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A eleição presidencial de 2002: uma análise preliminar do processo e dos resultados eleitorais

The 2002 presidential elections: a preliminary analysis of electoral processes and results

Les presidentielles de 2002: une analyse preliminaire du processus et des resultats electoraux

Resumos

O presente trabalho analisa as eleições presidenciais brasileiras de 2002: o contexto em que elas ocorreram e os aspectos centrais das campanhas político-partidárias prévias. Com base em relatórios de surveys nacionais e de um survey acadêmica realizada na região metropolitana de São Paulo, analisam-se as influências de variáveis demográficas, sócio-econômicas e atitudinais sobre a decisão de voto do eleitor, bem como suas motivações declaradas para o voto. Entre as variáveis que mais parecem ter influenciado a decisão de voto, estão os "sentimentos partidários" dos eleitores, sua avaliação de desempenho do governo então em exercício e de atributos pessoais dos candidatos, especialmente a competência administrativa. A vitória de Lula é interpretada como fruto mais de um descontentamento com o governo de Fernando Henrique Cardoso que propriamente de uma guinada duradoura do eleitorado brasileiro em direção à esquerda.

política brasileira; eleições presidenciais; comportamento eleitoral


The present article analyzes the 2002 Brazilian presidential elections: the context in which they took place and central aspects of the political party campaigning that preceded them. The data come from national level survey reports as well as from an academic survey carried out in the Greater São Paulo. The influence of demographic, socio-economic and attitudinal variables on voters' decisions, as well as their declared reasons for voting choices, are analyzed. Among those variables that seem to have exercised most influence on voting decision are voters' partisan sentiments, evaluation of the performance of incumbent politicians, and candidates' personal attributes, especially regarding administrative competence. Lula's victory is interpreted as more expressive of dissatisfaction with Fernando Henrique Cardoso's administration that as a lasting turn of the Brazilian electorate in a leftward direction.

Brazilian politics; presidential elections; voting behavior


Ce travail analyse les élections présidentielles brésiliennes de 2002 : le contexte dans lequel elles se sont déroulées et les aspects essentiels des campagnes politiques des partis. A partir des enquêtes nationales et d'une enquête universitaire réalisée dans la région de São Paulo, il a été analysé l' influence des variables démographiques, socio-économiques et d'attitude sur la décision de l'électeur, ainsi que ses motivations à l'égard de son choix. Parmi les variables, celles qui nous semblent les plus importantes chez les électeurs sont «les sentiments concernant le parti», leur évaluation de la performance du gouvernement au pouvoir à ce moment-là et les attributs personnels des candidats, surtout leur compétence administrative. La victoire de Lula est interpretée plutôt comme le fruit d'un mécontentement vis-à-vis du gourvernement de Fernando Henrique Cardoso que d'un tournant du corps électoral brésilien vers la gauche.

politique brésilienne; élections présidentielles; comportement électoral


ARTIGOS

A eleição presidencial de 2002: uma análise preliminar do processo e dos resultados eleitorais1 1 Agradeço aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política, cujas sugestões contribuíram para a inclusão de algumas das análises aqui realizadas e para a eliminação de alguns dos problemas do texto.

The 2002 presidential elections: a preliminary analysis of electoral processes and results

Les presidentielles de 2002 : une analyse preliminaire du processus et des resultats electoraux

Yan Carreirão

RESUMO

O presente trabalho analisa as eleições presidenciais brasileiras de 2002: o contexto em que elas ocorreram e os aspectos centrais das campanhas político-partidárias prévias. Com base em relatórios de surveys nacionais e de um survey acadêmica realizada na região metropolitana de São Paulo, analisam-se as influências de variáveis demográficas, sócio-econômicas e atitudinais sobre a decisão de voto do eleitor, bem como suas motivações declaradas para o voto. Entre as variáveis que mais parecem ter influenciado a decisão de voto, estão os "sentimentos partidários" dos eleitores, sua avaliação de desempenho do governo então em exercício e de atributos pessoais dos candidatos, especialmente a competência administrativa. A vitória de Lula é interpretada como fruto mais de um descontentamento com o governo de Fernando Henrique Cardoso que propriamente de uma guinada duradoura do eleitorado brasileiro em direção à esquerda.

Palavras-chave: política brasileira; eleições presidenciais; comportamento eleitoral.

ABSTRACT

The present article analyzes the 2002 Brazilian presidential elections: the context in which they took place and central aspects of the political party campaigning that preceded them. The data come from national level survey reports as well as from an academic survey carried out in the Greater São Paulo. The influence of demographic, socio-economic and attitudinal variables on voters' decisions, as well as their declared reasons for voting choices, are analyzed. Among those variables that seem to have exercised most influence on voting decision are voters' partisan sentiments, evaluation of the performance of incumbent politicians, and candidates' personal attributes, especially regarding administrative competence. Lula's victory is interpreted as more expressive of dissatisfaction with Fernando Henrique Cardoso's administration that as a lasting turn of the Brazilian electorate in a leftward direction.

Keywords: Brazilian politics; presidential elections; voting behavior.

RÉSUMÉ

Ce travail analyse les élections présidentielles brésiliennes de 2002 : le contexte dans lequel elles se sont déroulées et les aspects essentiels des campagnes politiques des partis. A partir des enquêtes nationales et d'une enquête universitaire réalisée dans la région de São Paulo, il a été analysé l' influence des variables démographiques, socio-économiques et d'attitude sur la décision de l'électeur, ainsi que ses motivations à l'égard de son choix. Parmi les variables, celles qui nous semblent les plus importantes chez les électeurs sont «les sentiments concernant le parti», leur évaluation de la performance du gouvernement au pouvoir à ce moment-là et les attributs personnels des candidats, surtout leur compétence administrative. La victoire de Lula est interpretée plutôt comme le fruit d'un mécontentement vis-à-vis du gourvernement de Fernando Henrique Cardoso que d'un tournant du corps électoral brésilien vers la gauche.

Mots-cles: politique brésilienne; élections présidentielles; comportement électoral.

I. INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa a eleição presidencial brasileira de 2002, em que pela primeira vez na história brasileira venceu um candidato de um partido de esquerda. Inicialmente se analisa o contexto em que se deu a eleição presidencial; a seguir, com base em dados de relatórios de surveys nacionais realizados pelo instituto Datafolha, são analisadas as influências de variáveis demográficas, sócio-econômicas e atitudinais sobre a decisão de voto do eleitor, bem como suas motivações declaradas para o voto. Dados de uma survey acadêmica realizada na região metropolitana de São Paulo permitem aprofundar alguns aspectos desse processo decisório, especialmente no que se refere a um possível voto de natureza partidária e/ou ideológica. Ao final é rejeitada uma possível interpretação de que a vitória de Lula tenha representado uma guinada duradoura do eleitorado brasileiro em direção à esquerda; embora sejam relacionados diversos fatores que pesaram na decisão de voto, o resultado da eleição é interpretado principalmente como fruto da canalização do descontentamento da maioria do eleitorado com o governo de Fernando Henrique Cardoso em direção à candidatura que representou o núcleo duro da oposição àquele governo.

