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Fotografias guardadas, corpos marcados, trabalho do tempo: raça e gênero na produção da casa e da cidade

Kept Photographs, Marked Bodies, the Work of Time: Race and Gender in the Production of Home and City

Fotografías guardadas, cuerpos marcados, trabajo del tiempo: raza y género en la producción de la casa y de la Ciudad

Resumo

Neste artigo reflito sobre as ambivalências e as acomodações descritas por Ruth em seu cotidiano na Vila Gaúcha, em Porto Alegre, a partir de um percurso por fotografias familiares que entrelaçam narrativas sobre casa, maternidade, violência, vida e morte. Realizo este percurso em diálogo com os escritos de Carolina de Jesus (2007) e Conceição Evaristo (2016 e 2018), seguindo o caminho sugerido por Han e Das (2016) de olhar para as formas de vida enquanto linguagem de fabricação de mundos. Busco, portanto, descrever táticas de mediação e elaboração de formas de habitar o mundo e de produzir a casa entre eventos modelados por questões históricas atravessadas pela raça e pelo gênero - no caso, a produção da cidade, as dinâmicas impostas entre fixação e circulação na fabricação de corpos e lugares removíveis.

Palavras-chave:
Fotografia; Cidade; Porto Alegre; Gênero; Casa

Abstract

In the present article, I reflect on the ambivalences and accommodations described by Ruth in her daily life in Vila Gaúcha, in Porto Alegre. The reflections are based on a journey through family photographs that intertwine narratives about home, motherhood, violence, life, and death. My thoughts are presented in dialogue with the writings of Carolina de Jesus (2007) and Conceição Evaristo (2016, 2018), following the path suggested by Han and Das (2016) of looking at life forms as a language for the fabrication of world. I seek to describe the tactics of mediation and elaboration of ways of inhabiting the world and of producing the home between events modeled by historical questions transversed by race and gender - in this case, the production of the city and the dynamics imposed by the interaction between fixation and circulation in the making of removable bodies and places.

Keywords:
Photography; City; Porto Alegre; Gender; Home

Resumen

En este artículo reflexiono sobre las ambivalencias y acomodaciones descriptas por Ruth en su cotidiano en Vila Gaúcha, en Porto Alegre, a través de un recorrido por fotografías familiares que entrelazan narrativas sobre el hogar, la maternidad, la violencia, la vida y la muerte. Realizo estas reflexiones en diálogo con fragmentos de las obras de Carolina de Jesus (2007) y Conceição Evaristo (2016 y 2018), siguiendo el camino sugerido por Han y Das (2016), es decir, mirar las formas de vida como lenguaje que fabrica mundos. Busco, por lo tanto, describir tácticas de mediación y elaboración de modos de habitar el mundo y de producir la casa entre acontecimientos conformados por cuestiones históricas, atravesadas por raza y género - en este caso, la producción de la ciudad, la dinámica impuesta entre la fijación y la circulación en la fabricación de cuerpos y lugares removibles.

Palabras clave:
Fotografía; Ciudad; Porto Alegre; Casa; Género

Proêmio

“Maria Velha, mulher dura também, era a terceira mulher de Tio Totó. Quando encontrou o homem, ela também já tinha uma larga e longa coleção de pedras.”

(Conceição Evaristo, Becos da Memória, 2018EVARISTO, Conceição. 2018. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas.)

Ex-moradora do Morro Santa Teresa,1 1 Encontramos o nome do Morro e o nome do bairro homônimo grafados das duas formas: Santa Tereza e Santa Teresa. Utilizo a grafia recorrente no Movimento. localizado próximo à região central da cidade de Porto Alegre, ela foi batizada com nome de artista. No Movimento em Defesa do Morro Santa Teresa - coletivo formado em 2009 contra a venda2 2 O projeto de lei nº 388/2009 foi encaminhado pela governadora Yeda Crusius para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul em 10 de dezembro de 2009, autorizando a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado do Rio Grande do Sul (FASE) a alienar ou permutar por área construída o imóvel e terreno localizado no Morro Santa Teresa. Após um trabalho intenso do Movimento, o projeto foi retirado do pleito em junho de 2010. Disponível em: <http://proweb.procergs.com.br/Diario/DA20091218-01-100234/EX20091218-01-100234-PL-388-2009.pdf>. Acesso em 20/04/2020. da área de 10.644,50 m², de propriedade da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado do Rio Grande do Sul (Fase/RS), e que ficou conhecido como “O Morro é Nosso” - Ruth3 3 Optei pela utilização de nomes fictícios para me referir à interlocutora e sua parentela. era uma das protagonistas. Nos atos do Movimento ela frequentemente empunhava o “mega”4 4 Como Ruth chamava o amplificador de voz portátil que utilizava nos atos nessa época. e comunicava com precisão e carisma aquilo que ninguém compreendia tão bem quando proferido por outros militantes. Em uma das nossas conversas, ela me disse - “eu tenho um mega ali que eu ganhei de presente do Movimento Sem Terra (MST) porque eles viram que a minha voz era boa, que eu tinha maneiras de falar com as pessoas”. Acompanhei alguns atos ao seu lado, e assisti aos registros em vídeo de suas atuações públicas. Na empresa de rever e recuperar cenas e diálogos de minha interlocução com Ruth - e fazê-lo em diálogo com os escritos de Conceição Evaristo (2016EVARISTO, Conceição. 2016. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas., 2018EVARISTO, Conceição. 2018. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas.) e Carolina de Jesus (2007JESUS, Carolina de. 2007. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática.) -, penso que a sua “voz boa” e “maneiras de falar com as pessoas” são resultado não só da sua personalidade, da sua trajetória de cuidado e militância dentro da vila, mas também de sua larga coleção de pedras.

Das diversas cenas registradas em vídeo nas quais Ruth protagoniza falas públicas, há uma que eu gostaria de descrever neste proêmio porque nela a protagonista relaciona em seu relato três dimensões cruciais para o debate sobre a produção desigual da vida e da morte nas cidades: corpo, casa e território - dimensões que eu irei recuperar ao longo do artigo.

Na edição do vídeo em tela são compilados tanto os relatos de moradores quanto os diversos atos nas ruas da cidade, além das manifestações no plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Em um dos atos de rua recuperados pelos/as editores/as, escutamos uma voz ao microfone enquanto a câmera focaliza um grupo de pessoas ocupando o centro de uma ampla avenida em um dia bastante ensolarado. A voz diz - “eu queria que vocês estivessem na nossa área, no nosso corpo; e sentissem a dor que estamos sentindo”. As pessoas seguram cartazes e faixas e em uma delas podemos ler - “não à venda da área da FASE”. Atenta ao discurso, a câmera desliza o foco, horizontalmente e lentamente, do grupo de pessoas com faixas para a figura de uma mulher negra localizada alguns metros à frente dos manifestantes, de costas e diante de quatro fileiras compostas por motos e carros. Em pé e muito próxima dos veículos, acompanhada apenas por um militante que está atrás dela e de um terceiro que a filma, a mulher continua falando - “porque eles querem simplesmente tomar nossas casas, que construímos ao longo dos anos”. É a Ruth. Que com seu corpo bloqueia o fluxo dos carros, exaltando aos passantes as ameaças vividas no cotidiano da vila localizada metros acima daquela grande avenida. As buzinas intermitentes dos carros pressionam para que o fluxo do trânsito siga, as motos tentam furar o bloqueio feito pelo grupo que portava as faixas, ameaçando subir com os veículos nas calçadas. Diante dos automóveis, Ruth não move seus pés do meio da pista e eleva a voz - “buzinem, podem buzinar, buzinem que aí vocês nos ajudam” - sugerindo que o som produzido pelo coro das buzinas também chamaria a atenção dos transeuntes para a sua história e as dos seus vizinhos e vizinhas. Chamaria a atenção para a dor dos moradores e moradoras, para as casas que aquele governo queria remover do Morro Santa Teresa onde existiam cerca de sete vilas e viviam, aproximadamente, 1.300 famílias e 3.500 mil pessoas.5 5 Conforme o levantamento que realizei durante o doutorado, o território ameaçado pela venda da área no Morro abrangia sete Vilas: Vila Santa Rita, Vila Figueira, Vila União Santa Teresa, Vila Ecológica, Vila Gaúcha, Vila Prisma e Vila Padre Cacique. Outras pesquisas falam em quatro (Azevedo 2016:85) e em cinco vilas, contabilizando a Grande Cruzeiro (Misoczky & Misoczky 2010) como parte da área atingida, o que aumenta bastante o número de casas, embora borre algumas divisões importantes na formação da população do Morro e suas diferentes trajetórias de ocupação. Geralmente se fala em número de famílias ou de casas atingidas e, para isso, utilizo o número fornecido pelo Departamento de Regularização Fundiária e Reassentamento (Derer) da Secretaria de Obras, Saneamento e Habitação do Estado do Rio Grande do Sul (Sehabs) durante a posse do Grupo de Trabalho do Morro Santa Teresa em 14 de março de 2016, conforme consta na pesquisa de Karla Azevedo (2016:130) e no site do Movimento [https://morrosantateresa.wordpress.com/], tampouco um número preciso sobre o número de habitantes. Acesso em 15/01/2021.

Introdução

Compreendo que os extratos da vida de Ruth aqui descritos possam ser vistos como representação das lutas pela vida em vilas e favelas brasileiras. Gostaria, no entanto, ao longo do artigo, de apresentá-los também como representativos de sua elaboração cotidiana, momentos de dor e alegria que, na luta6 6 Entre as pesquisas e os movimentos que refletem sobre as formas de fazer a luta, no corpo, no espaço e suas diferentes configurações, destaco o trabalho de Comerford (1999) sobre os diferentes significados do termo luta para os trabalhadores rurais; o trabalho de Débora Maria da Silva na consolidação do Movimento Mães de Maio, que vê a luta como um alimento diante do sofrimento da perda do seu filho Edson Rogério, morto por policiais no mês de maio de 2006 em São Paulo. Também destaco o trabalho da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, que tem na luta um projeto de oposição à violência estatal e às violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais; e as pesquisas em que as mulheres da Rede participaram ou contribuíram, nas quais a categoria luta é central, tais como a de Vianna e Farias (2011), Farias (2014) e Vianna (2015). e por causa dela, foram compartilhados comigo.

Reúno neste artigo relatos de Ruth sobre as diferentes temporalidades e intensidades do seu cotidiano no Morro Santa Teresa; e testemunhos reunidos a partir de uma imersão compartilhada nas imagens dos seus álbuns de fotografia. Para cozer esses extratos, dialoguei com produções teóricas e etnográficas com o intuito de refletir analiticamente sobre as diferentes formas de produzir a vida diante da “condição precária compulsória” (Gutterres 2020GUTTERRES, Anelise dos Santos. 2020. As diferentes formas de resistir em um contexto de ameaça de remoção de moradias. Ayé Revista de Antropologia, 2 (1):100-121, Aracape - CE, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Disponível em:http://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/Antropologia/article/view/372 . Acesso em 20/03/2023.
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) a que grande parte das mulheres negras e pobres estão submetidas no Brasil. No amplo debate sobre memória, temporalidade e narrativa - temas contemplados nas reflexões propostas neste texto - meu objetivo no escopo do artigo é o de demarcar como essas condições são produzidas a fim de pensarmos sobre algumas permanências na vida de Ruth e o seu trabalho cotidiano de tecer a vida diante dessas continuidades impostas. Ao basear a narrativa do seu cotidiano no percurso pelo álbum de fotografia, Ruth nos apresenta diversos passados possíveis a partir do presente vivido naqueles dias de inverno do ano de 2012 nos quais estivemos olhando juntas as suas fotografias. É também no percurso pelo álbum que Ruth reforça a centralidade da casa em sua vida, o que permite que pensemos como a casa e as imagens da casa vão se transformando em um núcleo organizador de fios de lembranças, linhas que permitem a ela percorrer, refletir, avaliar suas escolhas, feitos e êxitos. Permitem que ela se reencontre com os mortos, com a vida que era boa e, também, com a vida que não era tão boa assim. Refletir junto com Ruth sobre a relevância da casa no cotidiano de moradoras e moradores de vilas e favelas - em que a produção de circulação forçada, a produção de instabilidade e perturbações fazem parte das permanências impostas pelo Estado - é, inclusive, uma das motivações deste artigo.

