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A sorte da carne. Topologia animal nos Andes meridionais* * Versões preliminares deste artigo foram apresentadas no Congreso Argentino de Antropología Social, no Seminário de Antropologia da USFCar, no Núcleo de Antropologia Simétrica do MN-UFRJ e na XI RAM. Agradeço a todos os organizadores e comentadores desses eventos a possibilidade de ter apresentado e discutido com eles minhas notas sobre Huachichocana. O trabalho de campo e a pesquisa foram parcialmente financiados graças ao projeto FONCyT PICT-2013-0365. O conteúdo do texto é de minha responsabilidade.

The flesh’s luck. Animal topology in Meridional Andes

Resumo:

Este artigo apresenta uma análise etnográfica das relações estabelecidas durante a matança e as carneadas de animais de criação em uma comunidade aborígine do noroeste da Argentina, na região dos Andes meridionais. Argumenta-se que a topologia que se exprime a partir desses processos expõe os modos em que o espíritu (ou ánimu) dos animais e a relação de sorte que eles compartilham com os pastores devem ser tirados para fora dos corpos, na tentativa de transformá-los em carne comestível. Assim, as operações de separar, dobrar e envolver, junto com o processo de desidratação, tornam-se relevantes na hora de compreender as relações entre distintos corpos e as conexões potenciais entre diferentes lados do mundo.

Palavras-chave:
Andes meridionais; animais; corpo; vísceras

Abstract:

This paper presents an ethnographic analysis of the relationships established during the killing and slaughter of farm animals in an Aboriginal community in the northwest of Argentina, in the region of the Southern Andes. It is argued that the topology that expresses these processes exposes the ways in which the espíritu (or ánimu) of animals and the relationship of luck they share with pastors should be drawn out of the body, to turn it into edible meat. Thus, operations of separating, folding and wrapping, together with the dehydration process become relevant in order to understand the relationships between different bodies and potential connections between different sides of the world.

Keywords:
animals; body; meridional Andes; viscera

Os mundos

Cheguei em Huachichocana dois dias depois de acontecer um episódio um pouco complicado entre uma família de pastores e um dos seus animais. Quase secretamente, contaram-me que o marido da pastora havia tido problemas para matar uma das suas cabras, pois como a faca não tinha passado bem, o animal não morreu devidamente e tinha sofrido. Porém, bem longe daquele corpo agonizante no chão – que eu imaginava enquanto escutava a história –, explicaram-me que a cabra tinha se levantado, com o pescoço meio cortado ainda, e começado a gritar aborrecida como que desafiando o homem que não conseguia matá-la. Os filhos presentes, que estavam ajudando, correram e seguraram novamente o animal no chão para que o encarregado de cortar o pescoço terminasse com o seu trabalho, dessa vez completamente. Ele conseguiu, mas a situação tinha sido muito feia e durante os poucos segundos que passaram, quebraram-se todos os protocolos e resguardos vinculados às matanças cotidianas dos animais. Claramente, a cabra não tinha morrido bem e quando eu cheguei todos ainda estavam atentos à manifestação de qualquer sinal ou indício de alerta sobre o ánimu do animal querendo voltar para se vingar deles e da sua sorte. O clima parecia-se com aquele do mês de agosto, quando a voracidade da Pachamama espreita à volta de qualquer caminho e todo mundo fica especialmente cuidadoso. No terceiro dia sem sinais, porém, a incomodidade familiar desapareceu e nunca mais voltaram a falar do assunto.

Este trabalho se ocupa de alguns dos problemas que sugere a situação anterior, acontecida em Huachichocana, uma pequena comunidade aborígene localizada entre as regiões das quebradas1 1 Na geografia local, “quebrada” se refere aos vales muito estreitos, encaixados entre montanhas e com ladeiras abruptas; em ocasiões, constituem-se em “passos” entre regiões ou lugares. e do altiplano de Jujuy (departamento Tumbaya, província de Jujuy), entre os 3200 e os 4000 metros de altitude, no noroeste da Argentina. Esses problemas vinculam-se com algumas discussões clássicas da etnografia e etnologia andina, especialmente no que respeita às relações constantes entre diferentes mundos, frequentemente considerados três e desde uma perspectiva estratigráfica: “mundo de cima”, “este mundo” e “mundo de baixo” ou “mundo de dentro” (Allen, 2002ALLEN, C. The hold life has: coca and cultural identity in an Andean community. Washington: Smithsonian Institution Press, 2002.; Fernández Juárez, 1995FERNÁNDEZ JUÁREZ, G. El banquete aymara: mesas y yatiris. La Paz: Hisbol, 1995.; Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281.; Platt, 2002PLATT, T. El feto agresivo. Parto, formación de la persona y mito-historia en los Andes. Estudios Atacameños, San Pedro de Atacama, v. 22, p. 127-155, 2002.; Vilca, 2009VILCA, M. Más allá del “paisaje”. El espacio de la puna y quebrada de Jujuy: ¿comensal, anfitrión, interlocutor?. Cuadernos FHyCS, Jujuy, v. 36, p. 245-259, 2009.). As conexões entre esses mundos (ou como sugiro depois, lados do mundo), são potencialmente múltiplas, embora atualizadas em situações que geralmente se encontram atravessadas por algum tipo de código sensível. Exemplos clássicos são os oferecimentos rituais de comidas, bebidas e outras substâncias a diferentes seres (animais, Pachamama, montes, vertentes de água, almas dos mortos) ou a fome extra-humana que, habitando “outros lados”, projeta-se sobre este mundo sob a forma de doenças, desequilíbrios ou desgraças: diferentes tipos de predação ou contrapredação conhecidos sob os modos verbais do comer, agarrar, soplar, marar, entre muitos outros (Fernández Juárez, 1995FERNÁNDEZ JUÁREZ, G. El banquete aymara: mesas y yatiris. La Paz: Hisbol, 1995.; Spedding, 1995SPEDDING, A. Semiótica de la cocina paceña andina o “porquerías que se hacen pasar por comida” (Un bosquejo inicial). UNITAS, La Paz, n. 10, p. 51-60, 1995.; Vilca, 2009VILCA, M. Más allá del “paisaje”. El espacio de la puna y quebrada de Jujuy: ¿comensal, anfitrión, interlocutor?. Cuadernos FHyCS, Jujuy, v. 36, p. 245-259, 2009.). Essas discussões, então, encontram-se em relação estreita com aquele caráter interfagocitário argumentado para boa parte da socialidade andina, que inclui a região jujeña, e com os modos em que as relações sensíveis (culinárias e corporais) se manifestam em diferentes situações (Bugallo; Vilca, 2011BUGALLO, L.; VILCA, M. Cuidando el ánimu: salud y enfermedad en el mundo andino (puna y quebrada de jujuy, argentina). Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Paris, 2011. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/61781>. Acesso em: 15 fev. 2016.
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; Lema; Pazzarelli, 2015LEMA, V.; PAZZARELLI, F. Memoria fértil. Crianza de la historia en Huachichocana. Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Paris, 2015. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/67976>. Acesso em: 15 fev. 2016.
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; Pazzarelli, 2016PAZZARELLI, F. La equivocación de las cocinas. Humos, humores y otros excesos en los Andes. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 59, n. 3, p. 49-72, 2016.).2 2 Inclusive, as mortes “naturais” das pessoas são consideradas expressivas da conclusão da transformação dos corpos em comida e da ingestão que deles fará a terra: pois a Pachamama nos cria e nos come (ver também, Isbell, 1997).