II. A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 2002: O CONTEXTO E A CAMPANHA

No 1º turno das eleições presidenciais brasileiras de 2002 disputaram seis candidatos: Luís Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores (PT)), apoiado pelo Partido Liberal (PL) e pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), José Serra (Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB)), apoiado pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Anthony Garotinho (Partido Socialista Brasileiro (PSB)), Ciro Gomes (Partido Popular Socialista (PPS)), apoiado pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), José Maria (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU)) e Rui Pimenta (Partido da Causa Operária (PCO)). Dos partidos mais relevantes, o Partido Progressista Brasileiro (PPB) e o Partido da Frente Liberal (PFL) não lançaram nem apoiaram oficialmente nenhum candidato. Nenhum candidato obteve maioria absoluta dos votos válidos, passando ao segundo turno Lula (46% dos votos válidos) e Serra (23% dos votos válidos). No 2º turno, Lula ganhou o apoio de Garotinho e de Ciro e dos partidos que os apoiavam: PSB, PDT e PTB. Serra obteve o apoio de boa parte do PFL. Lula, com 61% dos votos válidos, venceu Serra (39%).

II.1. Avaliação do governo Fernando Henrique Cardoso

Do contexto em que se deu o processo eleitoral, o fator mais relevante a ser destacado parece ser a avaliação que o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso – daqui para a frente chamado de FHC, por economia textual – tinha junto ao eleitorado brasileiro. O Gráfico 1 mostra a evolução da avaliação do governo ao longo dos seus dois mandatos. Como se pode ver, houve uma queda brutal da avaliação do governo FHC entre o 1º e o 2º mandatos. Se tomarmos os percentuais de eleitores que avaliavam o governo como ótimo ou bom no 1º mandato (em 19 medições feitas pelo Datafolha entre março de 1995 e dezembro de 1998), esses percentuais variaram entre 30% e 47%, com média de 39%.


No 2º mandato, a taxa mínima de eleitores (em 24 medições) que avaliavam positivamente o governo foi 13% e a máxima foi 31%; a média cai para 24%. Portanto, na média dos dois períodos, cerca de 15% dos eleitores brasileiros avaliaram bem o governo FHC em seu 1º mandato e deixaram de fazê-lo no 2º. A mudança não se deu de maneira gradual; foi brusca, exatamente na passagem de um para outro mandato. Às vésperas da eleição de 1998, no final de setembro desse ano, 42% dos eleitores avaliavam positivamente o governo; em dezembro já houve uma queda para 35% e em fevereiro de 1999, logo após a desvalorização do real, aquele percentual caiu exatamente para a metade: 21%. É evidente a conexão dessa queda na avaliação, com a desvalorização do real em janeiro de 1999 – após o Presidente ter afirmado, durante a campanha de 1998, que não haveria desvalorização.

Se a desvalorização do real trouxe um forte descrédito ao governo no início do 2º mandato, a ausência de êxito econômico (vale dizer, retomada do crescimento e aumento do emprego e da renda) foi responsável pela manutenção de baixas taxas de avaliação positiva ao longo do 2º mandato: de fevereiro de 1999 até as eleições de 2002, só em 3 das 24 medições o percentual de avaliação positiva chegou a 31%, percentual praticamente igual ao mínimo encontrado no 1º mandato (30%, em junho de 1996). Embora tenha havido uma razoável melhora da avaliação ao longo do 2º mandato, isso não foi suficiente para recuperar o terreno perdido na passagem do 1º para o 2º mandatos: na última pesquisa Datafolha antes do 1º turno de 2002, 23% dos eleitores avaliavam o governo como ótimo ou bom e 34% como ruim ou péssimo.

Esse parece-nos ser um fator decisivo da eleição: a avaliação feita pelo eleitorado do desempenho do governo FHC. De um lado, uma parcela não desprezível avaliava o governo positivamente, especialmente pelo fato de ter eliminado a hiperinflação que persistiu no país durante muito tempo antes do lançamento do Plano Real, em 1994. Por outro lado, a avaliação era negativa ou neutra ("regular")2 2 Os eleitores que avaliavam o governo FHC como "regular" antes do 1º turno de 2002 eram 40%. É necessário observar que, de 1989 para cá, com exceção do período pré-eleitoral de 1994, a grande maioria dos eleitores que avaliam o governo como "regular" tende a votar contra o governo – ou seja, a avaliação "regular" parece uma avaliação predominantemente negativa, conforme análise feita a partir dos dados de Carreirão e Kinzo (2004). para uma maioria do eleitorado. Havia uma insatisfação da maioria do eleitorado com os rumos tomados pelo país sob FHC, especialmente em seu 2º mandato. Isso se devia, em parte, ao desgaste do governo após oito anos de mandato e à fragilidade frente às instabilidades externas (devida ao alto grau de endividamento, entre outras coisas); mas, fundamentalmente, era devido às altas taxas de desemprego e à manutenção de desigualdades sociais enormes: houve uma percepção majoritária de que o governo FHC não fez o suficiente para melhorar a vida das pessoas mais pobres. Assim, o percentual de eleitores que ainda avaliavam positivamente o governo fornecia combustível para que um candidato situacionista pudesse chegar ao 2º turno, embora dificilmente pudesse ganhar as eleições (mais à frente analisaremos dados relacionando a avaliação de desempenho do governo aos votos dos eleitores).

II.2. A campanha e os candidatos

Iniciando pelo candidato situacionista: Serra era bem avaliado por parcela substancial dos eleitores, em atributos que parecem relevantes para um bom governante: era considerado honesto e conseguiu formar a imagem de um bom administrador, sério e competente. O problema principal era o da credibilidade de suas propostas. Serra centrou seu programa de televisão em dois temas fundamentais para o eleitorado: emprego e segurança. Formulou propostas claras e didaticamente. Todavia, o problema da credibilidade residia no fato de ele ser o candidato do governo, que aos olhos da grande maioria do eleitorado deixara a situação social deteriorar-se muito no que se refere a esses dois temas. A pergunta, diversas vezes feita pelos adversários durante a campanha, era fatal: por que Serra, que era uma pessoa tão importante no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (tendo sido Ministro do Planejamento e, depois, da Saúde e escolhido para ser seu candidato), não conseguiu usar essa influência para fazer durante esses oito anos o que ele prometia fazer se fosse eleito? Em suma, embora possa-se criticar aspectos da estratégia de campanha de Serra, seu principal problema é que ele representava a continuidade de um governo cuja avaliação junto ao eleitorado era majoritariamente negativa. Essa parece ser uma dificuldade que enfrentaria qualquer candidato situacionista.

