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Narrativas do Cuidar: mulheres indígenas e a política feminista do compor com plantas

Story Telling of Care: Indigenous women and the feminist politics of composing with plants

Narrativas de cuidado: las mujeres indígenas y la política feminista de componer con plantas

Resumo:

Tendo como mote “Of women, men and manioc”, de Peter Rivière, este artigo se inspira na crítica feminista e na emergência de uma antropologia para além do humano para revisitar o argumento do autor tomando como material etnográfico as relações que dois grupos ameríndios, os Jarawara e os Wajãpi, estabelecem com plantas cultivadas, em especial a mandioca e o tabaco. Aqui o conceito de cuidar toma a cena numa tentativa de iluminar aspectos do pensamento e da vida das mulheres indígenas com as quais convivemos.

Palavras-chave:
Cuidar; Etnologia amazônica; Feminismos; Mandioca; Tabaco

Abstract:

Based on ethnographic research among two Amerindian groups, the Jarawara and Wajãpi, and their relations with cultivated plants, particularly manioc and tobacco; and inspired by feminist critique and the emergency of a more-than-human anthropology, this article aims to revisit some of the arguments in Peter Rivière’s “Of women, men and manioc”. Our main argument is woven with the concept of care, in an effort to illuminate essential aspects of the life and thoughts of the Indigenous women we work with.

Keywords:
care; Indigenous Amazonia; feminisms; manioc and tobacco

Resumen:

A partir del artículo “Of women, men and manioc”de Peter Rivière, este artículo se inspirada en la crítica feminista y en el surgimiento de una antropología más allá de lo humano, para revisitar el argumento del autor utilizando como material etnográfico las relaciones que dos grupos amerindios, los jarawara y los wajãpi, establecen con plantas cultivadas en en esecial la mandioca y el tabaco. Aquí el concepto de cuidado toma la escena en un intento de iluminar aspectos del pensamiento y la vida de las mujeres indígenas con quienes convivimos.

Palabras clave:
cuidado; etnología amazónica; feminismos; mandioca y tabaco.

Olhar de perto

Uma das passagens importantes da etnologia das Terras Baixas da América do Sul foi o esforço de autores britânicos, em especial Joanna Overing (1975OVERING, Joanna. 1975.The Piaroa; a people of the Orinoco Basic: A study of kinship and marriage. Oxford: Clarendon Press.) e Peter Rivière (1969RIVIÈRE, Peter. 1969. Marriage among the Trio: a principle of social organisation. Oxford: Clarendon Press .), em demonstrar que as sociedades indígenas amazônicas não eram um punhado de grupos “amorfos” que, por falta de organização social ou política, estavam fadadas a desaparecer, mas sim enfatizar e demonstrar como elas eram regidas por princípios complexos, por mais “minimalistas" (Viveiros de Castro 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. "Sociedades minimalistas: a propósito de um livro de Peter Rivière". Anuário Antropológico, n. 85. ) que fossem. A preocupação em demonstrar a organização social e os arranjos matrimoniais ligados ao parentesco nesse contexto deve ser lida como um avanço importante para o desenvolvimento de estudos antropológicos na região na década de 1970. Em 1984, com O indivíduo e a sociedade na Guiana, Rivière apresenta uma das primeiras sínteses regionais que não seguia as análises pioneiras dos estudos das sociedades Jê (no contexto do Brazilian Harvard Project), mas criava um modelo diferente para explicar os povos das Guianas.

Podemos encontrar na obra de Peter Rivière e Jonna Overing descrições etnográficas que demonstravam a complexidade e o fascínio dessas sociedades se olhadas de perto. No caso dos trabalhos de Rivière, o foco sobre grupos Caribe dos escudos guianenses destacava a importância das aldeias para estabelecer “nexos endogâmicos” e “padrões sociais”; a vida aldeã ganhava proeminência no modelo, o que suscita um interesse no campo do “doméstico/interior/local”, que é levado adiante por um conjunto de antropólogos/as britânicos/as e brasileiros/as (Gallois et al. 2005GALLOIS, Dominique; GRUPIONI, Denise F.; BARBOSA, Gabriel C.; PATEO, Rogério; SZTUTMAN, Renato. 2005. Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Humanitas.; Rival &Withehead 2002RIVAL, Laura & WHITEHEAD, Neil. 2002. Beyond the visible and the material the amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford: Oxford Press .).

As descrições a que nos referimos se aproximam bastante do que ficou estabelecido em seguida como o modelo de “dentro” das sociedades indígenas, ou seja, “a consaguinização de parentes”. Se prestarmos atenção na sistematização mais ampla feita por Viveiros de Castro (2002)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify. na década de 90 sobre a afinidade potencial na Amazônia, não poderemos deixar de notar as semelhanças entre o que foi colocado por Rivière (2001RIVIÈRE, Peter. 2001 [1984]. Indivíduo e sociedade na Guiana. Um estudo comparativo da organização social ameríndia. São Paulo: Edusp. ) em relação às sociedades guianenses e o que o autor brasileiro descreve como as linhas gerais do “interior” das sociedades indígenas ou o local, em contraponto ao global e ao exterior. É quase como se o modelo de Viveiros de Castro tivesse proposto um “complemento” às descrições de Rivière. Interessante perceber que foi necessária praticamente uma exaustão do modelo “para fora”, o da predação generalizada, de Viveiros de Castro e outros autores,1 1 Tais como Aparecida Vilaça, Carlos Fausto, Bruce Albert, Philippe Descola, Anne-Christine Taylor, entre outros/as. para que o interesse pelos escritos de Rivière e o destaque que dava ao “local”, que foram infletidos pelas críticas de Overing (1999OVERING, Joanna. 1999. “Elogio do cotidiano”. Mana , 5 (1):81-107.) e seu olhar às políticas do cotidiano, pudessem voltar ao centro do debate.

É justamente um certo tipo de movimento feminista - que revitaliza o que foi primeiramente construído sob o nome de ecofeminismo2 2 Ver Gaard (2011) a este respeito. e que, por sua vez, abre uma brecha importante para o desenvolvimento do que hoje se designa como “etnografia multiespécie” (Helmrich & Kirksey 2010HELMERICH, Stephan & KIRKSEYEben . 2010. “The emergence of multi species ethnography". Cultural Anthropology, v. 25, issue 4:545-547.) ou “antropologia para além do humano” (Kohn 2013KOHN, Eduardo. 2013. How forests think: toward an anthropology beyond the human. Berkeley: University of California Press.) - que passa a se interessar pelos escritos de Rivière e Overing, esta última pioneira em pensar gênero na Amazônia e a tecer críticas feministas aos modelos de viés masculinista de seus colegas. Ainda que Rivière nunca tenha dado muita atenção aos estudos de gênero, quando o fez, como no artigo “Of women, men and manioc”, o qual tomaremos aqui como mote, foi apenas para reproduzir teorias gerais que remetem à dominação masculina, sem muita reflexão crítica sobre elas. Por isso, um retorno feminista ao argumento de Peter Rivière, como o que buscaremos aqui, deverá necessariamente passar por um olhar crítico sobre algumas conclusões datadas, porém não superadas, uma vez que continuam a ecoar em etnografias recentes realizadas na região (ver, por exemplo, Brightman 2007BRIGHTMAN, Marc. 2007. American leadership in Guianese Amazonia. PhD Thesis, St. John’s College & Department of Social Anthropology, University of Cambridge.). Soma-se ao seu viés, pouco afeito a questões de gênero, conclusões que refletem seu comprometimento, talvez excessivo, com a antropologia marxista, em especial com os escritos de Claude Meillassoux.

A despeito das limitações analíticas próprias de seu tempo, em que o império da perspectiva masculina continuava fincado no pressuposto de uma racionalidade universal, foi Rivière que lançou algum olhar para o trabalho feminino na roça, negligenciado por tanto tempo devido à força do viés masculino que enfatizava uma suposta monotonia e servidão das atividades agrícolas. Ainda que Rivière não tenha dado outros contornos semânticos, ao menos enfrentou e trouxe ao primeiro plano o plantar, o colher e o processamento culinário executado diariamente nas aldeias por tantas esposas, filhas, avós, sogras e noras. Não é à toa que, diante da obra extensa do autor, o clássico artigo “Sobre mulheres, homens e mandiocas” continue a figurar no debate das Terras Baixas da América do Sul (Rival 2002RIVAL, Laura. 2002. "Seed and Clone: The Symbolic and Social Significance of Bitter Manioc Cultivation". In: Laura Rival & Neil Withehead (orgs.), Beyond the visible and the material the amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford: Oxford Press. pp. 45-56.). Se Rivère inaugura um campo de estudos que precisa ser creditado a ele, este, contudo, não pode ter como efeito senão um adensamento da reflexão à luz de novas etnografias e arcabouços teóricos que permitam uma subversão crítica de seu argumento.

Apostamos que uma importante contribuição de Rivière nesse artigo foi narrar o domínio doméstico como algo que valia a pena ser discutido. O local, o cotidiano, a aldeia, os afazeres diários eram dignos de pesquisas - como também foi mostrado por Joanna Overing. Não podemos deixar de mencionar o seu interesse, nada equivocado, pelo “indivíduo” nas sociedades amazônicas, o que hoje vemos através de teorias potentes como a de Lima (1999LIMA, Tânia Stolze. 1999. “Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia juruna”. RBCS, v. 14, n. 40. , 2005)LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. São Paulo: Ed. Unesp. sobre o perspectivismo indígena, em que o posicionamento, a posição, o eu, a parte não são nada triviais, muito pelo contrário. Ao inaugurar um interesse por aquilo que poderíamos chamar de “local” nas Terras Baixas, Rivière e Joanna Overing possibilitaram uma antropologia preocupada com as práticas ordinárias do cuidado. É na questão do cuidado, mas aqui um cuidado reivindicado enquanto ação cosmopolítica (Stengers 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. RIEB, n. 69.) e através de "políticas feministas da Terra" (Tola 2016TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. ), que gostaríamos de voltar ao artigo “Of women, men and manioc” de Rivière. A ideia é procurarmos uma reflexão sobre a escrita da etnologia que nos ajuda a pensar como a disciplina se constituiu - a nosso ver, com um certo viés masculino - e especular como as conclusões poderiam ter sido diferentes se tivéssemos tomado outros rumos de reflexão, como o aporte da crítica feminista, por exemplo. O artigo seria, nesse sentido, uma especulação feminista ou um experimento de escrita feminista.