No intuito de apresentar certas variações sobre esses problemas, aqui discuto algumas situações etnográficas que se focam nas mencionadas relações, considerando o lugar que nelas têm os corpos dos animais. Analiso algumas características das matanças e carneadas de animais de criação (cabras e ovelhas), para indagar sobre as formas nas quais as carnes, as suas umidades e alguns órgãos internos estão em conexão com os pastores. Interessa-me particularmente as relações topológicas que definem a saída dos ánimus dos corpos dos animais, e o entendimento da sorte como uma relação sensível e multiplicada entre diferentes seres. Ao falar de topologia aponto, de maneira geral, para as relações que os processos de manipulação de carnes, couros, ossos e vísceras colocam na hora de compreender a transformação de animais em carne comestível: relações de proximidade e separação, aberturas, dobras, envoltórios. Mas também me interessa explorar o potencial dessas relações no momento de pensar as conexões entre diferentes lados do mundo, que parecem fazer das topologias corporais uma das suas matérias mais interessantes.

Criar

Em Huachichocana as pessoas falam de si mesmas sempre e em primeiro lugar como pastores e criadores.3 3 Embora não seja objetivo deste trabalho, é importante ressaltar que as plantas também são criadas, ou seja, compartilham um campo de referências similar ao da criação dos animais (Lema, 2014). Ainda que também dediquem muito dos seus esforços às roças, as atividades principais estão vinculadas com os animais domésticos e inclusive muitos dos cultivos são para os animais comerem. Os huacheños cuidam especialmente de cabras e ovelhas, ainda que alguns deles também tenham lhamas, vacas, porcos, cavalos, galinhas, burros, patos, além de uma grande quantidade de cachorros e gatos. Poderia se dizer que são criadores a tempo completo, e algumas famílias se ocupam de até quase 800 animais; a maioria deles cabras e ovelhas, sobre as quais vou me deter aqui.

Os cuidados e as atenções para com os animais são constantes, começando nas primeiras horas da manhã e estendendo-se até as últimas horas da noite. No entanto, em situações especiais (chuva, perigo de predadores, doenças) as pessoas ficam acordadas a noite inteira ou diretamente dormindo com os animais perto do curral (ou dentro dele). Essas atividades envolvem, em primeiro lugar, as tarefas vinculadas com os distintos tipos de alimentação (no curral, com mamadeira, alimentação forçada), dentre os quais se destaca o pastoreio dos animais realizado a cada dia e que supõe a saída das pessoas para percorrer durante horas as montanhas, seguidas dos seus rebanhos. O pastoreio supõe também movimentos estacionais que envolvem a mudança das famílias até outras residências (chamadas postos), onde passam algumas semanas ou meses com seus animais aproveitando a água e os pastos locais. Além disso, ocupam-se da atenção de doenças (desde torções nas patas até tirar os piolhos), de múltiplas formas de treinos (sobre como comer, como mamar, como caminhar), do cuidado das mães e das crias, e de diferentes tipos de atenções rituais (eventos anuais de señaladas ou marcação de animais, por exemplo). Há também as atividades ditas produtivas – ordenha, tosquiada, matanças – que se projetam para geografias próximas sob a forma de trocas e vendas de queijos, carnes e lãs. Assim, quase a totalidade da vida das pessoas, desde pequenas, acontece no curral ou perto dele.

Essa proximidade é motivo das “criações mútuas”, tão comentadas nos Andes, que dão forma às relações de parentesco entre os pastores e seus animais (para essa e outras regiões próximas, ver Bugallo e Tomasi, 2012BUGALLO, L.; TOMASI, J. Crianzas mutuas. El trato a los animales desde las concepciones de los pastores puneños. Revista Española de Antropología Americana, Madrid, v. 42, n. 1, p. 205-224, 2012.; Lema, 2014LEMA, V. Criar y ser criados por las plantas y sus espacios en los Andes septentrionales de Argentina. In: BENEDETTI, A.; TOMASI, J. (Comp.). Espacialidades altoandinas: avances de investigación desde el Noroeste argentino. Buenos Aires: FFyL-UBA, 2014. p. 301-338.). Nesse sentido, as atividades mencionadas acima acabam por definir um pertencimento mútuo que aponta para um tipo particular de família, da qual faz parte o pastor, seus parentes humanos e seus animais de criação (Lema; Pazzarelli, 2015LEMA, V.; PAZZARELLI, F. Memoria fértil. Crianza de la historia en Huachichocana. Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Paris, 2015. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/67976>. Acesso em: 15 fev. 2016.
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; Pazzarelli, 2016PAZZARELLI, F. La equivocación de las cocinas. Humos, humores y otros excesos en los Andes. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 59, n. 3, p. 49-72, 2016.). Essa ideia poderia se reportar à definição do parentesco como “mutualidade do ser”, que refere à possibilidade de pensar a existência dos seres como intrínsecas a outros (Sahlins, 2013SAHLINS, M. What kinship is-and is not. Chicago: Chicago University Press, 2013.). Essa condição de mutualidade, com amplas ressonâncias na etnografia andina, é lograda no compartilhamento cotidiano de alimentos, cuidados e afetos, que permite resumir as tarefas da criação na ideia de “fazer crescer os outros”. Articula-se, aliás, com a noção de sorte que, como veremos, faz da pessoa um criador e dos animais, criados. No caso huacheño, uma das melhores expressões dessa relação é a consideração do rebanho como parte da família dos pastores, onde um dos chamativos cotidianos para os animais é o de filhos e filhas. É essa condição familiar dos animais que se revela como especialmente problemática nas matanças e nos processos de carneada e desidratação das diferentes partes corporais.

Matar

Cabras e ovelhas são mortas muito frequentemente, a cada três dias às vezes, para fornecer carne à cozinha cotidiana. E embora essa frequência nas matanças varie entre famílias e entre momentos do ano, a morte de animais nos currais é uma situação cotidiana para todos. Porém, não se trata de um processo ordinário e pelo contrário encontra-se referenciado num complexo repertório técnico que exige uma execução muito precisa. Esse repertório possui um conjunto recorrente de operações, presente seja nas carneadas para a comida diária quanto nas matanças feitas para festas ou eventos rituais, e é o que descrevo a seguir.4 4 Os devires do consumo de sangue e carne, assim como os usos dos couros, variam, claro, segundo os contextos; mas em todos eles, os processos de matança e carneadas que permitem fazer e secar a carne são, até onde entendo, idênticos.