Relativamente às demais candidaturas, analisando a evolução das intenções de voto a partir de dezembro de 2001, percebem-se grandes variações. Houve diversas "ondas" de crescimento de diferentes candidatos, indicando uma grande volatilidade do voto, pelo menos até o final de agosto de 2002 (cerca de 40 dias antes do 1º turno).

A 1ª "onda", entre dezembro de 2001 e fevereiro de 2002, foi a de Roseana Sarney (PFL), filha do ex-Presidente José Sarney (1985-1990), ex-Governadora do Maranhão, estado comandado há muito tempo por sua família. Embalada pela forte exposição na televisão, a partir dos programas do seu partido, Roseana ficou nesse período em 2º lugar na disputa, chegando a ficar apenas 3% atrás de Lula na pesquisa Datafolha de 20 e 21 de fevereiro. Nessa pesquisa, na simulação de 2º turno, ela vencia Lula (por 51% a 39%). Roseana provavelmente teria dificuldades quando começasse o horário eleitoral, mas foi derrubada antes, em 1º de março, devido à apreensão, pela Polícia Federal, de um enorme montante de dinheiro em espécie na sede da empresa Lunus, de sua propriedade. Durante semanas houve exposição televisiva da literalmente "montanha" de dinheiro, para a qual foram dadas diversas versões em poucos dias, o que minou a credibilidade da candidata. Após uma queda de 24% para 13% em 45 dias, Roseana renuncia à pré-candidatura na metade de abril.

Em junho começou a "onda Ciro Gomes"; Ciro era ex-Governador do Ceará e ex-Ministro da Fazenda no governo Itamar Franco. Com a forte exposição na televisão e com a participação de Patrícia Pilar, sua namorada e popular atriz, cresceu de 11% em 7 de junho para 28% em 30 de julho – seu auge em toda a campanha, quando ficou em 2º lugar, apenas 5% atrás de Lula. Na simulação de 2º turno, Ciro passava Lula (48% contra 44%). Na pesquisa seguinte, na metade de agosto, Ciro manteve-se estável, oscilando apenas um ponto e empatando com Lula na simulação de 2º turno. A partir daí, após o início do Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita (HPEG), Ciro começou a cair. Dentre os principais motivos para a queda, pode-se salientar: a campanha negativa de Serra (no 1º debate, em 4 de agosto e desde o início do HPEG, em 20 de agosto), mostrando afirmações de Ciro que não corresponderiam à verdade (o salário mínimo quando Ciro foi Ministro da Fazenda, em 1994, não teria sido de US$ 100 e Ciro não teria cursado apenas escola pública, como afirmava), de modo a associá-lo a uma imagem de mentiroso. A propaganda de Serra mostrava também declaração de Ciro chamando eleitores de "burros", tentando associá-lo à imagem de destemperado; da mesma forma, houve declarações infelizes do candidato, especialmente quanto ao papel de Patrícia Pilar em sua campanha. Tudo isso contribuiu para minar sua credibilidade junto a parcela do eleitorado. O declínio de Ciro foi contínuo até às vésperas do 1º turno: caiu de 27% das intenções de voto, na metade de agosto, para 11% na última pesquisa antes do 1º turno (e no resultado efetivo da eleição). A queda de Ciro foi acompanhada pelo crescimento de Serra, Garotinho e Lula.

Quanto a Garotinho – ex-Governador do Rio de Janeiro –, esteve à frente de Ciro entre janeiro e o início de junho de 2002 e ao final da campanha (de 20 de setembro em diante). Seu ponto mais alto foi na última pesquisa (em 4 e 5 de outubro), quando atingiu 17%3 3 Caso considerássemos os percentuais de Garotinho em fevereiro (14%) e março (15%) no cenário em que Roseana aparecia na pergunta, dado que nesses meses ele tinha 18% no cenário em que não entrava o nome de Roseana. .

A Tabela 1 mostra a evolução das intenções de voto em uma terceira candidatura, além das de Lula e de Serra. Como se vê, até abril de 2001 a soma das intenções de voto em terceiros candidatos era superior às intenções de voto em Lula. Com a desistência de Roseana, as candidaturas que mais cresceram foram as de Serra e de Lula, até a metade de maio, quando este último ultrapassa a soma das intenções de voto nos terceiros candidatos). A partir do início de junho, com a grande exposição de Ciro na televisão, foi ele quem cresceu, enquanto todos os demais candidatos declinaram até o final de julho. Nesse momento, a soma das intenções de voto em Ciro e Garotinho ultrapassou as de Lula. Com a queda de Ciro, a partir da metade de agosto, os outros três candidatos cresceram, mas já ao final de agosto Lula ultrapassou a soma de Ciro e Garotinho e isso se manteve até o dia da eleição.

Ou seja, durante boa parte da campanha houve um espaço para uma terceira candidatura, além da polarização Lula-Serra. Em alguns momentos (dezembro de 2001 a abril de 2002; julho de 2002 até metade de agosto de 2002), a soma de votos em terceiros candidatos ultrapassava as intenções de voto em Lula. Mesmo após a saída de Roseana e o declínio de Ciro, havia algum espaço para essa terceira candidatura. O resultado eleitoral mostrou que além dos 42% dos eleitores que votaram em Lula e dos 21% que votaram em Serra, havia, ao final da campanha, um contingente significativo de 27% dos eleitores que votou em uma terceira opção. Garotinho chegou ao final da campanha muito próximo a Serra. Uma coisa que parece ter sido fundamental para a vitória de Lula é que, nos momentos de declínio de Roseana ou Ciro, parte dos votos acabou indo para Lula: em grande parte isso se deu porque a campanha de Lula conseguiu neutralizar eficientemente dois aspectos centrais da rejeição ao candidato em outras eleições: de um lado, o "radicalismo" de Lula e do PT; de outro, o "despreparo" de Lula para governar. A sinalização clara de moderação por parte do PT e de Lula – coligação com o Partido Liberal; a escolha de um grande empresário para candidato a vice-Presidente; a Carta ao povo brasileiro, assumindo compromisso com a manutenção dos contratos, metas de inflação e superávit primário – contribuiu para reduzir o medo de certas camadas em relação ao "radicalismo" petista e de Lula. Pesquisa do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, ao final de 1997, mostrava que cerca de 10% do eleitorado brasileiro apontava esse "radicalismo" como razão para não votar em Lula (rejeição). Outros 10% diziam não votar em Lula por questões relacionadas ao seu "despreparo" para governar. Aqui, também, a ênfase dada na campanha de Lula à sua capacidade de negociação e liderança (nos âmbitos sindical e partidário) parece ter contribuído para reduzir aquelas resistências a Lula. É necessário, porém, admitir que esse trabalho de propaganda foi facilitado por aspectos políticos mais gerais. A grande insatisfação com a situação do país reforçava as possibilidades das candidaturas de oposição. Lula era o principal beneficiário potencial, já que tinha um nome e uma trajetória mais conhecidos pelo conjunto do eleitorado. Quando a campanha começou, o fato de os outros candidatos terem que disputar o segundo lugar, para então passarem ao 2º turno, permitiu a Lula manter uma "postura de estadista", com uma campanha assertiva e com o estilo "paz e amor", enquanto os demais brigavam entre si.

