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Pensando o "impensável": Victor Schoelcher e o Haiti

Resumos

Por intermédio da análise do relato do abolicionista francês Victor Schoelcher sobre o Haiti, publicado em 1843, este artigo questiona a interpretação do antropólogo Rolph Trouillot sobre o caráter "impensável" da Revolução Haitiana. Ao mesmo tempo em que esta última tem sido ignorada, distorcida ou tratada com incompreensão pelo Ocidente, o uso da noção de "impensável" para interpretar sua recepção contribui para outra forma de incompreensão, ao eliminar de qualquer consideração os contextos históricos e políticos que constituem a resistência. O texto de Schoelcher representa um esforço notável de "pensar" o Haiti e a Revolução Haitiana através dos pressupostos do Republicanismo francês. Suas interpretações revelam a ampla gama de possibilidades oferecidas pelo pensamento iluminista. Elas convergem com o pensamento e a prática das massas haitianas e das populações escravizadas das colônias francesas das Índias Ocidentais, mas não são inteiramente coincidentes. A não-identidade destes pensamentos dá forma ao espaço da política entre Schoelcher e os escravos e constitui um terreno necessário para a análise histórica.

Revolução de Saint Domingue; Victor Schoelcher; Haiti; "Impensabilidade"; Epistemologia


Through an examination of French abolitionist Victor Schoelcher's account of Haiti published in 1843, this article interrogates anthropologist Rolph Trouillot's interpretation of the "unthinkability" of the Haitian Revolution. While the Haitian Revolution has been ignored, distorted, and treated with incomprehension and disdain in the West, the use of the notion of 'unthinkability' to interpret its reception contributes to another form of incomprehension by eliminating from consideration the political and historical contexts that are constitutive of resistance. Schoelcher's text represents a remarkable effort to "think" Haiti and the Haitian Revolution from within the presuppositions of French Republicanism. His interpretations demonstrate the broad range of possibilities within Enlightenment thought. They converge with the thought and practices of the Haitian masses and the enslaved population of the French West Indian colonies, but they do not coincide with them. The non-identity of their thought forms the space of politics between Schoelcher and slaves and is a necessary ground of historical analysis.

Saint Domingue Revolution; Victor Schoelcher; Haiti; "Unthinkability"; Epistemology


ARTIGOS

Pensando o "impensável": Victor Schoelcher e o Haiti* * Uma versão anterior deste artigo foi publicada como "Pensando lo 'impensable' Victor Schoelcher y la revolución haitiana" em Del Caribe, 45:16-23, 2004. Eu gostaria de agradecer a Miranda Spieler, Yann Moulier Boutang, Radhika Mongia, Michael Zeuske, Luiza Franco Moreira, Olivia Gomes da Cunha e aos dois pareceristas anônimos da Revista Mana por seus úteis comentários a esta versão. Tradução de Fernanda Guimarães

Dale Tomich

Dale Tomich é professor de sociologia e história da Binghamton University, EUA e professor visitante CAPES/PPGAS/MN/UFRJ. E-mail: <dtomich@binghamton.edu>

RESUMO

Por intermédio da análise do relato do abolicionista francês Victor Schoelcher sobre o Haiti, publicado em 1843, este artigo questiona a interpretação do antropólogo Rolph Trouillot sobre o caráter "impensável" da Revolução Haitiana. Ao mesmo tempo em que esta última tem sido ignorada, distorcida ou tratada com incompreensão pelo Ocidente, o uso da noção de "impensável" para interpretar sua recepção contribui para outra forma de incompreensão, ao eliminar de qualquer consideração os contextos históricos e políticos que constituem a resistência. O texto de Schoelcher representa um esforço notável de "pensar" o Haiti e a Revolução Haitiana através dos pressupostos do Republicanismo francês. Suas interpretações revelam a ampla gama de possibilidades oferecidas pelo pensamento iluminista. Elas convergem com o pensamento e a prática das massas haitianas e das populações escravizadas das colônias francesas das Índias Ocidentais, mas não são inteiramente coincidentes. A não-identidade destes pensamentos dá forma ao espaço da política entre Schoelcher e os escravos e constitui um terreno necessário para a análise histórica.

Palavras-chave: Revolução de Saint Domingue, Victor Schoelcher, Haiti, "Impensabilidade", Epistemologia

ABSTRACT

Through an examination of French abolitionist Victor Schoelcher's account of Haiti published in 1843, this article interrogates anthropologist Rolph Trouillot's interpretation of the "unthinkability" of the Haitian Revolution. While the Haitian Revolution has been ignored, distorted, and treated with incomprehension and disdain in the West, the use of the notion of 'unthinkability' to interpret its reception contributes to another form of incomprehension by eliminating from consideration the political and historical contexts that are constitutive of resistance. Schoelcher's text represents a remarkable effort to "think" Haiti and the Haitian Revolution from within the presuppositions of French Republicanism. His interpretations demonstrate the broad range of possibilities within Enlightenment thought. They converge with the thought and practices of the Haitian masses and the enslaved population of the French West Indian colonies, but they do not coincide with them. The non-identity of their thought forms the space of politics between Schoelcher and slaves and is a necessary ground of historical analysis.

Key words: Saint Domingue Revolution, Victor Schoelcher, Haiti, "Unthinkability", Epistemology

Haiti: uma revolução impensável?

Em um importante e influente ensaio, o antropólogo haitiano Rolph Trouillot (1995:70-107) enfatiza a "impensabilidade" da Revolução Haitiana. Ele sustenta que a emancipação revolucionária conseguida pela Revolução Haitiana desafiou o cerne das suposições ontológicas e políticas dos pensadores europeus, incluindo os mais radicais pensadores da época. A capacidade de escravos africanos almejarem a liberdade, desenvolverem estratégias para assegurá-la e fundarem um Estado independente por meio do levante revolucionário estava fora do quadro de compreensão do pensamento ocidental, mesmo enquanto a Revolução acontecia. As discussões do período, argumenta Trouillot, "revelam a incapacidade dos contemporâneos de entender em seus próprios termos a revolução em curso. Eles podiam ler as notícias apenas com suas categorias preconcebidas, e essas categorias eram incompatíveis com a ideia de revolução escrava" (Trouillot 1995:73, 82, 88).

Trouillot enfatiza que mesmo quando a gravidade do levante haitiano se tornou evidente, "[...] tanto na França quanto em Saint Domingue, tal como de fato ocorrera antes na Jamaica, em Cuba e nos Estados Unidos, plantadores, administradores, políticos ou ideólogos encontraram explicações que forçaram a rebelião para os limites de suas visões de mundo, encaixando os fatos na ordem adequada de discurso" (Trouillot 1995:91, ênfase minha). Quando não ignoraram ou suprimiram a existência da resistência escrava, fazendeiros, administradores e observadores da escravidão colonial viram a resistência como particular e excepcional. Eles a interpretaram em termos de respostas individuais a abusos individuais, chegando a considerá-la um testemunho da patologia pessoal e do desvio dos próprios africanos escravizados (Trouillot 1995:83-84). Suas perspectivas refletem os escritos dos philosophes.

O exame feito por Trouillot dos pensadores do Iluminismo, incluindo Buffon, Voltaire, Condorcet, Mirabeau, Hume, Smith, Jefferson e Abbé Grégoire, revela uma resposta tépida, ambivalente, inconsistente e gradualista à escravidão, à resistência escrava e à Revolução no Haiti. Em seus escritos e discursos, a escravidão era, na maioria das vezes, uma metáfora para algo distinto. Quando eles se referiam à resistência escrava, empregavam artifícios e estratégias retóricos que a esvaziavam de qualquer conteúdo político; negavam-na ou trivializavam-na, ecoando o discurso dos fazendeiros. Em última instância, suas críticas, mesmo enquanto atacavam os abusos da ordem colonial, aceitavam-na como normal e legítima (Trouillot 1995:77-82).

Mesmo aqueles que aparentemente admitiam a possibilidade de uma revolução escrava, como Mercier e, sobretudo, Raynal e seu provável ghost-writer Diderot, não conseguiram desafiar a escravidão racial e os pressupostos sobre a desigualdade humana que a sustentavam. Eles não advogavam nem em favor da ação prática nem da abolição imediata. Seus alertas quanto a uma rebelião não eram justificativas em nome dos escravos; eram dirigidos aos seus congêneres coloniais ou ao público metropolitano e defendiam a reforma colonial. Na melhor das hipóteses, suas interpretações postergavam a possibilidade de uma revolução escrava para um futuro distante, enquanto a Revolução Haitiana desenrolava-se diante de seus olhos (Trouillot 1995:81-82, 84-88).

Assim, argumenta Trouillot, as maneiras pelas quais os escravos de Saint Domingue desafiaram a escravidão, a raça e o colonialismo nas Américas escaparam das estruturas tanto de defensores quanto de opositores da escravidão. A Revolução Haitiana, ele escreve, "perverte todas as respostas porque ela desafia os próprios termos em que as perguntas foram formuladas" (Trouillot 1995:82). O problema, a seu ver, não é ideológico, mas epistemológico e, em sentido mais amplo, metodológico (Trouillot 1995:74). A Revolução Haitiana era impensável em seu tempo devido àquilo que Trouillot define como uma "deficiência de categorias". Ela não podia ser pensada no escopo de alternativas possíveis porque faltavam à Europa os instrumentos de pensamento - problemáticas, conceitos, métodos e técnicas - necessários para conceitualizá-la (Trouillot 1995:82).

As categorias ontológicas e políticas do pensamento europeu, fossem elas conservadoras ou liberais, eram formadas nos quadros de uma ordem hierárquica de humanidade estabelecida durante o Renascimento, e refinada e consolidada por ondas sucessivas de expansão global e prática colonial. A identificação do Homem universal com um homem específico, europeu e masculino, comprometeu o pensamento europeu e criou uma escala de graus de humanidade que permitiu aos não-europeus e aos não-masculinos apenas um pertencimento parcial, se é que havia algum (Trouillot 1995:74-82).

Trouillot estende essa noção de "impensabilidade" aos intérpretes modernos da Revolução Haitiana. Ele defende que as interpretações produzidas por historiadores modernos são incrivelmente semelhantes às narrativas produzidas por contemporâneos. Assim como nos séculos XVIII e XIX, as análises modernas fragmentam e despolitizam a resistência escrava, quando não a ignoram. Como seus antecessores, estudiosos modernos tendem a estar excessivamente preocupados com a busca de causas externas ou agentes a quem creditar pelo levante. Tal problemática diminui ou trivializa a um só tempo a Revolução Haitiana e desconsidera a ideia de que escravos poderiam ser agentes conscientes, responsáveis por suas próprias lutas pela libertação (Trouillot 1995:102-104).