Tudo começa com o fazer carne: a matança por degolamento que se faz passando a faca. As famílias sempre possuem um lugar destinado para isso, que às vezes só se encontra marcado por uma pedra do lado de fora do curral. Sobre esta se coloca o animal escolhido, que é derrubado sobre o seu costado esquerdo e com a cabeça e o olhar orientados para o leste ou o sol da manhã. A faca, pequena e bem afiada, passa rapidamente uma vez pelo pescoço, fazendo um corte profundo para evitar qualquer tipo de grito ou sofrimento. É um processo que envolve geralmente duas pessoas: uma delas segura a cabeça do animal por detrás enquanto o degola e a outra se ocupa, primeiro, de segurar as patas e, depois, de colher o sangue numa panela ou prato. As primeiras gotas, porém, caem no chão na forma de uma pequena ch’alla ou libação, sempre mantendo a orientação da cabeça. Esse olhar para o sol da manhã replica-se em muitos outros eventos vinculados com a renovação de certas relações (com as roças, os animais)5 5 Observa-se também durante os carnavais, os rituais de marcação de animais, as oferendas para a Pachamama e inclusive na orientação das portas e entradas dos currais e casas. e, nesse caso, é para o leste que o ánimu do animal sairá. Quando o sangue diminui, termina-se de aprofundar o corte para deixar o corpo pronto para a chacina. Durante os segundos que dura o sangramento, porém, os encarregados da matança observam o animal morrer, procurando por indícios de sofrimento e estando atentos à manifestação de qualquer tipo de sinal (seña) que alerte se alguma coisa não estiver indo na direção correta. Afirma-se que é um momento delicado onde tudo pode sair mal,6 6 Outros gestos podem acompanhar esse momento: colocar pequenas pedras no lombo do animal morto para que o rebanho se regenere; molhar a ponta da faca com o sangue e marcar com ela a lã e os orifícios do animal (olhos, orelhas, boca, nariz, úbere). a situação que abre este texto é um exemplo claro disso.

Quando a faca passa e o corpo separa-se da cabeça é quando a carne se faz; dessa boa matança e bom morrer depende que a carne seja muita, gorda e com sustança. Em várias ocasiões explicaram-me que embora a pastora escolha um animal gordo para matar, no momento de abrir o corpo ele pode estar vazio, sem carne ou ter virado um animal completamente magro. Isso porque, talvez, ele não morreu bem – ou seja, a faca não passou de forma correta – e a carne não foi feita (cf. Archetti, 1992ARCHETTI, E. El mundo social y simbólico del cuy. Quito: CePlaes, 1992.). Uma boa morte é também um requisito indispensável para a renovação das relações de criação, pois de outro modo o ánimu do animal se vingaria do pastor. Quando se mata bem e sem maltrato, diversamente, a cabeça separa-se do corpo – embora fique unida temporalmente ao couro – da mesma maneira em que o ánimu separa-se do animal para ir até o sol da manhã e voltar sob a forma de sorte para aumentar os rebanhos (cf. Bugallo; Tomasi, 2012BUGALLO, L.; TOMASI, J. Crianzas mutuas. El trato a los animales desde las concepciones de los pastores puneños. Revista Española de Antropología Americana, Madrid, v. 42, n. 1, p. 205-224, 2012.; Bugallo; Vilca, 2011BUGALLO, L.; VILCA, M. Cuidando el ánimu: salud y enfermedad en el mundo andino (puna y quebrada de jujuy, argentina). Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Paris, 2011. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/61781>. Acesso em: 15 fev. 2016.
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). Assim, ao mesmo tempo em que matar bem separa de forma definitiva o animal da sua família do curral, habilita-se que as relações de criação do pastor não estejam comprometidas no futuro.

Similarmente a outras regiões dos Andes, o ánimu (ou ánimo) é um dos vários possíveis espíritus que os seres vivos (entre eles, animais e pessoas) possuem e sobre os quais é preciso intervir; uma boa criação, por exemplo, é a que permite um bom crescimento dos ánimus dos rebanhos (Bugallo; Vilca, 2011BUGALLO, L.; VILCA, M. Cuidando el ánimu: salud y enfermedad en el mundo andino (puna y quebrada de jujuy, argentina). Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, Paris, 2011. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/61781>. Acesso em: 15 fev. 2016.
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). Em Huachichocana, o ánimu é o espíritu mais importante, aquele que habilita a existência de uma pessoa ou animal e que se separa definitivamente do corpo no momento da morte para logo desaparecer.7 7 As referências espontâneas e explícitas aos ánimus só se fazem em alguma situação de comprometimento: quando um acidente ou doença deixou uma pessoa sem seu espíritu, por exemplo. Mas inclusive nesses casos, as conversações sobre o assunto são escassas e muito reguladas. Em paralelo aos argumentos deste texto, poder-se-ia dizer que o silêncio e os cuidados na hora de falar estão no mesmo plano de regulação das aberturas corporais, nesse caso referida à saída de palavras. Trata-se de uma relação similar à do “duplo que anima”, tal como foi argumentado por Taylor (1974)TAYLOR, G. Camac, camay e camasca dans le manuscrit quechua de Huarochiri. Journal de la Société des Américanistes, Paris, v. 63, n. 1, p. 231-244, 1974., mas sem as conotações de uma força vital genérica ou abstrata. Pelo contrário, os ánimus parecem ser muito concretos, diferenciados, e sempre se referem a seres e relações específicas (de forma similar à argumentada por Ricard Lanata, 2007RICARD LANATA, X. Ladrones de sombra: el universo religioso de los pastores del Ausangate (Andes surperuanos). Lima: IFEA-CBC, 2007., p. 82; ver também Allen, 1982ALLEN, C. Body and soul in quechua thought. Journal of Latin American Lore, Los Angeles, v. 8, n. 2, p. 179-196, 1982.). Aliás, nem sempre pertencem aos seres mais facilmente identificados como “vivos”, pois montanhas, lagoas e vertentes também possuem ánimus.

O ánimu não está dentro do corpo, ou ao menos não completamente. Fala-se, diversamente, que ele está junto ou com ele – como se fosse uma sombra. Porém, ao explicar o seu descolamento durante a morte do animal, diz-se que o ánimu sai no momento da separação da cabeça. Essa relação, pensada como o movimento de algo que sai de um lugar para chegar a outro, é colocada também no caso de doenças (principalmente, das pessoas) que envolvem uma perda temporal do ánimu que saiu do corpo. Nesses casos, deve ser recuperado mediante técnicas dos curandeiros antes de ser agarrado, roubado ou até ingerido por seres perigosos. A maioria das doenças têm essa conotação: a perda do ánimu está sempre vinculada com a existência de múltiplos seres famintos, especialmente não humanos que não moram completamente neste lado do mundo. Embora todos eles ameaçadores no cotidiano, alguns podem virar especialmente perigosos após algum problema – uma falta de respeito, por exemplo – e ficar querendo roubar o ánimu de alguém para comê-lo. Nesse sentido, o processo de adoecimento manifesta um descolamento ou roubo do espíritu, que é temporal num primeiro momento; o doente ficará vivo enquanto o seu ánimu não for comido (e o descolamento não seja definitivo) e dependerá por enquanto da expertise do curandeiro para trazê-lo de volta. As variações nos motivos, processos e resoluções dos adoecimentos são múltiplas e não são objeto deste trabalho, mas as suas características principais comentadas acima estão conectadas com as relações que definem as matanças dos animais.