Embora o candidato do governo contasse com certo eleitorado potencial entre os cerca de 25% dos eleitores que avaliavam bem o governo FHC, havia de fato, antes de a campanha iniciar, uma forte predisposição contra o candidato governinsta – qualquer que fosse esse candidato. Assim, as deficiências de outras candidaturas aliadas a uma predisposição maior a votar em Lula e uma boa campanha deste candidato acabaram definindo o resultado.

Nas seções seguintes analisaremos as relações entre os votos dos eleitores e diversas variáveis potencialmente relevantes na decisão dos eleitores.

III. VARIÁVEIS DEMOGRÁFICAS, ECOLÓGICAS E SÓCIO-ECONÔMICAS

A análise da pesquisa Datafolha imediatamente anterior ao 1º turno mostra algumas variações nas intenções de voto relacionadas a algumas das variáveis investigadas. Assim, Lula teve uma votação um pouco menor entre as mulheres e os mais velhos, nos dois turnos. No 1º turno as intenções de voto em Lula cresceram com a escolaridade: 42% entre eleitores com até 1º Grau e 52% entre eleitores com nível superior de escolaridade. O mesmo ocorreu com Ciro: 9% e 15%, respectivamente. Garotinho, de outro lado, declina: 19% e 9%, respectivamente. No 2º turno, houve uma pequena variação apenas junto aos eleitores com Ensino Médio de escolaridade, entre quem Lula venceu Serra por 34% de diferença (contra 26% na média da pesquisa de 4 e 5 de outubro). Nas outras faixas de escolaridade não houve desvios significativos em relação à média. Em relação à renda, as tendências foram muito semelhantes às encontradas para escolaridade. Não havia dados disponíveis em relação à religião dos eleitores.

Quanto ao porte dos municípios, no 1º turno Lula teve uma taxa de intenção de voto um pouco maior (47%) nos municípios de maior porte populacional, comparativamente aos menores municípios (42% das intenções de voto). Garotinho teve uma vantagem mais acentuada (20% e 12%, respectivamente). A tendência de Serra foi oposta (14% e 26%, respectivamente). No 2º turno, Lula cresceu e Serra declinou à medida que se passou dos municípios menores aos maiores, de tal forma que a diferença entre os dois candidatos cresceu continuamente, de 11% (no conjunto dos municípios com menos de 10 000 eleitores) a 36% (no conjunto dos municípios com mais de 150 000 eleitores). Parece ter havido uma tendência maior de voto oposicionista ou reformista nos maiores centros.

No que se refere à distribuição dos votos segundo as regiões do país, a variação das intenções de voto foi pequena para quase todos os candidatos. Talvez a variação mais significativa tenha sido a expressiva votação de Ciro no Nordeste, sua base eleitoral. Não é possível perceber nenhum tipo de clivagem do tipo da encontrada por Soares (1973) para o período 1945-1964, em que se distinguiam comportamentos nitidamente diferentes entre o "Brasil desenvolvido" (Sul-Sudeste) e o "Brasil subdesenvolvido" (Norte-Nordeste-Centro-Oeste). Talvez isso se deva ao fato de que, em um pleito como o para Presidente da República, o peso da política local nos estados menos industrializados (ou "subdesenvolvidos") é hoje bem menor do que foi décadas atrás.

De modo geral, portanto, apesar de alguns diferenciais, o peso das variáveis de natureza ecológica, demográfica ou sócio-econômica não parece ter sido muito relevante no resultado das eleições presidenciais de 2002.

IV. IDENTIDADE IDEOLÓGICA E VOTO

Segundo Singer (2000), um dos fatores mais relevantes na decisão de voto nas eleições presidenciais de 1989 e 1994 foi a "identidade ideológica" dos eleitores. Essa identidade seria "medida" por meio de resposta a uma questão de survey em que os eleitores autoposicionaram-se em uma escala "esquerda-direita".

Embora não tenhamos tido acesso a dados relativos a essa variável para o conjunto do país, é relevante mencionar aqui alguns dados relativos a uma survey aplicada em maio de 2002 na região da Grande São Paulo4 4 Survey aplicada a 1 500 eleitores, no âmbito da pesquisa Partidos e representação política: o impacto dos partidos na estruturação da escolha eleitoral no Brasil, coordenada pela Profª Drª Maria D'Alva Gil Kinzo (Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP)) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). . Duas ressalvas são necessárias: 1) evidentemente, as conclusões sobre a relação entre as variáveis voto e "identificação ideológica" não podem ser extrapoladas diretamente para o conjunto do eleitorado brasileiro; todavia, podem fornecer indicações para a análise; 2) a survey foi aplicada em maio, quase cinco meses antes do 1º turno, retratando, portanto, apenas o quadro eleitoral naquele momento, em que Enéas Carneiro (Partido da Reconstrução da Ordem Nacional (PRONA)) ainda era considerado um potencial candidato. De toda forma, como a hipótese envolvida é a de um voto por uma identificação ideológica que seria duradoura, a relação entre as duas variáveis não se deveria modificar substancialmente pelo fato de os dados terem sido coletados meses antes da eleição.

A Tabela 2 mostra o cruzamento entre identificação ideológica do eleitor e seu voto:

Como se vê, as intenções de voto em Lula foram bem maiores entre os eleitores que se posicionavam à esquerda (59%) do que entre os que se posicionavam à direita (34%). Isso se inverte para o candidato situacionista (Serra): entre os eleitores que se posicionavam à direita, as intenções de voto nesse candidato eram três vezes maiores do que entre os que se posicionavam à esquerda. Mas há muitos indícios de que a associação entre essa variável e o voto não foi muito forte: Lula vencia mesmo entre os eleitores posicionados à direita; além de a variável influenciar pouco o voto em Garotinho, o sentido da associação é o contrário do esperado para o candidato Enéas, que, para a maioria dos analistas, seria situado como o mais à direita do espectro e, no entanto, tinha intenções de voto um pouco maiores entre os eleitores situados à esquerda.

A Tabela 3 completa a análise a respeito da associação entre as variáveis, mostrando os coeficientes (gama) de correlação entre elas, segundo a escolaridade dos eleitores. Como pode haver discordâncias a respeito da forma de ordenar os candidatos segundo um contínuo esquerda-direita, foram calculados os coeficientes de correlação para três formas diferentes de operacionalizar a variável "intenção de voto" (a cada uma correspondendo um certo ordenamento dos candidatos em um contínuo desse tipo).

