trabalhar com muitos casos nacionais, de maneira concomitante, também é um elemento que aparece nessas investigações. Esse casuísmo está presente não apenas na inumerável quantidade de obras coletivas – de que participam autores das origens nacionais mais variadas – mas também em trabalhos como os realizados por Linz e Stepan (1996), os quais, na sua obra Problems of Democratic Transition and Consolidation: Southern Europe, South America, and Post-Communist Europe, efetuam uma análise exaustiva caso por caso, tratando de deduzir, daí, como distintos caminhos ou processos de democratização levarão a diversos sistemas políticos ou desembocarão em diferentes resultados. A idéia de considerar a modalidade que assume cada transição para, a partir daí, tratar de prever ou explicar o tipo de regime que será construído, é bastante freqüente nesses estudos.

O interesse pelas modalidades de transição ou pelo estudo das diversas trajetórias nacionais viu-se aprofundado quando começaram as pesquisas em torno dos processos de democratização na Europa Central e Oriental. Segundo Dobry (2000, p. 585), isso teria dado lugar a uma vertente nova na subdisiplina da transitologia, que ele denomina como "transitologia da path dependence". Em que pese a possibilidade de constituir uma variante em relação aos estudos clássicos ou fundadores, não há dúvidas de que há muitas mais semelhanças do que diferenças entre os primeiros trabalhos e os mais recentes. Ainda quando a ênfase possa ser diferente, o poder explicativo conferido às vias ou caminhos por meio dos quais as sociedades têm deixado para trás os regimes autoritários e recuperado suas instituições democráticas está presente tanto em trabalhos mais antigos como nos mais novos.

Um dos autores que mais tem explorado essa via analítica é Terry Karl (1990), quem – também em colaboração com Schmitter (KARL & SCHMITTER, 1991) – buscou corroborar certas hipóteses que indicariam que pequenas diferenças na primeira etapa da democratização podem produzir efeitos de grande magnitude e longo alcance em etapas posteriores de tal processo. Para Karl, é bastante significativa a influência que determinadas eleições anteriores haverão de ter sobre os resultados futuros dos processos de consolidação democrática. Essa autora preocupa-se em estudar em que medida as variações nos modos de transição repercutirão sobre os eventos posteriores e considera, igualmente a muitos outros autores, que as transições ou períodos de mudança de regime são momentos fundadores-chave para entender o desenvolvimento político ulterior. A maneira em que se dá a transição – distinguindo, por exemplo, entre transição via colapso do regime autoritário e transição como resultado de uma ruptura pactuada – teria direta relação com os problemas e desafios que devam ser enfrentados durante a fase de consolidação das instituições democráticas restauradas.

II. APONTANDO ALGUMAS CRÍTICAS

Depois dessa breve caracterização, podemos dedicar-nos a apontar algumas críticas à transitologia. Em primeiro lugar, é possível questionar a legitimidade de agregar, em um mesmo conjunto, situações tão dessemelhantes como as vividas no sul da Europa, na América Latina e nos países do Leste Europeu. De acordo com o que assinala José Nun (1994, p. 37), para tornar viável tal inclusão costuma-se apelar para um mínimo denominador comum baseado em uma definição restringida e formal demais do liberalismo democrático, o qual pode levar a assemelhar, de maneira falaz, situações que pouco têm a ver entre si, ou a cair no risco de um reducionismo político que, ao transladar experiências de um contexto para outro, faça-o de um modo apriorístico e acrítico. Inclusive, tomando apenas o continente latino-americano, o fato de tentar englobar em uma única e igual análise o conjunto dos países que o conformam suporia, como diz Juan Rial (1991, p. 303), um esforço exagerado de abstração, dado que é sumamente difícil assumir como homogênea nos planos político, cultural, econômico e social uma região geográfica tão vasta.

Consideramos que a obstinada busca de generalizações e padrões comuns nos processos de transição política, assim como a excessiva preocupação pela criação de tipologias e classificações onicompreensivas, impediram uma observação e análise mais aguçada das singularidades de cada caso nacional e dificultaram, também, uma melhor avaliação do tipo de democracia que ia se configurando em cada um deles. Como destaca Carlos Arturi (2000, p. 5), as explicações politicistas, ao formalizarem e simplificarme de maneira exagerada, não têm deixado lugar suficiente para a história de cada país. É necessário, evidentemente, um enfoque mais sensível às complexidades e variações nacionais dos fenômenos sob análise. Só assim se poderá enfrentar, com melhores armas, a tarefa de criar uma tipologia mais acorde com a realidade e particularidades de cada um dos regimes políticos existentes na região.