Assim, o cuidado extremo que as pessoas colocam no degolamento tem a ver com o fato de essa saída apontar para um atravessamento que, de forma mais ou menos potencial, conecta diferentes lados: o ánimu deve sair do corpo, se dirigir para o leste e não voltar para este mundo. Ao mesmo tempo, ele convive com o perigo potencial da atuação dos seres famintos que talvez queiram aproveitar o degolamento e tentem desviar e levar o espíritu para os seus lados.8 8 Por isso, as matanças não devem ser feitas nas terças-feiras nem nas sextas-feiras, pois são dias maus e das bruxas. Em outras palavras, essa situação do ánimu já parece sugerir que, antes de uma distinção substancial entre o que está dentro e fora dos corpos, a saída é uma relação que se desenvolve numa topologia corporal e que aponta para o atravessamento entre diferentes lados do mundo. Essa topologia continua se desenrolando no processo de carneio, já que o degolamento não é suficiente para que esse corpo se torne comestível: dele ainda é preciso tirar e fazer secar outras coisas.

Extrair e desidratar

As carneadas começam com a esfoladura do corpo do animal, que está no chão, de peito para cima. Inicia pela área do esterno, com um corte pouco profundo, e estende-se para as costas, passando pelas patas que são desarticuladas e separadas. Fica então a carne exposta. O couro, embora já descolado quase totalmente da carne, ainda está unido à coluna e ficará apoiado no chão até o carneio finalizar, como uma espécie de manta que evita que a carne fique suja de terra.

O próximo passo é a abertura do abdômen, desde o pescoço até o cóccix; retiram-se, então os pulmões, os rins e o coração. Os intestinos são retirados e manipulados como se faz com os fios de lã, armando um tipo de novelo de carne enquanto seus conteúdos são esvaziados. Logo depois são lavados, cortados e cozinhados.9 9 Os intestinos são cozinhados quase imediatamente – para que não fiquem podres – em alguma das típicas comidas pós-carneadas: churrasquinho de miúdos, geralmente, mas às vezes sopa de miúdos ou cozido de tripas. A exceção é uma porção do cólon ascendente (a dos giros centrípetos e centrífugos), que nas cabras e ovelhas já possui naturalmente a forma de um disco ou novelo plano, pois o intestino está dobrado sobre si mesmo: essa parte é chamada de curral e evoca ao próprio curral dos animais. Como tal, o curral não pode ser desfiado como o resto dos intestinos e deve ser esvaziado mediante um corte longitudinal, logo depois assado nas brasas e comido por algum dos membros da família; se for desarmado, por descuido ou incompetência, isso seria um indicio de má sorte, pois o curral “verdadeiro” também se desarmaria.

O estômago (nas suas quatro divisões) é também esvaziado e colocado a secar em algum lugar protegido do sol direto e dos cachorros; depois de umas horas, ou no dia seguinte, será limpo e cozinhado.10 10 A panchera (o quarto estômago ou abomaso) já seca é utilizada para coalhar leite e fazer queijos. O seu conteúdo (vegetais que estavam sendo digeridos no momento da morte), chamado de push ou pushno, é sempre jogado no mesmo lugar, geralmente perto do curral. Esse espaço, o pushnero ou pushnera, lentamente vai tomando a forma de uma acumulação piramidal que pode alcançar um metro e meio de altura à medida que os conteúdos jogados vão se desidratando e endurecendo.11 11 Uma pastora já velhinha explicou-me que isso era assim porque todos os finados do curral tinham que permanecer juntos. Algumas ideias sobre as “vitalidades” das matérias semidigeridas (pushno, entre elas) foram desenvolvidas em outro trabalho (Pazzarelli; Lema, 2015).

Extrai-se também a vesícula biliar, a hiel, separando-a do fígado com a faca. O fígado e o pâncreas, ou cuchilla, são então retirados e separados para comer. A hiel, diversamente, será colocada para secar num lugar já definido, sobre o teto da casa, sobre um muro ou num prego; esse processo é especialmente considerado porque a hiel retém, enquanto está úmida, uma parte da sorte do pastor. Finalmente, separam-se as costelas do esterno, mediante movimentos precisos da faca e cuidando para não quebrar nenhum osso durante o processo; nos ossos também fica a sorte. Quando tudo isso foi feito, acaba-se de separar a carne com ossos do couro, que será pendurada no interior da casa, com uma pequena panela embaixo para coletar as últimas gotas de sangue. Pendurar também tem suas regras, pois a carne deve ficar volteada, ou seja, com o interior do corpo voltado para fora já que de outro jeito pareceria viva e ficaria volteada também a sorte.

Voltear

Voltear é um verbo que tem muitas ressonâncias e aplicações cotidianas, mas em geral se refere às consequências, na maioria das vezes negativas, do fato de alguma coisa virar e ficar de cabeça para baixo (como uma moeda quando vira sobre si mesma). Inclusive pode ser usado em expressões de cuidado, do tipo não faz isso porque a tua sorte vai se voltear. No caso da carne pendurada, a relação é mais oblíqua: a carne deve ser volteada – no sentido de deixar para fora o que estava dentro – para que a sorte não se volteie. A indicação de que a carne que não é volteada parece viva é indispensável para entender isso, porque até o processo de desidratação atuar (até a noite, pelo menos), esse corpo animal ainda será considerado fresco e não completamente comestível. O fato de voltear a carne, assim, é uma tentativa de “apagar” a condição do animal enquanto ele estava vivo; condição que, como mostrarei, segue enquanto as carnes e os ossos estejam úmidos.12 12 É possível desmembrar ainda mais o corpo para pendurá-lo em vários pedaços (sem quebrar os ossos), procedimento ainda mais efetivo para que a carne não pareça viva. Por isso, sobre a carne fresca caem cuidados especiais para que nem os cachorros – nem outros animais ou crianças – a roubem; nesse caso a sorte do pastor iria embora. Sugere-se também que essa carne não deve ser consumida fervida,13 13 Porém, pode ser comida grelhada sobre as brasas. Aqui vale a pena ressaltar que o grelhado constitui uma forma acelerada de desidratação, já que tecnicamente essa carne, embora recentemente carneada, não seria fresca. pois ela é muito amarga e azeda, sabores que localmente têm uma grande potência e apontam para as partes animais que concentram muita energia. Uma dessas partes é a hiel, que além de reter o sabor mais amargo de todos é de suma importância durante as carneadas; como já mencionei, tem que ser extraída com cuidado, sem quebrá-la porque nela também está a sorte do pastor. Sua desidratação é um dos processos mais prolongados, sendo objeto de resguardos similares aos da carne fresca.