As correlações para o conjunto dos eleitores que simultaneamente pretendiam votar em algum candidato e posicionavam-se na escala são relativamente baixas (0,21 a 0,28), qualquer que seja a forma de operacionalizar a variável "intenção de voto"; com exceção da passagem da 1ª para a 2ª faixa de escolaridade, as correlações crescem com o crescimento da escolaridade, atingindo valores acima de 0,50 entre os eleitores com nível superior de estudos.

Esses resultados são muito semelhantes aos encontrados por Carreirão (2002) em diversas pesquisas nacionais feitas de 1989 para cá, indicando que varia muito com a escolaridade do eleitor não só o seu entendimento sobre o significado dos termos "esquerda" e "direita" como o grau de associação entre o posicionamento do eleitor em uma escala "esquerda-direita" e sua intenção de voto. Isso reforça a possibilidade de que as conclusões que seriam observadas em um survey nacional em 2002 seriam semelhantes às encontradas no survey da Grande São Paulo, em que, embora o posicionamento dos eleitores em uma escala "esquerda-direita" seja um fator correlacionado de maneira significativa com o voto entre os eleitores de alta escolaridade, essa associação declina à medida que passamos para as faixas de menor escolaridade.

V. PREFERÊNCIA PARTIDÁRIA E VOTO

De maneira semelhante às outras eleições presidenciais (1989, 1994 e 1998), no 1º turno a preferência partidária foi um bom preditor do voto entre os eleitores que manifestaram alguma preferência partidária. Mas apenas 42% dos eleitores manifestaram preferência por algum partido às vésperas do 1º turno, na pesquisa Datafolha de 2 de outubro (e 44% no 2º turno)5 5 Esses percentuais são um pouco mais baixos do que a média dos últimos 14 anos. Analisando 62 medições feitas pelo Instituto Datafolha, Carreirão e Kinzo (2004) mostraram que no período entre 1989 e 2002 as taxas de preferência partidária variaram de 38% a 57% do eleitorado nacional, com uma média de 46% para o conjunto do período. . Entre os que manifestavam preferência partidária por algum partido, havia diferenças significativas quanto à efetivação dessa preferência em um voto pelo candidato desse partido: no 1º turno, 91% dos eleitores com preferência pelo PT votavam em Lula; 61% dos eleitores com preferência pelo PSDB votavam em Serra. Os percentuais eram bem menores entre os eleitores com preferência por outros partidos: 32% dos eleitores do PMDB pretendiam votar em Serra, candidato da coligação de que o PMDB fazia parte; 24% dos eleitores com preferência pelo PTB e 16% dos eleitores com preferência pelo PDT pretendiam votar em Ciro Gomes, candidato da coligação de que esses partidos faziam parte.

No conjunto, podemos dizer que cerca de 25% dos eleitores pretendia votar no candidato do partido (ou da coligação em que estava envolvido o partido) por que manifestava preferência. Cerca de 3,5% dos eleitores preferiam o PFL, que não apoiou oficialmente nenhum candidato. Em torno de 10% votavam em outro candidato que não o apoiado por seu partido de preferência e outros 3,5% manifestavam preferência por "outros partidos" (não discriminados pelo Datafolha, não sendo possível, portanto, analisar a relação entre essas preferências e o voto). Mesmo que parte dos últimos 13,5% votasse estrategicamente (ou seja, em um candidato que não o de seu partido, mas em um com chance de derrotar a "pior opção"), alcançaríamos no máximo pouco mais de 1/3 dos eleitores com voto partidário ou estratégico. Esses dados são muito semelhantes aos das eleições anteriores à de 2002 (cf. CARREIRÃO & KINZO, 2004).

No 2º turno, a situação ficou mais simplificada, levando a um pequeno aumento do voto em conformidade com a preferência partidária: na última pesquisa Datafolha antes do 2º turno para que havia dados sobre preferência partidária no sítio do Instituto Datafolha (pesquisa de 18 de outubro), os dados foram os seguintes: 96% dos eleitores com preferência pelo PT e 74% com preferência pelo PDT (que apoiou Lula no 2º turno) pretendiam votar em Lula; 71% dos eleitores com preferência pelo PSDB e 50% dos eleitores do PMDB pretendiam votar em Serra. Para o conjunto do eleitorado, 56% não manifestava preferência por nenhum partido; cerca de 30% dos eleitores pretendiam votar no candidato do partido (ou da coligação que envolvia o partido) por que manifestava preferência. Em torno de 6% votava em outro candidato que não o apoiado por seu partido de preferência. Cerca de 8% dos eleitores preferiam o PFL ou "outros partidos". Mesmo que parte desses 14% votasse no candidato apoiado por seu partido ou estrategicamente, alcançaríamos em torno de 40% dos eleitores com voto partidário ou estratégico.

Portanto, de maneira semelhante às outras eleições presidenciais recentes, a preferência partidária foi um bom preditor do voto entre os eleitores que manifestaram alguma preferência partidária. Especialmente entre os eleitores que manifestam preferência pelo PT (partido com as maiores taxas de preferência partidária – em torno de 20% do eleitorado nacional no momento da eleição), é muito forte a asssociação dessa preferência com o voto. Mas a maioria dos eleitores (56 a 58% dos eleitores) não manifestava preferência por nenhum partido.

Todavia, é importante observar que a preferência por um partido não é a única forma de manifestar sentimentos pelos partidos: uma parcela significativa dos eleitores manifesta rejeição a algum. Embora esse tipo de análise seja praticamente inexplorada no país, alguns dados esparsos permitem supor que a manifestação de rejeição aos partidos associe-se fortemente com o voto. Carreirão e Kinzo (2004) mostram que em survey nacional realizada em 1997 pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, dos eleitores que manifestavam rejeição por algum partido (41% da amostra), apenas 2% votavam no candidato desse partido. Nas surveys nacionais referentes a 2002 a cujos dados tivemos acesso, não há questões sobre rejeição partidária. Os dados da survey, já mencionada, com eleitores da região da Grande São Paulo, no entanto, levam a resultados semelhantes aos mencionados acima: dos eleitores que manifestavam rejeição por algum partido (47% da amostra), apenas 4% pretendiam votar no candidato do partido rejeitado.

Concluindo, a forma como os "sentimentos partidários" dos eleitores brasileiros influenciam sua decisão de voto parece que ainda precisa ser melhor estudada. Embora não pareça razoável supor que um voto partidário seja predominante, os dados mostram que, quando se incorpora a rejeição a partidos, a influência dos "sentimentos partidários" dos eleitores sobre seu voto parece bem maior do que quando consideramos apenas as manifestações de preferência partidária.

VI. AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO GOVERNAMENTAL E VOTO

Como já se mencionou no início deste trabalho, um elemento central do contexto em que se deu a eleição presidencial foi a avaliação que o eleitorado fazia do desempenho do governo FHC: o percentual de eleitores que ainda avaliavam positivamente o governo era suficiente para que um candidato situacionista pudesse chegar ao 2º turno, mas era insuficiente para que pudesse vencê-lo.

