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Devoção antropológica e retorno ao mundo: três modos de atenção à vida em Textures of Ordinary

Anthropological devotion and return to the world: three modes of attention to life in Textures of Ordinary

Devoción antropológica y retorno al mundo: tres modos de atención a la vida en Textures of Ordinary

Resumo:

O ensaio dialoga com o livro Textures of Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein, de Veena Das, com destaque para três modos com que a vida aparece em sua obra: o fazer etnográfico como uma vida que se faz junto com seus interlocutores; a vida que se tece no cotidiano e que torna possível habitar espaços de devastação; e a vida dos conceitos, que não existem de forma abstrata, mas se assentam em experiências concretas.

Palavras-chave:
Veena Das; Texturas do Ordinário; Vida; Fazer etnográfico.

Abstract:

The present essay dialogues with Veena Das’s book Textures of Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein by examining three modes that life appears in Das’s work: ethnographic work as a life that is made together with interlocutors; the life that is woven into everyday life and that makes it possible to inhabit devastated spaces; and the life of concepts, that do not exist in abstract form but which are based on concrete experiences.

Keywords:
Veena Das; Textures of Ordinary; Life; Ethnographic making

Resumen:

En este ensayo nos ocupamos de Textures of Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein de Veena Das, examinando tres formas en las que la vida aparece en su obra: el trabajo etnográfico como vida que se hace junto a sus interlocutores; la vida que se entreteje en lo cotidiano y hace posible habitar espacios de devastación; y la vida de los conceptos que no existen de forma abstracta, sino que se basan en experiencias concretas.

Palabras clave:
Veena Das; Texturas de lo ordinario; Vida; Trabajo etnográfico.

Bato à porta da pedra./- Sou eu, me deixa entrar./ Não busco em ti refúgio eterno./ Não sou infeliz./ Não sou uma sem-teto./ O meu mundo merece retorno. (Wislawa Szymborska 2011SZYMBORSKA, Wislawa. 2011. Poemas. Seleção, tradução e posfácio: Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras. )

Os textos de Veena Das são usualmente carregados de imensa potência, um efeito combinado de sua longa etnografia nas periferias de Nova Delhi e de uma escrita que jamais perde a tensão - como em um instrumento de cordas, em que a tensão é modulada para produzir diferentes sons -; no caso de Veena Das, as palavras são moduladas de maneira a fazer passar diferentes formas de constituir e de escutar uma voz. Em Textures of Ordinary, tal potência é aumentada pelo modo como, a cada capítulo, Das produz deslocamentos sobre seu próprio pensamento, sobre o campo da antropologia, sobre interpretações anteriores de cenas etnográficas e sobre nós, leitores.

Este breve comentário não pretende oferecer uma síntese do livro. Nosso objetivo, mais modesto, é registrar certa experiência de uma leitura que, além de oferecer um corpus teórico-metodológico, permitiu-nos refletir sobre os fios que entrelaçaram trajetórias biográficas e incursões etnográficas, nossa formação como pesquisadoras e as relações com nossos interlocutores. Em tom mais pessoal, registramos que parte da intensidade da leitura se deve, ainda, ao fato de lermos a partir do Brasil, em meio ainda ao impacto da virada autoritária institucionalizada no governo Bolsonaro, envolvidas na tarefa de traçar genealogias do momento presente, tendo em conta as formas de sociabilidade e de vida que se reconfiguraram desde os anos 1980, de modo ainda mais dramático nas margens do Estado - na cidade e no campo; entre os pobres, entre a população negra e entre os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos; entre aquelas e aqueles afetados pela violência do evento extraordinário e os afetados pela “[...] destruição que consiste em pequenas, recorrentes e repetitivas crises quase tecidas com a própria vida cotidiana” (Das 2020 a DAS, Veena. 2020a. Textures of Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press., 7).

Dentre tantas possibilidades abertas pela leitura do livro, decidimos destacar alguns aspectos referentes à vida. Pareceu-nos que vida (cotidiana; das palavras; do trabalho ético sobre si e sobre as relações) e vitalidade (a abertura em deixar-se marcar pelo conhecimento e pelo sofrimento do outro e mover-se a partir do encontro) constituem veios importantes pelos quais o livro corre até seus leitores. São três os modos de atenção à vida que destacamos aqui: aquele ligado ao fazer etnográfico, conectado à atenção ao detalhe; a vida que anima o corpo (de escrita) que Veena Das empresta a seus interlocutores, sejam eles as pessoas que encontra na etnografia, sejam antropólogos e filósofos mobilizados por ela, e a dimensão da vida dos conceitos.