Outra objeção que cabe realizar à perspectiva dominante nos estudos sobre a transição política e a democratização é a concepção democrática minimalista subjacente. As conceitualizações desenvolvidas sob essa perspectiva implicam pressupostos normativos, nem sempre explicitados, acerca das características que deve reunir uma democracia para ser considerada estável e consolidada. Autores como Huntington, Di Palma ou Morlino – para citar apenas três casos bem expressivos – limitam-se a definir a consolidação democrática como o estabelecimento de regras e procedimentos que garantam a alternância rotineira do poder entre rivais eleitorais, dando a entender que a democratização reduz-se à mera normalização das instituições políticas. Autores latino-americanos tampouco faltam: Flisfisch ou Valenzuela, por exemplo, são claros expoentes dessa tradição nitidamente schumpeteriana, que vê a democracia sob o exclusivo prisma da institucionalização política, passando por alto as relações entre democratização político-institucional e democratização social. Recorrendo novamente a Nun (1994, p. 38), é importante reafirmar que um conjunto de regras procedimentais de modo algum pode ser suficiente para explicar práticas sociais concretas. A democracia, como diz Atilio Boron (1994, p. 38), não pode ser condenada a uma mera e fria gramática do poder. Pensamos que não há como justificar a hegemonia das definições minimalistas e procedimentais da democracia em um lugar como a América Latina, onde os condicionantes sócio-econômicos são mais do que evidentes.

Já no que diz respeito ao postulado metodológico central da transitologia, podemos aderir ao próprio reconhecimento – e autocrítica, talvez? – feita por um dos autores que mais tem trabalhado com essa perspectiva, Philippe Schmitter, que sustenta que em muitas investigações são selecionados de maneira arbitrária os atores que haverão de ser considerados para avaliar se uma democracia está consolidada. Em geral, tomar-se-iam em consideração, exclusivamente, os partidos políticos e seus líderes mais destacados, em prejuízo de movimentos sociais, associações, comunidades locais e outros atores (cf. GUILHOT & SCHMITTER, 2000, p. 620). Cabe pensar se não seria oportuno começar a examinar a democracia também segundo a ótica das grandes massas e não cair sempre na reiterada análise que coloca o foco, unicamente, nos profissionais da alta política.

O fato de dedicar atenção e responsabilizar pelos processos de transição e democratização só as ações estratégicas, as condutas racionais e a habilidade de certos indivíduos, traz atrelado um poderoso viés elitista. A necessidade de resgatar e dar maior atenção às variáveis estritamente políticas – antes não tidas em conta – não pode autorizar que a democratização seja vista apenas como o resultado de uma eleição ou opção estratégica das elites dirigentes, omitindo o restante da sociedade, os setores populares e a própria história, como fica manifesto na coletânea de Higley e Gunther (1992), cujo objetivo primordial parece ser o de adotar o compromisso das elites como pré-condição fundamental para a consolidação da democracia. Como criteriosamente argumenta Bunce (2000, p. 635), ficar nesse único plano de análise implica dizer que são as elites e não a sociedade, a política e não a economia, os processos internos e não as influências internacionais, os que constituem os fatores cruciais da democratização e que, portanto – agregaríamos - a democracia pode ser confeccionada ou desmontada de acordo com as opções ou decisões tomadas por um reduzido grupo de lideranças políticas.

Superestimar a racionalidade desses atores envolvidos no processo político não gerará boas análises. Nos fatos, tal superestimação desencadeia uma visão voluntarista da história das sociedades, uma "ilusão heróica" – seguindo a expressão de Dobry (2000, p. 606-607) – que, ao desconsiderar os fatores estruturais, impede o entendimento da situação sócio-política em toda sua complexidade. Coincidindo com Santiso (1993, p. 991), pode-se dizer nessa mesma linha que, ao outorgar um lugar excessivo à habilidade, ao heroísmo e às qualidades pessoais dos líderes e subestimar os condicionantes macro, obscurece-se a compreensão da própria realidade política. Nem sequer o argumento de que isso vale só para períodos anormais encontra maior sustentação. Por que em épocas de transição as estruturas não contariam? Em que se baseia o tão alegado excepcionalismo metodológico? Por que a compreensão das transições deveria centrar-se, de maneira exclusiva, nos cálculos, eleições, dilemas táticos, habilidade e predisposição ou reticência de certos atores para fechar compromissos com outros atores políticos?

