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A política e a poética de Célia Xakriabá: três discursos da primeira deputada indígena eleita por Minas Gerais (2022)

Resumo

Até o ano de 2022, só haviam sido eleitos dois deputados federais indígenas no Brasil: Mário Juruna, em 1982, e Joênia Wapixana, em 2018. O ano de 2022 é um marco histórico, contando com um recorde de candidaturas indígenas e a eleição de importantes lideranças, como Célia Xakriabá e Sônia Guajajara. Publicamos, aqui, três discursos de Célia Xakriabá, gravados em eventos de sua pré-campanha a deputada federal pelo estado de Minas Gerais. A publicação é um registro do papel central ocupado pelas mulheres indígenas nas lutas progressistas do país e na política institucional brasileira.

Palavras-chave:
Célia Xakriabá; Eleições 2022; Movimento indígena.

Abstract

Until 2022, only two indigenous federal deputies had ever been elected in Brazil: Mário Juruna (in 1982) and Joênia Wapixana (in 2018). 2022 thus marked a historic milestone, with a record number of indigenous candidacies and the election of important leaders such as Célia Xakriabá and Sônia Guajajara. Here, we publish three speeches by Célia Xakriabá, recorded during events of her pre-campaign for federal deputy in the state of Minas Gerais. Our publication testifies to the central role played by indigenous women in the progressive struggles of Brazil and in Brazilian institutional politics.

Keywords:
Célia Xakriabá; 2022 elections; indigenous movement.

Resumen

Hasta el año 2022, solo se habían elegido dos diputados federales indígenas en Brasil: Mário Juruna en 1982 y Joênia Wapixana en 2018. El año 2022 marca un hito histórico, con un récord de candidaturas indígenas y la elección de importantes líderes como Sônia Guajajara y Célia Xakriabá. Aquí publicamos tres discursos de Célia Xakriabá, grabados en eventos de su precampaña a diputada federal por el estado de Minas Gerais. Esta publicación es un registro del papel central que ocupan las mujeres indígenas en las luchas progresistas del país y en la política institucional brasileña.

Palabras clave:
Célia Xakriabá; Elecciones 2022; Movimiento Indígena.

Célia Xakriabá

Apresentação

Ana Paula Rodrigues

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Célia Nunes Corrêa, mais conhecida como Célia Xakriabá, tem 33 anos, é professora, antropóloga, poeta e a primeira pessoa indígena eleita deputada federal pelo estado de Minas Gerais, com mais de 100 mil votos. A trajetória de Célia é coletiva, ancestral, e os Xakriabá são um povo de organização política forte, dos mais velhos à juventude. Em 2004, elegeram o primeiro prefeito indígena de Minas Gerais (e segundo do Brasil), José Nunes de Oliveira, filho do cacique Rosalino Gomes de Oliveira, assassinado por pistoleiros em 1987, junto com as lideranças Manuel Fiuza e José Pereira Santana. Somente após essa chacina, naquele mesmo ano, a Terra Indígena Xakriabá foi homologada. Atualmente, um grupo Xakriabá vive em Cocos, na Bahia, mas a maioria da população está localizada na Terra Indígena Xakriabá e no território contíguo, a Terra Indígena Xakriabá Rancharia, homologada em 2003, no município de São João das Missões, região Norte de Minas Gerais. Os Xakriabá são o povo indígena mais populoso do estado, com cerca de 11 mil pessoas, e continuam na retomada de seu território original, com o objetivo de chegar ao rio São Francisco, do qual foram apartados ao longo de séculos de colonização.

Sr. Valdemar Xakriabá, doutor em Educação por notório saber pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e importante liderança de seu povo, afirma que “A única herança que um índio deixa para seu filho é a luta”. Célia Xakriabá tem honrado essa herança, com uma história pioneira em muitos aspectos, ressaltando-se sua trajetória educacional, desde sua formatura na primeira turma de ensino médio do território Xakriabá, regida exclusivamente por professores indígenas, até sua posição de vanguarda como primeira estudante indígena de doutorado da UFMG, na área de Antropologia. Em múltiplos espaços, ela busca romper com o “racismo da ausência” que identifica em relação aos povos originários, inclusive na política. Racismo encarado de frente no ano de 2022, que se apresentou como um marco na crescente organização do movimento indígena para ocupar a política institucional, o que pôde ser observado no 18º Acampamento Terra Livre, ocorrido de 04 a 14 de abril de 2022, com o tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”. Até esse ano, só haviam sido eleitos dois deputados federais indígenas: Mário Juruna, em 1982, e Joênia Wapixana, em 2018. Em 2022, além de Célia Xakriabá, Sônia Guajajara também foi eleita deputada federal e as candidaturas indígenas tiveram um aumento expressivo: 119% em relação a 2014, contando-se todos os cargos, com destaque para a aproximada paridade entre os gêneros, sendo 45% de candidaturas femininas.1