As tabelas 4 e 5 mostram as intenções de voto dos eleitores nos 1º e 2º turnos, de acordo com sua avaliação do governo FHC. Mesmo havendo certas discrepâncias, a tendência geral é muito clara: no 1º turno, Serra, embora não tivesse mais votos do que os candidatos de oposição somados, era, individualmente, o mais votado entre os eleitores que avaliavam o governo positivamente e a predisposição para votar em Serra entre esses eleitores era cinco vezes maior do que entre os eleitores que avaliavam o governo negativamente.

No 2º turno, embora Lula obtivesse 40% dos votos entre eleitores que avaliavam positivamente o governo FHC, Serra venceria a eleição, caso ela tivesse ocorrido apenas com esses eleitores, já que nessa parcela do eleitorado ele vencia Lula por uma diferença de 15% (55% contra 40%). Já entre os eleitores que avaliavam o governo FHC negativamente, Lula vencia por uma diferença de 66% (79% contra 13%). Entre os eleitores que avaliavam o governo como regular, a média era de dois votos em Lula para cada voto em Serra (nos dois turnos).

Concluindo, os dados mostram que, se entre os eleitores que avaliavam bem o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso o candidato do governo era o melhor posicionado (nos dois turnos), a insatisfação da maioria do eleitorado com o governo em exercício, indicada acima, efetivamente se materializava em uma baixa votação para Serra.

É necessário, entretanto, considerar que a avaliação de desempenho do governo FHC poderia ser influenciada por fatores político-ideológicos, como a "identidade ideológica" (posicionamento em uma escala "esquerda-direita") ou os sentimentos dos eleitores em relação a partidos. Como não é possível verificar essas hipóteses a partir dos dados nacionais disponíveis no sítio do Instituto Datafolha, analisaremos nas tabelas 6 a 8 os dados de cruzamentos dessas variáveis com a intenção de voto, referentes à survey aplicada a eleitores da região da Grande São Paulo.

Como vemos na Tabela 6, embora a associação seja fraca (coeficiente de correlação de 0,11), há, realmente, uma tendência maior dos eleitores posicionados à esquerda de avaliarem o governo negativamente, comparativamente aos eleitores posicionados ao centro ou à direita. As avaliações positivas crescem continuamente à medida que passamos dos eleitores posicionados à esquerda para os posicionados ao centro e à direita.

A Tabela 7 mostra-nos que a avaliação do governo FHC variou significativamente com a preferência partidária dos eleitores: 43% dos eleitores que manifestavam preferência pelo PT e 44% dos que manifestavam preferência por outros partidos de esquerda avaliavam o governo negativamente. Entre os eleitores que manifestavam preferência pelo PSDB, o percentual dos que tinham uma avaliação negativa era muito menor (14%); já entre os eleitores com preferência por outros partidos que haviam feito (em algum momento) parte da coalizão que apoiava aquele governo, os percentuais dos que o avaliavam negativamente assumiam valores intermediários (de 23% a 34%). Devem ser feitas duas ressalvas: em primeiro lugar, a associação entre essas variáveis não é extremamente forte, já que as diferenças de avaliação do governo conforme o partido de preferência dos eleitores não são muito elevadas (comparem-se, por exemplo, eleitores com preferência pelo PT e pelo PMDB); além disso, essa associação só existe para eleitores que manifestaram preferência por algum partido (que correspondem a apenas 42% da amostra).

Mas, como já foi dito, as manifestações dos eleitores em relação a partidos não se resumem às preferências, incluindo também a rejeição que tenham a algum(ns) deles. A Tabela 8 mostra os dados relativos a essas manifestações.

Com exceção do PTB, cujos dados são pouco confiáveis devido ao pequeno número de casos (8), para os demais partidos a associação é de natureza simétrica à anterior: entre os eleitores que rejeitavam o PT encontra-se o maior percentual de eleitores que avaliavam o governo positivamente (25%); no extremo oposto, vemos que apenas 5% dos eleitores que rejeitavam o PSDB avaliavam o governo positivamente. Entre os eleitores que rejeitavam outros partidos de esquerda a avaliação era um pouco menos favorável ao governo do que entre os eleitores que rejeitavam o PT. Os demais partidos ficavam em posições intermediárias. Deve-se ressalvar que, além de a associação não ser extremamente forte, há uma superposição parcial entre os dados das duas últimas tabelas, já que uma parcela dos eleitores simultaneamente manifestava preferência por um partido e rejeição por outro.

De toda forma, mesmo considerando as ressalvas indicadas na análise das tabelas 6 a 8, a tendência mais geral que elas apontam é a de que, pelo menos para os eleitores da Grande São Paulo, há associações entre, de um lado, a avaliação do governo FHC e, de outro, a identidade ideológica e os sentimentos partidários dos eleitores. Pode-se especular, portanto, que parte da avaliação do governo já seria determinada pelos posicionamentos político-ideológicos prévios dos eleitores. Nesse caso, a interpretação sobre o peso que a avaliação do governo parece ter na decisão de voto deveria considerar esses determinantes prévios daquela avaliação e, portanto, da escolha eleitoral. Um problema, porém, é o de estabelecer o sentido da relação de causalidade: seria possível pensar que um eleitor, em um determinado momento, avalia positivamente o governo e manifesta sentimentos positivos em relação a partidos que apóiem esse governo (e/ou sentimentos negativos em relação a partidos de oposição); em um momento posterior, avaliando esse governo negativamente, o mesmo eleitor poderia passar a manifestar sentimentos opostos aos anteriores. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que, durante o segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, houve um crescimento sensível da preferência pelo PT, enquanto no primeiro mandato não houve esse crescimento – houve, inclusive, alguns momentos de um pequeno declínio. Por outro lado, a preferência pelo PSDB não se alterou muito ao longo dos dois mandatos. Não foi possível, no âmbito deste trabalho, realizar análises multivariadas que permitissem postular com maior embasamento o sentido de uma possível relação de causalidade entre sentimentos partidários (ou identidade ideológica) e avaliação do governo6 6 Realizaremos esse tipo de análise em momento posterior – daí o caráter preliminar da presente análise, destacado no título deste artigo. . Mas, de qualquer modo, a associação verificada entre essas variáveis revela um processo de decisão de voto que parece envolver interrelações complexas entre essas variáveis.

VII. MOTIVOS DO VOTO

Uma análise que complementa as anteriores e fornece-nos pistas para melhor entender a motivação do voto do eleitor será feita a partir das respostas dadas pelos próprios eleitores a respeito dessa motivação. Esse estudo é relevante, também, porque permite incluir na análise a avaliação que os eleitores fazem de certos atributos pessoais dos candidatos – variável que não é enfatizada nas perguntas fechadas feitas nas surveys do Instituto Datafolha a que tivemos acesso.