Mulheres, mandiocas, trabalho

Reler o texto, de 1987, “Of women, men and manioc” é uma aventura que nos leva diretamente para ecos ensurdecedores da antropologia marxista e suas conclusões universalistas sobre a dominação das mulheres. E não se trata aqui de gritos do feminismo social-marxista como vemos em Joanna Overing que, um ano antes, havia publicado uma instigante discussão em “Men control women?”, no qual muitos dos argumentos similares aos de Rivière são competentemente desmontados. Overing defende que em sistemas políticos igualitários, como são os das sociedades indígenas da Amazônia, a relação entre os sexos é também igualitária (1986:142OVERING, Joanna. 1986. "Men control women? The 'catch 22' in the analysis of gender". International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, n. 2, Summer.), e sustenta a ideia da “complementaridade” entre homens e mulheres (que igualmente traz em si outros problemas, mas que não serão enfrentados aqui).

O artigo de Rivière nos remete a um tempo que já não existe mais, tempo em que homens discutiam impunemente “a natureza das mulheres” (Rivière 1987:194RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.), que precisava ser controlada. Não apenas o feminismo se tornou cada vez mais indispensável como ferramenta analítica dentro da academia - impedindo simplesmente o “falar de mulheres”, e exigindo contextualização teórica dentro do feminismo acadêmico -, mas também as próprias mulheres indígenas se encontram hoje nas universidades e em outros lócus de conhecimento e política nacionais, algo que vem reequilibrando de forma radical a escrita antropológica.

É importante salientar que o artigo de Rivière saiu um ano antes de O Gênero da Dádiva (Strathern 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.), publicado depois de uma série de conferências de Marilyn Strathern na Universidade de Berkeley, centro na época já firmemente comprometido com o feminismo acadêmico. O livro marca uma ruptura definitiva na disciplina em relação às discussões excessivamente voltadas para uma certa predominância do viés masculino e heterocentrado dos escritos etnográficos, inspirados na antropologia marxista e na teoria da aliança levistraussiana. Assim, os argumentos de Rivière nesse artigo não podem hoje parecer nada mais do que um desejo masculino de permanecer no centro da disciplina, sem antecipar a explosão intelectual feminista que surgiria apenas um ano depois. Para não acusar indevidamente Rivière, devemos admitir que o próprio autor sempre esteve comprometido com uma teoria da “igualdade política” nas Terras Baixas, o que o impossibilitava, supomos, de aderir inteiramente à teoria da dominação masculina. O que vemos no texto de 1987 é que onde o autor se apoia em sua própria experiência de campo e em seus dados etnográficos o problema da dominação é mais sutil do que nas conclusões tomadas a partir do empréstimo de colegas que trabalhavam no Noroeste amazônico. Mas seu interesse por grandes sistematizações sempre foi uma de suas maiores ousadias, gerando também críticas (Viveiros de Castro 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. "Sociedades minimalistas: a propósito de um livro de Peter Rivière". Anuário Antropológico, n. 85. ; Gallois et al. 2005GALLOIS, Dominique; GRUPIONI, Denise F.; BARBOSA, Gabriel C.; PATEO, Rogério; SZTUTMAN, Renato. 2005. Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Humanitas.) que aqueceram o campo de estudo.

O artigo em foco tenta explicar as variações do tempo dedicado ao processamento da mandioca em dois tipos de sociedades amazônicas, as do Noroeste amazônico e as das Guianas (Rivière 1987RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.:178). As variações se justificariam pelo grau de controle que a comunidade exerce sobre suas mulheres, o que, por sua vez, estaria relacionado aos aspectos da organização social (Rivière 1987:179RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.). O autor se apoia nos pressupostos de que as referidas economias políticas estariam baseadas no controle sobre as capacidades produtivas e reprodutiva das mulheres (:182RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.) enquanto um recurso escasso. Para ele, a escassez limitante na Amazônia não era em função do meio ambiente (como argumentavam os antropólogos materialistas e arqueólogos, como Meggers [1971]MEGGERS, Betty. 1971. Man and Culture in a Counterfeit Paradise. Washington D.C.: Smithsonian Institution.), mas sim de pessoas e da sua força de trabalho - especialmente mulheres a serem exploradas (:182MEGGERS, Betty. 1971. Man and Culture in a Counterfeit Paradise. Washington D.C.: Smithsonian Institution.). A análise envereda por outros temas delicados, como o tempo de produção de mandioca e o controle dessa produção através de mecanismos de “rotinização” (:189MEGGERS, Betty. 1971. Man and Culture in a Counterfeit Paradise. Washington D.C.: Smithsonian Institution.) e “expropriação” (:187-188MEGGERS, Betty. 1971. Man and Culture in a Counterfeit Paradise. Washington D.C.: Smithsonian Institution.), o último significando que as mulheres perderiam o controle do valor político de sua produção, pois seriam os homens que distribuiriam as bebidas fermentadas à base de mandioca em rituais (:188MEGGERS, Betty. 1971. Man and Culture in a Counterfeit Paradise. Washington D.C.: Smithsonian Institution.), além de utilizarem os produtos culinários em trocas. Os homens se promoveriam por sua generosidade e potencializariam suas ações políticas às custas do trabalho feminino.

Seguindo Rivière, no Rio Negro, as mulheres se dedicariam a uma produção diária de derivados da mandioca, o que as deixaria com praticamente nenhum “tempo livre”3 3 Note-se que o argumento de falta de "tempo livre" esteve na base de teorias antropológicas sobre a "mentalidade primitiva" de povos não ocidentais, que por se ocuparem exclusivamente com a subsistência não teriam tempo para desenvolver as artes do pensamento, algo que foi completamente implodido por dados quantitativos e reflexões acuradas que evidenciaram o viés etnocêntrico da ideia de "povos primitivos" (Clastres 1982; Sahlins 1968). para outras atividades e afazeres, situação que seria função de sociedades nas quais o casamento é exogâmico e a residência, virilocal. A saída das mulheres do grupo de parentes para se casar fora ocasiona uma falta de controle dos homens sobre suas filhas e irmãs. As mulheres que chegam não podem ser completamente controladas, uma vez que não são dali (:192). Haveria uma dispersão de recursos femininos (:197). Por estas razões, seria necessário um controle masculino maior, exercido, ao menos parcialmente, através da divisão do trabalho (:193) e da rotinização, ou seja, da manipulação diária, repetitiva e monótona da mandioca, de modo a não permitir às mulheres liberdade de ação (:194). Já nas Guianas haveria uma rotina feminina bem menos estruturada em razão de os núcleos residenciais serem compostos de mães, irmãs e filhas devido à uxorolocalidade e à endogamia (:193). Neste caso, haveria uma “retenção de recursos femininos” (:197) por parte dos homens, que não exigiria um controle rígido, permitindo às mulheres uma menor dedicação à manipulação da mandioca por meio de técnicas de armazenamento e gosto culinário. Em suma, “a liberdade na vida das mulheres parece ser a regra de residência pós-marital, pois ela determina o grau de controle que a comunidade exerce sobre seus recursos femininos” (Rivière 1987:197RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.).

Acreditamos que dois argumentos do feminismo acadêmico podem nos fazer pensar sobre as conclusões de Rivière, vejamos. A base central do raciocínio do autor parece ser a ideia de que as mulheres precisam ser controladas. Escrever um artigo sobre este tema pode parecer hoje insustentável, mas lembremos que, segundo diversas autoras feministas, tais como Carol MacCormack, Michelle Collier, Sylvia Yanagisako, Marilyn Strathern, Gayle Rubin, entre outras, este é o próprio argumento de fundo da teoria da aliança - teoria cara à etnologia dos povos indígenas nas Terras Baixas. O que estaria por trás da teoria da aliança e de outras teorias de arranjos matrimoniais formuladas por antropólogos é que a fertilidade feminina precisa ser controlada pelos homens, da mesma maneira que a natureza precisa ser controlada pela cultura. As autoras acima citadas rebateram brilhantemente estes argumentos, e não entraremos em detalhes aqui de como, do ponto de vista do feminismo, a ideia de controle da capacidade de reprodução feminina não se sustenta (MacCormack 1980MACCORMACK, Carol. 1980. "Nature, culture and gender: a critique". In: M. Strathern & C. MacCormack (eds.), Nature, Culture and Gender. Cambridge: Cambridge University Press. ; Collier & Yanagisako 1987COLLIER, Jane & YANAGISAKO, Sylvia. 1987. Gender and kinship: essays towards a unified analysis. California: Stanford University Press.; Rubin 2017RUBIN, Gayle. 2017 [1975]. "O tráfico de mulheres". In: G. Rubin, Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu. ; Strathern 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.).

A crítica feminista, como anunciamos, desemboca também em uma discussão sobre o descentramento do humano nas análises antropológicas. Por um lado, a ideia de humanidade que assume um ponto de vista universal, encampado pela Ciência, começa a ser desvelada enquanto uma perspectiva situada e parcial como qualquer outra: a noção de humanidade, fundada historicamente, teve como modelo o homem branco europeu (Collinn 1986; Haraway 1988HARAWAY, Donna. 1988. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies, v. 14, n. 3:575-599, Autumn.; Strathern 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.; Stengers 2016STENGERS, Isabelle. 2016. “Uma ciência triste é aquela não dança”. Revista de Antropologia, 59 (2)., 2017STENGERS, Isabelle. 2017. Reativar o animismo. Belo Horizonte: Chão de Feira.; Despret 2008DESPRET, Vinciane. 2008. “Culture and Gender do not Dissolve into how Scientists “read” Nature: Thelma Rowell’s Heterodoxy”. In: O. Hartman & M. Friedrich (eds.), Rebels of Life. Iconoclastic Biologists in the Twentieth Century. New Haven: Yale University Press. pp. 340-355. ). Por outro, o desmonte da equação que equivale mulheres a recurso ou à natureza apontou para uma crítica dessas noções por si sós. Esse deslocamento conduz a um outro olhar sobre uma miríade de seres que acabam por ser objetificados pelo viés economicista, no qual o homem branco é o centro. Em o Manifesto da Espécie Companheira, que Haraway (2003)HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press. escreve motivada por sua relação com uma cadela, a autora coloca que os estudos multiespécies se formavam como um braço do feminismo e vice-versa. A despeito de suas diversas formas, o feminismo, segundo Haraway, recusa pensamentos tipológicos, oposições binárias, relativismo e universalismo, apontando antes para processos, historicidades, diferenças e especificidades.