Em outro plano, há quem diga (REMMER, 1995, por exemplo) que os estudos sobre a transição não costumam atingir uma adequada síntese teórica nem chegam a conceitos verdadeiramente valiosos. Muitos dos esforços realizados desembocariam em grandes tautologias, como a de indicar que a divisão que se dá no seio dos regimes autoritários é a que explica o início da transição (REMMER, 1995, p. 107) ou aquela que resulta de dizer que a consolidação é o processo mediante o qual um regime democrático consegue a força suficiente para persistir no tempo, mostrando-se, portanto, preparada para prevenir ou resistir a eventuais crises sobrevenientes (coincidindo com a crítica esboçada por Guilhot e Schmitter (2000, p. 620)). Em repetidas ocasiões, as construções teóricas e formulações indutivas efetuadas a partir do estudo de casos tornam-se bastante triviais, a ponto de não justificar, plenamente, as desmedidas tarefas empíricas realizadas para chegar a elas.

Outra questão que vale a pena apontar é a que diz respeito à visão "etapista" dos processos políticos que impregna estes estudos. Não há motivo aparente que leve a concordar com os transitólogos quando defendem que primeiramente devem ser consolidadas as instituições democrático-liberais para, só em um momento posterior, assumir os desafios que implicam uma democratização social e econômica mais substantiva. Concordando mais uma vez com Nun (1994, p. 55), pode-se argüir, perfeitamente, que esse etapismo ou leitura seqüencial da realidade acaba consumando uma profecia autocumprida, segundo a qual a política institucionaliza-se de maneiras que desvalorizam, de modo sistemático, a dimensão participativa da democracia – o que depois é utilizado para justificar os mecanismos que, em boa medida, provocam essa apatia, esse desinteresse e essa desinformação que afetam o cidadão médio.

Diretamente relacionada com a visão etapista está a marcada preocupação pelo estudo dos modos de transição. A conexão, já mencionada, entre a modalidade que assume a passagem do regime autoritário para o regime democrático e os resultados que esse regime possa alcançar no futuro, não chega a ser realmente convincente. O inconveniente radica em que nessa literatura, tal como assinalam Munck e Leff (1997, p. 70), não é perceptível de que maneira os modos de transição afetarão as trajetórias políticas subseqüentes, podendo, in extremis, chegar-se a duvidar se em certos casos concretos – como bem apontam os autores –, tais modos efetivamente incidem sobre os processos. Segundo a opinião de Adam Przeworski (1994, p. 135), uma atenta leitura da copiosa literatura produzida sobre o assunto revelaria que esses estudos trazem poucos resultados. Para ele, seria difícil encontrar fatores comuns entre os diversos casos nacionais, e seria mais fácil conseguir explicar a posteriori por que um regime fracassa do que prever tal fracasso com antecedência.

Por outro lado, cabe deixar assentado que tal análise dos modos de transição, conjugada com a concepção etapista dos processos sócio-políticos resenhada, desemboca em uma questionável lista de prescrições sobre as seqüências e dinâmicas ideais que levariam a uma transição "bem-sucedida". Legitimamente se pode objetar contra esse excesso prescritivista, esse peso exagerado que têm, na obra dos transitólogos, as receitas sobre os melhores caminhos, estratégias e desenhos institucionais que deveriam ser adotados para que uma transição chegue a "bom porto". Sobretudo se pensarmos que as seqüências ideais sugeridas compartilham, indefectivelmente, um mesmo e poderoso viés conservador, que veda qualquer possibilidade de imaginar uma luta por uma democracia mais avançada, e elimina, também, as chances de produzir uma análise verdadeiramente crítica das realidades estudadas.

Insistimos, as ramificações políticas da mensagem tática que transmitem podem ser altamente questionáveis. Como bem aponta Nancy Bermeo (1990, p. 362), a recomendação que dimana da abrumadora maioria dos textos sobre a transição democrática sugere que os opositores do regime autoritário não façam jogadas arriscadas, que moderem suas demandas e sigam a via do gradualismo e da cooperação com a linha branda do regime autoritário saínte. Há uma marcada exaltação, nesses escritos, da necessidade de cautela, de moderação e de celebração de compromissos e das vantagens de fazer sentir aos brandos do regime que ainda contam com capacidade de iniciativa política – tudo o qual comporta, segundo nosso ponto de vista, uma inadmissível claudicação. Que tipo de democracia há de se levantar sobre pilares tão débeis? Caso coincidamos, por um momento e hipoteticamente, com os investigadores que adjudicam aos modos de transição uma importância decisiva para os resultados posteriores da democracia, cabe perguntarmo-nos se, dessa maneira, não se estaria propiciando ou alentando uma democracia com gravíssimos defeitos congênitos, com severas malformações de nascimento.