Faço uso desta introdução também para ressaltar que este texto tem múltiplas camadas de escrita e não foram poucas as contribuições recebidas ao longo de sua construção.7 7 Agradeço as contribuições ao texto sugeridas pelas/os colegas que integraram o grupo “encontro das quintas” em 2019, coordenado por Adriana Vianna, entre eles: Bárbara Dias, Everton Rangel, Iréri Ceja, Laura Carvalho. Também agradeço aos pareceristas da revista Mana pelas críticas ao texto e a Maria Elvira Benítez pelo incentivo para que eu retomasse a escrita. Em uma das leituras que o texto recebeu, em comunicação oral, Adriana Vianna (2019VIANNA, Adriana B. 2019. “Notas de participação em Grupo de Pesquisa”. PPGAS/UFRJ, Rio de Janeiro.) fez o seguinte comentário - "a gente toma o equilíbrio como fácil, como se a perturbação fosse apenas externa” e complementou - “no entanto, as acomodações são, quase sempre, ambivalentes”. Retomo aqui essa interlocução porque ela me mobilizou a retornar ao meu material etnográfico com foco nas ambivalências, buscando pensar como as formas de resistir são construídas rotineiramente e não apenas diante de situações limites ou de rompimento de mundos. E nesse retorno ao material etnográfico produzido durante o trabalho de campo que embasou minha tese de doutorado (Gutterres, 2014GUTTERRES, Anelise dos Santos. 2014. A resiliência enquanto experiência de dignidade: antropologia das práticas políticas em um cotidiano de lutas e contestações junto a moradoras ameaçadas de remoção nas cidades sede da Copa do Mundo 2014 (Porto Alegre, RS e Rio de Janeiro, RJ). Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.), realizado entre os anos 2010 e 2014, a interlocução com Ruth se destacou em relação à ambivalência. Tal como ocorreu com outros interlocutores e interlocutoras, minha relação com Ruth foi multissituada no tempo e no espaço. Estive com ela tanto em atos públicos quanto em reuniões e encontros promovidos e/ou ocupados pelos movimentos sociais, locais e nacionais, onde a acompanhei, e a outros moradores e moradoras do Morro Santa Teresa, na exposição e na articulação de suas reivindicações. Estivemos juntas em caminhadas, cursos, eventos públicos no Morro Santa Teresa, no Rio de Janeiro e em diferentes locais em Porto Alegre. Mas também estive com ela em sua casa, local onde foi possível retomar as reivindicações ecoadas pelas ruas e reencontrá-las no desenrolar de seu cotidiano, a partir de uma outra temporalidade e, portanto, de uma outra narrativa. Este ato de esmiuçar o cotidiano e transformá-lo em luta era um processo que Ruth fazia recorrentemente e foi um dos motivos pelos quais escolhi trazer alguns extratos de nossas vivências para o centro deste artigo. Outro ponto foi que ela escolheu me contar sobre questões relativas à sua vida no Morro através de um álbum de fotografias. Foi por intermédio dele que ela compartilhou comigo as entranhas de suas idas e vindas na cidade de Porto Alegre, uma trajetória de lutas diárias relembradas no desfolhar do tempo diante das fotografias guardadas. Tal como destaquei em outra pesquisa (Gutterres 2010GUTTERRES, Anelise dos Santos. 2010. A morada como duração da memória. Estudo antropológico das narrativas e trajetórias sociais de núcleos familiares e redes de camadas médias urbanas habitantes da cidade de Porto Alegre, RS - Brasil e do bairro de San Telmo, na cidade de Buenos Aires - Argentina. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PPGAS, UFRGS, Porto Alegre.) os momentos fixados pelas fotografias familiares contrastam com a fluidez da imaginação articulada pelas narrativas, que refazem cenas, lembranças e rotinas, a partir da descrição de hábitos, itinerários e práticas. A fotografia, portanto, tal como destacado por Schrijnemaekers (2011SCHRIJNEMAEKERS, Stela. 2011. A casa e seus objetos: construções da identidade em famílias de camadas populares. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.), proporciona tanto uma reflexão sobre a materialidade quanto sobre sua imaterialidade, cujos sentidos e valores são produzidos pelos processos de imaginação e rememoração realizados no presente.

As escolhas narrativas feitas por Ruth me permitiram, portanto, reunir neste artigo reflexões sobre o caráter ambíguo do convívio com a morte, com o trauma e com as feridas que, tal como destacado por Kênia Freitas (2020FREITAS, Kênia. 2020. “Afrofabulações e opacidade: as estratégias de criação do documentário negro brasileiro contemporâneo”. In: L. Ricardo (org.), Pensar o Documentário, textos para um debate. Recife: EDUFPE. pp. 201-228.:201-228) quando reflete sobre o conceito de afro-fabulation8 8 Em obra homônima, Nyong’o percorre as principais expressões de fabulação em arte e performance negra contemporânea para, em diálogo com os escritos feministas, negros e anticoloniais das décadas de 1960 e 1970 e a teoria queer da década de 1990, olhar para as maneiras pelas quais o estudo da negritude pode reorganizar as percepções de cronologia, tempo e temporalidade, com a tese de que a estética e a expressividade negra já seriam desde sempre queer (2019:3). de Tavia Nyong’o (2019NYONG’O, Tavia. 2019. Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life. New York: NYU Press.), constituem a experiência negra contemporânea pós-escravização e pós-colonização. Ao retomar esses encontros com Ruth na sala de sua casa, em que mergulhamos nas lembranças evocadas pelas fotografias, minha proposta é refletir sobre as ambivalências de seu cotidiano e sobre as acomodações rotineiras que fazem a vida possível de ser vivida.

Meu desafio neste texto também é, contudo, a partir do diálogo com Ruth, recuperar a elaboração de Han e Das (2016HAN, Clara & DAS, Veena. 2016. “Introduction: A Concept Note” In: V. Das & C. Han (eds.), Living and dying in the contemporary world: a compendium. California: University of California Press.) sobre as formas de vida enquanto linguagem de fabricação de mundos, ou seja, chamar a atenção sobre “qual a relação entre possibilidade e realidade” (Das 2020DAS, Veena. 2020. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.:22) na busca por “uma mediação” entre eventos que modelam questões históricas - neste caso, as “formulações imperiais” (Stoler 2013STOLER, Ann Laura. 2013. “Introduction”. In: A. L. Stoller (org.), Imperial Debris: On Ruins and Ruination. Durham: Duke University Press.) das reformas urbanas na fabricação de desabitação, corpos removíveis e lugares extinguíveis - e a vida cotidiana como maneira sempre ambivalente de elaborar violências entre silêncios e vozes. Tal como refleti em outro momento, em diálogo com a noção de precarity e precariousness de Judith Butler (Gutterres 2020GUTTERRES, Anelise dos Santos. 2020. As diferentes formas de resistir em um contexto de ameaça de remoção de moradias. Ayé Revista de Antropologia, 2 (1):100-121, Aracape - CE, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Disponível em:http://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/Antropologia/article/view/372 . Acesso em 20/03/2023.
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:115), destacar as diversas maneiras nas quais a vida de minhas interlocutoras não brancas é constantemente precarizada torna-se uma escolha ética e analítica de descrever o quanto elas estão sujeitas a opressões operadas por uma “matriz de dominação” (Collins 2002COLLINS, Patricia Hill. 2002. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2. ed. New York: Taylor & Francis e-Library. :18)9 9 Em diálogo com trabalhos de outras autoras — que mostram como as experiências são atravessadas não só pela raça, mas pelo gênero, classe social e sexualidade (Davis 2016), descrevendo as nuances das interconexões dos sistemas de opressão (Lorde 2019) e produzindo um debate sobre interseccionalidade (Crenshaw 1991) — Patricia Hill Collins (2002:18) irá pensar nos termos de uma matriz de dominação para examinar como a opressão afeta as mulheres negras. e às normas dominantes produzidas para definir o valor da vida diferencialmente.

A casa na favela: corpo e território racializados e generificados

Em meados dos anos 70, Ruth sai da cidade de Pelotas para tentar a vida em Porto Alegre com seu filho, mãe, um irmão e uma irmã e se instalam em uma das vilas no entorno da mítica “Ilhota”, área onde vivia nessa época uma população de aproximadamente 57 mil pessoas.10 10 Este foi o número estimado de pessoas atingidas pelas obras de “gentrificação” do Projeto Renascença em uma região que tinha a abrangência de 427 hectares divididos entre os bairros: Menino Deus, Azenha, Cidade Baixa, Praia de Belas e Medianeira (Souza 2008:45). De acordo com o estudo feito por Ramos, Mattos, Marques e Dickel (2008RAMOS, Ieda C. A.; MATTOS, Jane R. de; MARQUES, Olavo R. & DICKEL, Iara K. 2008. Estudo quanti-qualitativo da População Quilombola do Município de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: UFGRS, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Laboratório de Observação Social.:46), a Ilhota recebeu essa denominação por ser uma grande porção de terra em formato circular localizada na confluência das águas do chamado “riacho”, formado pelos arroios Dilúvio e Cascatinha (Souza 2008SOUZA, Anita Silva de. 2008. Projeto Renascença: Um caso de gentrificação em Porto Alegre nos anos 70. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.:69). No quadro composto por Betânia Alfonsin (2000ALFONSIN, Betânia de Moraes. 2000. Da invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de baixa-renda em Porto Alegre - Século XX. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional), Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.:86), com base na historiografia sobre as reformas urbanas na capital, a região da Ilhota, assim como o Areal da Baronesa e as margens do riacho, foram destino da população pobre que, expulsa de ruas e becos localizados no centro da cidade por diferentes obras de embelezamento e posteriormente de verticalização, vinha ocupando a região desde a metade do século XIX. Com a proibição do tráfico de africanos/as escravizados/as nesse mesmo período, a população alforriada, sem-terra e sem trabalho migra dos grandes latifúndios no interior do estado do Rio Grande do Sul a fim de prestar serviços imprescindíveis - mas considerados desprezíveis - à citadina burguesia porto-alegrense. Eram lavadeiras, jornaleiros, vendedores ambulantes, carroceiros, cozinheiras, pedreiros, donos de bares, prostitutas e marítimos (Ramos, Mattos, Marques & Dickel 2008RAMOS, Ieda C. A.; MATTOS, Jane R. de; MARQUES, Olavo R. & DICKEL, Iara K. 2008. Estudo quanti-qualitativo da População Quilombola do Município de Porto Alegre/RS. Porto Alegre: UFGRS, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Laboratório de Observação Social.:37) que habitavam os cortiços desses arrabaldes alagadiços assentados às bordas do centro reformado. Com o loteamento dos terrenos das antigas chácaras, “os velhos sobrados e casarões, que haviam sido morada de baronesas e brigadeiros” (Pesavento citado em Alfonsin 2000ALFONSIN, Betânia de Moraes. 2000. Da invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de baixa-renda em Porto Alegre - Século XX. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional), Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.:50), foram sublocados por uma população pobre (e majoritariamente negra) que passou a ocupar seus porões, mas também malocas, pensões e quartos de aluguel, casas de quarto e sala com áreas coletivas, onde o preço dos aluguéis era menos oneroso. O surgimento e o aumento rápido do número de cortiços na região foi a motivação (em diferentes capitais do Brasil não somente em Porto Alegre) para colocar em prática uma onda de remoções através do discurso da civilidade sanitarista e higienista da Primeira República. O Projeto Renascença tinha a previsão de “reurbanizar a área ocupada pela Ilhota e arredores” e tanto Souza (2008SOUZA, Anita Silva de. 2008. Projeto Renascença: Um caso de gentrificação em Porto Alegre nos anos 70. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) quanto Marques (2017MARQUES, Olavo Ramalho. 2017. Sobre Raízes e Redes. Territorialidades negras no Sul do Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS.:147-149) consideram as remoções realizadas a partir de 1973 na região onde a família de Ruth se instala ao chegar na capital gaúcha como um dos primeiros casos de gentrificação na cidade.11 11 O Projeto Renascença foi finalizado durante a administração do prefeito Guilherme Villela (1975-1983) através do Plano C.U.R.A. - Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada (Souza 2008:43).