É preciso, por isso, questionar a suposta excepcionalidade humana em face das demais espécies; desfazer a oposição simplista entre humano e não humano. Tsing (2015TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the end of the World. Princeton: Princeton University Press.), em movimento análogo, coloca o iluminismo como o marco filosófico da constituição da Natureza como um domínio desencantado, universal, mecânico e, por isso, passível de ser explorado desmedidamente pelo homem. Fica a cargo de contadores de história não ocidentais e não brancos nos lembrarem sobre a vivacidade de todos os seres que habitam o mundo, como fazem Ailton Krenak (2016)KRENAK, Ailton. 2016a. “Depoimento de Ailton Krenak”. In: Povos Indígenas no Brasil: 2011-2016. São Paulo: Instituto Socioambiental. ,4 4 Conforme Ailton Krenak: “Essa mentalidade estúpida, desse capitalismo que não dá nem para chamar de selvagem, só pensa na exaustão dos recursos da natureza - que eles muito apropriadamente chamam de ‘recursos naturais’ e, cinicamente, matam rios, montanhas, florestas com a justificativa de que estão fazendo o desenvolvimento” (Krenak 2016:159). Davi Kopenawa (2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.) e Bispo dos Santos (2015)BISPO DOS SANTOS, Antônio. 2015. Colonização, Quilombos. Modos e Significados. Brasília: Ed. UnB.. Ambas as autoras insistem na necessidade de narrar outras histórias, as quais devem suspender a centralidade e o protagonismo humano, sobretudo de um humano que se constituiu a partir de um lugar marcado. Como insistem, só há co-histórias e coevoluções, a gênese de nossa humanidade se dá em alianças coconstitutivas com bactérias, cães etc. e, por que não, com mandiocas, tabaco e outras plantas, como apontaremos a seguir.5 5 Note-se que toda a discussão sobre as relações multiespécies enfocaram de forma privilegiada animais não humanos e, nos últimos anos, as plantas e os fungos têm roubado a cena e colocado outras questões pertinentes à materialidade desses conjuntos viventes.

O segundo pressuposto de Rivière que gostaríamos de enfrentar é que a suposta necessidade de controle das capacidades produtoras femininas, que seria feita através da divisão sexual do trabalho, incumbia as mulheres de tarefas que, no olhar de Rivière, por um lado, eram desinteressantes, sem criatividade e repetitivas (1987:190RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.) e, por outro, expropriadas pelos homens para o ganho de prestígio político (:188)RIVIÈRE, Peter. 1987. “On women, men and manioc”. In: Harald O. Skar & Frank Salomon (eds.), Natives and neighbours in South America: anthropological essays. Gothenburg: Ethnographic Museum.. Aqui vemos nitidamente argumentos da antropologia marxista, sobretudo se pensarmos que, segundo Meillassoux, a formação da divisão sexual do trabalho em si implicava a sujeição sociopolítica das mulheres, fazendo das mulheres servas dos homens (Meillassoux 1975 citado em Overing 1986:139OVERING, Joanna. 1986. "Men control women? The 'catch 22' in the analysis of gender". International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, n. 2, Summer.). Meillassoux também defendia que em sociedades nas quais a caça era valorizada às mulheres eram dadas as tarefas mais entediantes e menos gratificantes, como a agricultura e a cozinha, o que refletia sua vulnerabilidade social (Meillassoux 1975 citado em Overing 1986:139OVERING, Joanna. 1986. "Men control women? The 'catch 22' in the analysis of gender". International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, n. 2, Summer.). Não recuperaremos as diversas formas com que os argumentos acima foram rebatidos, mas traremos algumas questões colocadas por Strathern (1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.).

Strathern se detém particularmente em dois pontos: primeiro, a suposição de que é o trabalho o sujeito de valor na conversão, e então falamos de apropriação do trabalho; o segundo, que pessoas devem ter e reter controle sobre o que produzem (Strathern 1988:151STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.). Para a autora, termos como “as pessoas possuem seu próprio trabalho” estão baseados em um certo tipo de “pensamento de propriedade” que não existiria em sociedades não ocidentais (:140)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.. Strathern argumenta que em sistemas não capitalistas o trabalho não pode ser tornado abstrato, ele permanece concreto, e não pode ser medido ou quantificado pelo critério comum a todo trabalho (:153)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press. - em Monte Hagen, por exemplo, são relações sociais que são objetificadas em porcos e roças e o trabalho não pode ser medido fora dos relacionamentos (:160). Outras questões trazidas por Strathern giram em torno da ideia de que, nos pressupostos ocidentais, a domesticidade tornaria as mulheres menos do que pessoas inteiras, que não estariam qualificadas enquanto atores sociais (:88)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.. No pensamento (evolucionista) ocidental, indústria e cultura são concebidas como uma fuga da natureza e supõem a dominação sobre esta (:89)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.. Assim, mulheres que se dedicam às tarefas do lar, e não do mercado de trabalho, são infantilizadas como se nunca tivessem conseguido se desvincular do círculo familiar para se tornarem adultas e independentes (:89-91)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press., enquanto em Monte Hagen é justamente o domínio doméstico que produz pessoas inteiras (:92)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press..

Bom, nos deteremos aqui na ideia do “trabalho doméstico das mulheres indígenas” e tentaremos descrever o que ele pode significar - o que será feito através de uma releitura do conceito de “doméstico” por meio do uso provocativo do conceito de cuidar (Bellacasa 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.). Inspiradas pela composição de dados etnográficos de duas regiões distintas, que dá forma ao artigo de Rivière em foco, seguiremos um movimento semelhante, com a particularidade de que, como somos duas antropólogas narrando, cada uma irá dialogar com um grupo indígena, Jarawara e Wajãpi, evocando as experiências através do uso da primeira pessoa (eu), e caberá ao leitor e à leitora associarem o evento/descrição à voz de cada etnógrafa.

Tabaco e mandioca; Jarawara e Wajãpi

Entre os Jarawara, grupo do Sudoeste amazônico, o roçado não é um domínio exclusivamente feminino, os homens também participam ativamente de seus cuidados, apesar de as mulheres se dedicarem mais a ele. Quando pedi pela primeira vez às mulheres jarawara para plantar com elas, passei alguns dias sem nenhuma manifestação, até que me falaram que seria Manira quem me ensinaria. Manira era considerada a melhor cuidadora de plantas daquele grupo de pessoas, irmãs, que são as mais próximas de mim na aldeia. Assim, não devemos pensar que todas as mulheres cuidam com a mesma intensidade dos roçados e jardins perto das casas, a dedicação passa muito pela habilidade e pelo gosto de cada mulher, o que se reflete na eficácia do fazer brotar e fazer crescer. O roçado jarawara é um lócus de atualização de relações que poderíamos chamar de “parentesco” com a vida pós-mortem e com os seres inamati, em sua maioria, almas de plantas cultivadas que vivem na “camada acima” da Terra (nemeya), relações estas que foram detalhadas em outros trabalhos (Maizza 2014MAIZZA, Fabiana. 2014. "Sobre as crianças-planta: o cuidar e o seduzir no parentesco jarawara".Mana ,20(3):491-518. , 2017MAIZZA, Fabiana. 2017. "Persuasive kinship. Human-plants relations in Southwest Amazonia". Tipiti - Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, v. 15:206-220. ) e não serão retomadas em detalhes aqui. Nós nos interessaremos pelas relações cotidianas do cuidar que procuraremos pensar através das práticas do compor com (Haraway 2003HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press.).

Entre os Wajãpi, grupo Tupi que habita a região das Guianas, as roças, ainda que sejam espaços marcadamente femininos, são sempre geridas por um casal e seus filhos e filhas solteiras. Os homens, na posição de filhos ou marido, frequentam e cuidam das roças em atividades como a limpeza de ervas daninhas, o plantio (o milho e o tabaco devem ser preferencialmente plantados por homens), auxiliam no transporte, além de todo o trabalho de confecção da clareira (derrubada da floresta e queima). A predominância feminina na lida com as mandiocas e outros cultivares não reflete exclusividade ou interdição; em determinadas ocasiões, os homens podem executar tarefas relacionadas à roça e, excepcionalmente, processar mandiocas, o que demonstra que o convívio dos meninos junto às mães, crescendo inicialmente restritos aos espaços apaziguados da aldeia e da roça,6 6 Como abordado alhures (Cabral de Oliveira 2016) e por outros etnógrafos que trabalharam com os Wajãpi (Gallois 1988; Grenand 1980), a elaboração de roças e aldeias é entendida como um processo de afastamento dos ijarã, os donos-mestres, e suas criaturas (animais, plantas, espíritos etc.) que podem causar doenças às famílias wajãpi. permite a apreensão dos saberes necessários, ainda que não a expertise técnica. Como abordado alhures (Cabral de Oliveira 2008CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2008. “Social networks and cultivated plants”. Tipiti, Oxford, v. 6, n. 1-2:101-110., 2019CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2019. “A sedução das mandiocas”. In: B. Labate & S. Goulart (orgs.), O uso de plantas psicoativas nas Américas. São Paulo: Gramma.), as roças wajãpi são altamente diversas, algo mantido por densas redes de troca e roubo de cultivares. As agricultoras sabem com precisão os caminhos de aquisição de cada variedade plantada em seus roçados, que são verdadeiras coleções, em que as plantas narram histórias e materializam relações de parentesco.