Não há, nesses trabalhos, considerações acerca dos necessários processos de aprofundamento da democracia e de sua extensão às esferas econômica e social. Toda e qualquer proposta em favor de mudanças mais radicais costuma ser vista, sob essa perspectiva, como uma ameaça à estabilidade e consolidação das instituições democráticas. Como reconhecem Guilhot e Schmitter (2000, p. 623-624), os que aderem a esse enfoque tendem a interpretar as pressões em favor de mudanças ulteriores como fatores de desconsolidação. Efetivamente, pode-se afirmar que há, nas análises sobre a transição e a consolidação democrática, uma ênfase exagerada nas idéias de ordem e estabilidade; ênfase tomada do livro de Huntington (1968), Political Order in Changing Societies, no qual o autor argumenta que a estabilidade exige um relativo isolamento das estruturas políticas face às pressões da sociedade e, em especial, dos setores populares.

No caso de apoiar essa argumentação, incorre-se em um risco muito concreto de congelar as democracias realmente existentes no ponto em que se encontram, de impossibilitar o desenvolvimento de uma democracia menos delegativa e mais cidad㠖 como aponta Hélgio Trindade (TRINDADE & COUFFIGNAL, 2000) –, ou até de abrir a possibilidade de importantes retrocessos. Se, como dizem Guilhot e Schmitter (2000, p. 625), toda evolução democrática suplementar tende a ser interpretada como uma ameaça à definitiva implantação do regime, os transitólogos e consolidólogos não deixariam espaço para a mudança e a melhoria das pobres e incompletas democracias surgidas na região latino-americana. Indubitavelmente, os avanços democráticos exigem que se termine com o acasalamento das noções de consolidação, ordem e estabilidade, pois só assim poderá se inaugurar um caminho para a superação.

Além das legítimas motivações políticas, acadêmicas e pessoais que possam haver levado a muitos pesquisadores comprometidos com a transformação vivida nos seus países nos anos de transição a se postularem como "conselheiros do príncipe", cabe insistir na perda de capacidade crítica resultante das teorias da transitologia e da democratização hegemônicas na Ciência Política. Muitas análises originadas desses moldes teóricos realmente deixaram de ser críticos, para converterem-se em prescrições para a ação e para o desenho de políticas governamentais. Como diz Greskovits (2000, p. 737), muitos transitólogos inclinaram-se para assessorar os novos tomadores de decisões acerca do que "devia ser feito" e sugerir os passos que deviam ser seguidos para alcançar uma transição bem sucedida, com o que se afetou seriamente o rigor, profundidade e qualidade dos estudos realizados.

Essa perda de capacidade crítica configura um problema teórico e político de primeira ordem. Como bem aponta Borón (1994, p. 10), ao realizarem uma imprescindível revalorização da democracia, muitos intelectuais têm capitulado ideologicamente, ao ponto de aderirem, de maneira irrestrita, a uma visão minimalista da mesma. O louvável resgate dos procedimentos democráticos e a clausura da perigosa antinomia "democracia real" versus. "democracia formal" vêem-se ofuscados por essa inclinação em deixar de lado questões fundamentais contidas em noções como as de conflito social, luta de classes, capitalismo e desigualdade, deslocando o foco de atenção quase que exclusivamente para a manutenção de uma nova ordem democrática viável e estável. A viabilidade, estabilidade e governabilidade vêm a mascarar, dessa maneira, uma resignada aceitação da aparente imodificabilidade das pobres e incompletas democracias existentes na América Latina.