Sentada no meio do sofá naquela que era a sua segunda casa no Santa Teresa, Morro que a acolhera desde que ela e sua família foram removidas pelo processo de gentrificação da região da Ilhota, Ruth tinha a voz adoçada pelas lembranças de superação dos primeiros anos vividos ali. As frases eram ritmadas pelas fotos que ela retirava, uma a uma, dos finos invólucros plásticos que acomodavam as imagens no interior dos álbuns fotográficos. Levei alguns desses álbuns para casa em 2012 a fim de digitalizar essas imagens e devolvê-las à Ruth em um DVD a que assistimos juntas em sua casa meses depois.

O tom das conversas nessas manhãs e tardes, embalado por fotografias que mostravam sua mãe ainda viva e dois dos seus filhos ainda bem pequenos, obviamente era diferente do tom que animava o megafone em dias de ato. Em modulações e disposições corporais diferentes, essas duas formas de narrar continham, no entanto, a dor e a incerteza. Talvez, por eu ter sido uma das testemunhas da sua luta e da luta de seus companheiros e companheiras naquele ano de 2010, e/ou por ela avaliar que minha escuta estava atenta às formas pelas quais era possível fazer a contabilidade da dor, Ruth tenha dividido comigo suas lembranças naqueles dias em que olhamos juntas suas fotografias. Muitas das recordações vieram emolduradas no marco da superação em um cotidiano em que ela, “ganhando um salário-mínimo e com dois filhos para alimentar”, em suas palavras - “apertou o cinto, segurou a barriga, não comeu um ovo para não jogar a casca fora”. Driblar a fome e “passar trabalho” é, infelizmente, um traço recorrente nas narrativas das mulheres pobres. Tão marcante em suas vidas que Carolina de Jesus chegou a dizer que lidar com essa escassez fazia parte da alma de favelado (2007JESUS, Carolina de. 2007. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática.:64):

Parei na banca de jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver... a mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo. .... pobre mulher. [...] a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: mamãe eu quero pão, mamãe estou com fome! ... a notícia do jornal deixou-me nervosa. Passei o dia chingando aos políticos, porque eu também quando não tenho nada para dar para meus filhos fico quase louca.

Não ter o que dar de comer aos filhos enlouquece uma mãe. Tal como expresso por Jesus, a sinfonia da fome antecipa a morte e expõe a carne ao limite impreciso da loucura. Narrando a si mesma, Ruth fala das adversidades e do cálculo minucioso que ela aprendeu a fazer para gerir os recursos no cotidiano - “eu tinha que trabalhar de dia para comer de noite”.12 12 Sobre a existência de condições extremamente adversas vividas cotidianamente por pessoas pobres sugiro a leitura da tese de Camila Pierobon que em parte reflete sobre uma “exceção ordinária” na vida cotidiana de sua interlocutora, buscando descrever ao longo da pesquisa com Leonor “o que significa viver com condições de pobreza e precariedade” (2018:142). Sobre o cuidado com os filhos no período em que ela trabalhava fora de casa, é enfática: era preciso deixá-los - “aí dentro sozinhos e descer para o asfalto”. E continua - “nunca tive problema em deixar meus filhos aí dentro sozinhos, porque sempre um vizinho ou outro acudiam as crianças que ficavam sozinhas sem os seus pais”. Essa atenção com as crianças e a reciprocidade no cuidado dos filhos eram fundamentais para que as mães pudessem sair para trabalhar - “já cuidei de muita criança ali dentro, porque num sábado não tem creche, não tem onde deixar os filhos, eu sempre ficava com aquela tropa de criança que hoje estão todos uns homens, com filhos”. E encerra um desses prelúdios da conversa com a seguinte reflexão - “não posso te dizer que o Morro tenha sido ruim para mim, não foi”.

Recuperando algumas palavras de Ruth, vemos que uma das avaliações positivas da experiência de vida na vila está ancorada na territorialidade e nas relações produzidas nessa vida compartilhada “aí dentro” no Morro. Relações que possibilitaram um cuidado compartilhado dos filhos que ficavam “aí dentro sozinhos”, mas não completamente sozinhos, já que “sempre um vizinho ou outro acudiam as crianças que ficavam sozinhas sem os seus pais”. Não quero idealizar o caráter comunitário da “rede de ajuda e proteção mútua” (Fonseca, 2004FONSECA, Claudia Lee Willians. 2004. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. da UFRGS.)13 13 Conforme a autora, na formação de uma rede de partilha de recursos e cuidados há assimetrias, conflitos e as redes de ajuda mútua podem produzir tanto amizades quanto ódios (2004:14-15). que a vizinhança das vilas e favelas pode proporcionar, mas destacar o quanto a casa é aqui um local central na teia de cuidados: seja dos próprios filhos, seja deles e da tropa de crianças com os quais Ruth “ficava” para que mães pudessem trabalhar.14 14 Ruth está aqui fundamentando a necessidade de compartilhar o cuidado com as crianças a partir do trabalho e da necessidade de “ter com quem deixar” para trabalhar. Já Suzana e Janete, interlocutoras de Camila Fernandes (2011: 55-120), evidenciam a sutileza da questão do tempo e da “temporalidade assimétrica” no que tange às responsabilizações do cuidado com as crianças. Elas reclamam que a maternidade inviabiliza a existência de um tempo individual ou de lazer nos momentos de sua vida que não estão cobertos pelo tempo que as crianças passam na creche. . Neste aspecto, não podemos deixar de pontuar que a circulação de crianças, tal como preconizado por Claudia Fonseca (2004) em suas pesquisas, é uma característica das formas de cuidado nas camadas populares, tanto entre a parentela quanto entre as vizinhas, já que é, tradicionalmente, uma circulação promovida e sustentada por uma rede de mulheres. Em uma interseção de gênero, raça e processos de formação do Estado,15 15 São diversos os trabalhos produzidos sobre esse universo no campo das ciências humanas, destaco aquelas etnografias que a meu ver expõem as dinâmicas de gênero nas políticas públicas de forma mais descritiva, como é o caso da pesquisa de Vianna e Farias (2011), Collins (2013), Freire (2015), Vianna (2015), Padovani (2018), Nogueira (2016), Araujo (2017), Araujo (2018), Fernandes (2017), Carriconde (2019). Fernandes traz reflexões sobre a casa e a circulação de crianças a partir da figura das “casas de tomar conta” (2018:20-52) na favela de São Carlos, no Rio de Janeiro. Conduzidas por mulheres, essas casas ocupam o papel do cuidado das crianças na favela, substituindo o espaço da creche - seja porque a creche está fechada nos finais de semana, tal como ressaltado por Ruth, seja pela “falta de vaga”, situação enfrentada pelas interlocutoras de Fernandes.

As reflexões sobre a casa perpassam os objetos de estudo no campo da antropologia social há anos e existem diferentes pesquisas apontando para a sua centralidade na articulação de categorias como trabalho, parentesco, família e gênero. Tal como sugerido por Motta (2016MOTTA, Eugênia. 2016. “Casa e economia cotidiana”. In: R. I. Rodrigues (org.), Vida Social e Política nas Favelas. Pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Brasília: IPEA. pp. 197-213.:198), “colocá-la no centro da análise permite dar inteligibilidade às relações entre as pessoas e delas com os espaços, os objetos”. A casa física, portanto, é um dos elementos “em um arranjo complexo de relações”, no caso de nossa pesquisa, relações sociais, afetivas e modos de resistência. Seguindo ainda os achados da pesquisa de campo de Marcelin (1999MARCELIN, Louis. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo Baiano”. Mana - estudos de antropologia social, v. 5, n. 2:31-60.), sabemos que a ideia de casa se refere “não somente à construção física, mas também às relações estruturais dentro das casas e entre elas, às pessoas que as habitam e aos mitos que as fundam”. Endossando esta perspectiva trazida pelo autor a partir do seu trabalho de campo, também compreendo a casa como um centro de produção e trabalho do tempo, já que ela igualmente “se refere ao universo familiar em perpétua transformação” (Marcelin 1999MARCELIN, Louis. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo Baiano”. Mana - estudos de antropologia social, v. 5, n. 2:31-60.:54).

Tradicionalmente, a casa compõe os processos de domesticação e de domesticidade na formação da sociedade patriarcal brasileira e, nesta dinâmica, é o lugar do feminino domesticado. Em contraponto à rua e seus léxicos, portanto, evoco a casa como sinônimo de fixação e onde a moradia fixa consolida um projeto de vida e uma distinção moral tal como destacado por Sarti (1994SARTI, Cynthia A. 1994. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres na periferia de São Paulo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.), Fonseca (2004FONSECA, Claudia Lee Willians. 2004. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. da UFRGS.), Schrijnemaekers (2011SCHRIJNEMAEKERS, Stela. 2011. A casa e seus objetos: construções da identidade em famílias de camadas populares. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). É também a fixação do endereço inscrito - em formulários, fichas e questionários - o primeiro passo para o pleito aos diversos programas públicos de assistência à saúde e à educação, especialmente para mulheres negras e pobres. Por esta característica sabemos que a casa, especificamente a casa na favela, é, portanto, partícipe do processo de produção das “imagens de controle”, em especial da imagem da welfare mother,16 16 Combatendo a negatividade associada ao uso de benefícios sociais, Collins (2002:79) ressalta a importância dos social welfare programs para os afro-americanos, pois permitiu que eles pudessem rejeitar condições de trabalho precárias, exploratórias, trabalhos realizados em nível de subsistência, até então as únicas condições de trabalho disponíveis para seus antepassados. que é uma figura negativa da mulher negra de classe trabalhadora que faz uso de benefícios sociais (Collins 2002COLLINS, Patricia Hill. 2002. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2. ed. New York: Taylor & Francis e-Library. :69; Bueno 2019BUENO, Winnie de C. 2019. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação de Mestrado, Unisinos, São Leopoldo/RS. :99), uma mulher que habita recorrentemente as favelas, as vilas, as ocupações, os cortiços, os predinhos em centros urbanos e/ou periferias.17 17 Sobre as formas de habitação, coletividade e resistências produzidas pelos moradores e moradoras de prédios e ocupações urbanas, frequentemente localizadas nos centros urbanos das grandes cidades, imóveis em ruínas, plantas fabris ou prédios públicos desativados, ver os trabalhos de Santos (2021), Paterniani (2019) e Birman, Fernandes e Pierobon (2018).

No escopo das moralidades e domesticações associadas à casa e como parte do jogo entre territorialização e circulação negativa das mulheres não brancas e pobres, concomitante à fixação, há a racialização e a sexualização da circulação “excessiva” destas mulheres, especialmente mães solteiras com filhos que circulam de casa em casa e que “não param em casa nenhuma” (Fernandes 2017FERNANDES, Camila. 2017. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.:192). O “vai e vem” é territorializado e generificado, pois é associado à inconstância e à instabilidade, ambas marcas da gestão dos pobres nas cidades. A casa na favela, portanto, é um espaço ambivalente. Enquanto delimita as mulheres a um território racializado a partir da fixação, também aponta para a “falta de paradeiro” como argumento para sexualizar negativamente a circulação de mulheres em vilas, favelas e periferias, e culpabilizá-las pelo trânsito forçado imposto pelas políticas de Estado entre diferentes áreas periféricas da cidade.