Em inúmeras manhãs e inícios de tardes, mulheres jarawara se juntam em grupos de duas ou mais pessoas e resolvem “dar um pulo no roçado”. Os roçados ficam, em sua grande maioria, a não mais do que 30 minutos de caminhada lenta. Essas idas repentinas, e muito apreciadas, às plantações geralmente são para “olhar, espiar, ver” (kakatoma), cuidar das plantas e às vezes conversar com elas. Raramente elas vão ver a mesma planta, trata-se de algo que surge espontaneamente na lembrança de cada uma em relação a uma planta em específico ou a um determinado grupo de plantas semeadas em um lugar entre tantos, algo como: “como estará o meu tabaco que plantei ao lado das mandiocas no roçado de X?”, ou “Y está viajando, preciso dar uma olhada no abacateiro dela no roçado de Z”, ou mesmo, “será que aquela cana que plantei perto dos milhos no roçado de W já está madura para tirar?”. Na maioria das vezes elas voltam com algum tipo de alimento para consumo imediato; um pequeno paneiro cheio de carás ou de macaxeira, uma pré-refeição antes do almoço ou jantar, muito apreciada por todos, sobretudo por quem ficou em casa. Nesses passeios há sempre momentos de conversas, de trocas, de degustação, de cuidado e ensino aos cachorros que sempre estão por perto. São nesses passeios que elas relembram momentos engraçados que vivenciaram, falam sobre suas preocupações, o que estão pensando em fazer nos dias seguintes, mas também sobre outras pessoas, outras aldeias, os Brancos, a próxima festa… Enfim, conversam e desfrutam a companhia umas das outras. Em geral, nessas caminhadas e visitas, os/as filhos/as pequenos/as são deixados/as em casa sob o cuidado de uma outra pessoa, mas esperam ansiosamente as coisas apetitosas que serão trazidas por suas mães, irmãs ou tias.

O cuidado com as plantas de tabaco é talvez o mais impressionante para quem convive com as jarawara, e ele se estende por todo o processo de feitura do rapé (sinã), substância extremamente apreciada pelas mulheres. O amor/carinho/vontade (nofa) que elas sentem pelo rapé se reflete também nos cuidados especiais que têm com a planta de tabaco em todo e qualquer momento: no lugar onde é semeada, para que não tome sol em excesso quando ainda está pequena; quando brota; quando está crescendo, rápido ou devagar; na forma como as folhas são retiradas, o mais baixo possível do caule; na quantidade de folhas retiradas de cada planta, o mínimo possível; na hora do dia em que isso deve ser feito, em momentos quentes; na forma com que as folhas são levadas para a aldeia, simetricamente empilhadas e transportadas em um pequeno paneiro só para elas; no modo como tiram devagar a nervura central e mais uma vez as empilham de forma organizada e bonita; na maneira com que são deixadas para secar, presas em pequenos galhos, um para cada folha, em volta de uma fogueira pequena, ou então em uma placa de alumínio acima do fogo, onde são arrumadas umas ao lado das outras com certa distância; na paciência para que cheguem a consistência certa para serem devidamente piladas, o que em temporada de chuva pode levar alguns dias; no longo processo de pilar e filtrar para que o pó de tabaco fique homogêneo e com uma consistência agradável às narinas, sempre com muito cuidado para não desperdiçar ou perder nada ao mudar o pó de recipiente durante a fabricação; na forma com que saem para regiões longínquas na floresta em busca de pedaços da casca da árvore de cacau, para então os reduzirem a cinzas e adicionarem ao tabaco pilado, almejando suavidade e gosto à mistura.

Os Wajãpi não possuem rapé. O tabaco é exclusivamente fumado, e por homens. Sua função xamânica é altamente reconhecida, não há xamanismo sem a fumaça dos longos cigarros enrolados na casca de Tawari. Devido à facilidade de acesso ao fumo industrializado e sua susceptibilidade a pragas, o tabaco é planta rara. Mas os Wajãpi são um grupo amante de kasiri, bebida fermentada feita a partir de mandioca,7 7 Existem alguns tipos de kasiri, para mais detalhes sobre a bebida ver Cabral de Oliveira (2019). o que faz com que essa planta ocupe um lugar de proeminência, assim como no Rio Negro e nos grupos Caribe da Guiana abordados por Rivière. A diferença em relação a esses dois contextos é que o kasiri é distribuído pelas mulheres. A(s) dona(s) do caxiri (kasirijarã), a mulher que realizou e coordenou os trabalhos de colheita de tubérculos e confecção da bebida, são figuras centrais nas festas e reuniões de bebida, pois são elas que dão ritmo à bebedeira, planejam a duração do evento e cuidam do grau de embriaguez, podendo em determinadas circunstâncias embebedar mais uns que outros.

A despeito do gosto pela embriaguez da bebida fermentada, os produtos culinários provenientes da mandioca são de suma importância para as famílias wajãpi. Não se come carne de caça ou peixe sem um pedaço de beiju, um punhado de farinha, um toque de tucupi com pimenta ou na forma de mingau feito de goma. Ainda que a carne seja um alimento pelo qual se nutre paixão e não pode faltar, a ausência de mandioca é expressa pelo termo teavora, um estado de penúria e fome relativo à ausência dos produtos da mandioca.

As mulheres wajãpi, acompanhadas ou não dos maridos, mas sempre dos filhos pequenos e bebês de colo, vão quase diariamente à roça para colher mandiocas, ainda que não as processem no mesmo dia, uma vez que armazenam goma e massa em moquéns. Elas puxam os pés de maniva com pequenos solavancos e um chiado (chu, chu, chu…), ato que faz com que os tubérculos não se soltem do caule, ficando perdidos sob a terra. Esquecer raízes enterradas que apodrecerão deixa zangado mani’ojarã (dono-mestre da mandioca), que pode enviar uma doença por vingança. Em seguida é comum que o pé de maniva seja recolocado na cova. Após colherem, elas saem juntando as raízes nos braços, empilhado-as com maestria, para serem colocadas próximas ao panakõ (mochila feita de folhas de açaí) que se encontra deitado em algum ponto da roça. Em seguida, as mandiocas são cuidadosamente arrumadas: algumas são dispostas horizontalmente na base da mochila, formando uma barreira para que nenhum tubérculo caia pela trama grosseira; depois as demais são colocadas verticalmente até preencher toda a superfície do panakõ forrado com folhas de bananeira, para em seguida iniciar uma nova camada vertical até acabarem os tubérculos ou a mochila ficar pesada demais; por fim, uma fibra ou cipó é usado para amarrar e fechar a mochila, impedindo que as mandiocas desabem. Assim, elas viajam até as aldeias.

Nos Jarawara, a delicadeza da manipulação do tabaco contrasta com o cuidado mais genérico, digamos assim, de como a mandioca é tratada. Para fazer farinha em grande quantidade é preciso, uns dias antes, que as mandiocas sejam retiradas de debaixo da terra, o que pode exigir bastante força para puxá-las, e depois os grandes paneiros cheios devem ser levados do roçado para a aldeia, o que geralmente é feito pelos homens, sobretudo os jovens, mas também pelas mulheres jovens. Retirar a mandioca da terra e transportá-la em grande quantidade são atos pouco confortáveis, e necessitam de esforço físico. Mas outros momentos do procedimento são bastante tranquilos, apesar de às vezes necessitarem de uma sequência longa de horas com um número excessivo de insetos ao redor - penso aqui em quando as mandiocas devem ter suas pontas retiradas e terem parte de sua casca cortada com a faca na vertical para absorverem com mais facilidade a água em que serão colocadas em seguida; e também no momento em que “a massa” deve ser espremida através da utilização do tipiti. Mas mesmo assim não podemos dizer que são afazeres entediantes. São momentos compartilhados por muitas pessoas, que podem ser descritos como pequenas reuniões e falações, sempre repletas de risos e piadas.

Não esqueço uma de minhas primeiras idas a uma roça wajãpi. Namaira, com sua imensa barriga, que carregava gente dentro, chamou-me para acompanhá-la. Nas costas, a mochila de folhas de açaí vazia, na mão, um facão. Assim a segui, junto com duas de suas irmãs para colher mandiocas. Regressamos à aldeia com pesadas mochilas repletas de tubérculos, que foram deixados na casa de cozinha, um lugar compartilhado por um grupo de consanguíneas. No dia seguinte, as irmãs e suas respectivas filhas de diferentes idades se juntaram para as atividades de descascar, ralar e espremer. Sentadas em bancos ao rés do chão, o trabalho, marcado por técnicas precisas - há um sentido e posicionamento da lâmina para descascar, formas de empunhar a raíz no ralador, posicionar e mover o corpo, encher e tensionar o tipiti -, foi realizado coletivamente. Envoltas no cheiro azedo do sumo de mandioca, que pintava os corpos com respingos esbranquiçados de amido, o grupo conversava sobre casamentos, acontecimentos e as notícias de rádio, que conectam as várias aldeias por ondas curtas. Cenas como esta são cotidianas e não raro algum marido se aproxima para ouvir a prosa. O riso é presença constante, a alegria visível. A despeito de narrativas hegemônicas que afirmam a servidão e a aridez dos trabalhos agrícolas e do processamento da mandioca, minhas amigas wajãpi já explicitaram diversas vezes o gosto e a facilidade em exercer essas tarefas, que ganham um especial sentido na vida de um povo amante de caxiri e beiju.

Um dos tipos de beijus confeccionados, mejuatã (beiju duro) - que após assado é colocado para secar ao sol, aumentando sua durabilidade -, costuma ser desenhado com padrões gráficos (kusiwa) feitos com as pontas dos dedos. O mingau matutino feito de goma de mandioca, após colocado na cuia, recebe uma fina camada de tucupi temperado; com uma colher fazem marcas delicadas criando um desenho com o contraste entre o branco da goma e o amarelo escuro do caldo, e assim dão forma ao padrão “rastro de caranguejo”. Tal cuidado estético parece apontar, igualmente, para o apreço que esse povo tem pela mandioca e seus produtos, algo que pode ser estendido aos grupos Caribe da região, como nos mostra a etnografia de Van Velthem (2003VELTHEM, Lucia. H. van. 2003 [1995]. O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia/Assírio & Alvim.) entre os Wayana, que têm quatro tipos de padrões aplicados ao beiju.