O mundo que merece retorno: a atenção ao detalhe

A atenção ao detalhe como elemento central do fazer etnográfico preocupado em transmitir algo da textura do ordinário aparece já na Introdução, desdobrando-se na questão sobre “quanto detalhe e que tipo de detalhe” é necessário ter em consideração (Das 2020 a DAS, Veena. 2020a. Textures of Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press., 2). Tal atenção é indissociável do conceito de cotidiano que orienta a autora: não simplesmente tempo da repetição (ou habituação, como ela dirá na p.123), mas trama densa na qual a vida pode ser destruída ou recriada, reabitada (:123) por meio de um intenso trabalho moral e ético. Como ela afirma, “[o] hábito pode ser a forma da ação humana na qual podemos experimentar a vida como profundamente familiar e, ao mesmo tempo, achá-la profundamente estranha, distante e impessoal” (:125). O detalhe aparece, em diferentes capítulos, como brecha que permite entrever a densidade das relações em que algo é comunicado (ou falha em ser comunicado); mas aparece também como o que permite vislumbrar a opacidade mesma do outro real, em relação viva consigo mesmo e com o mundo (:10).

A atenção ao detalhe opera tanto no estar-junto da etnografia quanto na escrita, relacionando-se ao esforço para perceber e tornar sensível algo do que, de tão óbvio, parece quase transparente e, também, ao compromisso em transmitir, na escrita, a força de vida das palavras e das relações das quais pesquisador e interlocutor participam. São estes aspectos que desdobram a atenção ao detalhe em uma escrita etnográfica aberta a um excedente de descrição, uma forma de registrar, no texto, o entrecruzamento de tempos, “costumes, hábitos, regras e exemplos” (:38-9) em que uma forma de vida emerge e em que um sujeito moral e ético se constitui.

No fazer da pesquisa e da escrita de Veena Das, torna-se palpável o quanto a literatura, a filosofia, a antropologia e a etnografia são, para ela, indissociáveis de modos de conceber e perscrutar formas de vida, cotidiano, ética e a atenção aos detalhes. Em nossa compreensão, trata-se de um profundo questionamento a modos de fazer ciências sociais, a partir do que ela nomeou como “modo antropológico de devoção ao mundo” (:16).

Retornar as palavras ao lar: escuta e escrita da vida

Em certa passagem do livro, Veena Das comenta sobre Sheela, uma de suas interlocutoras, cuja história foi marcada pela violência sexual. Ao falar sobre o dia a dia de Sheela, em suas atividades de cozinhar, costurar, buscar água, Das registra sua incerteza quanto a se ela havia encontrado um espaço no qual “as artérias quebradas da sua infância podiam ser restauradas” ou se a percepção de viver em um mundo que é incapaz de ver o que está diante dos olhos, como a violação perpetrada contra ela quando criança, havia destruído qualquer possibilidade de construir uma região de intimidade consigo mesma (Das 2020aDAS, Veena. 2020a. Textures of Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press., 91).

Em momentos do texto como o descrito acima, tornou-se inevitável revisitar vários de nossos próprios encontros com sujeitos da pesquisa, nos momentos em que a vida das pessoas de carne e osso excedia os conceitos e em contextos nos quais a experiência transbordava a epistemologia disponível, fazendo a teoria escassear. Trata-se de momentos em que nos vimos diante de uma encruzilhada: cair na armadilha de tentar encobrir aquilo que não compreendíamos com conceitos ou admitir que o que testemunhávamos não se encaixava em um código coerente de símbolos, um conjunto estável de valores ou um pacote de imperativos éticos universalmente aplicáveis. Em Textures…, Das nos convida a rever essas encruzilhadas e a relembrar quais caminhos tomamos. Por vezes, é provável que tenhamos cedido à razão “demoníaca” (:266) e formatado o que não compreendíamos em algum corpus teórico-metodológico previamente disponível, como forma de apaziguar nossas dúvidas. Em outros momentos, encontramos coragem para confessar a fragilidade das teorias e reconhecemos a obscuridade das possibilidades inscritas nas formas de vida.

Com Das, aprendemos a reconhecer que, mesmo sob as violências cotidianas mais pervasivas, há sujeitos ocupados o tempo todo em produzir e renovar a vida por meio de pequenas decisões morais, em cenas aparentemente banais, consideradas comezinhas demais para serem reconhecidas pela abstração metafísica. Das nos mostra, por exemplo, o empenho da esposa em criar minúsculos subterfúgios para evitar o rompante de irritação do marido quando chega em casa (Capítulo 3) e as contorções de um casal composto por um homem hindu e uma mulher muçulmana, que recria todos os dias seu lugar de afeto sob a ameaça da não plausibilidade religiosa de sua relação amorosa (Capítulo 4). Atenta a esses momentos de incerteza, das pessoas e da pesquisadora, Das compartilha conosco modos de escrita em que a dimensão viva das relações e do tempo, parte da textura do ordinário, é experimentada no esforço de traduzir tais densidades em palavras.

Essa descida ao ordinário, como Das propõe em seu diálogo com Wittgenstein desde Vida e palavras (2020 b DAS, Veena. 2020b [2007]. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Editora Unifesp.) e adensa em Textures…, produz lugar para a vida e para a vida cotidiana nas ciências sociais e no debate acadêmico.