Finalmente, os encarregados da carneada pegam o couro do animal, que às vezes continua unido com a cabeça, para dobra-lo sobre si mesmo e acomodar as patas para deixá-lo dormindo em algum lugar dentro da casa, com a cabeça orientada para o leste. Explica-se que devem ser tratados como roupas, pois os couros são as roupinhas dos animais e todo o processo tem o objetivo de deixá-lo como ele é de verdade, como quando o animal estava vivo e o couro ainda envolvia as carnes. Assim dobrado e acomodado ficará, no mínimo, umas horas (embora possa ficar vários dias também) até alguém pegá-lo e colocá-lo para secar ao sol, no pátio – então a cabeça pode ser separada e reservada para futuras comidas rituais. Nesse momento, e da mesma forma que acontece com a carne, os couros devem pendurar-se volteados, com o seu interior para fora e expostos ao ar e ao sol, ao inverso da forma em que dormiam. Se não fosse assim, pareceriam vivos e o pastor teria a sua sorte volteada.

Se o degolamento habilita a renovação da sorte ao liberar corretamente o ánimu, a carneada e a desidratação operam num sentido similar, separando as partes do corpo do animal que devem ser apropriadamente secadas (como a hiel) e manipulando carnes e couros para que percam a sua condição de frescos. Levando a sério o processo técnico mencionado aqui, o que está em jogo são justamente os fluidos daquilo que se está desidratando: as relações associadas a carnes, ossos e hiel desaparecem junto com as suas umidades. Nesse sentido, pode-se dizer que a carne fresca (enquanto úmida) está mais viva do que morta. Mas como é pendurada volteada, ela assume uma topologia que inverte a relação dentro-fora que caracteriza o animal vivo e se revela, então, incapaz de envolver nenhum ánimu; nem sequer aquele que deixou ir minutos antes. De outro lado, no mesmo momento em que a carne é volteada, o couro é dobrado para “simular” um animal vivo, embora adormecido, sugerindo “esquecer” o degolamento e a morte – de fato, várias vezes eu confundi os couros dobrados com animais vivos adormecidos quando chegava de visita em alguma casa. Pode-se imaginar, então, que a situação do ánimu que acabou de deixar o animal é complexa: não tem carne nem ossos onde voltar (porque eles estão volteados) e o couro está dobrado, como qualquer animal vivo que já tem um espíritu que envolve com suas roupas. Tudo parece indicar que esse ánimu solto deve deixar rapidamente este mundo e não ficar vagando, exposto a perigos. No dia seguinte, a carne já estará seca e o couro será volteado e exposto ao sol; explicita-se, então, que agora se trata só de carne.

Um desdobramento paralelo disso aparece quando os huacheños sugerem que o estar e o parecer também dependem do olhar. Uma carne mal pendurada vai parecer viva no olhar dos predadores (pumas, raposas, cachorros), que então poderiam se aproximar até a casa e roubá-la, levando também parte da sorte dos pastores (pois se trata de carne fresca). De outro lado, o couro adormecido deve parecer vivo para o ánimu solto, num intento de apagar o rastro violento da morte; mas também deve parecer vivo para confundir os seres famintos – não humanos – que não devem saber que um ánimu foi liberado. Isso sugere que, ao menos parcialmente, os esforços pela adequação topológica de carnes e ossos após a matança têm os olhares externos como referentes.

Os processos de “apagar” ou “simular” a vida de um animal através de voltear, dobrar e desdobrar as suas partes corporais não só aponta para o afastamento do ánimu, mas também para a necessidade de secar a carne para fazê-la comestível. Poder-se-ia dizer que enquanto o degolamento faz carne, a desidratação faz carne comestível para as pessoas; de outro modo, comeriam carne que ainda está, ou parece, viva. Isso diz respeito à posição familiar que essas partes de corpos úmidas ainda retêm e que problematiza o seu consumo – especialmente mediante o fervido, uma técnica que aproveita as umidades e sucos da carne. Por posição familiar estou me referindo àquele conjunto de relações que fizeram daquela cabra ou ovelha um animal criado e daquela carne uma matéria com sorte.

Sorte fresca

O domínio semântico e prático de sorte é amplo, sempre vinculado às capacidades de um pastor para conduzir boas relações de criação, com resultados férteis. Em etnografias de lugares muito próximos à Huachichocana, ela foi definida como “uma energia vital que permite a reprodução e regeneração da vida, desenrolando-se através da relação pessoa-animal” (Bugallo; Tomasi, 2012BUGALLO, L.; TOMASI, J. Crianzas mutuas. El trato a los animales desde las concepciones de los pastores puneños. Revista Española de Antropología Americana, Madrid, v. 42, n. 1, p. 205-224, 2012., p. 220, tradução minha). Tirando as considerações já mencionadas acima sobre a ideia de uma vitalidade muito geral, o interessante dessa definição é que ela coloca a sorte como desdobrada nas relações entre pessoas e animais, como habitando uma mesma rede. Nesse sentido, quando se escuta que uma pessoa tem sorte para cabras,14 14 Uma pessoa também poder ter sorte para outros animais ou para plantas (batatas, milho, favas). Como foi mencionado na nota 3, as plantas também são criadas e isso também envolve relações com a sorte. e então terá sucesso no momento de criar, essa afirmação se refere menos a uma relação de propriedade do que a um agenciamento. Em outras palavras, quando se diz que alguém tem sorte, isso aponta para um conjunto de relações onde o pastor é só um dos termos. Por exemplo, fala-se que a sorte depende do fato de a pessoa ter sido escolhida pelos animais que deseja criar, processo que se inicia nos primeiros anos da infância.

Do outro lado, ela pode ser afetada por feitiçaria humana ou por motivo de alguma doença do pastor. Geralmente, essas doenças, sejam temporais ou crônicas, manifestam-se como afeções ou dores recorrentes no fígado e na vesícula (biliar) que deixam as pessoas sem forças e sem sorte; vale a pena ressaltar que se trata dos mesmos órgãos considerados nos animais. Se a feitiçaria ou as doenças (que muitas vezes podem ser a mesma coisa) são muito efetivas, uma pessoa pode inclusive perder a sua sorte e ficar sem capacidades para a criação. E também acontecem perdas de sorte que ninguém consegue explicar (finalmente, ninguém pode saber com certeza de que elementos está composta a sua sorte), surgindo hipóteses muito variadas e nem sempre constatadas. Inclusive, como foi mencionado acima, espera-se que os ánimus liberados no degolamento influam positivamente na sorte futura (por isso o cuidado na hora de deixá-los sair): diz-se que um ánimu bravo pode chamar seus parentes animais ainda vivos e convencê-los de abandonar as pessoas, ou seja, intimá-los a quebrar a relação de pastoreio que se define, quase exclusivamente, pela sorte.

Ter sorte é condição para a constituição de uma pessoa como criador ou pastor e isso a aproxima às noções já comentadas para os ánimus. A sorte, porém, não é um espíritu – ou pelo menos, nunca me falaram isso – e não parece habilitar a existência das pessoas como o ánimu faz, mas define sim a possibilidade de elas virarem criadoras. E ser criador em Huachichocana se refere a uma condição que se expressa nos momentos produtivos da vida, quando as pessoas podem trabalhar, especialmente desde a adolescência até antes da velhice. Fala-se, de outro modo, que as crianças devem provar a sua sorte, começando a lidar com animais desde pequenas, até saber se elas têm sorte para algo. De outro lado, ao referir-se a algum ancião que já não consegue trabalhar por si mesmo, fala-se que ele tinha sorte para tal ou qual coisa, mas que já a perdeu. Poder-se-ia dizer, então, que enquanto os ánimus definem a possibilidade da existência, a sorte habilita uma existência plena, a do criador.