Tanto as casas de aluguel nas quais Ruth e sua família se instalam quando vêm para Porto Alegre quanto a casa na Vila Gaúcha como aquela em que morou Ruth quando migrou para o Morro Santa Teresa estão entre as possibilidades de moradia produzidas nas andanças e nas circulações das mulheres pobres nas cidades. Sempre apontadas pelo poder dominante como abjetas, inapropriadas, incompletas, os adjetivos para as casas se transpõem rapidamente para a população que nela vive. A fixação adjetivada e a condição de “trânsito incessante” marcam a vida de famílias pobres, como é o caso de Ruth, mas também de adolescentes e adultos em privação de liberdade e de habitantes de locais estigmatizados, como apontado por Mallart e Rui (2017MALLART, Fábio & RUI, Taniele. 2017. “Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas”. Ponto Urbe [on-line], n. 21:1-16.). Em diálogo com essas noções, entendo que as remoções e os trânsitos forçados por diferentes casas entre vilas, favelas e periferias também são parte deste “dispositivo de circulação” que opera produzindo “múltiplas velocidades e ritmos variados” (2017:8).18 18 Sobre os percursos dos pobres na cidade, as dinâmicas de circulação e de fazer circular, eu destaco o trabalho de Magalhães (2019), a etnografia de Melo (2017) que enfatiza a trajetória da população de rua como motivação política; a pesquisa de Fernandes (2018) sobre a trajetória das institucionalizações entre a população que circula nos abrigos da cidade do Rio de Janeiro; e a etnografia de Freire (2019) que descreve a peregrinação entre aparatos institucionais de pessoas em busca de serviços, insumos e atendimentos de saúde. Além do já citado trabalho de Mallart e Rui (2017). A contínua ameaça de remoção de moradia entre famílias pobres e não brancas sugere que seus corpos e vidas são moldados em um movimento constante. Um trabalho colonial permanente de desfazer, apagar, desabitar os locais que famílias como a de Ruth ocupam, afetando a produção de suas memórias e suas referências cotidianas, religiosas, culturais.

Ao escrever sobre a violência da colonização, Franz Fanon (2015FANON, Franz. 2015 [1968]. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF.) dá destaque para a sua força objetiva e para os efeitos do maniqueísmo colonial na subjetividade dos colonizados. Na contemporaneidade, podemos reencontrar esse maniqueísmo nas ações de gentrificação, higienização e urbanização, que fazem parte do que chamamos de “episteme da revitalização” (Gutterres 2016GUTTERRES, Anelise dos Santos. 2016. “O rumor e o terror na construção de territórios de vulnerabilidade na zona portuária do Rio de Janeiro”. Mana - Estudos de Antropologia Social, 22 (1):179-209, Rio de Janeiro-RJ, PPGAS-Museu Nacional.) aplicada a espaços, áreas e locais urbanos onde determinada forma de vida precisa ser permanentemente contida ou extinta para que outra se estabeleça. Esse “mundo compartimentado, cortado em dois e habitado por espécies diferentes” (Fanon 2015FANON, Franz. 2015 [1968]. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF.:56), essa vida vivida por Outro, mas descrita por Um como: lugar mal afamado, cidade faminta, agachada, sem água (:54-59), é uma vida vivida sob o jugo eurocêntrico da confusão. Contribuindo para este debate, as autoras Vianna e Facundo (2015VIANNA, Adriana B. & FACUNDO, Angela. 2015. “Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre ‘moradores de favelas’ e ‘refugiados’”. Cienc. Cult., v. 67, n. 2:46-50.) nos lembram que a associação da confusão às formas de vida, territórios e corpos racializados e generificados são base para a produção dos “papéis com poder de verdade”, que classificam esses corpos, domesticando e congelando experiências múltiplas e diversas em “sujeitos-personagens do espaço e do tempo”. A partir do trabalho de Jeganathan,19 19 Ao ressaltar a existência de modos imaginativos para a classificação da violência nos territórios, o autor também discorre sobre o caráter móvel destas fronteiras e zonas de controle que, articuladas aos postos fixos ou checkpoints (2004), estariam alojadas na própria carne (2018:409), antecipando violências apenas em determinados corpos. sabemos que estas classificações também são responsáveis por manipular o tempo, pois antecipam excessos e violências já que predefinem um grupo de pessoas a elas. Principalmente quando a ideia de confusão endossa a “peculiaridade física e moral do espaço”, ou seja, quando a “confusão entre as personagens pode migrar para a confusão própria ao espaço, ao território” (Vianna & Facundo, 2015VIANNA, Adriana B. & FACUNDO, Angela. 2015. “Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre ‘moradores de favelas’ e ‘refugiados’”. Cienc. Cult., v. 67, n. 2:46-50.:48). E é neste caso, quando a confusão é forjada como sinônimo de determinado território, que, segundo Jeganathan (2018JEGANATHAN, Pradeep. 2018. “Border, checkpoint, bodies”. In: Alexander Horstmann, Martin Saxer, Alessandro Rippa (eds.), Routledge Handbook of Asian Borderlands. London: Routledge. pp. 403-410.), estar exposto em uma checagem é estar em risco, pois muitas vezes não há tempo para a produção da narrativa de distinção entre as categorias morais aceitas pelo opressor, o próprio corpo biopolítico é a prova da suspeição, corpo matável, classificado como perigoso em local perigoso.

Ruth era mãe de três homens, um deles gravemente dependente de crack, e a quem ela quase nunca chamava pelo nome. Enquanto o caçula e o filho do meio eram nominados nas situações descritas por ela a partir das fotos que ela ia encontrando ou ia buscando para me mostrar, o primeiro filho raramente era apontado como presente nesses registros. As fotografias mostravam aniversários, confraternizações familiares, almoços na casa ou pátio da casa; festas que ela fazia para as crianças na rua, inaugurações na vila e arredores. Quando, entre as lembranças, ela desabafava sobre as dificuldades de lidar com o vício tardio de seu primogênito, ela o chamava pelo nome, mas na maioria das vezes era somente “o meu mais velho”. Além dos filhos criados, Ruth também criava outros dois jovens: um neto “que não está me dando problema”, e um sobrinho-neto que lhe dava muita preocupação e de quem ela teria que “chegar mais junto” porque, tal qual me confessou, “tô sentindo que ele está escapando da minha mão”.

Ruth sempre trabalhou “fora” de casa, mas “dentro” de outra casa, como empregada doméstica de famílias que viviam no asfalto. Em uma dessas casas em que trabalhou, ela me disse que “praticamente criou” um dos filhos da patroa que, por dificuldades financeiras, teve que dispensar os serviços de Ruth após anos de trabalho. O vínculo com o menino foi lembrado por ela durante as nossas conversas, assim como o vínculo com a mãe dele, que anos mais tarde teria lhe dado um “bom cheque” para completar a compra daquela casa em que estávamos. Pelo menos duas de minhas interlocutoras trabalharam em “casa de família” e as duas nutriam um sentimento similar ao de Ruth pelas crianças brancas que “ajudaram a criar”. Levando em consideração as múltiplas criações protagonizadas por Ruth - a criação dos seus filhos, familiares, vizinhos e a dos filhos/as das patroas - recorro mais uma vez à elaboração teórica de Patricia Hill Collins, agora sobre o antagonismo da mammy e da matriarca enquanto imagens de controle sobre as mulheres negras. Tal como reelaborado por Bueno (2019BUENO, Winnie de C. 2019. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação de Mestrado, Unisinos, São Leopoldo/RS. :88), a imagem da mammy sustenta a lógica de fixação das mulheres negras no trabalho doméstico, naturalizando essa função à sua cor. Conforme argumenta Bueno, é uma imagem que opera o mito “no qual a mulher negra cuida e dedica amor à família branca, sobretudo às crianças”, exercendo o cuidado “de forma mais responsável e afetuosa do que dedica à sua própria família” (2019:84). Não estou afirmando que Ruth não dedicasse amor à sua própria família, mas sendo ela uma mulher negra, é sobre ela que recai o peso da figura da matriarca. Tal como reitera Bueno, a matriarca é “uma das mais perversas imagens de controle” porque, “ao assumi-la, as mulheres negras se sentem constantemente insuficientes, inferiorizadas e compulsoriamente responsáveis por garantir todos os aspectos do bem-estar de suas famílias, filhos e até mesmo de suas comunidades” (Bueno 2019BUENO, Winnie de C. 2019. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação de Mestrado, Unisinos, São Leopoldo/RS. :91). Durante o período em que minha interlocução com Ruth foi mais frequente, era perceptível a frustração e a sensação de insuficiência dela ao me contar sobre os jovens que “escapavam de sua mão”. À luz do trabalho de Collins é possível acolher teoricamente o sentimento de Ruth inserindo a sua trajetória ao lado da de mulheres negras trabalhadoras que sofrem com as opressões impostas por essas duas imagens entranhadas à sua existência, “a mammy que tipifica a figura da mãe negra nas casas brancas” e “a matriarca que simboliza a figura materna nos lares negros”, a primeira, “a boa mãe negra”, a segunda, “a mãe negra má” (Bueno 2019BUENO, Winnie de C. 2019. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação de Mestrado, Unisinos, São Leopoldo/RS. :88).

Constitutivo do conjunto de preocupações que recaem sobre as mulheres que vivem nas favelas e periferias brasileiras, é importante ressaltar que a Vila Gaúcha é alvo, incluindo o Buraco Quente onde Ruth e sua parentela mais próxima viviam, de truculentas operações policiais.20 20 Sobre a territorialização de ações estatais e policiais e os mecanismos de gestão governamental das mortes nas favelas, ver Barros e Farias (2017). As discursividades em torno da necessidade de remover moradias, principalmente uma remoção ampla como a que foi divulgada em 2010, também se apoiavam nas notícias que produziam aquele lugar como perigoso e violento.21 21 A violência que estigmatiza e homogeneíza direcionada como “acusação social” (Misse 2007) aos territórios periféricos, vilas e favelas pelos jornais e programas televisivos já foi contestada por diferentes pesquisas brasileiras no âmbito da tradição de estudos sobre subcultura, gangues e delinquência realizados pela Escola de Chicago desde os anos 1930. Conforme destacado por Fonseca, a violência é “uma arma mais ou menos aceita (ou pelo menos esperada) para a resolução dos conflitos” em favelas e vilas, no entanto, como ressalta a autora, “existem limites específicos ao exercício da violência, revelados pelas sanções coletivas” (1994:20). Como descrito em diferentes trabalhos no campo das ciências humanas, essas sanções internas moldam formas de sociabilidade (Silva 2004), táticas, alianças e “relações de força” (Telles 2010), redes de representações e significações de masculinidade (Zaluar 1994), estruturam relações entre indivíduos e seus coletivos e moldam códigos e dinâmicas do “mundo do crime que se torna um caminho lateral às tentativas de integração social” (Feltran 2018:137) em periferias, especialmente a partir dos anos 1990. Quando Ruth fala dos descendentes dos seus irmãos e seus parentes mais novos, a preocupação se coloca em seu rosto - “o Chico eu perdi agora pro tráfico, perdi ele para o tráfico; e estou perdendo a minha sobrinha porque ela arrumou uma barriga. Tem 16 anos e não faz nada. Não está estudando, não está trabalhando”. Atravessada pelas redes de tráfico e pelo desemprego, Ruth se vê na díade da mulher preocupada/responsabilizada pelo cuidado com as crianças e jovens da favela. A partir do seu relato podemos pensar que a vacância, a vida no tráfico, e a gravidez aos 16 anos operam como réguas que definem para ela quem está mais perto da morte; e onde o “perder” envolve tanto a possibilidade de perder a vida como a de perder “o rumo”. O mapa de risco desenhado por Ruth está, portanto, atravessado pelo dispositivo do gênero, já que é ele que modula as diferentes situações de risco colocadas para os jovens e as jovens na favela.