Trouillot fornece dois motivos para a semelhança entre respostas modernas e contemporâneas para a Revolução Haitiana e o Haiti independente. A recepção à Revolução Haitiana enquanto acontecia moldou as formas pelas quais ela foi documentada e afetou a historiografia subsequente. Mais significativamente, no entanto, historiadores modernos ainda operam nos limites das estruturas e das restrições epistemológicas e metodológicas impostas pela ordem ontológica ocidental, primeiro estabelecida durante o Renascimento (Trouillot 1995:96-106). Trouillot argumenta que as estruturas narrativas de historiadores modernos fora do Haiti são organizadas por duas famílias de figuras de linguagem que "são idênticas, em termos formais (retóricos) a figuras do discurso de fins do século XVIII".

Por um lado, o que Trouillot chama de "fórmulas para apagamento" simplesmente ignoram, minimizam ou negam o fato da revolução. Por outro lado, tal como fazendeiros, administradores e políticos do século XVIII, historiadores especialistas contemporâneos tendem a trivializar a revolução ao apresentá-la como uma série de eventos singulares, esvaziados de seu conteúdo político (Trouillot 1995:96). Ironicamente, o sucesso da Revolução Haitiana e o Estado haitiano contribuíram para o seu próprio apagamento. Em um impressionante paralelo com os seus congêneres dos séculos XVIII e XIX, estudiosos e comentadores modernos observaram esses eventos como um teste decisivo para a raça negra e os trataram como veículos para discutir algo diferente, em vez de abordá-los em seus próprios termos.

O viés nacionalizante da historiografia moderna marginaliza o Haiti não apenas por manipulação ideológica e exercício do poder, mas também pelo modo como sua incorporação da ontologia social gradualística e hierárquica do Ocidente inibe a integração das histórias metropolitana e colonial. Mesmo nos países que tiveram um envolvimento direto na Revolução Haitiana, as historiografias nacionais ignoram ou tratam o Haiti apenas de forma tangencial. É irônico que isto seja particularmente verdadeiro em relação à França. Apesar do importante papel atribuído a Saint Domingue na história econômica e política francesa durante o século XVIII, e do envolvimento direto da França na Revolução Haitiana (alguns argumentariam com a inseparabilidade das duas revoluções), o colonialismo em geral e o Haiti em particular têm sido tratados como preocupações derivativas, sujeitas à quase total negligência e a "múltiplas camadas de silêncios" pela historiografia francesa desde o século XIX (Trouillot 1995:99-102).

Esses mecanismos de silenciamento combinaram-se com o isolamento e a deterioração do Haiti desde sua independência, transformando a Revolução do Haiti em um "não-evento" e facilitando uma falta generalizada de ênfase em raça, escravidão e colonialismo na escrita da história do Ocidente. Trouillot observa que mesmo histórias não-nacionais dedicadas à "Era das Revoluções" reduzem o Haiti a pouco mais que uma nota de pé de página e questionam seu status de revolução (Trouillot 1995:97-101). A exceção que prova a regra é a própria historiografia do Haiti. Aqui, Trouillot é crítico quanto à politização do discurso histórico pelas elites haitianas, que criaram épicos racializados da Revolução capazes de legitimar seu poder e de silenciar a história da Revolução. Ele também considera equivocadas as contranarrativas que, a seu ver, permanecem demasiadamente respeitosas em relação àqueles que lideraram os escravos à liberdade e à independência (Trouillot 1995:97, 105).

Este ensaio vigoroso e de fato polêmico, ao mesmo tempo em que levanta questões complexas e profundas de história, política e epistemologia sobre a Revolução Haitiana, nos convida a repensar os modelos conceituais pelos quais são entendidos a escravidão, a raça e o colonialismo. Chama a nossa atenção para a negligência, a incompreensão, a negação e a distorção pungentes que reduziram um acontecimento passível de se considerar como dotado de um significado histórico mundial a, no máximo, uma anomalia curiosa. Nele, Trouillot procura ir além de manipulações conscientes de ideologia e poder, de modo a dar conta deste silêncio. Assim, ele associa a incapacidade de conceitualizar e compreender o Haiti com categorias ontológicas e metodológicas mais profundas e resistentes que moldam a recepção dada à resistência escrava e à Revolução Haitiana.

Operando com as suposições daquilo que Trouillot descreve como a ordem ontológica do Renascimento, as estruturas narrativas da historiografia ocidental inevitavelmente obliteram a história do Haiti e as histórias de povos colonizados e não-europeus de maneira geral. Com sua crítica, Trouillot expõe problemas significativos, decorrentes de uma escrita da história para além do Estado-nação e para além do horizonte de uma economia mundial dominada pela Europa, e reivindica uma colaboração mais próxima entre historiadores haitianos e não-haitianos, de modo a renovar as perspectivas e as práticas historiográficas. Tal colaboração contribuiria para uma fundamental reescrita da história mundial (Trouillot 1995:107).

Abstrações violentas: impensabilidade, estruturas narrativas e narrativa histórica

No entanto, mesmo ao clamar pela renovação da historiografia e uma história melhor e mais compreensiva do mundo, Trouillot opera em um quadro conceitual e historiográfico que o impede de atingir seus propósitos. A dificuldade reside menos no que Trouillot deseja argumentar do que na maneira como desenvolve o argumento. Ele trata tanto conceitos quanto fenômenos históricos como aquilo que Derek Sayer (1987) descreve como "abstrações violentas".1 1 Por "abstrações violentas", Sayer refere-se à prática de usar categorias conceituais como se elas se referissem a coisas fechadas e internamente integradas que são tratadas como se fossem independentes de - e externas a - outras categorias. Assim, por exemplo, ele critica os marxistas por tratarem como coisas separadas as "forças de produção" e as "relações de produção", ao invés de darem conta da relação dialética existente entre elas. Aqui, conceitos assumem um aspecto objetivo de coisas e são tratados de forma isolada um do outro e dos processos de cognição.

De forma semelhante, os fenômenos históricos são tratados como "fatos" separados, isolados e objetivos. Sejam eles concebidos como "fatos" ou como "eventos", também são tratados como entidades particulares fechadas em si mesmas, internamente integradas, compreendidas como independentes de outros fatos e de campos mais amplos das relações e dos processos históricos pelos quais são constituídas. Elas podem interagir uma com a outra, mas mantêm existências objetivas e independentes. A relação de fatos de uma para outra é estruturada pela narrativa. A abordagem de Trouillot cria um dualismo inevitável entre seu quadro conceitual e o material histórico que compromete sua habilidade de criar uma explicação adequada. Não oferece uma forma clara e não-ambígua de reconstruir, interpretar e explicar a Revolução Haitiana.

As dificuldades metodológicas implicadas na argumentação de Trouillot podem ser abordadas por meio de sua interpretação do conceito de "impensabilidade". Trouillot toma o conceito de "impensabilidade" do antropólogo francês Pierre Bourdieu (1990). Para Bourdieu, a "impensabilidade" é condicionada pelo habitus, "o sistema de disposições estruturadas e estruturantes [...] que é constituído pela prática e é sempre orientado para funções práticas" (Bourdieu 1990:52).2 2 Bourdieu (1990:53) descreve habitus como "sistemas de disposições duráveis, transponíveis, estruturas estruturadas predispostas para funcionar como estruturas estruturadas, isto é, como princípios que geram e organizam práticas como representações que podem ser adaptadas objetivamente às suas consequências sem se pressupor uma orientação consciente para fins ou a necessidade de um domínio absoluto das operações de forma a atingi-los". Bourdieu usa o conceito de habitus para criticar a oposição entre as análises objetivistas e subjetivistas da vida social que caracterizam as ciências sociais (Bourdieu 1990:52-53). De acordo com este autor, habitus refere-se à margem de escolha e indeterminação em campos de predisposições determinadas socialmente: "O princípio das práticas deve ser buscado [...] na relação entre coerções externas, que deixam uma margem muito variável para a escolha, e disposições, que são o produto de processos econômicos e sociais mais ou menos completamente redutíveis a essas coerções, tal como definido em um determinado momento" (Bourdieu 1990:50; ênfase minha).

Produto de "uma determinada classe de regularidades objetivas", habitus permite a autonomia de práticas em relação à ordem social e, ao mesmo tempo,

tende a gerar todos os comportamentos "razoáveis", de "senso comum" (e apenas estes) que são possíveis dentro dos limites dessas regularidades, e que são passíveis de serem sancionados positivamente porque são objetivamente ajustados à característica lógica de um campo particular, cujo futuro objetivo eles antecipam (Bourdieu 1990:55-56).

Ao gerar disposições que são positivamente orientadas para a ordem social, habitus ao mesmo tempo exclui outras como "impensáveis":

Na realidade, as disposições inculcadas de forma durável pelas possibilidades e impossibilidades, liberdades e necessidades, oportunidades e proibições inscritas nas condições objetivas [...] geram disposições objetivamente compatíveis com estas condições e de certa forma pré-adaptadas às suas demandas. As práticas mais improváveis estão, portanto, excluídas, como impensáveis, por uma espécie de submissão imediata à ordem que inclina os agentes a tornar a necessidade uma virtude, ou seja, a recusar aquilo que é de qualquer modo negado e a desejar o inevitável (Bourdieu 1990:54).3 3 "[...] naquilo que é impensável num dado momento está não apenas tudo o que não pode ser pensado por falta das disposições éticas e políticas que tendem a levá-lo em conta, mas também tudo aquilo que não pode ser pensado por falta de instrumentos de pensamento, tais como problemáticas, conceitos, métodos e técnicas [...]" (Bourdieu 1990:5).

Ao vincular firmemente "impensabilidade" à construção "ontologia ocidental" ou, de maneira alternativa, ao fazer com que diversos pensadores e textos do Iluminismo representem a tradição intelectual ocidental, Trouillot apresenta a "impensabilidade" da resistência escrava, da Revolução Haitiana e do Estado haitiano (ou, de maneira mais geral, do racismo, da escravidão e do colonialismo) como um atributo geral do pensamento ocidental per se. Em sua construção, a ontologia ocidental do ser social determina o conteúdo histórico geral do pensamento europeu em relação aos povos não-ocidentais e estabelece as condições de impensabilidade no longo período histórico de dominação do mundo pela Europa.

Trouillot interpreta a ontologia ocidental como uma estrutura distinta, independente e duradoura - internamente unificada, externamente fechada e demarcada - que regula a pensabilidade por processos de inclusão e exclusão. Ele, portanto, isola-a das várias conjunturas e configurações de práticas pelas quais, como argumenta Bourdieu, é constituído e reconstituído o habitus, ao mesmo tempo em que ele constitui e reconstitui tanto pensabilidade como impensabilidade. Trouillot então reinstitui precisamente a fixidez e o isolamento que Bourdieu critica. Sua rígida formulação ou isto/ou aquilo parece insinuar que há uma voz que fala em nome da experiência haitiana e uma voz que fala em nome da dominação ocidental e da prática colonial. O campo é dividido arbitrariamente entre insiders que entendem e outsiders que não entendem (nem podem entender).