No mesmo momento que se constitui a posição de pastor, porém, constitui-se a de criado: o fato de ter sorte define também a transformação de um animal num animal capaz de ser criado – pois, ao contrário do sentido comum, nem cabras nem ovelhas são animais domésticos a priori, eles devem virar criados e ser incorporados na família do curral mediante os cuidados já comentados. Essa capacidade de ser criado, de se transformar em parte da família, é a que fica parcialmente nas umidades e faz necessário abrir o corpo e expor o seu interior ao sol para que a carne seque e vire comestível. Em outras palavras, se a carneada tem que lidar com a necessidade – e dificuldade – de transformar um animal criado em carne comestível, tarefa que começa com o degolamento e liberação do ánimu, é porque o corpo do animal está ainda cheio de sorte. E a sorte é um conceito fresco e úmido que deve ser manipulado sob a forma de uma topologia particular que habilita a desidratação.

Porém, embora pudesse ser considerada uma parte íntima do pastor, a sorte encontra-se fora dele, ao menos parcialmente. Claro, o “fora” aqui é relativo, pois se constitui como tal só por estar “dentro” dos animais de criação. Em outras palavras, parte da sorte do pastor fica “dentro” dos animais e compartilha – novamente, de forma parcial – o mesmo “interior” dos ánimus. Uma parte da sorte está sempre num outro lado que, porém, nunca é completamente outro, pois trata-se de um animal familiar. A sorte, assim, não está em um lugar e talvez também não seja indicado perguntar se ela é uma característica individual ou coletiva (pertence à cabra, ao rebanho, à família ou ao pastor?), se corresponde ao domínio prático de uma espécie (animais ou pessoas?), ou inclusive se constitui um conceito que pode ser distribuído entre “partes” e “todos”. Mais perto, quiçá, das propriedades de um objeto fractal (Wagner, 1991WAGNER, R. The fractal person. In: STRATHERN, M.; GODELIER, M. (Ed.). Big men and great men: personifications of power in Melanesia. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. p. 159-173.), a sorte seria tudo aquilo que parece ser – a sorte de uma cabra, de um rebanho, de uma pessoa e da família –, às vezes de forma simultânea e sem que nenhuma dessas relações – nem a soma de todas elas – consiga totalizar uma ideia de sorte capaz de abranger todas as contingências onde ela se exprime. Aliás, as suas relações introduzem-se nas formas e fisiologias dos corpos – das vísceras e ossos –, fazendo impossível distinguir o que está sendo carneado: é bílis ou é sorte? É carne fresca ou é sorte? Na verdade, é a operação de distinção o que estaria fora de lugar. Poder-se-ia dizer, em câmbio, que é bílis porque é sorte – e vice-versa.

Topologias

A topologia que os exemplos anteriores exprimem ressoam em outras análises sobre os mundos ameríndios, que focam também as relações dentro-fora ou continente-conteúdo. O melhor exemplo talvez sejam as análises dos mitos feitas por Lévi-Strauss, onde se reconhece a relevância da topologia corporal no entendimento da mitologia do mel, do tabaco e da cerâmica, onde as vísceras e as excreções ocupam um lugar privilegiado (Lévi-Strauss, 2008LÉVI-STRAUSS, C. La alfarera celosa. Barcelona: Paidós, 2008., 2010LÉVI-STRAUSS, C. Mitológicas II: de la miel a las cenizas. México: Fondo de Cultura Económica, 2010.).

Nos Andes, relações semelhantes foram entendidas no que diz respeito ao código do envolver-desenvolver, do dobrar e do desdobrar. Especialmente a partir do universo dos têxteis, são interessantes as etnografias que apontam para a (onto)lógica dessas operações, onde envolver um corpo é “convertê-lo em humano” (Arnold; Yapita, 1998ARNOLD, D.; YAPITA, J. D. Río de vellón, río de canto: cantar a los animales, una poética andina de la creación. La Paz: Hisbol: Ilca 1998., p. 41). Isso se torna especialmente relevante inclusive quando os envoltórios são as barrigas das mulheres grávidas (Platt, 2002PLATT, T. El feto agresivo. Parto, formación de la persona y mito-historia en los Andes. Estudios Atacameños, San Pedro de Atacama, v. 22, p. 127-155, 2002.). Mas trata-se de “envolver” o quê? No último caso, o parto constitui-se num operador metafísico que permite passar seres de outro mundo para este: o interior do ventre da mulher é ao mesmo tempo as trevas do interior da terra e o mundo chullpa, universo pré-solar e ancestral, de onde sairão novos parentes para este lado do mundo. Em outras palavras, se envolver é transformar algo em humano isso só revela que o que está sendo envolvido não é deste lado do mundo. E para deixar a ideia ainda mais clara, os interlocutores de Platt assinalam que não se deve esquecer a diversidade ontológica dos “outros lados”, que pode ser tão grande como a nossa, povoada de múltiplos seres; ou, nas palavras deles, “os interiores [adentros] são de toda classe” (Platt, 2002PLATT, T. El feto agresivo. Parto, formación de la persona y mito-historia en los Andes. Estudios Atacameños, San Pedro de Atacama, v. 22, p. 127-155, 2002., p. 131, tradução minha).15 15 Segundo a etnografia de Platt (2002, p. 131), afirma-se que os diferentes tempos e modos da gestação devem-se ao fato de cada mulher possuir um “dentro” diferente.

É interessante reter as relações topológicas que revelam essas análises na hora de voltar à etnografia que apresento neste trabalho, pois em Huachichocana as pessoas também se encontram preocupadas com a manipulação de vísceras, com as aberturas corporais e com os envoltórios numa lógica têxtil – lembremos, entre outras coisas, que os intestinos são esvaziados manipulando-os como fios de lã e que os couros são chamados de roupinhas dos animais. Trata-se de abrir e desdobrar para habilitar que aquilo que ficava dentro saia para fora e fique exposto no mundo solar, um movimento que é explicitado na sobre-exposição característica da desidratação de partes corporais, o fazer secar. Ao mesmo tempo, como já sugeri acima, essas mesmas carnes frescas volteadas revelam-se incapazes de parecer vivas porque a sua capacidade de envolver o ánimu foi desarmada.