Tal como ressaltado por Bila Sorj e Carla Gomes (2011SORJ, Bila & GOMES, Carla. 2011. “O gênero da ‘nova cidadania’: o Programa Mulheres da Paz”. Sociologia & Antropologia, 01 (02):147-164, nov.), em artigo crítico sobre programas sociais e os novos conceitos de "cidadania ativa", “enquanto o risco dos meninos é definido por sua proximidade com a cultura do tráfico”, o das meninas “está ligado à forma de exercício de sua sexualidade”. Recorrentes entre as mulheres que vivem em favelas e periferias, os programas sociais também são vistos como uma alternativa de renda e atuação para mulheres que vivem na comunidade, como é o caso de Ruth, que fazia parte do Programa Mulheres da Paz em 2011.22 22 Programa social direcionado às mulheres moradoras de favelas, instituído a partir do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11707.htm. Acesso em 31/05/2022. No entanto, nota-se que estes programas corroboram para a sobrecarga desta mãe negra multiplamente responsabilizada pelo cuidado de jovens e crianças. Ruth é, neste caso, alvo de uma dinâmica cíclica extremamente perversa, pois à medida que ela sente o fracasso da ausência na própria casa, atua no amparo de jovens negros como os seus filhos, cuja culpa pela condição de “risco social” é apontada pelo Estado e suas políticas públicas como de mães “ausentes” do lar. A vivência materna, portanto, como nos lembra Bueno (2019BUENO, Winnie de C. 2019. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação de Mestrado, Unisinos, São Leopoldo/RS. :101), não pode ser pensada a partir de um prisma universal, pelo contrário, é fundamental que estejamos atentas às “relações interligadas entre raça, classe, sexualidade, idade, condição de cidadania e nacionalidade” para refletir como a maternidade impacta diferencialmente as mulheres negras da favela.23 23 Para uma reflexão sobre a maternidade forjada em geografias de morte, uma maternidade “ultrajada”, ver o trabalho de Rocha (2017). Conforme destacado no diálogo de Bueno com a obra de Collins, é a partir da imagem da matriarca que “transfere-se a responsabilidade social para as mulheres negras”, que acabam sendo “consideradas as grandes responsáveis pela miserabilidade e vulnerabilidade das comunidades negras” (Bueno 2019:88) nos núcleos urbanos.

Uma larga e longa coleção de pedras

Antes de seguirmos, queria retomar o fio que conduz às temáticas e reflexões contidas neste artigo, que é a linha do cotidiano narrado a partir de encontros em torno dos álbuns familiares de Ruth. Para Susan Sontag (2004SONTAG, Susan. 2004. Sobre fotografia. São Paulo: ‎Companhia das Letras.), um álbum de fotos de família é, geralmente, “um álbum sobre a família ampliada - e, muitas vezes, tudo o que dela resta”. Para a autora, uma foto pode ser tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência de alguém ou algo. É o álbum de família um lugar onde as/os fotografadas/os repousam - seres e lugares - um espaço onde é possível exorcizar “uma parte da angústia e do remorso inspirados por seu desaparecimento”. Em seu trabalho clássico sobre álbuns de família, Leite (1993LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1993. Retratos de Família (Leitura da Fotografia Histórica). 3. ed. São Paulo: Edusp-Fapesp. ) divide as fotografias familiares em relação à disposição postural e motivação das fotos, portanto, formais ou informais. Não classifico as fotografias de Ruth em uma divisão de formalidade/informalidade, mas poderia categorizá-las em fotos de registro - muitas vezes do cenário, algumas delas com poses espontâneas; e as fotos posadas, geralmente tiradas em datas especiais, comemorativas e eventuais. Todas as fotos que conheci estavam guardadas antes de serem apresentadas para mim. Foi, portanto, ao apresentá-las que Ruth foi percebendo que muitas das pessoas que apareciam nessas imagens guardadas não estavam mais vivas. Diante de uma foto em especial, tirada no pátio da sua casa em um fim de semana familiar, ela fez uma pausa. Retirou a imagem do invólucro e murmurou. Foi, em seguida, apontando com o dedo para o corpo de cada rapaz retratado e que tinha perdido a vida desde a data em que a fotografia fora produzida:

essa foto aqui é tão antiga, pra ti ver, ó: aqui estou eu; aqui está a Néia, que tem seis filhos hoje; aqui está o meu irmão, aqui está este meu sobrinho que faleceu; aqui está minha irmã Lúcia; aqui o Tavinho; aqui a Kátia, minha sobrinha; aqui o Valdo; esse aqui bem pretinho é o Bruno, no colo. Este rapaz já faleceu, este também já faleceu, este aqui já faleceu, este aqui também já faleceu, é muita mortandade. Ai meu deus.

Em Olhos d’água, Conceição Evaristo (2016EVARISTO, Conceição. 2016. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas.:73) também reflete sobre o cotidiano da morte nas vilas e favelas e em como a morte atravessa subjetivamente e materialmente - através dos sons dos tiros ou do silêncio incomum que precede uma operação policial - os corpos negros e a possibilidade de vida nesses locais - “Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo tombou. Penso em Dorvi. Apalpo o meu. Peito, barriga, pernas… Estou de pé. Meu neném dorme. Ainda me resto e arrasto aquilo que sou” - conclui a personagem Bica.

As violências concorrem, a violência moralizante que separa mulheres boas de mulheres ruins expõe lógicas raciais, de gênero e intragênero que configuram políticas públicas de saúde, educação e habitação. Além delas, há a “violência de pedra e droga” que contribui para a mortandade que Ruth foi contabilizando, no diálogo comigo, enquanto apontava os mortos nas fotografias. São formas de violência distintas, mas que são sentidas e narradas a partir do arranjo da vida cotidiana. Gênero, Estado e território aparecem entrelaçados24 24 Busco seguir o desafio proposto por Vianna e Lowenkron (2018) de “levar a sério a complexidade e a processualidade inerentes ao Estado”, não o tomando “como unidade institucional, ideológica ou ideacional” e considerando que “seus processos permanentes de constituição são sempre e necessariamente sexualizados, generificados e atravessados por afetos” e suas “formas de interdição feitas de e por dinâmicas de gênero”. em um tecido temporal que é retomado ora através das fotos e reminiscências, ora através dos eventos como aquele que Ruth vivia no período de nossa conversa: a ameaça de remoção. Ela fala de uma violência subsumida pela angústia do presente, pela impotência de não se sentir capaz de cuidar bem dos filhos e sobrinhos e senti-los escapar pelas mãos. Tal como viemos mostrando, a responsabilidade sobre a vida do Outro e pela dos seus é uma carga pesada que se leva sendo mulher favelada, e foi na fala de Maria-Velha que Conceição Evaristo (2016EVARISTO, Conceição. 2016. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas.:63) deu voz para esse sentimento - “Eu também ando meio amedrontada! O que será da vida? Não da vida dele ou da minha! A nossa já está quase vivida. O que será da vida de Maria-Nova? O que será da vida dos que estão para vir?” - reflete a personagem. Como em linhas de um mesmo tecido, Maria Velha e Ruth imaginam a vida a partir da morte. Uma teme pelo futuro da neta; a outra constata a partir do retrato - com distanciamento e pausa - quantos vivos na fotografia não conseguiram, por efeito do racismo de Estado nos territórios, atravessar para o futuro, nesse lugar que já matou muita gente, de doença, de tiro, de briga.

Pensando, portanto, na temporalidade não como representação, mas como trabalho do tempo na criação dos sujeitos, Veena Das chama a atenção para os eventos que não podem ser datáveis, ou seja, não podem ser fixados no tempo (2020:136). Convidando-nos a olhar para esse modo particular em que o sujeito está imerso nas formas temporais, a autora sugere que há uma simultaneidade de eventos no nível do tempo fenomenal (e distantes no tempo físico) que torna o todo do passado disponível simultaneamente (2020:38). Recuperando esta perspectiva da autora para refletir sobre a situação vivida por Ruth, vemos que a mortandade relatada por ela não teve uma data específica ou única, sua constatação é um trabalho do tempo que só se tornou narrativa a partir das fotografias e das memórias ligadas à casa ameaçada de remoção. Foi esta ameaça datável que parece ter articulado e acionado outros tantos eventos dispersos no curso da vida, entre eles, as mortes desses rapazes, efeito da política de extermínio na qual jovens negros estão submetidos enquanto moradores da Vila Gaúcha. Como evento, todavia, a ameaça de remoção tampouco era nova para Ruth, já que fazia parte da sua vida desde a chegada à capital, estava materializada na casa que ela construiu quando se instalou no Morro Santa Teresa, vinda de uma área removida, na região gentrificada pelo Projeto Renascença. A relação entre os eventos que formam um ritmo temporal diferencial, especialmente nas cidades latino-americanas, pode ser refletida à luz de um trecho da obra Sobre Fotografia. Nela, Sontag (2004SONTAG, Susan. 2004. Sobre fotografia. São Paulo: ‎Companhia das Letras.) destaca a relevância da proliferação das câmeras e da fotografia em uma época em que “a paisagem humana passou a experimentar um ritmo vertiginoso de transformação”, já que, segundo a autora, na Europa do início do século XX, “uma quantidade incalculável de formas de vida biológicas e sociais” teria sido destruída em um curto espaço de tempo.

Que reflexões podemos fazer sobre o tempo nas cidades brasileiras, em especial sobre o ritmo que move os percursos de Ruth em uma destas cidades, a partir da ideia de ritmo vertiginoso de transformação trazido por Sontag? Possivelmente ao registrar os momentos em família assim como os lugares e acessos da favela, foi menos na transmutação e mais na permanência que Ruth e sua família estavam pensando. Gostaria, portanto, de recuperar aqui a ideia de ambivalência também para pensar a produção de imagens; como um ato que relaciona a motivação em fixar o presente em um cotidiano imerso em profundas e constantes transformações, estas recorrentemente impostas às famílias não brancas como a de Ruth. Se, no caso de Sontag, a melancólica Paris de Atget e Brassaï desapareceu em sua maior parte, no caso de Ruth, as imagens e os registros são artefatos de resistência e produção de memória em uma dinâmica intermitente de obras, reformas, arruinações e destruições urbanas, em uma história das cidades que é seletiva na narração dos seus espaços, lugares e sujeitos. Neste sentido, os retratos trazidos por Ruth operam como pontes entre mortos e vivos, âncoras da memória de populações afrodescendentes e sua relevância histórica na produção da cidade, das periferias e das favelas brasileiras.

Ainda sobre as formas e os sentidos do tempo, Veena Das ressalta que algumas vezes o sentimento de ser passado não carrega consigo o sentimento de ter passado. Com Ruth, observei essa sensação principalmente ao conversar com ela sobre o passado em um presente que era marcado pela antecipação temerosa de uma nova remoção. A antecipação neste caso - campo fértil para proliferação dos rumores, tal como reflito em outro trabalho em diálogo com as proposições de Das (Gutterres 2016GUTTERRES, Anelise dos Santos. 2016. “O rumor e o terror na construção de territórios de vulnerabilidade na zona portuária do Rio de Janeiro”. Mana - Estudos de Antropologia Social, 22 (1):179-209, Rio de Janeiro-RJ, PPGAS-Museu Nacional.) - é um sentimento vivido e expresso por moradores e moradoras pobres sobre sua experiência e cotidiano de habitação na cidade, e que mostram seu desassossego diante dessa situação de “transitoriedade permanente”.25 25 Recupero a expressão cunhada por Raquel Rolnik a partir de suas reflexões sobre a questão da moradia diante da ordem “jurídico-urbanística dominante”. Conforme a autora, a condição de permanente transitoriedade caracteriza não só os habitantes do Sul Global onde mais da metade das pessoas são marcadas por “precariedade habitacional e por ambiguidades em relação à posse”, mas também alguns grupos étnicos “em cidades do mundo desenvolvido” (2019:22). Em uma reflexão sobre o trabalho do tempo, Vianna e Facundo (2015VIANNA, Adriana B. & FACUNDO, Angela. 2015. “Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre ‘moradores de favelas’ e ‘refugiados’”. Cienc. Cult., v. 67, n. 2:46-50.:48) ressaltam a reinvenção da medida do tempo como forma de lidar no cotidiano com a suspensão do cotidiano. Como uma possibilidade de existência digna perante classificações indignas. Como um jogo complexo e diário de fabricação de uma narrativa de si, tendo em vista a força classificatória dos checkpoints materiais e móveis. Recuperando o diálogo de Deleuze com Bergson (citado em Das 2020DAS, Veena. 2020. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.:141), sabemos que é através de processos de translação e rotação feitos no presente que acionamos a memória do passado. O passado, portanto, não antecede o presente; ao contrário, ele é suposto pelo presente como a condição pura sem a qual o presente não transmuta. Em outros termos, segundo o autor, cada presente tem o potencial de remeter a si mesmo como passado (Deleuze 1999DELEUZE, Gilles. 1999 [1966]. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34. :39-45). Nessa coexistência produtiva entre diferentes tempos, vemos nos relatos de Ruth que a vida narrada no presente é ritmada pela necropolítica, pelas tecnologias de Estado, as políticas públicas e as desigualdades estruturais que relacionam passado, presente e futuro.