A interpretação histórica de Trouillot da "impensabilidade" da Revolução Haitiana - ou seja, a incapacidade do pensamento ocidental de compreender a Revolução Haitiana em seus próprios termos - é construída através da oposição de dois conjuntos vinculados de fenômenos históricos: por um lado, a ontologia do ser social e das práticas coloniais da economia mundial europeia e a recepção ocidental da Revolução Haitiana; por outro, a capacidade de os escravos conceitualizarem a liberdade, a resistência escrava e a luta revolucionária em Saint Domingue, e a fundação do Estado haitiano (Trouillot 1995: esp. 74-89). Entretanto, esta oposição cria uma ambiguidade incontornável na formulação de Trouillot. Cada série contém termos incomensuráveis, que operam em diferentes níveis de generalidade e em planos temporais e espaciais distintos. Trouillot deixa de registrar a heterogeneidade de termos e as maneiras pelas quais as suas relações, tanto dentro de cada conjunto quanto entre conjuntos, mudam com o tempo. Simultaneamente, a bem-definida linha da "impensabilidade" cria um abismo virtualmente impossível de ser transposto entre os dois conjuntos de termos.

No quadro de Trouillot não há critérios ou procedimentos claros para ordenar, interpretar ou analisar logicamente os fenômenos históricos que ele nos apresenta. A relação entre os dois conjuntos de termos permanece problemática. Uma coisa é falar da incapacidade estrutural do pensamento europeu de "pensar" o desejo dos escravos por liberdade e a sua capacidade de resistir; outra é aplicar esses quadros diretamente ao "evento" particular da Revolução Haitiana (presumindo que "evento" seja a maneira apropriada de caracterizar uma revolução). Alternativamente, analisada a partir da perspectiva geral ou de longo prazo da ontologia ocidental e das práticas coloniais, o Haiti pode aparecer ou como metáfora ou símbolo para toda a resistência, ou como um de uma série de atos de resistência ao longo de toda a história do colonialismo europeu. Contudo, perspectivas de longo prazo são inadequadas para apreender a inovação e a novidade da Revolução, se o que está em jogo é uma interpretação concreta do Haiti como a única revolução escrava bem-sucedida e a fundação singular de um Estado independente.

Do mesmo modo, não há critérios, procedimentos ou ferramentas conceituais para estabelecer adequadamente relações entre os termos circunscritos em cada conjunto. O problema aqui não é com os fenômenos tomados individualmente, mas sim com a forma como eles são combinados para formar a Revolução Haitiana como uma "cadeia de eventos", cuja sequência contém ao mesmo tempo aquilo que será explicado e a explicação. Reunir em uma série uma noção geral e abstrata da capacidade de os escravos pensarem em liberdade, as estratégias empregadas para assegurar essa liberdade por meio da revolta escrava - ou, mais precisamente, através de uma luta revolucionária - e a formação de um Estado independente (Trouillot 1995:89, 95-96) é correr o risco de julgar processos históricos complexos e altamente contingentes a partir de seus resultados, subestimando assim as difíceis circunstâncias e as conjunturas que ao mesmo tempo tornaram possível e limitaram o movimento revolucionário. E mais: deixar de levar em conta a incomensurabilidade dos termos compromete a coerência lógica de qualquer explicação de suas relações.

A resistência escrava é supostamente o termo mais geral e, como tal, pode ser aplicável a escravo em toda parte. Contudo, a Revolução Haitiana demonstra que a vontade de resistir é apenas raramente convertida em revolta, e ainda mais raramente (de fato, apenas excepcionalmente) é que a revolta resulta na revolução e na fundação de um Estado independente. A cada passo da sequência, uma causa geral é mobilizada para explicar um resultado mais específico.

Ironicamente, tal perspectiva pode ter o efeito de interpretar equivocadamente a agência escrava e reduzir a revolução haitiana a uma "revolução escrava", de forma a distorcer, não compreender e até subestimar os êxitos daqueles que eliminaram a escravidão colonial em Saint Domingue. Ela apresenta uma visão totalizante do processo histórico, que considera os escravos como sujeitos históricos já completos, internamente integrados e singulares, compartilhando da mesma concepção de liberdade. Tanto as lutas de resistência quanto a formação do Estado haitiano aparecem como imanentes nos já constituídos e definidos conceitos de liberdade e agência escrava. Através do desdobramento unilinear da resistência escrava, a revolução e a formação de um Estado independente aparecem como consequências naturais e inevitáveis do impulso original em direção à liberdade (e quaisquer obstáculos ou desvios apenas podem ser concebidos como externos à agência revolucionária). Deste modo, diferenças e conflitos entre escravos, entre escravos e outros grupos, ou entre estes outros grupos em Saint Domingue e em outros lugares no teatro transatlântico da Revolução Haitiana estão todos subordinados a uma agência escrava já formada.4 4 Esta visão está certamente em desacordo com o próprio trabalho antropológico e histórico de Trouillot (ver Trouillot 1982; 1988; 1990).

Tal interpretação eliminaria a política e subestimaria a capacidade dos insurgentes haitianos de interpretar suas próprias existências, de agir com base em seu entendimento e de aprender com sua experiência. Ela reduz os complexos processos transnacionais que moldaram a revolução em Saint Domingue e a formação do Estado haitiano no desenrolar da rebelião escrava realizada por sujeitos históricos integrais, cuja trajetória revolucionária e decorrências são tratadas como se já estivessem inscritas em uma consciência essencializada. A ambiguidade e a tensão no ensaio de Trouillot são mais evidentes justamente neste ponto. Para contrapor a possibilidade de tal leitura de seu texto, Trouillot enfatiza que a Revolução somente poderia se desenvolver por meio de sua prática:

Por necessidade, a Revolução Haitiana elaborou a si mesma enquanto acontecia. Seu projeto, progressivamente radicalizado ao longo de treze anos de combate, foi revelado em arranques sucessivos. Entre e em meio a seus estágios imprevistos, o discurso sempre ficou atrás da prática (Trouillot 1995:89).

Com efeito, Trouillot argumenta que

[...] as reivindicações da revolução eram, de fato, radicais demais para serem formuladas de antemão. A prática vitoriosa apenas poderia declará-las depois do fato. Naquele sentido, a Revolução era realmente impensável, mesmo em Saint Domingue, mesmo em meio aos escravos, mesmo em meio aos seus próprios líderes (Trouillot 1995:88).

Estas passagens indicam a relação complexa entre pensamento e prática. Em alguns aspectos, Trouillot parece dar precedência à prática. A "pensabilidade" e o curso da luta revolucionária são aqui efetivamente dependentes da prática e da experiência prática. Este recurso à prática e à experiência para explicar a passagem da resistência para a ação revolucionária indica o impasse teórico do quadro conceitual de Trouillot: se não apenas os europeus, mas também os próprios revolucionários escravos são incapazes de "pensar" a Revolução, o que a "impensabilidade" representa em relação a europeus ou africanos?5 5 O problema da "impensabilidade" é aqui reforçado pelas suposições não-problematizadas de Trouillot sobre a natureza dos "eventos". Dizer que a Revolução Haitiana não podia ser pensada mesmo enquanto acontecia conceitua equivocadamente a natureza do "evento". Os eventos têm uma estrutura temporal definida, ou seja, começo e fim claramente demarcados, sem os quais eles se fragmentam em uma sequência de incidentes sem coerência interna (Koselleck 1985:105-115). Eles não podem ser "pensados enquanto estão acontecendo". O encerramento é necessário para que possam ser concebidos como eventos. Os escravos e seus líderes eram incapazes de articular discursivamente seus feitos não porque fossem iletrados ou porque suas realizações fossem muito radicais para serem formuladas previamente (embora ambos possam ser verdadeiros (Trouillot 1995:88), mas porque eles mesmos não podiam conhecer e interpretar a priori os efeitos de suas ações. As revoluções são especialmente problemáticas porque determinar o seu encerramento é por si um ato contencioso e constitutivo do evento (Afinal, a Revolução Francesa, que começou em 1789, terminou em 1794? 1815? 1830? 1848? 1871? ou mesmo em 1968? Argumentos plausíveis têm sido avançados para cada um, e eles seguem sendo objeto de disputa). Escolher uma data de término é ao mesmo tempo condição para e consequência de interpretar o evento e, no caso de revoluções, tais escolhas podem não necessariamente ser política ou ideologicamente inocentes.

Apesar desta incógnita, Trouillot permanece firme no terreno de uma crítica epistemológica e faz pouco mais que sugerir a complexa inter-relação de pensamento e prática. Em vez de chamar a atenção para a natureza historicamente contingente de resultados particulares e das formas como revolucionários (e contrarrevolucionários) aprendem a partir de sua própria experiência no envolvimento em condições específicas, Trouillot parece sugerir o desenrolar de um processo internamente coerente ao conceber a revolução como uma cadeia interligada de eventos ou uma sequência de estágios. A primeira perspectiva é compelida a se voltar para uma configuração histórica mais ampla de condições e práticas históricas, enquanto a segunda sustenta o dualismo em que se apoia sua construção de impensabilidade.

A questão aqui não é se o Haiti revolucionário desafiou suposições fundamentais de colonialismo, racismo e escravidão ou não. A questão são as maneiras pelas quais oscilamos para diante e para trás entre conceitos históricos gerais e particulares e registramos a complexidade espaço-temporal. Na abordagem metodológica apresentada por Trouillot, a concepção dos escravos sobre liberdade, a resistência escrava e a fundação do Estado haitiano são tratadas cada uma em separado de seus contextos históricos individuais, em seguida sendo mecanicamente recombinadas uma com a outra como categorias gerais e independentes de sua inter-relação histórica específica na conjuntura da formação da Revolução Haitiana.

Tal procedimento abstrai as relações históricas que fazem de um escravo um escravo, subestima a diversidade e a complexidade de respostas dos escravizados à escravidão e trata a Revolução de forma isolada das condições históricas que a tornaram possível.6 6 Há um ponto tanto teórico quanto metodológico em jogo aqui. Teoricamente, os atores não estão fora ou não existem a priori em face das relações sociais; eles são formados nas relações. Como escreve W.E.B Du Bois ao apresentar Black Reconstruction (1935: folha de rosto, sem nº de pág.), se o leitor, "acredita que o negro na América e em geral é um ser humano normal e comum, que em dado ambiente se desenvolve como outros seres humanos, então ele lerá esta história e a julgará pelos fatos documentados". Metodologicamente, pode iniciar-se uma análise com atores (ou eventos) ou com relações. Ao começar pelos atores, é pelo menos extremamente difícil reconstruir as relações a partir das ações. Se, por outro lado, a análise é iniciada pelas relações, é bem mais fácil se chegar aos atores e reconstruir os contextos de suas ações (Hopkins 1982:149-152). Um dos motivos para o sucesso de Os Jacobinos Negros de James é que ele habilmente compõe sua análise reconstruindo os espaços distintos, mas inter-relacionados e mutuamente formativos da França e de Saint Domingue e, na devida ordem, entrelaça-os ao tecido mais amplo do Atlântico. Antes e durante as agitações revolucionárias, França e Saint Domingue já eram relacionados e ligados um ao outro, apesar da miríade de diferenças entre eles. Neste quadro, James consegue investigar agências no contexto das relações que as moldam enquanto analisa a natureza mutável das próprias relações. Como ele formulou, se os jacobinos negros "puderam aproveitar a oportunidade, eles não puderam criá-la". Suas iniciativas eram dependentes do contexto econômico, político e social mais abrangente do Atlântico (James 1963:25-26). Tanto a "impensabilidade" quanto a agência escrava são tratadas como construções abstratas e a priori, externas às relações que formam a escravidão e a agência. Consequentemente, não há maneira de traçar seu desenvolvimento histórico no contexto das relações históricas que as moldam, ou de compreender a formação e a reformação histórica dessas próprias relações.