Uma pesquisa nacional do Instituto Datafolha realizada em 11 de outubro de 2002 (e cujos dados foram publicados no jornal Folha de São Paulo de 18.out.2002) perguntava aos eleitores quais os motivos de seu voto (declarado) no 1º turno. Apresentaremos, inicialmente, as principais motivações dos eleitores, para cada candidato.

As categorias de motivos mais apontadas como razões para o voto em Lula foram: "propostas para geração de empregos" (30% dos eleitores de Lula); "para mudar" (29%), "voto de confiança" (15%), "propostas para a área social" (12%) e "simpatia ideológica" (11%). Talvez se pudesse resumir as principais motivações do voto em Lula em expectativa de mudança, especialmente no que se refere às questões do desemprego e da "área social".

Entre os eleitores de José Serra houve um predomínio claro das menções a seu desempenho administrativo anterior (42% das menções, sendo 27% "desempenho na saúde" e 15% "desempenho no governo"). Outras 12% são menções à "continuidade do governo FHC". As "propostas" do candidato respondem a 23% das menções: 13% para "propostas de geração de empregos" e 10% para "propostas de saúde". Resumindo: desempenho administrativo (seu e do governo a que se ligava) e propostas para as áreas de emprego e saúde.

Em relação a Garotinho, o maior número de menções, individualmente, foi relativo à "escolha religiosa": 27% declaram ter votado em Garotinho "por ele ser evangélico" (24%) ou "por ser temente a Deus" (3%). Essa é uma novidade na história recente das eleições presidenciais: pela primeira vez, desde 1989, um candidato relevante (com chances de ir ao 2º turno) teve como principal motivação de votos declarados por seus eleitores o fator religioso. A 2ª resposta mais mencionada (por 21% de seus eleitores) foi relacionada a salários ("aumentou/vai aumentar"). O bom desempenho no governo veio a seguir, com 15% das menções. Outros 13% indicavam o "bom plano de governo" e 9%, "propostas para geração de empregos"; 6% indicavam os "restaurantes populares" ("criou/vai criar"). Resumindo: as principais motivações declaradas de voto em Garotinho foram: escolha religiosa, desempenho administrativo e propostas – e note-se que algumas das propostas mencionadas, como aumento dos salários e criação de restaurantes populares, embora possam ser definidas como populistas (no sentido de ter uma aceitação fácil por parte de grande parte dos eleitores, mas sem uma preocupação clara com os possíveis impactos sobre o quadro macroeconômico do país), tinham como respaldo realizações de Garotinho no governo do Rio de Janeiro.

As principais motivações de voto em Ciro Gomes disseram respeito às propostas do candidato (31% no total, sendo 14% referentes à "geração de emprego" e 17% ao "plano de governo"), às suas "qualidades pessoais" (30% no total, sendo 12% referentes à "competência"; 10% mencionaram o fato de o candidato ser "bem informado/inteligente" e 8% apontaram-no como "honesto/verdadeiro") e ao "bom desempenho no governo" (13%). Resumindo: qualidades pessoais (com destaque para a competência/capacidade administrativa) e propostas.

A Tabela 9 agrega as diversas motivações dos eleitores para o voto nos quatro principais candidatos no 1º turno. Aqui foram multiplicados os percentuais de respostas relativas a cada motivação pelos percentuais de votos efetivos dos candidatos no 1º turno, de modo a termos uma medida da relevância das principais motivações de voto (nos quatro principais candidatos), no conjunto dos eleitores. Assim, os percentuais que aparecem na última coluna referem-se ao conjunto de eleitores da amostra e não aos eleitores de cada candidato.

Algumas das principais conclusões:

1) Em contraste com dados de pesquisas de outras eleições (especialmente 1989 e 1994), as propostas e planos de governo dos candidatos foram os motivos mais mencionados (30% do total, sendo 19% especificamente referidos a "propostas de geração de empregos" dos quatro principais candidatos). Se houve um tema central nessa eleição, foi o tema do emprego: o problema do desemprego era mencionado como o mais importante e as propostas para geração de emprego estiveram entre os principais motivos do voto. Foi a resposta mais mencionada pelos eleitores de Lula; a segunda mais mencionada pelos eleitores de Ciro; a terceira mais indicada pelos eleitores de Serra e a quinta mais indicada pelos eleitores de Garotinho; entre os eleitores de Garotinho houve menções a duas outras propostas (aumento dos salários e criação de restaurantes populares). Se somássemos essas menções, chegaríamos a 34,5% do conjunto das respostas. Mas é importante ressaltar que a forma como as respostas foram agregadas (na reportagem da Folha de São Paulo) envolve menções às propostas (para o futuro: "vai aumentar salários"; "vai criar restaurantes populares") e menções ao desempenho (passado: "aumentou salários; criou restaurantes populares");

2) um segundo conjunto de menções é justamente relativo ao desempenho/competência administrativa. Somando as menções de eleitores de Serra, Garotinho e Ciro ao "bom desempenho no governo" (9,5%) com as menções ao "desempenho na saúde" (3%), mais as menções à "competência" de Ciro (1,3%), chegamos a quase 14% do conjunto das respostas;

3) logo a seguir vêm as menções à "mudança". "Para mudar" foi a resposta dada por 13% dos eleitores (quase todos, eleitores de Lula).

4) uma categoria que parece associar-se à da "mudança" é a do "voto de confiança" em Lula (6% do conjunto das menções). Aqui o que pode estar em jogo é, na realidade, uma certa "desconfiança" na capacidade de Lula de fazer um bom governo, por parte de eleitores que não votaram nele nas outras eleições, mas que, ainda assim, estariam dispostos a apostar nele, para ver se ele conseguiria "melhorar as coisas" (o que Collor e FHC, adversários de Lula nas eleições anteriores, não teriam feito);

5) um outro tipo de respostas refere-se à "escolha religiosa" (27% dos eleitores de Garotinho, correspondendo a 4,3% do conjunto de respostas de todos os eleitores) e

6) outras motivações apontadas: continuidade do governo FHC (2,5%, para Serra) e outras qualidades pessoais (2%, para Ciro).

VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conjunto dos dados analisados ao longo do trabalho reforça a avaliação de que o processo de decisão de voto parece envolver um conjunto razoável de variáveis, ponderadas de maneira diferenciada por diferentes tipos de eleitores. Além disso, essa decisão dá-se dentro de um contexto eleitoral em que, de um lado, os problemas mais importantes a serem enfrentados por um novo Presidente podem ser diferentes dos de outras eleições; de outro, a oferta de candidatos – com suas características, qualidades e defeitos – é também um elemento fundamental, na medida em que constrange as possibilidades de decisão do eleitor. Aspectos específicos podem ter um peso próprio em uma eleição, embora não em outras, devido a características específicas dos candidatos em disputa. É o caso da religião, que, embora não tenha pesado nas eleições presidenciais anteriores, teve um peso importante na votação de Garotinho. Entre as propostas dos candidatos, as que tiveram maior consideração por parte dos eleitores foram as relacionadas ao emprego: o desemprego foi realmente o grande tema da disputa eleitoral, diferentemente das eleições anteriores (especialmente em 1989 e em 1994), em que a estabilidade econômica (combate à inflação) foi mais central.