Em uma reflexão de Carolina de Jesus sobre o tempo e como a desigualdade afeta o crescimento dos seus filhos, por exemplo, ela imagina as formas como suas crianças enxergam o mundo. E neste ato de imaginar, vemos que a preocupação da autora com o devir é marcada pelo ritmo dos “inconvenientes” que existem no mundo:

Ele conversa comigo e eu vou revelando as coisas inconvenientes que existe no mundo. Já que o meu filho já sabe como é o mundo, a linguagem infantil entre nós acabou-se. [...] eu pretendia conversar com o meu filho as coisas sérias da vida só quando ele atingisse a maioridade. Mas quem reside na favela não tem quadra de vida. Não tem infância, juventude, maturidade (Jesus 2007JESUS, Carolina de. 2007. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática.:91).

Com as fronteiras das quadras de vida borradas pelas coisas sérias da vida - em destaque a desigualdade social, racial e de gênero que atravessa a vida de mulheres que moram em vilas, favelas e periferias -, a linguagem infantil entre Carolina e seus filhos perde a eficácia e o sentido. É um trecho da obra de Jesus que reforça a centralidade da linguagem na produção das formas de narrar o tempo e a vida. Conforme proposto por Han e Das, estarmos atentas às formas de vida nos ajuda a refletir sobre a ideia de que os seres humanos têm uma vida na linguagem e que suas expressões constituem uma espécie de história natural da humanidade (2016:12). Há na fala de Carolina de Jesus, portanto, um desacordo entre como seria uma linguagem infantil e a vida das crianças crescidas na favela, que já sabem, desde muito pequenas, como o mundo é. Reforçando que a linguagem e o mundo têm uma relação que é interna a cada um de nós (Han e Das, 2016HAN, Clara & DAS, Veena. 2016. “Introduction: A Concept Note” In: V. Das & C. Han (eds.), Living and dying in the contemporary world: a compendium. California: University of California Press.:36), é preciso que Carolina reabite a vida cotidiana (Das 1999DAS, Veena. 1999. “Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 40:31-42, junho.:41) provando sua humanidade, já que para “ser humano” é preciso ter quadras de vida. Essa inquietação com as formas diferenciais de produção da vida presente nos escritos de Carolina de Jesus pode ser compreendida também como uma “reivindicação de reconhecimento” da vida tal como a declaração de dor analisada por Wittgenstein (Das 1996DAS, Veena. 1996. “Language and Body: Transactions in the Construction of Pain”. Daedalus, v. 125, n. 1: 67-91, Social Suffering (Winter). Disponível em:http://www.jstor.org/stable/20027354 . Acesso em 20/06/2022.
http://www.jstor.org/stable/20027354...
:70-71) e destacada na obra de Das. Através da linguagem é possível que a autora rompa com uma privacidade inexprimível, testando os critérios daquilo que é humano (Das 1999DAS, Veena. 1999. “Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 40:31-42, junho.:39), inscrevendo na história como suas formas de vida estão submetidas às imagens de controle sobre ser da favela e ser favelada. Concomitante à necrogovernança que produz um viver diferencial em vilas e favelas há, portanto, a vida cotidiana de cada habitante como composição contínua de fazer e refazer sentidos, e no movimento entre o interior e o exterior, tornar o mundo habitável.

Usucapião, ameaças de morte e o medo de perder a casa

Outra das histórias que emergiram do diálogo com Ruth também orbitou em torno da casa e da habitação na Vila Gaúcha. Tratava-se do processo de usucapião de sua primeira casa, período em que, tal como me disse, chegou a receber uma ameaça de morte - “quando eu comecei a fazer a usucapião da minha casa, eu sofri muito, eu sofri durante oito anos”. Amparada por um serviço de assistência jurídica, ela me contou que as pessoas na vila perguntavam de maneira ríspida, como se ela estivesse desrespeitando alguma regra tácita de convivência - “Ruth, tu tá fazendo a usucapião?”. Quando ela respondia que sim, que havia convidado todos os moradores para participarem do processo, que tinha realizado dezoito reuniões, porque havia “descoberto” que “nós temos direito à terra onde a gente está”, argumentando - “porque a casa já é nossa, mas a terra ainda não tem de fato um papel” - ninguém quis acompanhá-la. Nesse período de questionamentos, um vizinho, que alguns anos depois acabou assassinado dentro da vila, disse para ela uma frase da qual ela conta nunca ter esquecido - “ficou gravada na minha cabeça” - ela reforçou. Dono de um armazém na vila, o falecido Denilson, quando soube “da história da usucapião”, falou grosso com ela. Ele disse “vou te avisar uma coisa, mulher” - com a voz grave - “se eu perder a minha casa por tua causa, tu pode ter certeza que eu vou te matar”. A ameaça de Denilson e o pânico dos vizinhos - que achavam que ela estava “mexendo a merda com pauzinho curto” e a acusavam de estar colocando toda a vila em perigo, apostando que ela perderia a casa e que por causa dela a vila inteira também seria removida - deixaram Ruth assustada.

Ela me contou que durante esses oito anos ela não descansara, que ficara preocupada - “eu não dormia, guria” - e me disse que pensava sempre - “mas, meu deus, será que eu estou fazendo a coisa errada?”. O medo de perder a casa colocou os moradores contra Ruth durante aquele período de sofrimento e angústias. Muitos deles tinham igual ou mais tempo de uso da terra, mas a força da antecipação de uma nova onda de remoções não só os aterrorizou, como fez com que julgassem e ameaçassem Ruth. Esse medo subterrâneo, de uma vida entrelaçada à ilegalidade,26 26 Sobre o tema dos ilegalismos em sua dimensão urbana, ver as pesquisas reunidas em Azaïs, Kessler e Telles (2012) e Telles (2010.) parece estruturar a vida dos pobres urbanos e, muitas vezes, os imobiliza na reivindicação e na obtenção de determinados direitos. Em um país onde os direitos fundamentais são constantemente violados, negados, subtraídos por cortes de raça, gênero e classe, eles acabam sendo compreendidos, por pessoas como os vizinhos de Ruth, como privilégios. Diversas reuniões não foram o bastante para mobilizar os moradores e as moradoras a iniciarem seus processos de usucapião. A credibilidade de Ruth, moradora e cria da vila, tampouco. Pelo contrário, sua iniciativa foi vista como ameaça coletiva, e ela sofreu por oito anos com desconfianças e ameaças por parte dos vizinhos, chegando a pensar que estava realmente fazendo “a coisa errada” e colocando em risco as casas de toda a vila.

A casa amarela - da qual Ruth finalmente conseguiu a usucapião anos depois, sendo “uma das poucas mulheres que adquiriram uma casa dentro da vila” - também apareceu nas fotos que ela me mostrou, embora com um aspecto diferente do atual. Tal como destacado por Sarti (1994SARTI, Cynthia A. 1994. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres na periferia de São Paulo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.), essa diferença - entre a casa antiga e a nova - era um efeito do seu êxito e prova do seu status dentro da favela.27 27 Conforme elaborado por Fonseca (2004), a casa enquanto lócus da moradia também reflete e espelha o progresso de aquisição de status da mulher e/ou de sua família, representando uma autoridade moral, principalmente para a mãe solteira, já que é, junto do trabalho, a prova de que ela é capaz de sustentar a criança, mesmo que para “consolidar sua respeitabilidade moral” ela precise do apoio e da garantia de seus familiares (Sarti 1994:99). O registro das reformas e das transformações no espaço da vila igualmente permitia que ela pensasse no movimento do tempo, pudesse calcular seu progresso pessoal em relação ao espaço, conectando cada obra a um momento da sua casa e da sua vida. Sobre a casa e as transformações na favela como testemunho do tempo, Conceição Evaristo (2018EVARISTO, Conceição. 2018. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas.:73) também produz escrevivências,28 28 No prelúdio da 3ª edição de Becos da Memória (2018), a autora declara que o romance é feito "(con)fundindo) escrita e vida, ou melhor dizendo, escrita e vivência”. Em entrevista publicada em 2020, Evaristo também fala sobre o termo - “quando eu penso em escrevivência, penso também em um histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras escravizadas que tinham de contar suas histórias para a casa-grande [...] a escrevivência é um caminho inverso”. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem/. Acesso em 15/05/2022. agora a partir do personagem Totó: "Na roça as casas são distantes uma das outras; aqui, a gente é vizinho um do outro, mesmo sem querer ser. Quando cheguei na favela, ainda tinha muito lugar vazio. Essa minha casa era só um quartinho, fui aumentando aos poucos. Hoje você vê, menina, são quatro cômodos [...]”.

Como viemos descrevendo, a materialidade da casa organiza o cotidiano e a identidade territorial, se tornando uma “referência para as atividades de manutenção da vida cotidiana” (Motta 2016MOTTA, Eugênia. 2016. “Casa e economia cotidiana”. In: R. I. Rodrigues (org.), Vida Social e Política nas Favelas. Pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Brasília: IPEA. pp. 197-213.:207). A casa é importante por seu patrimônio material e seu valor não é apenas financeiro. Sua extinção e/ou a possibilidade de sua destruição doem no corpo, tal como Ruth ressaltou na cena do vídeo cuja descrição abre este artigo. Quando em sua fala ela reforça que não aceita que o Estado possa “simplesmente tomar nossas casas”, ela está dando destaque à banalidade com que as casas são ameaçadas e/ou extintas por decretos, serviços técnicos e projetos urbanos. E opõe essa banalidade ao valor do tempo vivido na casa, seu patrimônio material e afetivo, “a casa que construímos ao longo dos anos”. Deste modo, parece ser a partir da casa que a vida se reinventa, que os fios do cotidiano se enovelam num enredar e desenredar. A partir da casa o direito à vida surge na história narrada por Ruth, onde ele é organizado, reivindicado e exigido.

Epílogo

As imagens colecionadas por Ruth nos permitem apontar para o processo de transformação que moradores e moradoras realizaram ao longo dos anos não só em suas casas, mas em vilas e favelas brasileiras. Através dos relatos de Ruth sobre suas fotografias, conheci a velha entrada da vila, os primórdios do posto de saúde, o descampado que virou praça, o campo de futebol que continua igual, as fachadas de velhas casas, a antiga e nova casa amarela, os becos, as construções e as reformas - dentro e nos arredores - da Vila Gaúcha. Para passar pelos eventos e pelos lugares, Ruth precisou ver e lembrar de muita gente, muitas histórias, muita vida e muita morte. Diante de mim - que deixava que aquela escuta me marcasse - ela foi tecendo esses fios de um passado contraído e evocado por álbuns e fotografias. Estas tardes, plenas de imagens e epifanias, revelaram fragmentos pelos quais Ruth habitava o mundo, em que a singularidade da vida individual compunha formas de vida que também alimentavam formas de morte. Tal como propõem Han e Das (2016HAN, Clara & DAS, Veena. 2016. “Introduction: A Concept Note” In: V. Das & C. Han (eds.), Living and dying in the contemporary world: a compendium. California: University of California Press.), a vida tem uma qualidade pulsante e dinâmica e uma forma de vida não é uma questão resolvida de uma vez por todas - nem nas pesquisas, nem no cotidiano - mas uma forma produzida pelo trabalho feito no dia a dia (:23).

