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Carta do editor

CARTA DO EDITOR

Caros leitores,

Chegamos ao final (queeeente!) de um ano muito produtivo com esta edição quentinha em suas mãos. Inicia com artigo muito interessante de Rafael de Bivar Marquese, mostrando que a agricultura escravista caribenha foi modelo para os reformistas da Ilustração luso-brasileira, que desejavam dinamizar a economia do Império português em finais do século XVIII (está por ser feita a análise das relações muito significativas entre Caribe e Brasil, no plano da medicina e saúde coletiva). Um dos mediadores da transmissão de saberes com esse objetivo foi frei José Mariano da Conceição Veloso, personagem de outro artigo recém-publicado por Manguinhos (v.16, n.1, jan.-mar. 2009). Neste número, Marquese põe em evidência o esforço do botânico mineiro para colocar à disposição dos brasileiros o que de melhor fora escrito sobre gêneros agrícolas cultiváveis na América. Veloso providenciou traduções de trabalhos elaborados nas possessões caribenhas inglesas e francesas, dando ênfase ao de Pierre-Joseph Laborie, The coffee planter of Saint Domingo (na edição inglesa de 1798), considerado a grande referência sobre o assunto até bem avançado o século XIX. O autor pertencia à Société Royale des Sciences et des Arts du Cap François, expressão do avanço científico da mais rica colônia escravista europeia do Novo Mundo, palco do levante de escravos que daria origem ao império independente do Haiti, em 1804, quando na França a revolução fizera já rolar cabeças de aristocratas do Antigo Regime. O trabalho de Laborie foi em parte motivado por esses eventos que abalaram as formações sociais escravocratas do continente. Marquese analisa a influência que teve na montagem da produção cafeeira em Cuba e no maciço da Tijuca, onde os cafezais propagaram-se rapidamente após a fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro. Examina também a ruptura com o modelo de Santo Domingo promovida pela cafeicultura escravista do Vale do Paraíba, para atender à massificação do mercado mundial do café.

À mesma ambiência histórica vincula-se o artigo de Moacir Rodrigo de Castro Maia, que por sua vez nos transporta para região mais intimista das moradias senhoriais, na passagem do século XVIII para o XIX: os jardins, em geral composições irregulares de canteiros de flores, pomar, horta e criação de pequenos animais, para obtenção de gêneros de subsistência e ervas medicinais, para deleite estético e ainda para refúgio das mulheres sujeitas ao cativeiro patriarcal. Com base em relatos de viajantes e outras fontes, Castro Maia põe em evidência o jardim que dom frei Cipriano de São José, bispo de Mariana (MG), construiu em seu palácio, jardim que surpreendeu o olhar cartesiano de Auguste de Saint-Hilaire justamente pela regularidade e simetria na disposição dos elementos naturais e artísticos. Aquele jardim era um testemunho da ligação do requintado frei com o reformismo ilustrado.

Não seria desarrazoado supor que na biblioteca do bispo de Mariana pudesse figurar Rapports du physique et du moral de l'homme (1802), de Jean Pierre George Cabanis, fisiologista e filósofo cuja trajetória está ligada ao desabamento do Antigo Regime francês. Frequentou os enciclopedistas e engajou-se na revolução, integrando o grupo de savants que ficaria conhecido como os idéologues, aos quais a Convenção de 1795 confiou a tarefa de fundar um novo centro de pensamento revolucionário, o Institut de France, que agrupava as cinco grandes academias francesas, inclusive a Académie des Sciences. Cabanis foi administrador dos hospitais de Paris e lecionava em sua Faculdade de Medicina quando publicou os Rapports, constituído, em parte, de memórias lidas no Institut de France.

Sandra Caponi analisa, em "Clima, cerebro y degeneración en Cabanis", duas dessas memórias, dedicadas ao tema das influências do regime e do clima sobre as características físicas e os hábitos morais de indivíduos e raças. Explora os argumentos materialistas utilizados por Cabanis para relacionar as alterações orgânicas indesejadas - principalmente aquelas sediadas no cérebro e no sistema nervoso - com a moralidade, introduzindo assim, no campo médico, a problemática da degeneração. Segundo a autora, Cabanis encontra-se a meio caminho entre as teses expostas por Buffon em De la generation des animaux (1776) e o livro de Benedict August Morel - Traité des dégénérescences physiques, intelectuelles et morales de l'espèce humaine (1857) -, que consolidaria um programa de investigação a que médicos, alienistas e higienistas se dedicariam por muito tempo.

Cada leitor é livre para fazer o percurso que melhor lhe convém na leitura da revista. O meu conduz às instigantes reflexões de Regina Horta Duarte em "História e biologia: diálogos possíveis, distâncias necessárias". São ainda poucos os profissionais que, no Brasil, atuam no domínio tão importante e promissor da história ambiental. Com produções importantes nesse campo, Horta Duarte tem aqui o seu momento Cabanis, de ideóloga empenhada em abrir 'janelas de comunicação' entre territórios profissionais que guardam ainda relações de estranhamento ou desconfiança, ambos prisioneiros da especialização e da consequente fragmentação do saber. História e biologia evolutiva, diz a autora, são inconcebíveis sem o acontecimento e o tempo. Acontecimentos são irreprodutíveis e não raro contingentes. Emergem em meio às condições existentes, não necessariamente determinantes, e as transformam. Nessa concepção de tempo e acontecimento como surgimento do que não existia (ou, por vezes, como reprodução do que já existia), não há lugar para teleologias, para a lógica do progresso, nem para a previsão do futuro a partir de raciocínios deterministas.