No caso jarawara não seria certo dizer que o cuidado com as plantas de mandioca seja menos intenso do que com outras plantas (Maizza 2020MAIZZA, Fabiana. 2020. "Especulações sobre pupunheiras ou cuidar com parentes-planta". In: Joana Cabral de Oliveira et al., Vozes Vegetais, diversidade, resistência, vozes da floresta. São Paulo: UBU. ). A preparação dos terrenos onde, depois de derrubadas e queimadas as árvores serão plantadas as manivas, é de extrema importância, feita de forma minuciosa pelos homens, que passam meses se dedicando sozinhos ou com mais uma ou duas pessoas à tarefa de limpeza de enormes áreas. Os roçados passam a pertencer aos homens que fizeram a limpeza do terreno. O momento de plantio das manivas também é algo que deve ser lido através do conceito do cuidado, e é acompanhado de importantes cantos masculinos (ayaka) e femininos (yowiri), além de reunir uma grande quantidade de pessoas no mesmo lugar ao mesmo tempo, o que o torna análogo a uma festa com muitos convidados (mariná). Os roçados são abertos em lugares diferentes praticamente de dois em dois anos, e os antigos vão sendo gradualmente menos frequentados. Os tubérculos que não foram retirados nesses períodos intensos de frequentação passam a ser considerados “velhos” e são evitados para consumo humano, sendo deixados para outros seres da floresta, queixadas, veados, cotias etc. Assim, a clareira é deixada para ser povoada por outros tipos de seres. As únicas exceções são as frutas, que continuam a ser consumidas pelas pessoas que se deslocam até seus antigos roçados justamente para isso. As plantas da floresta são os roçados de outros tipos de seres, supra-humanos. E as árvores grandes e antigas são consideradas seres velhos, com "alma velha" (inamati bote), que muitas vezes devoram os humanos.

A dinâmica entre roça e floresta nos Wajãpi é similar. Homens derrubam preferencialmente uma área de vegetação madura, que depois será queimada, para então as mulheres a ocuparem de forma mais intensa por meio do plantio. Uma roça nova é aberta a cada ano por uma família nuclear que tem roçados em diferentes estágios de maturação. Após alguns anos, esses espaços são abandonados para que a floresta e seus habitantes retornem. Ainda que haja um contraste entre floresta e roça, essa diferença é situada, parcial, e não absoluta. As plantas que compõem a floresta são entendidas como cultivos de outras gentes: sucuri, tucano, cutia, espectros de mortos, donos-mestres etc. Todos têm suas plantações e vertem cuidados sobre elas (Cabral de Oliveira 2016CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2016. “Mundos de roça e floresta”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 11, n. 1:115-131., 2018CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2018. “Saberes agrícolas entre os Wajãpi: desafios de uma cosmopolítica contemporânea”. In: A. G. Morim de Lima et al. (org.), Práticas e saberes sobre agrobiodiversidade. A contribuição dos povos tradicionais. Barsília: IEB Mil Folhas.).

O que podemos ver nesses dois contextos etnográficos, em que figuram diferentes espécies, é que não podemos descrever as relações entre mulheres e seus cultivares nem com um excesso de peso materialista, usando unicamente termos como “trabalho”, “formas de subsistência” ou “controle da natureza”, nem com um excesso simbolista, como se a única face verdadeira das relações fossem seus significados cosmológicos.

O conceito revisitado do cuidar parece ser um caminho possível para escapar dessa alternativa infernal. Seguindo Maria Puig de la Bellacasa (2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.), o “cuidado” teria três dimensões: trabalho/mão de obra, afetos/afeições e ético/político. Se o Ocidente Moderno tende a descrever mundos outros que humanos como passivos devido ao antropocentrismo inerente à nossa maneira de pensar (Myers & Hustack 2012MYERS, Natasha & HUSTACK, Carla. 2012. "Involutionary Momentum: Affective Ecologies and the Sciences of Plant/Insect Encounters". Differences, v. 25, n. 3.; Bellacasa 2017; Tsing 2015TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the end of the World. Princeton: Princeton University Press.; Haraway 2003HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press.), as filosofias amazônicas são afamadas por distribuir a agência e não arrogar a posição de sujeito de forma exclusiva à espécie humana (Descola 1996DESCOLA, Philipe. 1996. La selva culta. Quito: Abya-Yala., 2005DESCOLA, Philipe. 2005. Par de-lá nature e de-lá culture. Paris: Éditions Gallimard. ; Viveiros de Castro 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify. ; Lima 1999LIMA, Tânia Stolze. 1999. “Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia juruna”. RBCS, v. 14, n. 40. ). O cuidar pode equacionar esses movimentos teóricos às proposições indígenas, na medida em que não é via de mão única: aquele que é cuidado coforma o cuidador (Bellacasa 2017:219BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.). Nossa aposta se assenta na necessidade de seguir próximo às mulheres jarawara e wajãpi, notando a agência mútua presente na relação que produz uma vida cotidiana por meio de cuidados que são coconstitutivos daqueles que se articulam. Aqui as espécies vegetais, com suas particularidades morfológicas e etológicas, importam tanto quanto as especificidades das ontologias indígenas em foco.

É notório que os Wajãpi, assim como os Jarawara, mesmo tendo acesso a diversas tecnologias dos brancos, optem por seus próprios aparatos de processamento de mandioca: ralos manuais e o uso do tipiti, ao invés dos raladores motorizados (conhecidos como catitu) e prensas que permitiriam operar com um maior volume de massa; subterfúgios técnicos que diminuiriam o tempo de trabalho. Outro aspecto que pode ser trazido aqui é a história evolutiva das variedades tóxicas de mandioca (que são cultivadas nas roças wajãpi e jarawara em número de variedade e quantidade superiores às de mandioca doce) terem sido selecionadas a partir de variedades de menor toxidade - doces (Arroyo-Kalin 2010ARROYO-KALIN, Manuel. 2010. "The Amazonian Formative: Crop Domestication and Anthropogenic Soils". Diversity, 2 (4).; Alves-Pereira et al. 2018ALVES-PEREIRA, Alessandro; CLEMENT, Charles R; PICANÇO-RODRIGUES, Doriane; VEASEY, Elizabeth A.; DEQUIGIOVANNI, Gabriel; RAMOS, Santiago L. F.; PINHEIRO, José B.; ZUCCHI, Maria I. 2018. “Patterns of nuclear and chloroplast genetic diversity and structure of manioc along major Brazilian Amazonian rivers”. Annals of Botany, v. 121, Issue 4:625-639, 14 March.). Segundo hipóteses dos estudos arqueobotânicos, o desenvolvimento da mandioca amarga estaria relacionado ao processo de sedentarização e ao aumento populacional do período formativo, uma vez que as variedades tóxicas são mais resistentes às pragas. Tendo em vista que qualquer hipótese sobre os motivos das populações amazônicas pré-colombianas terem investido na seleção de plantas com maior concentração de ácido cianídrico ser pura especulação, que têm sido guiadas por nossa filosofia economicista-utilitária, poderíamos sugerir que, guiadas pelo diálogo com as práticas wajãpi e jarawara, o tempo maior de dedicação e convívio com as mandiocas pode ter sido um fator de interesse das agricultoras. O que parece particularmente instigante sobre o cultivo de mandioca entre as jarawara é que talvez se trate da planta, quando crescida, com a qual as mulheres passam mais tempo juntas para sua manipulação, enquanto o tabaco é uma espécie que requer muita atenção e cuidado durante seu crescimento. As mandiocas exigem em sua materialidade - tubérculos venenosos que se entranham no solo - um tipo de relação de convivência intensa, que parece interessar às mulheres wajãpi e jarawara, que optam por manter seus raladores feitos de lata e os exíguos tipitis. As mandiocas amargas proporcionam a constituição de corpos e as reuniões femininas que tanto agradam e alegram esses povos.

Mesmo que as descrições acima tendam a focar nas ações femininas em dois contextos a partir da perspectiva do cuidar humano, é importante ressaltar que as mulheres são igualmente feitas por suas idas aos roçados, seus trabalhos agrícolas, seus conhecimentos botânicos, pela inalação do rapé, pelo beber caxiri, comer beiju e farinha, pelas relações travadas com o dono da mandioca, pelo devir das almas jarawara que serão cuidadas pelos seres-plantas no pós-mortem… Quando as mulheres indígenas, e entre elas as wajãpi e jarawara, dizem em seus discursos para os brancos que elas têm uma conexão com aquilo que chamamos de “natureza” e que são protetoras da terra,8 8 Por exemplo, o slogan da Primeira Marcha de Mulheres Indígenas que aconteceu em agosto de 2019 é: “Território: nosso corpo, nosso espírito”. da floresta, dos animais, das plantas e da vida, elas parecem estar falando de modos de existir e cuidar com outros seres. Olhar de perto suas práticas nos leva para a possibilidade de acessar criatividades que a nossa imaginação não permite elaborar - por isso, o que é chamado de “pensamento especulativo” e “fabulação” é também importante para tornar possíveis ecologias mais afetivas do cuidar (Bellacasa 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.:219). Tomemos então o cuidado como um modo afetivo que nos ajuda a imaginar mundos - além de uma provocação (Bellacasa 2017:7BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.).

Cuidar com: constituindo mundos mais que humanos

Aquilo que o cuidar pode significar para nossas interlocutoras indígenas é, como todo experimento antropológico, difícil de ser acessado, pois nosso espírito crítico tende a paralisar nossa "imaginação ética" (Bellacasa 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.:219). O cuidar é em si relacional, cuidar de algo ou de alguém é inevitavelmente criar relação (Bellacasa 2012:189BELLACASA, Maria Puig de la. 2012. "‘Nothing comes without its world’: thinking with care". Sociological Review,60(2): 197-216. ), em que a interdependência é uma precondição (:198-199BELLACASA, Maria Puig de la. 2012. "‘Nothing comes without its world’: thinking with care". Sociological Review,60(2): 197-216. ): os seres não preexistem às suas relações (Haraway 2003HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press.). No entanto, há uma tendência nossa em idealizar e romantizar relações de cuidado como se elas fossem sempre afetivas e harmoniosas,9 9 Marilyn Strathern discute esse mesmo problema ao falar de reificação de conceitos, argumentando que, ao apresentarem categorias analíticas de conhecimento, os/as antropólogos/as transformam entidades em objetos, fazendo-as aparecer como coisas (Strathern 2014:358). Para a autora, a linguagem pode trabalhar contra quem a usa: “um dos problemas da linguagem de extração euro-americana de que se valem os antropólogos para fazer os fenômenos aparecerem em suas descrições é que ela faz outras coisas, indesejadas, aparecerem também" (Strathern 2014:364). Ela usa como exemplo o conceito de reciprocidade: entende-se muitas vezes que a reciprocidade envolve o altruísmo, o que não é sempre o caso. sem considerar que a dissidência é um fato que também faz parte dessas relações.