Dentre os fatores analisados, a "identificação ideológica" parece ter tido influência razoavelmente forte entre os eleitores de mais alta escolaridade, mas não entre os de baixa escolaridade, que são a maioria do eleitorado brasileiro. Os sentimentos em relação a partidos também parecem ter um peso razoável, para aqueles eleitores que os manifestam (que representam uma parcela maior do que aquela que têm sido privilegiada nos trabalhos recentes: a que manifesta preferência por algum partido). Além disso, os fatores acima parecem também estar em parte entrelaçados – embora não totalmente sobrepostos – a outros fatores, como as avaliaçôes feitas pelos eleitores do desempenho do governo em exercício e de atributos pessoais dos candidatos (especialmente a competência administrativa).

O ponto que parece ter sido central é o de que a avaliação do desempenho do governo FHC era majoritariamente negativa no momento da eleição. Isso se devia, em parte, ao desgaste do governo após oito anos, mas, fundamentalmente, às altas taxas de desemprego e à manutenção de enormes desigualdades sociais: houve uma percepção majoritária de que o governo FHC não fez o suficiente para melhorar a vida das pessoas mais pobres. Serra, embora com boa votação entre os eleitores que avaliavam o governo positivamente, tinha a credibilidade de suas propostas questionada pela grande maioria do eleitorado, devido à sua forte vinculação com o governo.

Ciro e Garotinho beneficiaram-se dessa limitação do candidato situacionista, especialmente entre eleitores que avaliavam positivamente seus desempenhos administrativos e rejeitavam Lula e/ou o PT. Mas esses candidatos, além das debilidades próprias de suas candidaturas, esbarraram no fato de que Lula e o PT representavam de maneira muito mais nítida o núcleo duro da oposição a FHC. O issue mais importante era o problema do desemprego e as propostas de Lula para combatê-lo tinham mais credibilidade, menos por seus aspectos técnicos, do que pela origem e história política do candidato. O crescimento do PT, governando estados e municípios importantes, com boa avaliação em vários deles; a moderação crescente de seu discurso e uma estratégia de moderação na formação da chapa e na condução da campanha contribuíram para eliminar parte das resistências à candidatura de Lula.

Por fim, uma campanha que soube minimizar questionamentos que o candidato Lula sofrera nas outras eleições (quanto à sua capacidade administrativa) e disseminar a idéia de que era chegada a vez de dar uma oportunidade a Lula e ao PT de governar o país e fazer o que sempre propuseram e cobraram dos presidentes anteriores – tudo isso fez que o sentimento de que eram necessárias mudanças no rumo do país fosse canalizado, especialmente nas maiores cidades, majoritariamente para a candidatura Lula. Esse parece o significado mais claro do resultado final da eleição. Não se pode concluir, em nosso ver, que se tenha tratado de uma guinada duradoura à esquerda por parte do eleitorado brasileiro. Uma guinada desse tipo implicaria que um eventual descontentamento da maioria do eleitorado com o governo Lula – caso não seja bem avaliado ao final do mandato –, resultaria, por exemplo, na eleição presidencial de 2006, em uma votação à esquerda semelhante à obtida em 2002, seja no PT, seja em algum outro partido de esquerda (já existente ou a ser criado), que passaria a ser o beneficiário daquele descontentamento. Não nos parece haver evidências para afirmar isso. É igualmente possível que parte substantiva do eleitorado (suficiente, por exemplo, para eleger um Presidente), nesse caso, volte-se para uma alternativa mais ao centro do espectro político.

OUTRAS FONTES

Recebido em 15 de setembro de 2003

Aprovado em 8 de maio de 2004

Yan Carreirão (yan@cfh.ufsc.br) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

  • CARREIRÃO, Y. 2002. Identificação ideológica e voto para Presidente. Opinião Pública, Campinas, v. VIII, n. 1, p. 54-79, maio.
  • CARREIRÃO, Y. & KINZO, M. A. G. 2004. Partidos políticos, preferência partidária e decisão eleitoral no Brasil (1989-2002). Dados, Rio de Janeiro, v. 47, n. 1.
  • INSTITUTO DE PESQUISAS DATAFOLHA 2002. Eleições 2002 Intenções de voto para Presidente. Disponível em : http://www1.folha.uol.com.br/folha/datafolha/ Acesso em : 10.jun.2004.
  • SINGER, A. 2000. Esquerda e direita no eleitorado brasileiro São Paulo : USP.
  • SOARES, G. A. D. 1973. Sociedade e política no Brasil São Paulo : Difel.
  • Motivos do voto. 2002. Folha de S. Paulo, 18.out., p. 11.
  • 1
    Agradeço aos pareceristas anônimos da
    Revista de Sociologia e Política, cujas sugestões contribuíram para a inclusão de algumas das análises aqui realizadas e para a eliminação de alguns dos problemas do texto.
  • 2
    Os eleitores que avaliavam o governo FHC como "regular" antes do 1º turno de 2002 eram 40%. É necessário observar que, de 1989 para cá, com exceção do período pré-eleitoral de 1994, a grande maioria dos eleitores que avaliam o governo como "regular" tende a votar contra o governo – ou seja, a avaliação "regular" parece uma avaliação predominantemente negativa, conforme análise feita a partir dos dados de Carreirão e Kinzo (2004).
  • 3
    Caso considerássemos os percentuais de Garotinho em fevereiro (14%) e março (15%) no cenário em que Roseana aparecia na pergunta, dado que nesses meses ele tinha 18% no cenário em que não entrava o nome de Roseana.
  • 4
    Survey aplicada a 1 500 eleitores, no âmbito da pesquisa
    Partidos e representação política: o impacto dos partidos na estruturação da escolha eleitoral no Brasil, coordenada pela Profª Drª Maria D'Alva Gil Kinzo (Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP)) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 5
    Esses percentuais são um pouco mais baixos do que a média dos últimos 14 anos. Analisando 62 medições feitas pelo Instituto Datafolha, Carreirão e Kinzo (2004) mostraram que no período entre 1989 e 2002 as taxas de preferência partidária variaram de 38% a 57% do eleitorado nacional, com uma média de 46% para o conjunto do período.
  • 6
    Realizaremos esse tipo de análise em momento posterior – daí o caráter preliminar da presente análise, destacado no título deste artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Aceito
      08 Maio 2004
    • Recebido
      15 Set 2003
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