Trouillot (1995:73) pergunta: como escrevemos a história do impossível? Como podemos depois discutir um evento que não pode ser discutido enquanto acontece? Não há resposta, se nos limitamos a prescrever o que as pessoas deveriam pensar para superar uma lacuna que foi construída desde o princípio como insuperável, e depois acusá-las por não serem capazes de pensar o evento. A abordagem metodológica de Trouillot abstrai os atores das relações e dos processos que formam a ação, os eventos de seus contextos e as estruturas cognitivas do mundo histórico-social que elas interpretam.

Tal como é formulada, a "impensabilidade" mais impede do que facilita a interpretação e a explicação históricas. Neste argumento, a ontologia ocidental do ser social aparece como um mecanismo regulatório abstrato, fechado e virtualmente estático, que é externo aos fenômenos que ela regula. Ao projetar o homem europeu como a imagem do Homem Universal e construir uma ordem hierárquica da humanidade, ela impõe unilateralmente condições de pensabilidade e impensabilidade. Contudo, aqui está o problema crucial. A concepção fechada da ontologia ocidental de Trouillot leva à predominância de sua preocupação com a verdade ou a falsidade da reivindicação por universalidade do Ocidente e com as maneiras pelas quais essa reivindicação torna a verdade impensável. O Haiti é visto como o teste extremo para as pretensões universalistas do Ocidente (Trouillot 1995:82). Não é surpreendente que o Ocidente falhe no teste e seja condenado por não ser verdadeiramente universal e por não ser capaz de transcender as fronteiras do impensável.

Tal construção exclui a interrogação sobre as formas pelas quais a ontologia ocidental é, ela mesma, contraditória e contestada. As linhas de pensabilidade e impensabilidade não são tão claramente traçadas como Trouillot as apresenta. A ontologia ocidental é um terreno de disputa histórica e não pode incluir uma concepção unilateral de Homem mais do que pode excluir por completo concepções alternativas. Por esse motivo, é parte do arsenal histórico de "armas dos fracos", mesmo apesar dela. As Revoluções Haitiana e Francesa influenciaram uma a outra porque elas compartilharam códigos comuns; elas não foram relacionadas por terem influenciado uma a outra.

As ideias do Iluminismo e da Revolução Francesa não viajaram até o Haiti para exercer sua influência. Ideias, movimentos e instituições reverberaram do outro lado do Atlântico e interagiram umas com as outras porque eram parte do mesmo complexo de relações transatlânticas. De formas diferentes, as condições eram maduras para elas em cada polo do complexo metrópole-colônia. As mesmas ideias puderam ter consequências muito distintas em cada contexto particular. Grupos diversos apropriaram-se delas, adaptaram-nas e mobilizaram-nas de várias formas em locais geográficos e sociais específicos.7 7 Uma ilustração gráfica para o meu argumento é o recente livro de James Oakes (2007). Nele, Oakes descreve as intensas disputas pessoais, políticas e intelectuais de Frederick Douglass e Abraham Lincoln para interpretar a relação da escravidão na Constituição dos Estados Unidos. Cada um deles foi, a seu modo, capaz de mobilizar a Constituição como uma arma na luta contra a escravidão e chegar a posições que convergiram uma com a outra no momento político decisivo, mas que não eram coincidentes. Os mesmos Direitos do Homem podiam ser interpretados de maneiras diferentes em cada local e em cada conjunto de condições, e as pessoas delas podiam se apropriar, interpretá-las e aplicá-las de maneiras originais e surpreendentes para se referirem às suas situações imediatas (ver Palmié 2002: esp. 9-158).

A concepção de Trouillot arrisca perder de vista os processos de interação e aprendizagem tanto nos grupos como entre grupos. É mais produtivo indagar os termos com os quais as pessoas de fato pensam, incluindo, talvez de forma mais interessante, suas limitações. Em 1791, quando os insurgentes Jean-François e Biassou estavam negociando concessões dentro do sistema escravista, em vez de tentar destruí-lo - e Toussaint Louverture era ainda uma figura desconhecida - por que deveríamos esperar que alguém, incluindo os próprios protagonistas da resistência haitiana, enxergasse uma revolução e a formação de um Estado independente como resultados lógicos e práticos de sua resistência? Supor algo diferente ignoraria os complexos processos históricos pelos quais a Revolução se fez e o Estado se formou. Seria negar a revolução como processo e a capacidade dos insurgentes de aprender com suas próprias atividades e experiências.8 8 De fato, na medida em que os eventos no Haiti foram se cristalizando em uma luta revolucionária e emancipatória sem precedentes, eles foram recebidos pelo menos por alguns europeus em termos bastante semelhantes aos de Trouillot. Em 1805 o autor antiescravista Marcus Rainsford escreveu sobre o Haiti recém-emancipado: "O encerramento do século XVIII, um período marcado pelas mais significativas operações e os mais gigantescos projetos, apresentou ao mundo um novo e organizado império onde não apenas era impossível que existisse, mas onde sua própria existência fora negada [...]" (Rainsford apud Zeuske 2004a:168). Ver também Zeuske, 2004b.

Também em 1791, o fazendeiro cubano Francisco Arango y Parreño "pensou" a Revolução Haitiana a partir de uma posição firmemente embasada nos princípios do Iluminismo (Tomich 2003:4-28). Ele estava vivamente ciente da gravidade do levante escravo na vizinha Saint Domingue. Com perspicácia política e cálculo frio, Arango escreveu sobre os eventos em Saint Domingue não como uma oportunidade para a libertação da humanidade escravizada, mas como uma oportunidade para a classe senhorial cubana dominar o mercado açucareiro mundial por meio da expansão do trabalho escravo. Seu quadro de referências era, contudo, o das clássicas rebeliões de escravos na Roma antiga.9 9 "[...] Daqui o direito de prisão, de mutilação, de vida e de morte e, enfim, tudo o que há de mais bárbaro na legislação da Lacedemonia e da Romana para tratar seus escravos; portanto, não se deve estranhar ver repetidas nas planícies do Guarico [Saint Domingue] as mesmas guerras de escravos que ocuparam e puseram em tanto risco os romanos [...]" (Arango & Parreño 1952:110-111). Portanto, não há nenhum motivo para supor que os atos revolucionários dos escravizados devessem ser transparentes, ou que deveria haver um consenso de entendimento ou uma convergência de diferentes pontos de vista. Mais interessante é a pluralidade de vozes e entendimentos e os modos como eles interagem uns com os outros e com as circunstâncias que devem tomar como dadas. Este é o espaço da política e da história.

Gostaria de tratar destes assuntos examinando uma tentativa pouco estudada, mas significativa, de entender a Revolução Haitiana depois que ela aconteceu. Em 1843, Victor Schoelcher, um republicano radical e líder abolicionista francês, publicou Colonies étrangères et Haïti. É interessante analisar Schoelcher em relação ao argumento de Trouillot, já que o seu republicanismo está na linhagem direta do Iluminismo. Sua adesão incondicional aos princípios universais da Revolução Francesa e aos Direitos do Homem e do Cidadão levaram-no a uma interpretação democrática e socialista do republicanismo e permitiram sua defesa íntegra do povo haitiano e da Revolução Haitiana, bem como seu perene compromisso com um Haiti democrático e republicano.

No contexto do republicanismo radical na França durante a Monarquia de Julho, ele dedicou suas energias à questão da escravidão e do racismo. De fato, sua originalidade talvez repouse na assimilação de antiescravismo e antirracismo ao pensamento republicano. Ele rapidamente emergiu como o mais preeminente, militante e irredutível partidário da abolição imediata e da cidadania plena para a população emancipada nas colônias francesas. Com a fundação da Segunda República em 1848, ele teve a oportunidade de pôr suas ideias em prática. Ele se tornou subsecretário de Estado para as Colônias e foi também indicado chefe da comissão encarregada da abolição da escravidão nas colônias francesas.10 10 No contexto desta discussão, vale a pena chamar a atenção para a lúcida apresentação de Aimé Césaire sobre Schoelcher, escrita por ocasião do centenário da abolição da escravidão nas colônias francesas, em 1948. "Victor Schoelcher et l'abolition de l'esclavage" (introdução a Tersen 1948:1-28). Assim, a resposta de Schoelcher para escravidão, raça e colonialismo no âmbito do discurso republicano tornou a revolução em Saint Domingue e a condição do Haiti em 1840 "pensáveis" na perspectiva dos princípios universais do Iluminismo e da Revolução Francesa e moldou ideologia e prática abolicionista francesa (Chartier 1997:51-71).

Victor Schoelcher

Victor Schoelcher (1804-1893), filho de um fabricante de porcelanas, foi enviado por seu pai para uma viagem de negócios ao México, Flórida, Louisiana e Cuba em 1829-1830 em busca de novos mercados. Nessa viagem ele testemunhou a escravidão em primeira mão e descobriu a causa à qual ele se dedicaria pelo resto de sua vida. Ao retornar à França, publicou "Lettres de Méxique", das quais a quarta era intitulada "Des noirs", na Revue de Paris (reproduzido em Tersen 1948:29-40). Como reação à sua experiência inicial com a escravidão, Schoelcher escreveu: "Para mim, é uma cena dolorosa que nunca deixará minha lembrança e que ainda me entristece..." (Tersen 1948:30). Ele descreve em detalhes a condição dos escravos e a brutalidade da escravidão. A seu ver, a escravidão sistematicamente arrasou suas vítimas tanto material quanto espiritualmente.11 11 "Confesso", ele escreveu, "que os negros, como estão hoje, sob a escravidão, formam a classe mais deplorável ( misérable), mais abjeta, mais imoral que se possa imaginar. Mas por quê? Porque seu espírito, circunscrito em um círculo fatal de destituição, não pode chegar a um ponto de desenvolvimento em que conceba boas ações" (Tersen 1948:36).