Plantar, colher e processar mandiocas ou tabaco envolvem procedimentos que consideram o perigo inerente à relação. Entre os Wajãpi, após aberta a clareira, a agricultora deve plantar pimentas no meio da roça para afugentar, por meio da ardência, o temido dono da terra (yvyjarã) que se zanga com pessoas cavando sua casa e, por isso, envia feitiços. Mani'ojarã (dono da mandioca) igualmente cuida de suas plantas e pode causar doenças e até morte nas mulheres que não cumprirem os resguardos de couvade ou menarca, e vão trabalhar na roça ou no processamento culinário. Já entre as mulheres jarawara, o perigo da relação com as plantas se coloca devido ao que poderíamos chamar de "sedução" (nofa) dos seres-planta. O que acontece é que as almas das plantas (inamati), que moram na camada superior, vagam pelas florestas e roçados, tendo como seu grande desejo/vontade se casar com uma mulher jarawara, e levá-la para morar com ele em sua aldeia longínqua; o que de fato só deve ocorrer depois da morte humana das pessoas. Esses seres, em geral, aparecem sob a aparência de um namorado, ou um homem muito bonito, e a moça acaba sendo enganada e "carregada" (weyena) por ele.

O cuidado seria, assim, algo que exige fazeres práticos e políticos que se empenham diante “[d]os problemas inescapáveis de existências interdependentes” (Bellacasa 2012BELLACASA, Maria Puig de la. 2012. "‘Nothing comes without its world’: thinking with care". Sociological Review,60(2): 197-216. :199). Bellacasa aciona a própria história do feminismo acadêmico, tal como discutida por Haraway em seu Manifesto Ciborgue (1985HARAWAY, Donna. 1985. “A Cyborg manifesto. Science, technology and socialist-feminist in the late twentieth century”. Socialist Review, 80:65-107. ), para pensar essas relações. Como sabemos, na década de 80, mulheres que não se consideravam contempladas pelo feminismo social-marxista, liderado sobretudo por brancas, de classe média, heterossexuais e do norte do planeta, começaram a reivindicar feminismos outros. Talvez Minh-ha Trinh (1987TRINH, Minh-ha. 1987. “Difference: ‘a Special Third World Women Issue’”. Feminist Review, n. 25:5-22. ) tenha expressado de forma mais bem-sucedida a profundidade da ruptura proposta por esse feminismo hoje chamado de “terceira onda”. Ela aponta para o fato de que as mulheres brancas até então não tinham tentado lidar com a diferença, pois para isso é necessário que as pessoas questionem “a fundação de suas próprias existências e fazeres” (Trinh 1987:14TRINH, Minh-ha. 1987. “Difference: ‘a Special Third World Women Issue’”. Feminist Review, n. 25:5-22. ). A diferença exige transformação. A ideia é que esses feminismos outros não queriam apenas ser incluídos nas pautas feministas como um subitem a ser pensado, mas que a existência dessas mulheres colocava problemas e questões para a existência das mulheres brancas - como, por exemplo, as mulheres brancas participarem de seminários feministas enquanto uma mulher afrodescendente cuidava de seus filhos em casa (Audre Lorde 2015LORDE, Audre. 2015 [1981]. “The master’s tools will never dismantle the master’s house ”. In: Cherrie Moraga & Gloria Anzaldua (eds.), This bridge called my back. Writing by radical women of color. Watertown, Massachusetts: Persephone Press. pp. 94-97.; Gonzales 1980GONZALES, Lélia. 1980. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Anpocs. mimeo. ), ou a vulnerabilidade de uma Chicana que, ao atravessar a fronteira do México para os Estados Unidos para retornar ao território ancestral de seu povo, é considerada uma infratora, passível de ser executada (Anzaldua 1987), ou mesmo o fato de o conceito de "sonhar" ser parte daquilo que as mulheres zapatistas consideram essencial para o feminismo (Paredes & Guzman 2014PAREDES, Juliana & GUZMAN, Adriana. 2014. El tejido de la rebeldia: que es el feminismo comunitaro? La Paz: Moreno Artes Gráficas. :82). Como o feminismo acadêmico e militante sabe até hoje, coexistir exige transformação dos/as envolvidos/as - e as alianças só podem se dar através de "conexões parciais" (Haraway 1988HARAWAY, Donna. 1988. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies, v. 14, n. 3:575-599, Autumn.; Strathern 2004STRATHERN, Marilyn. 2004 [1991]. “Feminist critique”. In: Marilyn Strathern, Partial Connections. Walnut Creek: Altamira Press. pp. 29-40. ).

É nesse sentido que Bellacasa propõe a dissidência como necessária para pensarmos as relações interespécies, e o tornar-se com proposto por Haraway. As relações inevitavelmente transformam os seres emaranhados: viver com é para Haraway (2003)HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press. um tornar-se com. Não se trata apenas de especular sobre como as coisas poderiam ser diferentes se cuidássemos de uma variedade maior de seres e coisas, mas também se nos envolvêssemos em seus tornar-se. O que está assinalado é uma teoria da mudança transformativa - que é também um projeto político. O cuidar se torna um experimento para se refletir sobre um mundo onde as pessoas tomam decisões na presença daqueles/as que vão encarar suas consequências: algo que Isabelle Stengers (2018STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. RIEB, n. 69.) chama de cosmopolítica, que poderia também ser pensado através de Haraway (2011HARAWAY, Donna. 2011. “A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente”. Horizontes Antropológicos, ano 17, n. 35:27-64., 2016)HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press. com suas ideias de "response-ability" enquanto capacidade de responder, e de “staying with the trouble”, que poderíamos traduzir como assentar, permanecer, perseverar no problema. Relações com outros significantes são mais do que simplesmente acomodar diferença, coexistindo ou tolerando,10 10 Sobre uma crítica à noção de tolerância, ver Stengers (2018). pensar-com não humanos tem sempre que ser viver-com, consciente das relações preocupantes e procurando uma alteridade significativa que transforma aqueles/as envolvidos/as na relação e nos mundos em que vivemos” (Bellacasa 2017:83, tradução livreBELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.).

A dissidência pode ser vista como um conceito que emerge do próprio conhecimento feminista situado, no sentido de que a perspectiva feminista é sempre parcial: os interesses são múltiplos e não precisam ser reconciliados (Flax citado em Strathern 2004STRATHERN, Marilyn. 2004 [1991]. “Feminist critique”. In: Marilyn Strathern, Partial Connections. Walnut Creek: Altamira Press. pp. 29-40. ). Mas também, como coloca Teresa De Lauretis, o conhecimento feminista exige coabitar dois espaços separados e heteronômicos ao mesmo tempo - a negatividade crítica da teoria feminista e a positividade afirmativa de sua política (De Lauretis 1994:238DE LAURETIS, Teresa. 1994. "A tecnologia do gênero". H. Buarque de Hollanda (org.), Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Gênero Plural. pp. 206-241. ), o que significa viver em contradição, como afirma a mesma autora (1994). É assim, então, a partir da contradição - um conceito caro ao feminismo -, que Donna Haraway propõe uma leitura da figura de Gaia, o planeta vivo, recuperado por Isabelle Stengers:

Ao focar na intrusão ao invés de composição, Stengers chama Gaia de um poder temeroso e devastador que penetra (intrudes) em nossas categorias de pensamento, que se intromete no pensamento em si. Terra/Gaia é fazedora e destruidora, não um recurso a ser explorado ou um compartimento a ser protegido ou uma mãe cuidadora prometendo nutrição (nourishment). Gaia não é uma pessoa, mas um fenômeno sistêmico complexo que compõe um planeta vivo. A intrusão de Gaia em nossos negócios é um evento radicalmente materialista que agrupa multidões. Essa intrusão ameaça não a vida em si - micróbios irão se adaptar, para dizer o mínimo - mas ameaça a habitabilidade da Terra para muitos tipos, espécies, grupos, e indivíduos em um “evento” já sendo chamado de Sexta Grande Extinção (Haraway 2016:43, tradução livreHARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.).

Conforme enfatiza Haraway, Gaia, tal como revisitada por Stengers, não é redutível à soma de suas partes, mas alcança coerência sistêmica finita em face das perturbações dentro dos parâmetros que são eles mesmos responsáveis pelos processos sistêmicos (Haraway 2016:44HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.). Gaia questiona a própria existência daqueles que provocaram sua mutação (Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.), e reúne forças que são indiferentes às nossas razões e projetos (Tola 2016TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. :4). Enquanto um conjunto de processos interdependentes, Gaia é capaz de arranjos diferentes daqueles dos quais os humanos dependem (Tola 2016:10TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. ). Em outras palavras, Gaia não se importa com as questões com as quais a interrogamos. Nas mesmas linhas da heterogeneidade e contradição, a própria Haraway propõe a figura do Chthuluceno, enquanto a “proliferação de processos simbióticos com agências não humanas múltiplas” (Bellacasa 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.:194). Chthuluceno é passado, presente, futuro, um espaço-tempo cujo nome remete a poderes e forças tentaculares em todo mundo11 11 Naga, Gaia, Tangaroa, Terra, Haniyasu-hime, Spider Woman, Pachamama, Oya, Gorgo, Raven, A’akuluujjusi, e muitos outros (Haraway 2016:101). (Haraway 2016:101HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.).