Em outras palavras, deve-se virar o corpo pelo avesso, como se fosse um bolso tecido, mas evitando que nesse caminho se volteie a sorte. Existe aí, entre o dar volta e o não voltear, um componente de gradação das conexões entre dentro e fora (os ánimus que são liberados e não devem voltar) e entre “dentros” (a sorte multiplicada entre diferentes corpos e que deve ser controlada). A carneada, assim, apresenta-se transversal ao código das envolturas, enquanto a sorte não pode evitar o código das umidades que, por sua vez, é modulado na relação dentro-fora. Mas o processo que toma lugar em Huachichocana tem outros desdobramentos – nesse caso num sentido literal –, que nos obriga a perguntar o que acontece com um corpo que é deliberadamente aberto e exposto. As ideias anteriores parecem apontar que o que está dentro não é “deste lado” do mundo e que desenvolver os corpos revelaria que todos sempre têm um “outro” dentro.

Os lados do mundo

Parece interessante aqui lembrar brevemente alguns dos múltiplos sentidos que os diferentes mundos têm ao serem nomeados nas línguas andinas, quéchua e aimará.16 16 Seria impossível resumir aqui as diferentes leituras que esses mundos tiveram na antropologia e etno-história andina. Por enquanto, o que me interessa é levantar algumas das relações topológicas que eles envolvem, sobretudo aquelas que se referem às “passagens” entre mundos, ressaltando as suas ressonâncias (relevantes, a meu ver) com os processos huacheños de matanças e carneadas. Especialmente no que refere ao manq’’apacha, as referências nunca se reduzem ao “mundo de baixo” e sempre têm outras conotações que assinalam que embaixo é também um dentro, que está “apertado e escondido” (Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281., p. 224). No mesmo sentido, esse mundo também não está muito longe deste lado, o mundo solar, nem ambos seriam necessariamente parte de uma estratigrafia inamovível – embora às vezes se manifeste dessa maneira (Allen, 2002ALLEN, C. The hold life has: coca and cultural identity in an Andean community. Washington: Smithsonian Institution Press, 2002.; Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281.).17 17 “O manq’’apacha, então, não é uma esfera separada do nosso mundo, como o inferno cristão, mas o clandestino e o segredo do nosso mundo. Seu tempo próprio é o crepúsculo; seu poder é ambíguo” (Harris; Bouysse-Cassagne, 1988, p. 248, tradução minha). Inclusive, referências às mudanças intempestivas de mundos, os chamados pachakutis, não só apontam para um inverter do mundo (onde o que está embaixo passa para cima e vice-versa, como a palma de uma mão que se vira), mas também a um “voltar para dentro” (cutintatha) ou “destorcer o torcido” (cutiquipaata) (Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281., p. 243). Em outras palavras, poder-se-ia dizer que a vida que se conhece “neste lado” do mundo poderia ser destorcida para deixar sair o “outro lado”, aquele de dentro. Destaque-se, antes de continuar, a quantidade de referências topológicas implicadas nas relações comentadas e a importância concedida ao sair, como operação de atravessamento de mundos.

Assim, mais do que espaços substancializados em uma geografia cósmica inalterável, os diferentes mundos podem ser pensados como “dimensões ou estados de existência” (Allen, 2002ALLEN, C. The hold life has: coca and cultural identity in an Andean community. Washington: Smithsonian Institution Press, 2002., p. 48), que eu chamo aqui de lados do mundo, cujas conexões podem ser graduadas. As matanças e carneadas supõem um processo deliberado de sacar para fora o que estava dentro que acaba por explicitar o atravessamento de diferentes lados. Mas devo deixar claro que esse atravessamento não responde aqui a causas fortuitas ou a alguma agência desconhecida: os ánimus não se descolam livremente dos corpos durante as carneadas, como aconteceria nos processos de doenças. Aqui eles são deliberadamente soltos.

É importante ressaltar, porém, que a forma em que o ánimu deixa o corpo do animal é diferente das formas vinculadas com a sorte. O primeiro sai, como se o degolamento e o sangue abrissem uma porta, ainda que possa voltar como doenças e vinganças caso for maltratado durante a matança, como já mostrei. As pessoas se ocupam de propiciar uma boa saída para o ánimu, e o deixam seguir seu caminho até o sol da manhã. A sorte, de outro modo, é extraída de formas mais diretas e mediante manipulações muito evidentes. Após a abertura do corpo do animal, a hiel é procurada com as mãos entre as vísceras, separada do fígado com uma faca e colocada para secar; logo depois, carnes e ossos são pendurados, como discuti acima. Essa diferença é importante, porque traduz outra distinção fundamental: enquanto o ánimu do animal só pertence a ele e a sua saída do corpo exprime-se, poderíamos dizer, num sentido figurado (trata-se de um descolamento que é pensado e descrito como uma saída), a sorte é uma relação estabelecida com o pastor e a sua extração dentre as vísceras é, digamos, literal. E quando as pessoas remexem entre os órgãos na procura pela hiel ou mancham suas mãos de sangue manipulando as carnes, elas estão preocupadas também com uma parte delas que não desejam deixar à deriva, como possível alvo de predadores.

E embora esse processo não suponha necessariamente que os ánimus estejam completamente dentro ou fora de algo, os exemplos acima comentados só podem ser compreendidos na forma da relação marcada pelas diferentes variações do sair que coloca a topologia das matanças e das carneadas. É essa insistência em marcar as chacinas como processos de abertura, saídas, envolturas e dobras, o que aproxima esses eventos do resto de situações onde diferentes lados do mundo são atravessados ou colocados em contato. Esse traspasso, inevitavelmente perigoso como sugere o caso da cabra que não queria morrer, é modulado mediante técnicas de degolamento, carneio e desidratação que se ocupam de manejar ánimus e sortes. Em outras palavras, as tarefas de liberar e conduzir os ánimus para o sol da manhã e fazer secar as umidades são consequências do fato de ter aberto e desembrulhado o corpo do animal, expondo e liberando o seu “dentro”.

Assim, este lado do mundo não está muito longe de outros: a distância pode ser só um couro de cabra. Mas cada “lado” também não se reflete completamente em outro, e sempre supõe um novo desdobramento que faz impossível conhecer completamente onde está, por exemplo, a sorte. Os diferentes “lados do mundo”, como estados de existência (Allen, 2002ALLEN, C. The hold life has: coca and cultural identity in an Andean community. Washington: Smithsonian Institution Press, 2002.), convivem em todos os seres, e a relação entre eles depende de como essas conexões sejam manejadas. Nesse sentido, o pavor surgido no caso da cabra que não queria morrer vinha menos do espetáculo sangrento que da certeza de haver liberado incorretamente um ánimu – do animal –, de haver possivelmente magoado a sorte – que se encontra “entre” o pastor e seus animais – e de ter seguramente acordado a fome de quem sabe quais seres. Mas, na verdade, todas as carneadas têm sempre uma quota, embora mínima, de incerteza: só várias horas depois (às vezes, dias), quando a carne secou corretamente e ninguém sofreu ataques ou doenças sem motivo, as pessoas se convencem de que a matança foi bem-feita. A composição heterogênea da qual o mundo das pessoas faz parte requer modulações constantes, embora, é claro, nunca absolutas (Lema; Pazzarelli, 2015PAZZARELLI, F.; LEMA, V. Masticar, digerir, deshidratar: lógicas de la transformación em uma ch’alla de arrieros. 2015. Trabalho apresentado. Primeras Jornadas sobre el Altiplano Sur: Miradas Disciplinares. Instituto Intersdisciplinario Tilcara/UBA, Tilcara, 2015.; ver também Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281. 18 18 “[…] o ‘universo’ não se concebe como uma totalidade indiferenciada que abarca tudo, nem como um fluxo primordial, mas como uma composição, um encontro de elementos igualados e opostos” (Harris; Bouysse-Cassagne, 1988, p. 225, tradução minha). ).