Contudo, essa resposta à escravidão não foi meramente emocional: para Schoelcher, foi também uma questão de princípio, e ele estendeu sua concepção de igualdade humana para contemplar os escravos africanos mesmo em seu estado degradado: "Quanto a mim, está provado que, de fato, os negros são uma variedade da espécie animal chamada homem e, por esse motivo apenas, eles são livres por direito" (Tersen 1948:36). Não obstante, a reação de Schoelcher ao seu enfrentamento inicial com a escravidão foi moderado pela limitação. A escravidão tinha degradado suas vítimas em tal extensão que, se fossem deixadas sós, elas não poderiam servir à sociedade ou a si mesmas. A abolição imediata era impossível; seria apenas a fonte de mais desordem. Em vez disso, Schoelcher advogava a abolição permanente do tráfico internacional de escravos e um processo de abolição gradual (Tersen 1948:39).

Esse primeiro enfrentamento iniciou a atividade intelectual e política de toda uma vida orientada contra a escravidão e o tráfico escravo, e ele logo se estabeleceu como um dos europeus mais bem informados sobre escravidão nas Américas. Fortemente influenciado pelos abolicionistas ingleses, ele publicou seu primeiro grande trabalho, De l'esclavage des noirs et de la legislation coloniale, em 1833. Neste trabalho, ele atacou os interesses políticos e comerciais nos quais o tráfico e a escravidão eram embasados, e clamou pela supressão do tráfico ilegal de escravos. Ainda que seu tom estivesse se tornando mais militante, ele ainda era um defensor da abolição gradual (Tersen 1948:40; Schmidt 1994:22-26; Cohen 1980:193).

Em 1840, ele publicou um novo livro, Abolition de l'esclavage: examen critique du préjugé contre la couleur des africains et des sang-mêlés, que marcou a sua emergência como defensor da abolição imediata e geral da escravidão. Ao mesmo tempo ele atacava explicitamente o preconceito racial dirigido não apenas aos escravos negros, mas também aos homens livres miscigenados. O prêmio Abbé Grégoire foi negado a este trabalho pela Société des Amis des Noirs porque pleiteava meramente a abolição da escravidão sem fazer menção aos meios pelos quais isto seria conseguido (Jennings 2000:161-162, 165; Schmidt 1994:28).

Em 1840-1841, Schoelcher fez sua segunda viagem às Américas. Esta viagem deveria levá-lo a Martinica, Guadalupe, Jamaica, Dominica, Antígua, Saint Thomas, Santa Cruz, Porto Rico, Haiti e Cuba. Era uma viagem de exploração, destinada a adquirir conhecimento e colecionar dados em primeira mão que complementassem suas extraordinariamente extensas leituras sobre escravidão e colonialismo. Seu propósito era argumentar a favor da emancipação geral e imediata através de um estudo comparativo dos sistemas coloniais vigentes no Caribe. Ao retornar, publicou dois trabalhos: Des colonies françaises. Abolition immediate de l'esclavage (1842) e Colonies étrangères et Haïti (1843), com base em suas experiências. Estes dois livros são notáveis por sua cuidadosa e detalhada descrição e documentação das condições da escravidão nas colônias do Caribe, seu amplo foco comparativo e sua arrazoada e apaixonada argumentação pela emancipação imediata. Eles consolidaram a reputação de Schoelcher como o mais bem informado crítico da escravidão e o principal defensor da abolição imediata na França.

O abolicionismo de Schoelcher é notável. Baseado em um extenso conhecimento de primeira mão das sociedades escravocratas, é a um só tempo secular, racional e político. Ainda assim, não está amarrado à raison d'état, mas a uma concepção abrangente de reforma política e social e progresso moral. Ele reconheceu a plena humanidade dos africanos escravizados e incorporou-os ao quadro do republicanismo radical. Depois de 1840, ele foi partidário da emancipação imediata sem condicionadores e da igualdade racial. Ao mesmo tempo, ele considerava a emancipação inadequada sem a cidadania, que daria substância à liberdade, garantiria a igualdade civil e permitiria que os escravos emancipados participassem do corpo político. A seu ver, os princípios republicanos consistentes levam a estas posições, e as lutas pela plena emancipação e cidadania eram inseparáveis da luta pela república. Ele via liberdade, igualdade e fraternidade como princípios universais válidos, e a república como a forma política que mais adequadamente os expressava. Por meio da cidadania política, o estado republicano possibilita o pleno desenvolvimento da liberté, reconcilia a ordem individual e a social e agencia o progresso social e moral (vertu).

Schoelcher combinou sua agitação antiescravista com o republicanismo, escrevendo para jornais como Revue du progrès social, Revue indépendente e, especialmente, La Réforme de Ledru-Rollin. Mas Schoelcher seguiu sendo um especialista técnico, estranhamente isolado tanto do movimento republicano radical como do abolicionista, até que a revolução de fevereiro de 1848 levou os republicanos ao poder (Schmidt 1994:60-70; Jennings 2000:160-161). Alexandre Ledru-Rollin e François Arago indicaram-no então para subsecretário do Estado para as Colônias e chefe da Comissão que preparou o projeto que concedia a emancipação imediata e o direito à cidadania plena aos escravos das colônias francesas. Com a emancipação, os escravos da Martinica e de Guadalupe também o elegeram como seu representante na Assembleia Nacional.

Com a queda da República em 1851, ele começou um período de exílio que durou até agosto de 1870, quando retornou para defender a França da invasão alemã. Em meio aos fundadores da Terceira República, ele foi novamente eleito, em 1871, o representante da Martinica perante a Assembleia Nacional. Ao longo de sua vida, continuou como um porta-voz ativo da antiescravidão, do antirracismo e em defesa dos interesses da população das colônias, incluindo a escrita de uma biografia de Toussaint Louverture (Schoelcher 1889, repr. em 1982), publicada em 1889, quatro anos antes de sua morte, em 1893.

O relato de Schoelcher sobre a sociedade haitiana

Schoelcher foi o primeiro abolicionista europeu a viajar para o Haiti (Schmidt 1994:41-46). Enquanto outros abolicionistas europeus dependiam, na melhor das hipóteses, de seus contatos com o governo haitiano como fonte de informação, Schoelcher pôde ver as condições em primeira mão e se comunicar com várias figuras no Haiti, incluindo a viúva de Jean-Jacques Dessalines e líderes da oposição, como Hérard Dumesle.

Colonies étrangères et Haïti fornece sua visão do Haiti e da Revolução Haitiana. A seção do livro sobre o Haiti é dividida em duas partes. A primeira é histórica: inclui uma Introduction que reconta a história da ilha de Hispaniola desde o seu descobrimento e colonização por Colombo até ser tomada pelos franceses. O Aperçu historique contém a história da colonização francesa até 1789. O précis historique fornece um breve modelo interpretativo para a Revolução. Schoelcher comenta que a intenção não é fazer uma história de Saint Domingue, mas um rápido exame dos eventos anteriores que oferecem uma chave para temas necessários ao exame da situação atual no Haiti (Schoelcher 1973: II, 110-111). A segunda parte do livro é um registro sobre as experiências de Schoelcher no Haiti. Não sendo simplesmente uma narrativa de viagem, ela combina observação, entrevistas e a leitura da imprensa local para criar uma avaliação crítica das condições no Haiti pós-independência. Uma espécie de cruzamento entre relato investigativo e história comparativa, o livro mobiliza estes materiais para criticar o regime autocrático de Jean-Pierre Boyer e a facção dos mulatos que o apoiou.

O relato de Schoelcher é iniciado com uma passagem que registra sua ansiedade e expectativa pessoal ao chegar ao Haiti. Enquanto o navio que o levava entrava no porto de Cap Haïtien, ele rememora: "eu desejava, eu ansiava, eu temia". A raça africana tomando seu lugar em meio à civilização estava prestes a aparecer diante dele. Era iminente ver "os primeiros negros civilizados". Mas Schoelcher estava apreensivo. Será que ele encontraria a desordem e a barbárie que os inimigos da Revolução tinham previsto? Será que sua fé na perfectibilidade de todas as raças humanas seria quebrada? O que diria a ele o Haiti, lugar dos "mais terríveis e mais belos triunfos da emancipação?" (Schoelcher 1973: II, 171-172).

Esta passagem já revela os termos com os quais Schoelcher conduziria sua pesquisa. Em face da hostilidade e do racismo da Europa, a "República negra independente" do Haiti aparece inevitavelmente como um teste para toda a raça africana. "Barbárie" e "civilização" formam a escala segundo a qual tanto o Haiti quanto a raça negra serão julgados, são os termos que determinarão se será aprovado ou reprovado no teste. Mas a viagem é também um teste para o próprio Schoelcher, a medida de seu compromisso como republicano, négrophile e abolicionista. A viagem é importante para a evolução do pensamento de Schoelcher. Embora ele compartilhe o padrão de barbárie e civilização com os críticos do Haiti, seu propósito é contestar o sentido destes termos e da interpretação do Haiti encerrada neles. Neste texto, ele vê a África como selvagem e a escravidão como brutalizadora.12 12 Nos escritos de Schoelcher "selvageria" e "barbárie" aparecem para operar não como atribuições estáticas que funcionam para estabelecer uma hierarquia cultural e racial. Em suas mãos, elas são categorias flexíveis, usadas para marcar processos de mudança. Neste texto, a África é vista como "selvagem", enquanto em Des colonies françaises, publicado um ano antes, ele argumenta que os africanos são civilizados (Schoelcher 1976 [1842]:135-154). Em todo caso, como foi notado acima, "selvageria" ou "barbarismo" para desqualificar africanos ou escravos de seus direitos inerentes como seres humanos. Ele insiste na universalidade da liberdade e vê o progresso em sua direção como um processo aberto a toda a humanidade, incluindo a raça africana. Seu uso destes termos pode talvez ser visto, ao menos em parte, como um artifício polêmico, já que seu real alvo é a brutalidade do regime escravocrata. Mas o ato de assegurar sua própria emancipação e de fundar um Estado independente coloca os haitianos no caminho para a civilização, e afirma a crença de Schoelcher na perfectibilidade da raça humana.

Ainda assim, Schoelcher não era um dogmático. A medida de liberdade e civilização, o teste das suas ideias, eram as condições concretas no Haiti. A partir do momento em que desembarcou, Schoelcher foi confrontado com uma dura realidade. Pobreza, negligência, corrupção e desmoralização eram dominantes. A decepção estava em toda parte. Como responderia ele a esta situação?

Ao desembarcar na antiga Saint Domingue, a pessoa que chega dos países civilizados é acometida por uma profunda tristeza ao se deparar com a distensão de todas as fibras sociais, com a inércia política e industrial que cobre a ilha com um véu de ignomínia. A cada dia, o corpo da República é dominado pela desintegração. Não deveríamos dizer que a sociedade haitiana está definhando. Isto não seria correto, porque ela [a sociedade haitiana] nunca existiu. Porém, em meio ao movimento geral que empurra todos os povos para frente, ela permanece imóvel. Mal tendo nascido, já apresenta todos os sintomas da decadência. É uma criança atrofiada que não consegue crescer (Schoelcher 1973:II, 180-181).