Indubitavelmente, o que há de mais importante nessas duas figuras do planeta vivo é o fato de elas retirarem o comando e a primazia da agência humana na transformação do mundo: diferente do Antropoceno e do Capitaloceno, Gaia e Chthuluceno deslocam a ideia de que os seres humanos seriam os atores centrais, enquanto todos os outros seres estariam apenas reagindo (Haraway 2016:55HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.), e enfatizam a Terra-ente como um poder de mutação. No Chthuluceno os poderes bióticos e abióticos da Terra são a história principal (Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.), enquanto na controversa figura de Gaia, esta aparece como uma intrusa, uma figura que desloca o Antropos, a espécie humana indiferenciada, da posição de comando (Tola 2016TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. :2).

Ainda nas linhas da contradição, Miriam Tola (2016TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. ) evocará o que chama de “compor com Gaia”, argumentando que composição não implica uma relação de reciprocidade e parceria com companheiros para se alcançar benefício mútuo (Tola 2016:13TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. ). Ao invés disso, o processo de composição pode surgir quando “nós”, um coletivo que só pode emergir de lutas situadas, começamos a pensar e a agir através de ligações assimétricas com outros, não necessariamente humanos (:14)HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.. Compor com Gaia se refere às práticas que resistem ao que poderíamos chamar de “antropocentrismo proprietário”, ou seja, a suposição de que a Terra seja um domínio disponível para a apropriação (:15)HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.. É no compor com Gaia, que Miriam Tola localiza a necessidade da redefinição da agência política, tal como desenhado por Isabelle Stengers em sua proposição cosmopolítica. Invocar Gaia é um gesto para a "política feminista da Terra", que reorienta a atenção do antropos do Antropoceno, deslocando o falso universalismo do Homem para as muitas forças terrestres que participam em projetos fazedores de mundo (:17)HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press..

A política feminista da Terra, do compor com a Terra, do viver com e na Terra segue os passos desse encontro de feminismos: por um lado, uma política de compor com seres para além do humano e, por outro, uma preocupação tangente com os processos engendrados pelo modo de pensamento ocidental e capitalista que concebe entidades diversas (de elementos da paisagem, passando por plantas até mulheres) como recursos para o consumo humano - na verdade, um certo humano, um humano claramente parcial. E, finalmente, nos lembrando da urgência de romper com a divisão ocidental entre uma certa humanidade e um suposto mundo natural manipulável, desprovido de relevância política (Tola 2016TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. :13; Stengers 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. RIEB, n. 69.).

Um olhar multiespécie: temporalidades vegetais12 12 A noção de temporalidades vegetais foi desenvolvida em Cabral de Oliveira (2020).

Já no final da grande chamada pela conscientização em face da vida na floresta amazônica, Davi Kopenawa, em A Queda do Céu (2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.), nos alerta para as consequências da ganância do homem branco:

Sem xamãs, a floresta é frágil e não consegue ficar de pé sozinha. As águas do mundo subterrâneo amolecem seu solo e sempre ameaçam irromper e rasgá-lo. Seu centro, firmado pelo peso das montanhas, é estável. Mas suas bordas não param de balançar com estrondo no vazio, sacudidas por grandes vendavais. Se os seres da epidemia continuarem proliferando, os xamãs acabarão todos morrendo e ninguém mais poderá impedir a chegada do caos. Maxitari, o ser da terra, Ruëri, o do tempo encoberto, e Titiri, o da noite, ficarão furiosos. Chorarão a morte dos xamãs e a floresta vai virar outra. O céu ficará coberto de nuvens escuras e não haverá mais dia. Choverá sem parar. Um vento de furacão vai começar a soprar sem jamais parar. Não vai mais haver silêncio na mata. A voz furiosa dos trovões ressoará nela sem trégua, enquanto os seres dos raios pousarão seus pés na terra a todo momento. Depois o solo vai se rasgar aos poucos, e todas as árvores vão cair umas sobre as outras. Nas cidades, os edifícios e os aviões também vão cair [...] (Kopenawa & Albert 2015:492, 493KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.).

Temos aqui imagens da barbárie que se aproxima (Stengers 2015STENGERS, Isabelle. 2015. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: CosacNaify. ) mas, mais importante, vemos que os povos indígenas sempre estiveram implicados com as consequências de seus fazeres. A própria historicidade desses povos e as relações com outros seres são constantemente atualizadas em narrativas míticas que, entre muitas outras coisas, falam de ações e efeitos. A negociação constante com os “donos” feita pelos Wajãpi e a tentativa incansável de criar ou evitar relações de parentalidade com seres-planta entre os Jarawara são exemplos de como os efeitos de suas ações são pensados cotidianamente por grande parte dos povos amazônicos. Recentemente, as mobilizações de alguns grupos indígenas diante das agressivas empreitadas capitalistas e invasão de seus territórios nos mostram algo nas mesmas linhas das preocupações de Davi Kopenawa com os xapiri, esses entes que formam e cuidam da floresta. Pensamos por exemplo, nos diversos homens guajajara que se uniram com homens awá-guajá para formarem os “Guardiões da Floresta” e agirem em um dos territórios mais devastados da Amazônia, buscando proteger seres não humanos de queimadas e outras catástrofes contemporâneas (Uirá Garcia com. pess.). Ou então nas escolhas da camponesa do norte andino do Peru, Máxima Acuña, que, em face da venda para mineradoras multinacionais das terras em torno de seu próprio território, se uniu com um grupo de pessoas com as quais busca proteger sobretudo seres não humanos e entidades mais do que humanas, que vivem na/da lagoa (De la Cadena 2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69:95-117.). Estes exemplos deixam claro que a preocupação dos povos indígenas nunca foi, nem jamais será, apenas com humanos. Conforme afirmou Ailton Krenak (2016bKRENAK, Ailton. 2016b. Depoimento dado à Folha de São Paulo, em 02/03/2016.) por ocasião da catastrofe no rio Doce: “Para os Krenak, o Rio Doce tem vida, é uma pessoa. Falar dele é como se referir a um antepassado. Ele tem o dom de curar as pessoas, de alimentar a imaginação e os sonhos. É onde batizamos as crianças. É lógico que não é só um corpo d’água”.

Como sabemos, a questão levantada pelas filosofias indígenas gira em torno das consequências de todas as relações serem vistas como sociais - e não na separação ontológica entre natureza e cultura (Viveiros de Castro 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify. ). Por isso, o xamã, enquanto o grande comunicador com os diversos tipos de seres, é central nesses mundos. Ele é também, e por excelência, o grande cuidador dos humanos. O que nos interessa aqui então é aproximar as atividades cotidianas das mulheres indígenas com suas plantas dessa cosmopolítica, tão frequentemente descrita através da figura de um xamã homem - mas também do caçador - nas Terras Baixas.13 13 Uma outra possibilidade de pensar uma cosmopolítica cotidiana foi elaborada por Cabral de Oliveira (2015). As controvérsias do cuidar se mostram, por exemplo, nas descrições das famílias não humanas dos xamãs, bastante ilustradas nas etnografias dos povos indígenas. Quanto às mulheres, as descrições parecem sempre se apoiar em algum tipo de naturalidade que faria delas pessoas pacientes e boas cuidadoras de roçados e crianças. Como se o cuidar, sobretudo cuidar com seres não humanos, não envolvesse perigos e tensões permanentes. Daí a nossa insistência nas contradições do cuidar e nas políticas feministas da Terra, que lemos como uma provocação feminista da reconceitualização do cuidar, levando em conta seu aspecto político (ou cosmopolítico), e não como algo dado/natural (Braidotti 2006BRAIDOTTI, Rosi. 2006. Transpositions. On nomadic ethics. Cambridge/ Malden: Polity Press. ; Bellacasa 2012BELLACASA, Maria Puig de la. 2012. "‘Nothing comes without its world’: thinking with care". Sociological Review,60(2): 197-216. , 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.; Haraway 2003HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press., 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.; Stengers 2015STENGERS, Isabelle. 2015. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: CosacNaify. , 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. RIEB, n. 69.; Tola 2016TOLA, Miriam. 2016. “Composing with Gaia: Isabelle Stengers and the Feminist Politics of the Earth”. PhœnEx, 11, n. 1:1-21. ; Tsing 2015TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the end of the World. Princeton: Princeton University Press., entre outras).

Uma maneira de retornar às nossas interlocutoras wajãpi e jarawara levando em conta essa discussão é nos determos sobre a temporalidade da terra, algo que Bellacasa chama de “políticas imperceptíveis de todo o dia” (Bellacasa 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.:171). Para a autora, “o tempo do cuidar implica ‘criar tempo’ para se envolver com uma diversidade de linhas-do-tempo (tais como as envolvidas no solo vivo) que faz a rede de agências mais do que humanas” (Bellacasa 2017:171, tradução livreBELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.). Assim, o que nos interessa aqui é pensar em ritmos temporais múltiplos de cuidado com o solo e com as plantas que não correspondem à temporalidade linear e antropocêntrica (Bastian 2009BASTIAN, Michelle. 2009. “Inventing Nature: Re-writing Time and Agency in a More-Than-Human World”. Australian Humanities Review: Ecological Humanities Corner, 47:99-116, November. ) e nem às expectativas tecnocientíficas (Bellacasa 2017:172BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.). Ao colocar o tempo dedicado às mandiocas no cerne de seu argumento sobre a dominação masculina das mulheres, Rivière recorta uma temporalidade linear e de uma perspectiva absoluta, que não considera as temporalidades vegetais que se enlaçam ao tempo de cuidado gestado intencionalmente pelas mulheres. Podemos falar então de uma diversidade de ecotemporalidades (:176), assim como do solo como um mundo vivo multiespécie (Bellacasa 2017:191BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.; Haraway, 2015).

Pensando então o cotidiano das mulheres jarawara, percebo que são justamente essas ecotemporalidades que preocupam minhas amigas. As suas movimentações nos diversos roçados, em diferentes dias, em horários alternados do dia, podem ser lidas como uma preocupação constante com o espaço-tempo de suas múltiplas plantas, e também com seus frutos. Ir ao roçado é ir olhar, conversar, observar, cuidar, estar perto das plantas que precisam dessa presença humana para crescerem bem, certo, bonito, "amosake", mas sempre levando em conta o risco do encontro enganoso com um ser-planta sedutor (inamati). No caso wajãpi, percebo a constituição de um tempo-espaço de agregação feminina, que é estabelecido pelas mandiocas com seu teor de toxidade. Há também uma temporalidade que é própria de uma espécie perene, que dura menos que uma vida humana, mas que tem como característica em sua coevolução com a humanidade ser propagada por meio de estaca, ou seja, por meio de clones que permitem a vida burlar a morte (Cabral de Oliveira 2020CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2020. "Vegetable temporalities: Life cycles, maturation and death in na Amerindian ethnography”. Vibrant, v. 17. ).