Partindo dos percursos disponibilizados por Ruth em seu relato, e inspirada por Das, eu destaco o papel do tempo e da provisoriedade que há no trabalho de “significação ética” entre perdas e ganhos. Neste texto, entendo que tanto o tempo como a ambiguidade e a provisoriedade são componentes na construção de uma narrativa possível sobre a vida diante dos marcadores morais e raciais nos corpos, nas trajetórias e nos territórios. Cimentados na ameaça como eficácia do terror e na tentativa de esvaziamento dos sentidos da casa e do habitar para populações pobres e não brancas, esses marcadores deixam expostos os modos diferenciais de morar e de viver nas cidades.

Soube, a partir do relato de Ruth, que não desistir está nas raízes das formas de resistir; e a casa e as reformas da casa alinhavam as histórias destas resistências. A espacialidade e a vizinhança, concomitantemente, compõem as redes cotidianas de convivência e de apoio - e talvez por esta razão a ameaça e a desconfiança dos vizinhos tenham sido tão duras para Ruth no período em que buscava a usucapião do seu terreno. Tal como venho reiterando ao longo do texto, aqui estamos compreendendo o presente como motor das possibilidades de contração do passado. As acomodações e as formas encontradas para superar dores, ameaças, dificuldades e julgamentos se dão na vida cotidiana e íntima do presente. O presente, portanto, arregimenta as astúcias, que cosidas nele transformam as perturbações vividas ao longo dos anos em lembranças, ditos e não ditos, todos passíveis de convivência.

Uma das minhas intenções neste artigo é, portanto, a partir de um arranjo dos relatos de Ruth sobre e através das fotografias de seu acervo de imagens,29 29 Há uma trajetória longa de artistas que partem de acervos familiares para construir, através da imagem, contranarrativas e críticas à violência da colonização e à representação das pessoas negras no Brasil ao longo da História. Entre eles, destaco a obra Parede da Memória, de Rosana Paulino; as obras de Aline Motta e trabalho do fotógrafo Eustáquio Neves. contribuir para a produção de uma contranarrativa da vila e seus habitantes. Como sabemos a partir de Halbwachs (2006HALBWACHS, Maurice. 2006 [1968]. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro.), a memória não precisa de matéria para persistir, pois o espaço não é só matéria, mas fabulação e duração (Bachelard 2005BACHELARD, Gaston. 2005. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes.). No entanto, em meio às destruições seletivas - e aos monumentos e estátuas30 30 Diálogo aqui com o pensamento de Achile Mbembe (2014:180-181) quando nos convida a olhar para memória colonial fazendo “uma crítica ao tempo e aos artefatos que pretendem ser os substitutos últimos da própria substância do tempo (estátuas, estelas, monumentos, efígies)”. que buscam narrar memórias e histórias impostas violentamente no corpo não branco que habita a cidade - também é necessário reivindicar a força desta materialidade na demarcação de outras temporalidades, feitos e histórias. A privação da casa, nesse sentido, não é só a privação da moradia, mas uma ruptura na forma como se habita o mundo. Uma ruptura no modo como Ruth, seus vizinhos e também Bica, Totó, Maria-velha, Carolina e tantas outras o habitam. E habitar aqui é abrir caminho, preencher, partilhar; é fazer cômodo, como disse Totó.

Quando Ruth repete aos donos dos carros “eu queria que vocês estivessem na nossa área, no nosso corpo, e sentissem a dor que estamos sentindo”, parece estar conclamando para que pensem fora dos domínios da branquitude-capital (Paterniani 2019PATERNIANI, Stella Z. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UnB, Brasília.:44). Que reflitam sobre a violência imposta aos moradores e moradoras do Morro Santa Teresa e o quanto a remoção afetaria profundamente a forma na qual habitam o mundo, com suas fotos, lembranças, vidas e mortos. E que “tomar simplesmente as casas construídas ao longo dos anos” é banalizar a vida produzida em territórios não brancos, evidenciando a necropolítica que controla os ritmos de fixação e movimento daquelas e daqueles que habitam as vilas e as favelas brasileiras.

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  • ZALUAR, Alba. 1994. Condomínio do diabo Rio de Janeiro: Revan/ Ed. UFRJ.