Ainda assim, Schoelcher não se rende a esse espetáculo de desordem e ruína geral. Ele segue viagem e cuidadosamente documenta as condições por todo o país. Com sua análise da sociedade haitiana e da Revolução Haitiana, ele reafirma e dá substância ao seu compromisso para com o Haiti, o abolicionismo e o povo haitiano.

A escrita de Schoelcher é caracterizada por sua cuidadosa observação e documentação. Ele é certamente o mais informado comentador do Caribe francês da primeira metade do século XIX e um dos que observaram mais sistematicamente as condições em primeira mão. Mas nossa preocupação aqui são as categorias em que organiza o seu pensamento. Schoelcher constrói o seu entendimento da malaise do Haiti em termos da oposição entre liberdade (liberté) e escravidão. Em sua visão, liberté é ao mesmo tempo condição e instrumento para o progresso social, a medida dos êxitos da Revolução do Haiti e a meta que a sociedade deve se esforçar para alcançar.

Ao ver a aparência desolada de Le Cap, ele perguntava a si mesmo, pesaroso: "Será este, então, o resultado da liberdade?" (Schoelcher 1973: II, 177). Ele está enraivecido e indignado por ser a liberdade, "com todas as suas forças", incapaz "até mesmo de substituir [remplir] as ruínas da escravidão" e, devido a este estado de coisas, as nações do mundo poderem chamar a República do Haiti a prestar contas pela antiga Saint Domingue. Por que, ele lamenta, os desastres necessários que acompanham a destruição da escravidão não foram ainda reparados pela independência? (Schoelcher 1973:172).

Aqui, o projeto de Schoelcher é defender a liberté e buscar as causas da estagnação do Haiti. No contexto de sua oposição entre barbárie e civilização, Schoelcher reformula o discurso republicano do "povo" e a ele assimila a "raça africana". Ele transcende os limites de raça e classe para identificar o povo haitiano com a massa haitiana. O povo constitui o "corpo social" da nação e a fonte da autoridade moral e da legitimidade política. Ao criar uma fonte independente de autoridade e desenvolvimento, esta concepção sobre "o povo" permite a Schoelcher projetar um horizonte de expectativa para além do Estado (Koselleck 1985:267-288; Koselleck 1988:158-186) e provê as bases para sua crítica social e política das condições existentes no Haiti.

A hospitalidade e a generosidade com as quais Schoelcher é recebido pelos populares haitianos no curso de suas viagens fornecem o material para o registro de sua virtude e seu potencial para o desenvolvimento. Sua experiência direta com o povo haitiano atenua as acusações de selvageria e barbárie feitas contra eles. A partir dessa experiência ele afirma que "o Haiti não é tão bárbaro quanto dizem os inimigos da raça africana. É impossível negar o espírito benevolente e gentil destes chamados selvagens. Estas são as qualidades essenciais. O resto é uma questão de educação" (Schoelcher 1973: II, 176). O compromisso de Schoelcher com o povo haitiano e o reconhecimento de seu caráter, suas conquistas e sua capacidade para se desenvolver lhe possibilitaram olhar além das condições abjetas que o confrontavam. Ele propõe uma concepção ampla de educação moral através da participação política e da prática da liberté. Esta concepção implica uma relação dialética entre líderes e liderados que é o caminho para o progresso moral e material.

A concepção de Schoelcher de participação política como educação moral forma a base de sua análise das condições no Haiti. Ela lhe permite justapor o povo ao Estado e identificar a característica parasitária do Estado autoritário como a fonte da estagnação social, política e moral do Haiti. "O proprietário de escravos oprimiu o povo pela força, o governo o oprime pela privação. Seu corpo foi libertado, mas sua alma não foi libertada, pois a boa orientação moral não lhe forneceu justiça e virtude, que podem ser adquiridas apenas pela educação" (Schoelcher 1973: II, 327-328). O que se faz necessário é um educador, um líder capaz de mostrar o caminho. Entretanto, é isto o que está faltando.

Em outra passagem, Schoelcher aprofunda sua avaliação sobre o povo haitiano. Aqui, ele endossa sua luta revolucionária para assegurar a própria emancipação e a independência política. A enormidade de seu êxito confirma sua capacidade de exercitar a liberté e avançar no caminho do desenvolvimento moral e da civilização:

Há ao menos uma grande suposição de potencial [puissance] na raça [negra] que passou despercebida. Sofrendo a oposição de todas as forças de civilização, [ela] se apossou do país ao qual tinha sido trazida escravizada, dele expulsou seus senhores e se constituiu como um povo. Isto sem mencionar que os escravos conquistaram sua liberdade contra o exército mais valente e inteligente do mundo, prova incontestável de que, liderados corretamente, eles podem rivalizar com os brancos (Schoelcher 1973: II, 326).

Para explicar a condição abismal do Haiti, ele justapõe o êxito e o potencial do povo haitiano à estagnação social e moral criada pela regra autocrática de Boyer:

Tudo nesses lugares justifica aquilo que os antagonistas da raça negra dizem contra ela. Mas se o povo, que teve coragem e habilidade o suficiente para conquistar sua liberdade contra os mais intrépidos e mais inteligentes soldados do mundo, não ingressou numa vida de grandes triunfos, é porque ele foi envenenado. É porque o homem posicionado em sua chefia voluntariamente deixou que os materiais com os quais o belo edifício que a humanidade espera ver erguer-se no solo haitiano se deteriorassem (Schoelcher 1973: II, 181).

Aqui Schoelcher confronta o dilema do Haiti e, de fato, seu dilema pessoal. Ele defende o feito histórico das massas negras. Foram elas que conquistaram sua liberdade contra probabilidades esmagadoras. Sua capacidade de conseguir, de ingressar no mundo moderno e de avançar em direção à civilização está provada. Seu exemplo fala a todo o povo negro e particularmente aos escravos. Aos olhos de Schoelcher, não há justificativa alguma para a escravidão ou para o atual estado do povo haitiano, e ele se coloca resolutamente oposto a ambos. O problema é a liderança corrupta de Boyer, que voluntariamente permitiu que o potencial do Haiti se deteriorasse. Contudo, mesmo enquanto Schoelcher desenvolve sua crítica a Boyer e aos mulatos, a absoluta responsabilidade que ele atribui àquele pela condição do Haiti revela a ambivalência de sua concepção de "povo" e "República". A aptidão do povo à civilização depende de sua capacidade de ser educado e liderado. Para Schoelcher, a liderança é o ingrediente-chave para o desenvolvimento histórico, e o líder é a figura-chave.

O contraste entre República e ditadura anima a crítica de Schoelcher ao regime de Boyer e sua análise das condições no Haiti. Para ele, não é apenas a incapacidade dos líderes do Haiti, mas sua perversidade que permite que as coisas desmoronem. O regime de Boyer usa seu poder não para liderar as pessoas, mas para corrompê-las (Schoelcher 1973: II, 179-180). Boyer é o culpado (coupable) pelo declínio de seu país, insiste Schoelcher, porque ele detém o poder absoluto. A Constituição de 1816 faz dele (como de Pétion antes dele) um ditador que pode fazer o que lhe aprouver. Em vez de Presidente do Haiti, ele é autocrata de suas províncias. Ele é "infalível". Sem sequer ministros responsáveis a quem consultar, ele age segundo sua própria autoridade. Sua apropriação pessoal do poder corrompe a República e transforma-a em um Estado absolutista. Nem mesmo Luís XIV pode dizer com mais exatidão "L'état, c'est moi" (Schoelcher 1973:182).

Devido ao poder absoluto de Boyer, Schoelcher considera-o culpado pela humilhação de seu povo. Na sua visão, Boyer completou o trabalho de desmoralização iniciado por seu antecessor, Alexandre Pétion, e é responsável por todos os vícios da sociedade que preside. A humilhação do povo haitiano está enraizada no desprezo de Boyer pelos negros. Segundo Schoelcher, o governo de Boyer é mais infame que um governo de violência e repressão. Ele não chega ao despotismo pelo esmagamento da população [corps populaire], mas pela exploração parasita e pela desmobilização. Boyer "não mata, ele debilita", escreve o autor (Schoelcher 1973: II, 238). Pior do que um civilizador tirano e sanguinário, é um líder que desonra a liberdade e degrada a raça humana ao dar rédeas à licenciosidade. A corrupção do regime de Boyer (e do de Pétion antes dele) exaure a vitalidade do povo haitiano e deixa de estimular sua indústria de maneira a forçá-lo à dependência e excluí-lo da vida pública. "Tudo é calculado para que a mais extrema pobreza coloque toda a nação à mercê do poder" (Schoelcher 1973: II, 273).

Schoelcher vê a política de negligência e desmoralização de Boyer e Pétion como a punição aplicada à classe de cor pela sua ambição. Boyer e sua classe são corrompidos pelo "egoísmo" (Schoelcher 1973: II, 183). Eles são capazes apenas de governar perpetuando a pobreza e a ignorância em meio às ruínas da Revolução. Se, sob a administração dos homens de cor (mulatos), a República caiu até o grau que ele testemunhou, a causa não é nem a sua incapacidade nem a sua crueldade inata, como os inimigos da raça africana clamam. A causa é, mais precisamente, sua localização social. O medo dos negros imobiliza os mulatos. Enquanto eles desejarem preservar a posição de sua casta, esse medo condena-os a perpetuar a licenciosidade em vez de promover a ordem, a disciplina e a indústria. Todos os esforços por reforma estão bloqueados. Schoelcher relata que mesmo aqueles mulatos mais sensíveis à necessidade de reforma dizem: Se fôssemos reverter o poder (puissance) que asfixia a República e nos traz danos diante da opinião do mundo civilizado, a revolta se voltaria para o benefício dos negros" (Schoelcher 1973: II, 239-240).

Toussaint Louverture e a Revolução Haitiana

A crítica de Schoelcher a Boyer e à posição estrutural dos mulatos informa sua interpretação da Revolução. Em sua avaliação, os colons queriam independência da França, os petits blancs queriam igualdade, os mulatos queriam direitos políticos e os escravos, no início da revolução, estavam brutalizados demais para sequer ter a ousadia de demandar liberdade (Schoelcher 1973: II, 91). Entretanto, enquanto a luta entre os três outros grupos evoluía, os negros entraram na luta pela liberdade (liberté) (Schoelcher 1973: II, 98-99). Para Schoelcher, a figura-chave é Toussaint Louverture, cuja liderança considera decisiva. Até o aparecimento de Toussaint, Schoelcher leva em conta a resistência escrava como a simples revolta dos estratos mais oprimidos (abrutis) da sociedade. Ele considera o levante de Boukman como uma combinação de superstição e violência reativa (Schoelcher 1973: II, 99-100). Da mesma forma, vê Jean-François e Biassou como simples soldados, corajosos e habilidosos, mas sem nenhum ideal de emancipação. Em contraste, Toussaint possui a habilidade política, diplomática e militar para transformar a resistência escrava em uma luta revolucionária por liberdade e independência. Ele é, para Schoelcher, o Moisés que liderará seu povo à terra prometida (Schoelcher 1973: II, 111, 112).