Mas a ênfase na constituição de um mundo tecido entre entes diferentes, com suas respectivas temporalidades orgânicas, que poderia ser descrito pela expressão cunhada por Tsing (2015TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the end of the World. Princeton: Princeton University Press.) como uma "assembleia polifônica", não pode obliterar a tensão e as dissidências inerentes a qualquer relacionamento. O conceito de contradição é particularmente difícil de ser mobilizado pela antropologia. Marilyn Strathern provavelmente diria que isto se deve à obsessão antropológica pelo conceito de sociedade (Strathern 1996STRATHERN, Marilyn. 1996. “The concept of society is theoretically obsolete”. In: T. Ingold (org.), Key debates in Anthropology. London: Routledge. pp. 45-80.) enquanto uma totalidade delimitada, formada pela soma de suas partes, que tem como contrapartida o indivíduo como entidade pré-formada e natural. Podemos lembrar, então, da importante contribuição de Tânia Stolze Lima com os Yudja sobre a perspectiva, que é avessa à noção de totalidade e ressalta, antes, a parcialidade, o que, de novo, nos remete ao debate feminista, no qual só existem posições em contradição.

Aqui voltamos ao que enxergamos como uma contribuição do trabalho de Peter Rivière para os estudos das Terras Baixas: o deslocamento do interesse para o indivíduo, para o local, para o doméstico; a possibilidade de uma nova leitura que aponta para o fato de que a complexidade dessas sociedades se dá também através de políticas diárias, contraditórias e de difícil encapsulamento em modelo coerente (Rivière 2001RIVIÈRE, Peter. 2001 [1984]. Indivíduo e sociedade na Guiana. Um estudo comparativo da organização social ameríndia. São Paulo: Edusp. ), a qual optamos por enfrentar através das políticas do cuidar. Uma noção de cuidado, informada pela crítica feminista, que se define como um processo relacional de coconstituição dos entes que se atam num processo vital e assim, insistimos, necessariamente avesso a um campo semântico da harmonia idílica. Cuidar implica assumir responsabilidades éticas, capacidade de responder (Haraway 2011HARAWAY, Donna. 2011. “A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente”. Horizontes Antropológicos, ano 17, n. 35:27-64.) e de se transformar perante o outro (Bellacasa 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.); “ficar com o problema” (Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.) mesmo que ele gere enfrentamentos, implique morte ou qualquer aspereza inerente à vida. O mundo chamado de doméstico, ao contrário do que se supôs, é um dos centros da política indígena, da cosmopolítica, do viver com outros seres, de compor com a Terra.

Nosso primeiro passo foi apontar a necessidade de escapar do campo do “trabalho doméstico”, como nos ensina Strathern (1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. California: University of California Press.), uma vez que doméstico quer dizer outra coisa entre os Jarawara e os Wajãpi, algo que podemos entrever nos próprios dados apresentados por Rivière no artigo em foco. A produção de alimentos e bebidas a partir da mandioca nas Guianas e no Rio Negro está intimamente relacionada às dinâmicas políticas de produção da vida, as quais, pretendemos ter enfatizado aqui, não só enlaçam relações de gênero (que ao contrário do argumento de Rivière não cremos ser possível serem reduzidas à dominação), mas também dizem respeito a tessituras entre diferentes espécies igualmente fora do jogo do controle; algo que pode ser estendido para outras atividades de cultivo, como a relação das mulheres jarawara com o tabaco.

O lidar com a mandioca envolve tarefas árduas: carregar peso, usar raladores que cortam os dedos, enfrentar o sol quente numa clareira, os mosquitos hematófagos que aproveitam os corpos que colocam as mandiocas para pubar no rio, atentar para o perigo iminente do dono da mandioca, ciumento, e que cocuida das plantas… Já o lidar com o tabaco envolve uma atenção constante em relação a seu crescimento e idas ao roçado, preocupadas com essas plantas que tanto exigem atenção, sobretudo devido à sua relação delicada com o sol quando ainda pequenas. Cuidar de mandiocas e tabacos implica assumir riscos e desconfortos que, por sua vez, promovem alegria por meio de uma convivência feminina intensa. A mandioca e o tabaco cuidam das mulheres, possibilitam um tempo de estarem juntas, trocando palavras e substâncias, permitem a embriaguez e um alimentar que é mais do que mera subsistência, é prazer gustativo e estético. Em suma, essas e outras plantas possibilitam uma ação feminina coletiva e engajada com os múltiplos cuidados cotidianos, que passam pelos/as filhos/as, cachorros, macacos, as próprias plantas, a floresta, seres humanos e mais que humanos, envolvendo mulheres em uma cosmopolítica do cotidiano. Poderíamos então dizer que aquilo que Rivière entende como a "prática de liberdade" e do "fazer político" não é exclusivo da caça (e nem do xamanismo), mas engloba também o cuidar com plantas nessa via de mão dupla que é a própria forma da relação.

Referências biliográficas

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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem São Paulo: Cosac & Naify.

Notas

  • 1
    Tais como Aparecida Vilaça, Carlos Fausto, Bruce Albert, Philippe Descola, Anne-Christine Taylor, entre outros/as.
  • 2
    Ver Gaard (2011)GAARD, Greta. 2011. "Ecofeminism revisited: rejecting essentialism and re-placing species in a material feminist environmentalism". Feminist Formations, 23(2):26-53. a este respeito.
  • 3
    Note-se que o argumento de falta de "tempo livre" esteve na base de teorias antropológicas sobre a "mentalidade primitiva" de povos não ocidentais, que por se ocuparem exclusivamente com a subsistência não teriam tempo para desenvolver as artes do pensamento, algo que foi completamente implodido por dados quantitativos e reflexões acuradas que evidenciaram o viés etnocêntrico da ideia de "povos primitivos" (Clastres 1982CLASTRES, Pierre. 1982. A Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves.; Sahlins 1968SAHLINS, Marshal. 1968. "Notes on the Original Affluent Society". In: R.B. Lee & I. DeVore (eds.), Man the Hunter. New York: Aldine Publishing Company. pp. 85-89.).
  • 4
    Conforme Ailton Krenak: “Essa mentalidade estúpida, desse capitalismo que não dá nem para chamar de selvagem, só pensa na exaustão dos recursos da natureza - que eles muito apropriadamente chamam de ‘recursos naturais’ e, cinicamente, matam rios, montanhas, florestas com a justificativa de que estão fazendo o desenvolvimento” (Krenak 2016:159KRENAK, Ailton. 2016b. Depoimento dado à Folha de São Paulo, em 02/03/2016.).
  • 5
    Note-se que toda a discussão sobre as relações multiespécies enfocaram de forma privilegiada animais não humanos e, nos últimos anos, as plantas e os fungos têm roubado a cena e colocado outras questões pertinentes à materialidade desses conjuntos viventes.
  • 6
    Como abordado alhures (Cabral de Oliveira 2016CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2016. “Mundos de roça e floresta”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 11, n. 1:115-131.) e por outros etnógrafos que trabalharam com os Wajãpi (Gallois 1988GALLOIS, Dominique. 1988. Movimento na cosmologia waiapi: criação, expansão e transformação do universo.Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo.; Grenand 1980), a elaboração de roças e aldeias é entendida como um processo de afastamento dos ijarã, os donos-mestres, e suas criaturas (animais, plantas, espíritos etc.) que podem causar doenças às famílias wajãpi.
  • 7
    Existem alguns tipos de kasiri, para mais detalhes sobre a bebida ver Cabral de Oliveira (2019)CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2019. “A sedução das mandiocas”. In: B. Labate & S. Goulart (orgs.), O uso de plantas psicoativas nas Américas. São Paulo: Gramma..
  • 8
    Por exemplo, o slogan da Primeira Marcha de Mulheres Indígenas que aconteceu em agosto de 2019 é: “Território: nosso corpo, nosso espírito”.
  • 9
    Marilyn Strathern discute esse mesmo problema ao falar de reificação de conceitos, argumentando que, ao apresentarem categorias analíticas de conhecimento, os/as antropólogos/as transformam entidades em objetos, fazendo-as aparecer como coisas (Strathern 2014:358STRATHERN, Marilyn. 2014. "O efeito etnográfico". In: Marilyn Strathern, O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify. pp. 345-405 ). Para a autora, a linguagem pode trabalhar contra quem a usa: “um dos problemas da linguagem de extração euro-americana de que se valem os antropólogos para fazer os fenômenos aparecerem em suas descrições é que ela faz outras coisas, indesejadas, aparecerem também" (Strathern 2014:364STRATHERN, Marilyn. 2014. "O efeito etnográfico". In: Marilyn Strathern, O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify. pp. 345-405 ). Ela usa como exemplo o conceito de reciprocidade: entende-se muitas vezes que a reciprocidade envolve o altruísmo, o que não é sempre o caso.
  • 10
    Sobre uma crítica à noção de tolerância, ver Stengers (2018)STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. RIEB, n. 69..
  • 11
    Naga, Gaia, Tangaroa, Terra, Haniyasu-hime, Spider Woman, Pachamama, Oya, Gorgo, Raven, A’akuluujjusi, e muitos outros (Haraway 2016:101HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press.).
  • 12
    A noção de temporalidades vegetais foi desenvolvida em Cabral de Oliveira (2020)CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2020. "Vegetable temporalities: Life cycles, maturation and death in na Amerindian ethnography”. Vibrant, v. 17. .
  • 13
    Uma outra possibilidade de pensar uma cosmopolítica cotidiana foi elaborada por Cabral de Oliveira (2015)CABRAL DE OLIVEIRA, Joana. 2015. "Ensaio sobre práticas cosmopolíticas entre famílias wajãpi: sobre a imaginação, o xamanismo e outras obviedades". Mana, v. 21, n. 2..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    19 Maio 2022
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