Notas de fim

  • 1
    Encontramos o nome do Morro e o nome do bairro homônimo grafados das duas formas: Santa Tereza e Santa Teresa. Utilizo a grafia recorrente no Movimento.
  • 2
    O projeto de lei nº 388/2009 foi encaminhado pela governadora Yeda Crusius para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul em 10 de dezembro de 2009, autorizando a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado do Rio Grande do Sul (FASE) a alienar ou permutar por área construída o imóvel e terreno localizado no Morro Santa Teresa. Após um trabalho intenso do Movimento, o projeto foi retirado do pleito em junho de 2010. Disponível em: <http://proweb.procergs.com.br/Diario/DA20091218-01-100234/EX20091218-01-100234-PL-388-2009.pdf>. Acesso em 20/04/2020.
  • 3
    Optei pela utilização de nomes fictícios para me referir à interlocutora e sua parentela.
  • 4
    Como Ruth chamava o amplificador de voz portátil que utilizava nos atos nessa época.
  • 5
    Conforme o levantamento que realizei durante o doutorado, o território ameaçado pela venda da área no Morro abrangia sete Vilas: Vila Santa Rita, Vila Figueira, Vila União Santa Teresa, Vila Ecológica, Vila Gaúcha, Vila Prisma e Vila Padre Cacique. Outras pesquisas falam em quatro (Azevedo 2016AZEVEDO, Karla Fabrícia Moroso do Santos de. 2016. Conflitos territoriais e urbanos e as estratégias de resistência popular para promoção do direito à cidade: o caso do morro na cidade de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. :85) e em cinco vilas, contabilizando a Grande Cruzeiro (Misoczky & Misoczky 2010MISOCZKY, Clarice & MISOCZKY, Maria Ceci. 2010. O Morro É Nosso: a vitória de um movimento em luta por justiça social e ambiental. Disponível em http://www.anpad.org.br/admin/pdf/enapg278.pdf . Acesso em 21/01/2021.
    http://www.anpad.org.br/admin/pdf/enapg2...
    ) como parte da área atingida, o que aumenta bastante o número de casas, embora borre algumas divisões importantes na formação da população do Morro e suas diferentes trajetórias de ocupação. Geralmente se fala em número de famílias ou de casas atingidas e, para isso, utilizo o número fornecido pelo Departamento de Regularização Fundiária e Reassentamento (Derer) da Secretaria de Obras, Saneamento e Habitação do Estado do Rio Grande do Sul (Sehabs) durante a posse do Grupo de Trabalho do Morro Santa Teresa em 14 de março de 2016, conforme consta na pesquisa de Karla Azevedo (2016AZEVEDO, Karla Fabrícia Moroso do Santos de. 2016. Conflitos territoriais e urbanos e as estratégias de resistência popular para promoção do direito à cidade: o caso do morro na cidade de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. :130) e no site do Movimento [https://morrosantateresa.wordpress.com/], tampouco um número preciso sobre o número de habitantes. Acesso em 15/01/2021.
  • 6
    Entre as pesquisas e os movimentos que refletem sobre as formas de fazer a luta, no corpo, no espaço e suas diferentes configurações, destaco o trabalho de Comerford (1999COMERFORD, John C. 1999. Fazendo a luta: sociabilidade, falas e rituais na Construção de Organizações Componesas. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Núcleo de Antropologia da Política.) sobre os diferentes significados do termo luta para os trabalhadores rurais; o trabalho de Débora Maria da Silva na consolidação do Movimento Mães de Maio, que vê a luta como um alimento diante do sofrimento da perda do seu filho Edson Rogério, morto por policiais no mês de maio de 2006 em São Paulo. Também destaco o trabalho da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, que tem na luta um projeto de oposição à violência estatal e às violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais; e as pesquisas em que as mulheres da Rede participaram ou contribuíram, nas quais a categoria luta é central, tais como a de Vianna e Farias (2011VIANNA, Adriana B. & FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”. Cadernos Pagu, v. 37.), Farias (2014FARIAS, Juliana. 2014. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ) e Vianna (2015VIANNA, Adriana B. 2015. “Tempos, dores e corpos: considerações sobre a ‘espera’ entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro. In: M. Leite; P. Birman; C. Machado& S. Carneiro (orgs.), Dispositivos Urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV. pp. 405-418. ).
  • 7
    Agradeço as contribuições ao texto sugeridas pelas/os colegas que integraram o grupo “encontro das quintas” em 2019, coordenado por Adriana Vianna, entre eles: Bárbara Dias, Everton Rangel, Iréri Ceja, Laura Carvalho. Também agradeço aos pareceristas da revista Mana pelas críticas ao texto e a Maria Elvira Benítez pelo incentivo para que eu retomasse a escrita.
  • 8
    Em obra homônima, Nyong’o percorre as principais expressões de fabulação em arte e performance negra contemporânea para, em diálogo com os escritos feministas, negros e anticoloniais das décadas de 1960 e 1970 e a teoria queer da década de 1990, olhar para as maneiras pelas quais o estudo da negritude pode reorganizar as percepções de cronologia, tempo e temporalidade, com a tese de que a estética e a expressividade negra já seriam desde sempre queer (2019:3).
  • 9
    Em diálogo com trabalhos de outras autoras — que mostram como as experiências são atravessadas não só pela raça, mas pelo gênero, classe social e sexualidade (Davis 2016DAVIS, Angela. 2016. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial.), descrevendo as nuances das interconexões dos sistemas de opressão (Lorde 2019LORDE, Audre. 2019. Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica Editora.) e produzindo um debate sobre interseccionalidade (Crenshaw 1991CRENSHAW, Kimberle Williams. 1991. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color”. Stanford Law Review, 43 (6):1241-99.) — Patricia Hill Collins (2002COLLINS, Patricia Hill. 2002. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2. ed. New York: Taylor & Francis e-Library. :18) irá pensar nos termos de uma matriz de dominação para examinar como a opressão afeta as mulheres negras.
  • 10
    Este foi o número estimado de pessoas atingidas pelas obras de “gentrificação” do Projeto Renascença em uma região que tinha a abrangência de 427 hectares divididos entre os bairros: Menino Deus, Azenha, Cidade Baixa, Praia de Belas e Medianeira (Souza 2008SOUZA, Anita Silva de. 2008. Projeto Renascença: Um caso de gentrificação em Porto Alegre nos anos 70. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.:45).
  • 11
    O Projeto Renascença foi finalizado durante a administração do prefeito Guilherme Villela (1975-1983) através do Plano C.U.R.A. - Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada (Souza 2008SOUZA, Anita Silva de. 2008. Projeto Renascença: Um caso de gentrificação em Porto Alegre nos anos 70. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.:43).
  • 12
    Sobre a existência de condições extremamente adversas vividas cotidianamente por pessoas pobres sugiro a leitura da tese de Camila Pierobon que em parte reflete sobre uma “exceção ordinária” na vida cotidiana de sua interlocutora, buscando descrever ao longo da pesquisa com Leonor “o que significa viver com condições de pobreza e precariedade” (2018PIEROBON, Camila. 2018. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Leonor e sua ética de combate. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UERJ, Rio de Janeiro.:142).
  • 13
    Conforme a autora, na formação de uma rede de partilha de recursos e cuidados há assimetrias, conflitos e as redes de ajuda mútua podem produzir tanto amizades quanto ódios (2004:14-15).
  • 14
    Ruth está aqui fundamentando a necessidade de compartilhar o cuidado com as crianças a partir do trabalho e da necessidade de “ter com quem deixar” para trabalhar. Já Suzana e Janete, interlocutoras de Camila Fernandes (2011FERNANDES, Camila. 2011. “Ficar com”. Parentesco, criança e gênero no cotidiano. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.: 55-120), evidenciam a sutileza da questão do tempo e da “temporalidade assimétrica” no que tange às responsabilizações do cuidado com as crianças. Elas reclamam que a maternidade inviabiliza a existência de um tempo individual ou de lazer nos momentos de sua vida que não estão cobertos pelo tempo que as crianças passam na creche.
  • 15
    São diversos os trabalhos produzidos sobre esse universo no campo das ciências humanas, destaco aquelas etnografias que a meu ver expõem as dinâmicas de gênero nas políticas públicas de forma mais descritiva, como é o caso da pesquisa de Vianna e Farias (2011VIANNA, Adriana B. & FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”. Cadernos Pagu, v. 37.), Collins (2013COLLINS, John. 2013. “Ruins, Redemption, and Brazil´s Imperial Exception”. In: A. L. Stoler (org.), Imperial Debris: On Ruins and Ruination. Durham: Duke University Press.), Freire (2015FREIRE, Lucas de M. 2015. A máquina da cidadania: Uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais. Dissertação de Mestrado,Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.), Vianna (2015VIANNA, Adriana B. 2015. “Tempos, dores e corpos: considerações sobre a ‘espera’ entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro. In: M. Leite; P. Birman; C. Machado& S. Carneiro (orgs.), Dispositivos Urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV. pp. 405-418. ), Padovani (2018PADOVANI, Natalia C. 2018. Sobre casos e casamentos: afetos e amores através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. Campinas: ‎EdUFSCar.), Nogueira (2016NOGUEIRA, Carolina de O. 2016. “Dá licença, posso entrar?”. Uma etnografia em uma “Clínica da Família”. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UFRJ, Rio de Janeiro.), Araujo (2017ARAUJO, Marcella. 2017. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos, no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, IESP/UERJ.), Araujo (2018ARAUJO, Erick. 2018. A vida em cenas de uso de crack. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. ), Fernandes (2017FERNANDES, Camila. 2017. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.), Carriconde (2019CARRICONDE, Raquel. 2019. “Cair na rede”: Circulações desde os abrigos da cidade. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.).
  • 16
    Combatendo a negatividade associada ao uso de benefícios sociais, Collins (2002COLLINS, Patricia Hill. 2002. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2. ed. New York: Taylor & Francis e-Library. :79) ressalta a importância dos social welfare programs para os afro-americanos, pois permitiu que eles pudessem rejeitar condições de trabalho precárias, exploratórias, trabalhos realizados em nível de subsistência, até então as únicas condições de trabalho disponíveis para seus antepassados.
  • 17
    Sobre as formas de habitação, coletividade e resistências produzidas pelos moradores e moradoras de prédios e ocupações urbanas, frequentemente localizadas nos centros urbanos das grandes cidades, imóveis em ruínas, plantas fabris ou prédios públicos desativados, ver os trabalhos de Santos (2021SANTOS, Priscila Tavares dos. 2021. “Gestão do Sofrimento e Luta pela Moradia por Famílias Trabalhadoras”. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 3:6-20.), Paterniani (2019PATERNIANI, Stella Z. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UnB, Brasília.) e Birman, Fernandes e Pierobon (2018BIRMAN, Patrícia.; FERNANDES, Adriana. & PIEROBON, Camila. 2014. “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares”. Mana [on-line], v. 20, n. 3:431-460. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v20n3/0104-9313-mana-20-03-00431.pdf
    http://www.scielo.br/pdf/mana/v20n3/0104...
    ).
  • 18
    Sobre os percursos dos pobres na cidade, as dinâmicas de circulação e de fazer circular, eu destaco o trabalho de Magalhães (2019MAGALHÃES, Alexandre. 2019. “A ‘lógica da intervenção’ e a questão da circulação. As remoções de favelas como forma de gerir o espaço urbano no Rio de Janeiro dos Jogos Olímpicos. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 31, n. 2:221-242.), a etnografia de Melo (2017MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. 2017. Política dos “improváveis”: Percursos de engajamento militante no Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.) que enfatiza a trajetória da população de rua como motivação política; a pesquisa de Fernandes (2018FERNANDES, Adriana. 2018. “Quando os vulneráveis entram em cena: Estado, vínculos e precariedade em abrigos”. In: J oana Barros, André Dal bó da Costa & Cibele Rizek (orgs.), Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios. São Carlos: IAU/USP. pp. 85-99.) sobre a trajetória das institucionalizações entre a população que circula nos abrigos da cidade do Rio de Janeiro; e a etnografia de Freire (2019FREIRE, Lucas de M. 2019. A gestão da escassez: uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.) que descreve a peregrinação entre aparatos institucionais de pessoas em busca de serviços, insumos e atendimentos de saúde. Além do já citado trabalho de Mallart e Rui (2017MALLART, Fábio & RUI, Taniele. 2017. “Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas”. Ponto Urbe [on-line], n. 21:1-16.).
  • 19
    Ao ressaltar a existência de modos imaginativos para a classificação da violência nos territórios, o autor também discorre sobre o caráter móvel destas fronteiras e zonas de controle que, articuladas aos postos fixos ou checkpoints (2004JEGANATHAN, Pradeep. 2004. “Checkpoint: anthropology, identity, and the State”. In: Veena Das & Deborah Poole (eds.), Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe, NM: SAR Press. pp 67-80.), estariam alojadas na própria carne (2018:409), antecipando violências apenas em determinados corpos.
  • 20
    Sobre a territorialização de ações estatais e policiais e os mecanismos de gestão governamental das mortes nas favelas, ver Barros e Farias (2017BARROS, Rachel & FARIAS, Juliana. 2017. “Political displacements between the periphery and the center through territories and bodies”. Vibrant, v. 14 n. 3:279-298.).
  • 21
    A violência que estigmatiza e homogeneíza direcionada como “acusação social” (Misse 2007MISSE, Michel. 2007. “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro”. Estudos Avançados, 21 (61):139-157.) aos territórios periféricos, vilas e favelas pelos jornais e programas televisivos já foi contestada por diferentes pesquisas brasileiras no âmbito da tradição de estudos sobre subcultura, gangues e delinquência realizados pela Escola de Chicago desde os anos 1930. Conforme destacado por Fonseca, a violência é “uma arma mais ou menos aceita (ou pelo menos esperada) para a resolução dos conflitos” em favelas e vilas, no entanto, como ressalta a autora, “existem limites específicos ao exercício da violência, revelados pelas sanções coletivas” (1994:20). Como descrito em diferentes trabalhos no campo das ciências humanas, essas sanções internas moldam formas de sociabilidade (Silva 2004SILVA, Luiz Antonio Machado da. 2004. “Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1:53-84, jan./jun.), táticas, alianças e “relações de força” (Telles 2010TELLES, Vera. 2010. “Nas dobras do legal e do ilegal: Ilegalismos e jogos de poder nas tramas da cidade”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, n. 5-6:97-126, jul./ago./set.out./nov./dez. ), redes de representações e significações de masculinidade (Zaluar 1994ZALUAR, Alba. 1994. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan/ Ed. UFRJ.), estruturam relações entre indivíduos e seus coletivos e moldam códigos e dinâmicas do “mundo do crime que se torna um caminho lateral às tentativas de integração social” (Feltran 2018FELTRAN, Gabriel de S. 2011. Fronteiras de tensão: Política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp. :137) em periferias, especialmente a partir dos anos 1990.
  • 22
    Programa social direcionado às mulheres moradoras de favelas, instituído a partir do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11707.htm. Acesso em 31/05/2022.
  • 23
    Para uma reflexão sobre a maternidade forjada em geografias de morte, uma maternidade “ultrajada”, ver o trabalho de Rocha (2017ROCHA, Luciane de O. 2017. “Maternidad indignada: reflexiones sobre el activismo de las madres negras y uso de las emociones em investigación activista”. Anthropologica [on-line], v. 36, n. 41:35-56.). Conforme destacado no diálogo de Bueno com a obra de Collins, é a partir da imagem da matriarca que “transfere-se a responsabilidade social para as mulheres negras”, que acabam sendo “consideradas as grandes responsáveis pela miserabilidade e vulnerabilidade das comunidades negras” (Bueno 2019BUENO, Winnie de C. 2019. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação de Mestrado, Unisinos, São Leopoldo/RS. :88) nos núcleos urbanos.
  • 24
    Busco seguir o desafio proposto por Vianna e Lowenkron (2018VIANNA, Adriana B. & LOWENKRON, Laura. 2018. “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens”. Dossiê Gênero e Estado: Formas de Gestão, Práticas e Representações. Cadernos Pagu, 51:1-61.) de “levar a sério a complexidade e a processualidade inerentes ao Estado”, não o tomando “como unidade institucional, ideológica ou ideacional” e considerando que “seus processos permanentes de constituição são sempre e necessariamente sexualizados, generificados e atravessados por afetos” e suas “formas de interdição feitas de e por dinâmicas de gênero”.
  • 25
    Recupero a expressão cunhada por Raquel Rolnik a partir de suas reflexões sobre a questão da moradia diante da ordem “jurídico-urbanística dominante”. Conforme a autora, a condição de permanente transitoriedade caracteriza não só os habitantes do Sul Global onde mais da metade das pessoas são marcadas por “precariedade habitacional e por ambiguidades em relação à posse”, mas também alguns grupos étnicos “em cidades do mundo desenvolvido” (2019ROLNIK, Raquel. 2019. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo.:22).
  • 26
    Sobre o tema dos ilegalismos em sua dimensão urbana, ver as pesquisas reunidas em Azaïs, Kessler e Telles (2012AZAÏS, Christian; KESSLER, Gabriel & TELLES, Vera da Silva. 2012. Ilegalismos, cidade e política. Belo Horizonte: Editora Fino Traço.) e Telles (2010TELLES, Vera. 2010. “Nas dobras do legal e do ilegal: Ilegalismos e jogos de poder nas tramas da cidade”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, n. 5-6:97-126, jul./ago./set.out./nov./dez. .)
  • 27
    Conforme elaborado por Fonseca (2004FONSECA, Claudia Lee Willians. 2004. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. da UFRGS.), a casa enquanto lócus da moradia também reflete e espelha o progresso de aquisição de status da mulher e/ou de sua família, representando uma autoridade moral, principalmente para a mãe solteira, já que é, junto do trabalho, a prova de que ela é capaz de sustentar a criança, mesmo que para “consolidar sua respeitabilidade moral” ela precise do apoio e da garantia de seus familiares (Sarti 1994SARTI, Cynthia A. 1994. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres na periferia de São Paulo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.:99).
  • 28
    No prelúdio da 3ª edição de Becos da Memória (2018), a autora declara que o romance é feito "(con)fundindo) escrita e vida, ou melhor dizendo, escrita e vivência”. Em entrevista publicada em 2020, Evaristo também fala sobre o termo - “quando eu penso em escrevivência, penso também em um histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras escravizadas que tinham de contar suas histórias para a casa-grande [...] a escrevivência é um caminho inverso”. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem/. Acesso em 15/05/2022.
  • 29
    Há uma trajetória longa de artistas que partem de acervos familiares para construir, através da imagem, contranarrativas e críticas à violência da colonização e à representação das pessoas negras no Brasil ao longo da História. Entre eles, destaco a obra Parede da Memória, de Rosana Paulino; as obras de Aline Motta e trabalho do fotógrafo Eustáquio Neves.
  • 30
    Diálogo aqui com o pensamento de Achile Mbembe (2014MBEMBE, Achille. 2014 [2013]. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona.:180-181) quando nos convida a olhar para memória colonial fazendo “uma crítica ao tempo e aos artefatos que pretendem ser os substitutos últimos da própria substância do tempo (estátuas, estelas, monumentos, efígies)”.
  • Financiamento

    A autora agradece pela bolsa de pesquisa fornecida pela CAPES através do Programa Nacional de Pós Doutorado durante o período de 2016-2021.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2021
  • Aceito
    10 Maio 2023
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