Este negro era certamente um dos mais extraordinários homens de seus tempos. Ele era um general corajoso, um grande administrador e um político hábil. Ele possuía um tato maravilhoso para julgar os homens e uma rapidez tão impressionante em suas decisões e movimentos que o povo dizia: "O governador está em toda parte". É impossível não colocá-lo entre os seres que a natureza, em seu capricho poderoso, dotou da chama do gênio (Schoelcher 1973: II, 135).

Assim, na visão de Schoelcher, Toussaint possuía a liderança necessária para conduzir e disciplinar a resistência negra e transformá-la em um movimento por liberdade e independência. Para além da luta decidida de Toussaint por liberdade e independência, Schoelcher atribui a ele uma visão ampla o bastante para abarcar a reconciliação com os fazendeiros:

Quando ele incentivou os emigrés a retornarem, o velho negro [Toussaint] apenas recordava a indústria, a civilização e a elegância da sociedade cuja tradição eles preservaram. Os libertados tinham grande necessidade destes professores, saindo que estavam da abjeção profunda [...] Que controle tinha sobre si mesmo este negro que conseguia lidar com seu ódio e dar sinais de consideração aos brancos que detestava porque eles poderiam servir à educação dos negros (Schoelcher 1973: II, 125-126).

Portanto, Toussaint aparece na narrativa de Schoelcher como o líder capaz de captar a complexidade social da situação, restaurar a ordem, reerguer a economia e estabelecer as bases para a prosperidade, reconciliando a economia e colocando o país no caminho da civilização (Schoelcher 1973: II, 135). O tratamento dado a Toussaint por Schoelcher elucida sua concepção de liderança e educação. Mas o defeito trágico que impediu que Toussaint atingisse seus objetivos foi seu punho de ferro.

Infelizmente o antigo escravo reconstruiu a sociedade colonial com mão de ferro [bras de fer]. O despotismo foi o instrumento de que ele se utilizou para conseguir tantas benesses. Seu exército era liderado por tiros de pistola. Trabalhadores foram baleados pelo crime da ociosidade. Tudo devia se curvar ante sua vigorosamente ordenadora porém inflexível vontade (Schoelcher 1973: II, 128).

Na visão de Schoelcher, o autoritarismo de Toussaint carrega sua própria punição. Ele o privou do apoio das massas no momento crucial e o levou à sua queda. No entanto, não obstante o quanto repelisse a violência de Toussaint, Schoelcher sentia-se impelido a colocá-la no contexto da violência da escravidão e da guerra civil.

Somos menos tentados que qualquer um a justificar aquilo que há de criminoso nos atos deste violento civilizador. Mas, ao julgá-lo, não se deve esquecer que os 50 anos de sua existência foram gastos na servidão, mãe de todas as imoralidades, que no momento em que ele tomou o poder, dez anos de guerra civil, durante os quais dois partidos brigavam barbaramente, tinham ensinado a ele a tomar imprudentemente a vida humana e, finalmente, que ele estava privado do esclarecimento [lumières] que em nós extingue nossas paixões ferozes e faz da humanidade nosso ofício sagrado (Schoelcher 1973: II, 135).13 13 Miranda Spieler chamou a minha atenção para a afinidade entre a análise de Schoelcher sobre Toussaint Louverture e o tratamento dado por Benjamin Constant a Napoleão (ver Constant 1992).

A concepção de Schoelcher de ação política reside em um tipo de dialética entre a liderança e a posição dos grupos sociais. O papel dos líderes é guiar o povo para diante no caminho para a civilização. Contudo, a liderança ao mesmo tempo expressa a própria posição de sua classe e precisa rivalizar com ela. Na visão de Schoelcher, os mulatos foram incapazes de transcender seus interesses setoriais de modo a representar os interesses do povo como um todo. A sucessão dos líderes mulatos, de Ogé a Rigaud, a Pétion, a Boyer, apesar das vantagens de que desfrutavam em comparação com os negros, sempre colocaram a ambição pessoal ou o interesse estreito de classe à frente do interesse geral. Eles, com isso, comprometeram a liberdade e a independência e foram incapazes de mover a nação rumo à civilização. Por contraste, a sucessão dos líderes negros, de Toussaint a Dessalines, a Christophe, não obstante o quão brutalizados e o quão violentos, foram impelidos por sua posição de defender a liberdade e a independência. Suas ações moveram o país rumo à civilização e representaram uma ordem mais elevada que a dos mulatos (Schoelcher 1973: II, 152, 326).

Para Schoelcher, a antipatia entre mulatos e negros é a grande falha que compromete o Haiti. Sua solução para o problema é encorajar os mulatos a abrirem mão dos domínios do poder porque é impossível para eles "dirigir a carruagem". Sua política é conduzida pelo medo dos negros. Eles sentem que se fizerem qualquer coisa para provocar os negros rebaixados, isto seria considerado por estes como um ato de opressão pela aristocracia mulata e levaria à revolta. Schoelcher argumenta que

se um governo normal, um governo da maioria, ou seja, um governo negro, não for estabelecido no Haiti, a República viverá uma vida precária, falsa, desventurada e silenciosamente apreensiva. Deixem um negro assumir [o poder] e tudo mudará. Ele poderá atacar os vícios de frente sem medo algum. Ele poderá agir com vigor porque contra ele as massas não poderão ter a constante irritabilidade e rebeldia contra as quais os mulatos devem lutar. Quanto à ameaça de violência assassina que, genuinamente ou não, alarma os mulatos (Schoelcher 1973:II, 240).

Schoelcher argumenta que "não parece mais possível, primeiro, porque os costumes mais dóceis de hoje consideram isto repugnante e, além disso, porque os negros são sete oitavos da população e não têm nada a temer de uma minoria que se tornou pacífica e benevolente (Schoelcher 1973:II, 240). Schoelcher clama por tais sacrifícios pelos interesses e a glória da nação e o bem da República (ibidem:241-243). Com o governo da maioria negra, ele assevera, "a sociedade haitiana rapidamente se livraria do torpor degradante em que agora vegeta. Homens de bem ousariam atacar os abusos da sociedade sem medo das revoluções que um povo inculto poderia usar incorretamente" (ibidem:240).

Conclusão

A narrativa de Victor Schoelcher sobre o Haiti no início dos anos 1840 demonstra um notável esforço em "pensar" a situação sem precedentes no Haiti. Através dele, seu comprometimento com os princípios universais da Revolução Francesa e com uma concepção democrática e socialista radical de republicanismo permite que ele se mova para além das convenções da política francesa, incluindo as versões mais moderadas de republicanismo, de modo a se dirigir sistematicamente à escravidão, ao colonialismo e ao racismo. Ainda mais fundamentalmente, pelas formas que estavam acessíveis a ele, Schoelcher coloca-se do lado das vítimas.

Ele reconhece os negros escravizados de Saint Domingue como os autores de sua própria emancipação e da independência do Haiti. Apesar da violência de sua luta, ele defende fielmente os êxitos das massas haitianas e sua capacidade de vencer o legado de degradação da escravidão e de progredir rumo à civilização. Ao mesmo tempo, ele transcende as fronteiras de raça e classe para identificar o povo haitiano com os escravos emancipados. Ao fazê-lo, inscreve a Revolução em um horizonte social e temporal que vincula as conquistas do passado com a promessa do futuro e legitima a luta popular. Ao abraçar a independência haitiana, Schoelcher recusa-se a aceitar o Estado e a ordem social que a sustentam como frutos legítimos da Revolução.

Seu compromisso histórico com o povo haitiano permite que denuncie o regime de Boyer e as condições existentes, em nome da expectativa futura de um Haiti livre e democrático. Em suas palavras: "Saint Domingue desapareceu, mas o Haiti não existe ainda" (Schoelcher 1973: II, 240). Com esta dissociação radical do povo haitiano do Estado, Schoelcher sustenta a Revolução e o Haiti como inacabados e em aberto. Liberdade e civilização são projetos que ainda precisam ser plenamente realizados. Ele, portanto, consegue fazer uma crítica radical, que de muitas maneiras ainda hoje fala poderosamente ao Haiti, bem como à dominação racial e à marginalização em um mundo pós-colonial.14 14 De fato, um dos trabalhos mais penetrantes e inspirados no quadro encabeçado por Schoelcher é Haiti: State Against Nation. The Origins and Legacy of Duvalierism (1990), de Trouillot.

Schoelcher nos convida a repensar o problema da "impensabilidade". A questão agora não é simplesmente como Schoelcher "pensa" o Haiti, mas também como nós "pensamos" Schoelcher. Ele representa talvez uma esplêndida anomalia. O que se quer ressaltar aqui, no entanto, não é o caráter excepcional de sua posição, mas que esta é tornada possível por meio de seu firme compromisso com os Direitos Universais do Homem e Cidadão. Suas experiências no Haiti aprofundaram sua crítica à escravidão, ao colonialismo e ao racismo ao fortalecerem seu compromisso com a emancipação plena e imediata nas colônias francesas remanescentes, junto com direitos cidadãos para antigos escravos.

Sua insistência no caráter universal de liberté, égalité, fraternité forneceu-lhe os meios para "pensar" a Revolução Haitiana. O ideal republicano-democrático ofereceu uma perspectiva que lhe permitiu reconhecer os feitos históricos das massas haitianas e criticar as condições existentes no Haiti em nome da emancipação democrática do povo. Ao mesmo tempo, possibilitou-lhe contestar interpretações mais particulares e limitadas da herança republicana da Revolução na França. Ele, portanto, tornou-se um defensor da emancipação em um foro que não era acessível a escravos ou ao povo desapossado do Haiti, e pôde dar ao projeto uma coerência política que eles não poderiam dar.

Mas a concepção de Schoelcher de liberdade não necessariamente coincide com a dos escravos caribenhos ou a do povo haitiano. De fato, a noção de Schoelcher de liberté como um processo civilizador desloca os projetos populares de autoemancipação (Tully 1988).15 15 Não há exemplo mais claro disto do que durante os primeiros meses da Segunda República. Subsecretário de Estado para as Colônias, chefe da comissão que declarara a emancipação imediata e incondicional e que concedia plenos direitos de cidadania aos escravos libertados das colônias francesas e representante eleito da Martinica e de Guadalupe perante a Assembleia Nacional da França, Schoelcher não podia conceber nenhuma alternativa econômica para as colônias francesas do oeste da Índia a não ser continuar com a produção de açúcar. Para alcançar este fim, ele tentou reorganizar o sistema de plantation com base no modelo de trabalho livre associado, inspirado nos phalansteries de Fourier (Schmidt 1994:55-56). De modo a assegurar o trabalho adequado para as estâncias de açúcar, ele tentou implementar políticas que restringiriam o acesso da população livre às terras provisionadas e às atividades de pequeno comércio. Esta estratégia colocou-o em rota de colisão com antigos escravos, que viam sua liberdade em termos de acesso a terra e à habilidade de garantir suas próprias atividades de agricultura e mercado de pequena escala (Tomich 2004:173-191). Os significados substantivos de liberdade que motivaram a resistência escrava e as iniciativas da população liberta não poderiam ser expressos no idioma político de Schoelcher. Não havia, nem se deveria esperar que houvesse, equivalência ou mesmo uma correspondência fácil entre a concepção de liberdade de Schoelcher e aquela dos escravos e da população emancipada. A relação entre eles permaneceu problemática e somente poderia ser resolvida por meio da contestação e do confronto. Em vez de nos concentrarmos na inabilidade de Schoelcher de "pensar" a agência escrava nos termos dos escravos, é mais produtivo prestar atenção às zonas de envolvimento formadas pela interação entre Schoelcher e os escravos. Estas zonas - adensadas por diversas concepções, vozes variadas e silêncios, pensabilidade e impensabilidade, incongruências, atos e consequências imprevistas que às vezes convergem e às vezes divergem, mas apenas raramente coincidem - são os espaços da política e da história.