Batidas à porta da pedra: nossa vida com os conceitos

Enquanto preparávamos este texto, o poema de Szymborska nos ajudou a encontrar caminhos para entrelaçar aqui alguns dos muitos fios que a leitura de Textures… puxou. O poema consiste em um diálogo com uma pedra que a poeta deseja visitar, curiosa com as inúmeras possibilidades que ela guarda. Ao longo da conversa, a poeta tenta de todo modo convencer que seu desejo é legítimo e inócuo, mas a pedra, imperturbável, a rejeita, apenas para revelar, ao final, que nenhuma porta guarda sua entrada.

A estrofe que escolhemos como epígrafe, e que nos ajudou a dar um título a nosso ensaio, consiste em mais uma rodada de súplica em face da clausura da pedra e evoca a imagem aprendida com Wittgenstein e retomada por Das no capítulo 1 de Textures...: aquela da pá entortada que, ao encontrar uma pedra-angular, ao invés de conduzir à explosão de força, leva a um “gesto de espera”, de “permitir que o conhecimento do outro me marque” (Das 2020aDAS, Veena. 2020a. Textures of Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.: 57). Imagem forte e delicada, que nos diz dos modos com que Veena Das se abre, no campo, para a dimensão de “incognoscibilidade do mundo [social]” (:46) e para a opacidade do outro real. Nos encontros com interlocutores ou com autores, interessa a ela investigar “a maneira pela qual os conceitos são ou se tornam vulneráveis à experiência” (:8).

Com a questão da vida dos conceitos, que ela trata de forma mais extensa nos últimos capítulos do livro, registramos nossa compreensão de que, em seus gestos de habitar a antropologia, Veena Das abre novos caminhos para um dos impulsos que tem marcado o pensamento social latino-americano (e, em grande medida, também o pensamento produzido nas margens do Ocidente euro-atlântico): aquele de operar contra, com e por fora de arcabouços teóricos e metodológicos canônicos para investigar o enigma de nossa experiência social, de modo a não deixar de fora toda a vida que transborda as ferramentas conceituais constituídas alhures. Nesse sentido, a compreensão do que somos passa pelo cruzamento de conceitos (Capítulo 10): por um modo de trabalho que não se contenta em “fazer mediações” de teorias forjadas a partir de outras formas de vida, mas que o tempo todo se coloca em relação viva, por mais arriscada que seja, com esse corpo de pensamentos e palavras que também veio a nos constituir.

Assim, desdobrando o encontro entre Das e Szymborska diante da pedra, entendemos que esse modo antropológico de devoção ao mundo; o trabalho de constituir um corpo de escrita capaz de registrar, a um só tempo, o sofrimento, a opacidade e o trabalho ético dos sujeitos no cotidiano e a instabilidade viva de nossa própria compreensão das coisas; e os gestos (de escuta e de espera) quando a pá entorta, conectam-se todos a esse diálogo incessante com o mundo, do qual se participa e ao qual sempre se pretende retornar. Como Didier Fassin (2018FASSIN, Didier. 2018. Life: A Critical User’s Manual. Cambridge: Polity Press.) aponta, ao focarem na análise das estruturas, dos processos e das classes, as ciências sociais negligenciaram a vida. E se as categorias teórico-analíticas das epistemologias do Norte Global por vezes objetificaram e enrijeceram a vida, nas etnografias de Veena Das é a vida mesma que retorna e solicita uma entrada, embora saiba que a pedra não tem porta. O mundo feito nas e pelas margens merece um retorno pois, na devastação das múltiplas violências que se produzem nas periferias da Índia ou do Brasil, a vida se tece em uma obstinação discreta que confronta as palavras, que podem se encharcar ou se esvaziar de significados, em uma relação tensa em que a vida as excede. Conforme Das nos mostra em diferentes capítulos, em sua obsessão, as palavras podem proliferar em rumores de pânico, podem petrificar experiências pulsantes, podem ausentar-se quando a dor não pode ser pronunciada. Ou podem, também de forma surpreendente, lutar para emergir, fazer sua aparição, inventar alguma coisa e produzir um espaço de habitação em que o outro as acolhe, dando morada às palavras de modo que elas não fujam, como na imagem precisa de Das, desembestadas como cavalos selvagens (Das 2020aDAS, Veena. 2020a. Textures of Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.: 81).

Referências

  • DAS, Veena. 2020a. Textures of Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein New York: Fordham University Press.
  • DAS, Veena. 2020b [2007]. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Editora Unifesp.
  • FASSIN, Didier. 2018. Life: A Critical User’s Manual Cambridge: Polity Press.
  • SZYMBORSKA, Wislawa. 2011. Poemas Seleção, tradução e posfácio: Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Declaração de Autoria

    Declaramos, para os devidos fins, que o presente trabalho foi escrito por nós em co-autoria, com equidade de contribuição nas etapas de formulação e redação do texto.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2022
  • Aceito
    08 Jun 2023
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