Essa composição encontra nas topologias corporais dos animais uma das suas expressões: a sorte está multiplicada em diferentes relações e vísceras, e fora existem outros lados que estão dentro. E só através de uma operação de desenvolver é que “outros lados” se revelam, embora nunca se tenha certeza se foi possível desenvolver tudo.

Referências

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  • *
    Versões preliminares deste artigo foram apresentadas no Congreso Argentino de Antropología Social, no Seminário de Antropologia da USFCar, no Núcleo de Antropologia Simétrica do MN-UFRJ e na XI RAM. Agradeço a todos os organizadores e comentadores desses eventos a possibilidade de ter apresentado e discutido com eles minhas notas sobre Huachichocana. O trabalho de campo e a pesquisa foram parcialmente financiados graças ao projeto FONCyT PICT-2013-0365. O conteúdo do texto é de minha responsabilidade.
  • 1
    Na geografia local, “quebrada” se refere aos vales muito estreitos, encaixados entre montanhas e com ladeiras abruptas; em ocasiões, constituem-se em “passos” entre regiões ou lugares.
  • 2
    Inclusive, as mortes “naturais” das pessoas são consideradas expressivas da conclusão da transformação dos corpos em comida e da ingestão que deles fará a terra: pois a Pachamama nos cria e nos come (ver também, Isbell, 1997ISBELL, B. De inmaduro a duro. Lo simbólico femenino y los esquemas andinos de género. In: ARNOLD, D. (Comp.). Más allá del silencio: las fronteras del género en los Andes. La Paz: Ilca, 1997. p. 253-300.).
  • 3
    Embora não seja objetivo deste trabalho, é importante ressaltar que as plantas também são criadas, ou seja, compartilham um campo de referências similar ao da criação dos animais (Lema, 2014LEMA, V. Criar y ser criados por las plantas y sus espacios en los Andes septentrionales de Argentina. In: BENEDETTI, A.; TOMASI, J. (Comp.). Espacialidades altoandinas: avances de investigación desde el Noroeste argentino. Buenos Aires: FFyL-UBA, 2014. p. 301-338.).
  • 4
    Os devires do consumo de sangue e carne, assim como os usos dos couros, variam, claro, segundo os contextos; mas em todos eles, os processos de matança e carneadas que permitem fazer e secar a carne são, até onde entendo, idênticos.
  • 5
    Observa-se também durante os carnavais, os rituais de marcação de animais, as oferendas para a Pachamama e inclusive na orientação das portas e entradas dos currais e casas.
  • 6
    Outros gestos podem acompanhar esse momento: colocar pequenas pedras no lombo do animal morto para que o rebanho se regenere; molhar a ponta da faca com o sangue e marcar com ela a lã e os orifícios do animal (olhos, orelhas, boca, nariz, úbere).
  • 7
    As referências espontâneas e explícitas aos ánimus só se fazem em alguma situação de comprometimento: quando um acidente ou doença deixou uma pessoa sem seu espíritu, por exemplo. Mas inclusive nesses casos, as conversações sobre o assunto são escassas e muito reguladas. Em paralelo aos argumentos deste texto, poder-se-ia dizer que o silêncio e os cuidados na hora de falar estão no mesmo plano de regulação das aberturas corporais, nesse caso referida à saída de palavras.
  • 8
    Por isso, as matanças não devem ser feitas nas terças-feiras nem nas sextas-feiras, pois são dias maus e das bruxas.
  • 9
    Os intestinos são cozinhados quase imediatamente – para que não fiquem podres – em alguma das típicas comidas pós-carneadas: churrasquinho de miúdos, geralmente, mas às vezes sopa de miúdos ou cozido de tripas.
  • 10
    A panchera (o quarto estômago ou abomaso) já seca é utilizada para coalhar leite e fazer queijos.
  • 11
    Uma pastora já velhinha explicou-me que isso era assim porque todos os finados do curral tinham que permanecer juntos. Algumas ideias sobre as “vitalidades” das matérias semidigeridas (pushno, entre elas) foram desenvolvidas em outro trabalho (Pazzarelli; Lema, 2015PAZZARELLI, F.; LEMA, V. Masticar, digerir, deshidratar: lógicas de la transformación em uma ch’alla de arrieros. 2015. Trabalho apresentado. Primeras Jornadas sobre el Altiplano Sur: Miradas Disciplinares. Instituto Intersdisciplinario Tilcara/UBA, Tilcara, 2015.).
  • 12
    É possível desmembrar ainda mais o corpo para pendurá-lo em vários pedaços (sem quebrar os ossos), procedimento ainda mais efetivo para que a carne não pareça viva.
  • 13
    Porém, pode ser comida grelhada sobre as brasas. Aqui vale a pena ressaltar que o grelhado constitui uma forma acelerada de desidratação, já que tecnicamente essa carne, embora recentemente carneada, não seria fresca.
  • 14
    Uma pessoa também poder ter sorte para outros animais ou para plantas (batatas, milho, favas). Como foi mencionado na nota 3, as plantas também são criadas e isso também envolve relações com a sorte.
  • 15
    Segundo a etnografia de Platt (2002PLATT, T. El feto agresivo. Parto, formación de la persona y mito-historia en los Andes. Estudios Atacameños, San Pedro de Atacama, v. 22, p. 127-155, 2002., p. 131), afirma-se que os diferentes tempos e modos da gestação devem-se ao fato de cada mulher possuir um “dentro” diferente.
  • 16
    Seria impossível resumir aqui as diferentes leituras que esses mundos tiveram na antropologia e etno-história andina. Por enquanto, o que me interessa é levantar algumas das relações topológicas que eles envolvem, sobretudo aquelas que se referem às “passagens” entre mundos, ressaltando as suas ressonâncias (relevantes, a meu ver) com os processos huacheños de matanças e carneadas.
  • 17
    “O manq’’apacha, então, não é uma esfera separada do nosso mundo, como o inferno cristão, mas o clandestino e o segredo do nosso mundo. Seu tempo próprio é o crepúsculo; seu poder é ambíguo” (Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281., p. 248, tradução minha).
  • 18
    “[…] o ‘universo’ não se concebe como uma totalidade indiferenciada que abarca tudo, nem como um fluxo primordial, mas como uma composição, um encontro de elementos igualados e opostos” (Harris; Bouysse-Cassagne, 1988HARRIS, O.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Pacha: en torno al pensamiento aymara. In: ALBÓ, X. (Comp.). Raíces de América: el mundo aymara. Madrid: Alianza América: Unesco, 1988. p. 217-281., p. 225, tradução minha).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2016
  • Aceito
    06 Fev 2017
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