Notas

Recebido em 11 de junho de 2008

Aprovado em 13 de janeiro de 2009

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  • 1
    Por "abstrações violentas", Sayer refere-se à prática de usar categorias conceituais como se elas se referissem a coisas fechadas e internamente integradas que são tratadas como se fossem independentes de - e externas a - outras categorias. Assim, por exemplo, ele critica os marxistas por tratarem como coisas separadas as "forças de produção" e as "relações de produção", ao invés de darem conta da relação dialética existente entre elas.
  • 2
    Bourdieu (1990:53) descreve
    habitus como "sistemas de disposições duráveis, transponíveis, estruturas estruturadas predispostas para funcionar como estruturas estruturadas, isto é, como princípios que geram e organizam práticas como representações que podem ser adaptadas objetivamente às suas consequências sem se pressupor uma orientação consciente para fins ou a necessidade de um domínio absoluto das operações de forma a atingi-los".
  • 3
    "[...] naquilo que é impensável num dado momento está não apenas tudo o que não pode ser pensado por falta das disposições éticas e políticas que tendem a levá-lo em conta, mas também tudo aquilo que não pode ser pensado por falta de instrumentos de pensamento, tais como problemáticas, conceitos, métodos e técnicas [...]" (Bourdieu 1990:5).
  • 4
    Esta visão está certamente em desacordo com o próprio trabalho antropológico e histórico de Trouillot (ver Trouillot 1982; 1988; 1990).
  • 5
    O problema da "impensabilidade" é aqui reforçado pelas suposições não-problematizadas de Trouillot sobre a natureza dos "eventos". Dizer que a Revolução Haitiana não podia ser pensada mesmo enquanto acontecia conceitua equivocadamente a natureza do "evento". Os eventos têm uma estrutura temporal definida, ou seja, começo e fim claramente demarcados, sem os quais eles se fragmentam em uma sequência de incidentes sem coerência interna (Koselleck 1985:105-115). Eles não podem ser "pensados enquanto estão acontecendo". O encerramento é necessário para que possam ser concebidos como eventos. Os escravos e seus líderes eram incapazes de articular discursivamente seus feitos não porque fossem iletrados ou porque suas realizações fossem muito radicais para serem formuladas previamente (embora ambos possam ser verdadeiros (Trouillot 1995:88), mas porque eles mesmos não podiam conhecer e interpretar
    a priori os efeitos de suas ações. As revoluções são especialmente problemáticas porque determinar o seu encerramento é por si um ato contencioso e constitutivo do evento (Afinal, a Revolução Francesa, que começou em 1789, terminou em 1794? 1815? 1830? 1848? 1871? ou mesmo em 1968? Argumentos plausíveis têm sido avançados para cada um, e eles seguem sendo objeto de disputa). Escolher uma data de término é ao mesmo tempo condição para e consequência de interpretar o evento e, no caso de revoluções, tais escolhas podem não necessariamente ser política ou ideologicamente inocentes.
  • 6
    Há um ponto tanto teórico quanto metodológico em jogo aqui. Teoricamente, os atores não estão fora ou não existem
    a priori em face das relações sociais; eles são formados nas relações. Como escreve W.E.B Du Bois ao apresentar
    Black Reconstruction (1935: folha de rosto, sem nº de pág.), se o leitor, "acredita que o negro na América e em geral é um ser humano normal e comum, que em dado ambiente se desenvolve como outros seres humanos, então ele lerá esta história e a julgará pelos fatos documentados". Metodologicamente, pode iniciar-se uma análise com atores (ou eventos) ou com relações. Ao começar pelos atores, é pelo menos extremamente difícil reconstruir as relações a partir das ações. Se, por outro lado, a análise é iniciada pelas relações, é bem mais fácil se chegar aos atores e reconstruir os contextos de suas ações (Hopkins 1982:149-152). Um dos motivos para o sucesso de
    Os Jacobinos Negros de James é que ele habilmente compõe sua análise reconstruindo os espaços distintos, mas inter-relacionados e mutuamente formativos da França e de Saint Domingue e, na devida ordem, entrelaça-os ao tecido mais amplo do Atlântico. Antes e durante as agitações revolucionárias, França e Saint Domingue já eram relacionados e ligados um ao outro, apesar da miríade de diferenças entre eles. Neste quadro, James consegue investigar agências no contexto das relações que as moldam enquanto analisa a natureza mutável das próprias relações. Como ele formulou, se os jacobinos negros "puderam aproveitar a oportunidade, eles não puderam criá-la". Suas iniciativas eram dependentes do contexto econômico, político e social mais abrangente do Atlântico (James 1963:25-26).
  • 7
    Uma ilustração gráfica para o meu argumento é o recente livro de James Oakes (2007). Nele, Oakes descreve as intensas disputas pessoais, políticas e intelectuais de Frederick Douglass e Abraham Lincoln para interpretar a relação da escravidão na Constituição dos Estados Unidos. Cada um deles foi, a seu modo, capaz de mobilizar a Constituição como uma arma na luta contra a escravidão e chegar a posições que convergiram uma com a outra no momento político decisivo, mas que não eram coincidentes.
  • 8
    De fato, na medida em que os eventos no Haiti foram se cristalizando em uma luta revolucionária e emancipatória sem precedentes, eles foram recebidos pelo menos por alguns europeus em termos bastante semelhantes aos de Trouillot. Em 1805 o autor antiescravista Marcus Rainsford escreveu sobre o Haiti recém-emancipado: "O encerramento do século XVIII, um período marcado pelas mais significativas operações e os mais gigantescos projetos, apresentou ao mundo um novo e organizado império onde não apenas era impossível que existisse, mas onde sua própria existência fora negada [...]" (Rainsford apud Zeuske 2004a:168). Ver também Zeuske, 2004b.
  • 9
    "[...] Daqui o direito de prisão, de mutilação, de vida e de morte e, enfim, tudo o que há de mais bárbaro na legislação da Lacedemonia e da Romana para tratar seus escravos; portanto, não se deve estranhar ver repetidas nas planícies do Guarico [Saint Domingue] as mesmas guerras de escravos que ocuparam e puseram em tanto risco os romanos [...]" (Arango & Parreño 1952:110-111).
  • 10
    No contexto desta discussão, vale a pena chamar a atenção para a lúcida apresentação de Aimé Césaire sobre Schoelcher, escrita por ocasião do centenário da abolição da escravidão nas colônias francesas, em 1948. "Victor Schoelcher et l'abolition de l'esclavage" (introdução a Tersen 1948:1-28).
  • 11
    "Confesso", ele escreveu, "que os negros, como estão hoje, sob a escravidão, formam a classe mais deplorável (
    misérable), mais abjeta, mais imoral que se possa imaginar. Mas por quê? Porque seu espírito, circunscrito em um círculo fatal de destituição, não pode chegar a um ponto de desenvolvimento em que conceba boas ações" (Tersen 1948:36).
  • 12
    Nos escritos de Schoelcher "selvageria" e "barbárie" aparecem para operar não como atribuições estáticas que funcionam para estabelecer uma hierarquia cultural e racial. Em suas mãos, elas são categorias flexíveis, usadas para marcar processos de mudança. Neste texto, a África é vista como "selvagem", enquanto em
    Des colonies françaises, publicado um ano antes, ele argumenta que os africanos são civilizados (Schoelcher 1976 [1842]:135-154). Em todo caso, como foi notado acima, "selvageria" ou "barbarismo" para desqualificar africanos ou escravos de seus direitos inerentes como seres humanos. Ele insiste na universalidade da liberdade e vê o progresso em sua direção como um processo aberto a toda a humanidade, incluindo a raça africana. Seu uso destes termos pode talvez ser visto, ao menos em parte, como um artifício polêmico, já que seu real alvo é a brutalidade do regime escravocrata.
  • 13
    Miranda Spieler chamou a minha atenção para a afinidade entre a análise de Schoelcher sobre Toussaint Louverture e o tratamento dado por Benjamin Constant a Napoleão (ver Constant 1992).
  • 14
    De fato, um dos trabalhos mais penetrantes e inspirados no quadro encabeçado por Schoelcher é
    Haiti: State Against Nation. The Origins and Legacy of Duvalierism (1990), de Trouillot.
  • 15
    Não há exemplo mais claro disto do que durante os primeiros meses da Segunda República. Subsecretário de Estado para as Colônias, chefe da comissão que declarara a emancipação imediata e incondicional e que concedia plenos direitos de cidadania aos escravos libertados das colônias francesas e representante eleito da Martinica e de Guadalupe perante a Assembleia Nacional da França, Schoelcher não podia conceber nenhuma alternativa econômica para as colônias francesas do oeste da Índia a não ser continuar com a produção de açúcar. Para alcançar este fim, ele tentou reorganizar o sistema de
    plantation com base no modelo de trabalho livre associado, inspirado nos
    phalansteries de Fourier (Schmidt 1994:55-56). De modo a assegurar o trabalho adequado para as estâncias de açúcar, ele tentou implementar políticas que restringiriam o acesso da população livre às terras provisionadas e às atividades de pequeno comércio. Esta estratégia colocou-o em rota de colisão com antigos escravos, que viam sua liberdade em termos de acesso a terra e à habilidade de garantir suas próprias atividades de agricultura e mercado de pequena escala (Tomich 2004:173-191).
  • *
    Uma versão anterior deste artigo foi publicada como "Pensando lo 'impensable' Victor Schoelcher y la revolución haitiana" em
    Del Caribe, 45:16-23, 2004. Eu gostaria de agradecer a Miranda Spieler, Yann Moulier Boutang, Radhika Mongia, Michael Zeuske, Luiza Franco Moreira, Olivia Gomes da Cunha e aos dois pareceristas anônimos da Revista
    Mana por seus úteis comentários a esta versão. Tradução de Fernanda Guimarães
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Aceito
      13 Jan 2009
    • Recebido
      11 Jun 2008
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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