Há lugar, no entanto, para raciocínios probabilísticos, e eles estão do cerne das estatísticas, tecnologias a que recorrem, com crescente sofisticação, os Estados nacionais desde os tempos da Ilustração. Na linha dos estudos desbravadores de Nelson Senra, autor de "Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes", há pouco veiculado nesta revista (v.15, n.2, p.411-425, abr.-jun. 2008), Alexandre de Paiva Rio Camargo apresenta "Sociologia das estatísticas: possibilidades de um novo campo de investigação". A sociologia das estatísticas, escreve Camargo, busca reconhecer a pluralidade de papéis subjacente às estatísticas públicas: seus métodos e técnicas, demandas políticas de planejamento e coordenação, valores da cultura científica partilhada por estatísticos, economistas, demógrafos, cartógrafos, educadores, sociólogos e antropólogos. Ao investigar os diferentes atores que tomam parte na produção, as complexas traduções (no sentido latourniano) e as mudanças de significado e as interpretações que ocorrem, o enfoque sociológico mostra aos organismos geradores e aos usuários que há limitações e escolhas implícitas em todos os procedimentos estatísticos.

Disso certamente tinha consciência Eliot Freidson, um dos fundadores da sociologia das profissões, sobretudo a médica, cuja trajetória é analisada por André Pereira Neto, enfatizando não tanto suas ideias, mas processos e eventos, oportunidades e escolhas que condicionaram a carreira intelectual do professor da New York University.

Três outros artigos da presente edição trazem análises certamente úteis aos historioradores e sociólogos interessados nas profissões médicas.

Maria Goretti Queiroz e Luiz Fernandes Dourado examinam propostas para o ensino da odontologia contidas em documentos produzidos nos anos 1960: o relatório do Comitê de Expertos em Higiene Dental da Organização Mundial da Saúde e os anais de três seminários sobre ensino nessa área da saúde humana, promovidos pela Organização Pan-americana da Saúde, com apoio da Fundação Kellogg e Associação Latino-americana das Faculdades de Odontologia (Alafo). Os documentos trazem recomendações concernentes à formação de docentes, à integração de ensino e pesquisa e à adequação do ensino à realidade social dos países e regiões americanos, contemplando as distintas dimensões do processo saúde/doença. Os referidos seminários incentivaran alguns cursos de odontologia a aperfeiçoar a formação de recursos humanos, mas muitas daquelas 'novidades' não foram implementadas, por razões que os autores sugerem como temas para futuras investigações.

Por sua vez, Elisete Casotti, Victoria Maria Brant Ribeiro e Mônica Villela Gouvêa mapeiam a produção de conhecimentos sobre educação em odontologia no período de 1995 a 2006, com base em dissertações e teses do banco da Capes. Verificam que o processo é ainda incipiente, mas a riqueza de temas e atores sociais abordados demonstram a vitalidade do campo. As autoras a atrelam a movimento mais abrangente no âmbito da educação e da saúde, e consideram-na uma resposta da área da odontologia à discussão sobre a necessidade de formar profissionais de saúde capazes de lidar com os desafios sociais da realidade brasileira.

As relações entre ensino, pesquisa e assistência médica na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro são analisadas por Francisco Strauss e Jacqueline Leta, a partir de documentos e relatos de um grupo de professores do Departamento de Clínica Médica. Mostram que a atividade de pesquisa precede o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, mas sua inauguração em março de 1978, paralelamente ao desenvolvimento da pós-graduação e da epidemiologia clínica, incrementaram consideravelmente a pesquisa no âmbito da instituição. Quanto ao modelo de hospital universitário, permanece a divisão entre os que ainda o veem como centro produtor de conhecimentos e os que consideram que ele deve combinar múltiplos perfis, equilibrando ensino, pesquisa e assistência médica.

Os leitores que têm certamente a 'mufa' a ferver com a leitura de tantos temas espinhosos podem relaxar um pouco com "Folclore e medicina popular na Amazônia", de Márcio Couto Henrique. O texto, agradável de ler, propõe um objeto de investigação dos mais interessantes e traz bom levantamento de histórias e referências sobre o boto, protagonista de grande relevo nas lendas e mitos da região.

Finalizo destacando o debate sobre as epidemias de gripe - a de 1918-1919 e a 'suína', que grassou no corrente ano -, com a participação da mexicana Ana Maria Carrilo, dos argentinos Adriana Alvarez e Adrián Carbonetti e dos brasileiros Cláudio Bertolli, Nara Azevedo, Christiane Maria Cruz de Souza e Liane Maria Bertucci. O debate foi nossa primeira experiência de preprint no portal SciELO, e sai agora na revista em papel, com versão em inglês na edição eletrônica. Recomendo também que acessem a página e o blog sobre a gripe (http://h1n1.influenza.bvsalud.org/php/index.php?lang=pt; http://blog.h1n1.influenza.bvsalud.org/pt/), editados pela Bireme/Opas/OMS.

A todos os leitores e colaboradores desejamos que seja muito feliz o Natal ou Hanukkah ou Dhu al-Hijjah ou qualquer outra forma de congraçamento humano neste fim de ano, e que venhamos a nos reencontrar em 2010 banhados em luz e esperança, com garra para prosseguir as atividades que redundem em paz, saúde e sabedoria a todos homens, mulheres, crianças - inclusive para saber conservar este planeta e todas as formas de vida que nela habitam.

Jaime L. Benchimol

Editor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
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