Citando Robert Barros (1986, p. 65), pode-se argüir que, ao se dedicar de modo excludente à introdução ou consolidação das instituições representativas, muitos intelectuais parecem renunciar à utopia e abdicar, inclusive, da possibilidade de redefini-la. Os que seguem esse caminho não explicam por que a democracia é um valor e como se relaciona com as políticas emancipatórias que defendiam no passado. Muitos parecem não ver – ou não querer ver – as limitações estruturais que sofrem as democracias da região. Seguindo com Barros (1986, p. 66), pode-se dizer que o debate tem se concentrado na relocalização da "democracia" dentro do discurso da esquerda, mais do que na análise da democratização e suas limitações e constrangimentos pós-ditaduras, gerando uma posição de total indulgência face ao capitalismo democrático contemporâneo.

Nas obras e investigações mais representativas da transitologia e da consolidologia latino-americanas não é freqüente encontrar uma articulação entre o radicalismo ou a crítica social de antanho e a revalorizada democracia política. Pareceria que a democracia fosse uma simples alternativa às ditaduras militares, um simples método dissociado, como agudamente assinala Boron (1994), dos fins, valores e interesses que animaram e animam a luta dos atores coletivos. A democracia esgota-se, assim, nesses casos, em uma mera "normalização" das instituições políticas, o que nos leva a destacar a imperiosa necessidade de abandonar a simplificadora dicotomia entre regimes autoritários e regimes democráticos e a impostergável tarefa de examinar e avaliar que tipo de democracia vem se construindo nos países da região nos últimos anos.

Em suma, haverá que se deixar para trás essa leitura dicotômica e restabelecer a importância dos componentes sócio-econômicos, assim como haverá que se prestar maior atenção às percepções, sentimentos e atitudes da cidadania face à realidade política, relativizando o peso que, em prejuízo de outros atores coletivos e das grandes massas populares, costuma-se outorgar às elites dirigentes. Essa mudança de enfoque permitirá começar a percorrer novos caminhos teórico-metodológicos que possibilitem um melhor entendimento de como funcionam as democracias realmente existentes por estas latitudes, abandonando – insistimos - a preocupação com uma mera sobrevivência formal das instituições, para internar-se no exame de sua qualidade, de sua densidade social e de sua legitimidade popular.

Recebido para publicação em 8 de outubro de 2001.

Artigo aprovado em 23 de novembro de 2001.

Gabriel E. Vitullo (gvitullo@hotmail.com) é Graduado em Direito e Ciência Política pela Universidad de Buenos Aires e Doutorando em Ciência Politica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

ABSTRACTS

Versão do resumo para o inglês: Miriam Adelman

TRANSITOLOGY, CONSOLIDOLOGY AND DEMOCRACY IN LATIN AMERICA: A CRITICAL REVIEW

The main goal of this paper is to point to the most salient characteristics of classical conceptualizations of the processes of democratic transition and consolidation in Latin America, discussing the notions of democracy implicit therein and putting forth various objections and critique. I attempt to demonstrate the need for a less limited and "conformist" conception of democracy that can allow us to more stringently observe and judge contemporary Latin American democracies in terms of quality, social density and popular legitimacy.

KEYWORDS: democracy; political transition; democratic theory; consolidation of democracy; Latin America.

RÉSUMÉS

Versão do resumo para o francês: Maria Fernanda Araújo Lisbôa

TRANSITOLOGIE, CONSOLIDOLOGIE ET DÉMOCRATIE EN AMÉRIQUE LATINE: UNE RÉVISION CRITIQUE

Les principaux objectifs de ce travail sont la présentation des traits les plus importants des conceptualisations classiques, ayant lieu sous les processus de transition et consolidation démocratique en Amérique Latine, la discussion de la notion de démocratie y comprise et l'introduction de quelques objections et critiques.On cherche à souligner le besoin d'une conception de démocratie moins limitée et «conformiste» qui favoriserait qu'on observe et juge de façon plus rigoureuse les démocraties latino-américaines contemporaines en ce qui concerne la qualité, la densité sociale et la légitimité populaire.

MOTS-CLÉS: démocratie; transition politique; théorie démocratique; consolidation de la démocratie; Amérique Latine.

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    Este trabalho foi originalmente apresentado na mesa-redonda
    Consolidação da democracia: enfoques teóricos e processos político-institucionais, realizada durante o Seminário Internacional de Ciência Política:
    Política desde el Sur, entre 3 e 5 de outubro de 2001 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O evento foi organizado com o patrocínio do Departamento de Ciência Política da UFRGS, do seu Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e da Associação das Universidades do Grupo de Montevidéu.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Out 2002
    • Data do Fascículo
      Nov 2001

    Histórico

    • Aceito
      23 Nov 2001
    • Recebido
      08 Out 2001
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