Publicamos, aqui, três discursos de Célia Xakriabá gravados durante pesquisa de campo em eventos de sua pré-campanha a deputada federal. O primeiro foi proferido na plenária Candidaturas Indígenas no 18º Acampamento Terra Livre, em Brasília, o segundo é seu discurso de lançamento da pré-candidatura, evento ocorrido em Belo Horizonte, e a terceira fala foi gravada no evento Papo na Esteira, movimento de pré-campanha no qual Célia fez uma chamada aberta e pública para quem quisesse discutir e construir junto seu programa de governo. Os textos apresentados são transcrições de registros gravados em áudio e vídeo e não foram feitas correções visando a um português formal: buscou-se manter ao máximo o português xakriabá, com seu vocabulário, sintaxe e cadência próprios. Destacamos que o português indígena vem ganhando cada vez mais espaço no debate atual sobre diversidade linguística no Brasil e a própria Célia Xakriabá faz questão de utilizá-lo em suas falas e em suas produções acadêmicas escritas. No último texto, há um canto em akwe᷉, língua que está em processo de retomada e cuja escrita alfabética está em construção. A transcrição do canto está fundamentada no trabalho de Liliane Mota (2020MOTA, Liliane Rodrigues. 2020. Estudo sobre o léxico Akwe᷉ Xakriabá: uma proposta de escrita e uma chamada para a revitalização da língua. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Formação Intercultural para Educadores Indígenas, Habilitação em Língua, Artes e Literatura), Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), acadêmica xakriabá, que apresenta uma proposta de escrita ao documentar diversos cantos em akwe᷉ xakriabá.

A primeira versão destas transcrições foi escrita em prosa, mas, inspirada pela leitura de Tedlock (1991TEDLOCK, Dennis. 1991. The spoken word and the work of interpretation. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.), optou-se por uma transcrição que reproduzisse, na medida do possível, o ritmo da execução oral, com suas características poéticas presentes nos dois primeiros discursos e em trechos do último. Tedlock (1991TEDLOCK, Dennis. 1991. The spoken word and the work of interpretation. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.) mostra que não é trivial o caminho entre ouvir e grafar uma fala, sugerindo estratégias para que possamos trazer ao texto escrito recursos visuais que permitam expressar elementos da oralidade. Seguindo estas reflexões, nos dois primeiros textos foi adotada a estrutura em linhas ou versos, de modo que cada mudança de linha representa uma pequena pausa de Célia, sendo as pausas maiores representadas por espaços maiores entre os versos, na tentativa de nos aproximarmos da cadência de sua voz, elemento de extrema importância em seus discursos. As duas primeiras falas foram proferidas em cima de um palco, já a terceira é retirada de uma reunião com apoiadores, realizada em sua casa, o que tem suas consequências na entonação da voz e no ritmo, por isso, optamos por apresentar o último texto em prosa. Nas três transcrições, as ênfases dadas por Célia estão em itálico e gestos essenciais foram descritos entre parêntesis. Momentos de grande intensidade poética foram grafados em uma fonte diferente do restante do texto como forma de destaque.

Conforme foi dito, Célia Xakriabá é poeta e seus discursos acadêmicos e políticos são permeados por essa relação com as palavras, que também é uma herança dos Xakriabá, conhecidos por fazerem versos nas situações mais variadas, como festas, apresentações escolares e também nas mobilizações políticas das quais participam. É possível perceber que as palavras de Célia são quase puxadas umas pelas outras e, em suas falas, sempre aparecem trocadilhos, rimas e versos. O canto também está sempre presente, bem como a língua akwe᷉. Célia reivindica, no entanto, que não se reconheça apenas a força poética dos povos indígenas, mas também sua força política. Em suas próprias palavras, o que faz é “luta e melodia”. Embora a potência da oralidade não possa estar contida nessas transcrições, ela reverbera nestas palavras, que testemunham o ano de 2022 como um período no qual as mulheres indígenas ocuparam um papel central nas lutas progressistas do país e como um ano marcado pela emergência indígena na política institucional brasileira. Nas palavras certeiras de Célia Xakriabá: “é hora do cocar”!

Três discursos

Célia Xakriabá

I

Discurso proferido na Plenária Campanha Indígena

[Este discurso foi realizado no dia 12 de abril de 2022, em Brasília, Distrito Federal, no 18º acampamento Terra Livre, na plenária intitulada Campanha Indígena.]

Boa tarde, parentes (senta-se na beirada do palco). Eu queria descer, mas eu sou bem pequena, não sei se dá pra pular… Porque eu lembro que as liderança Xakriabá quando eu tinha seis anos de idade, que eu entrei na escola indígena, umas pessoas chegaram no território e disse -ficou o dia inteiro estudando aquela reunião entre cacique e lideranças (liderança, cacique, estão ali atrás) e juventude - e falou: “Mas eu não entendi quem é aqui o cacique Xakriabá. Eu não entendi quem é a liderança dessa aldeia”. E eu perguntei pra ela por que ela não tinha entendido. Tava todo mundo trabalhando com sementes tradicionais, falando da importância, fazendo alguns projetos, sentado no chão, e ela falou que era porque a liderança em nenhum momento tava em maior lugar de destaque. Quando meu povo, cacique e liderança, junto com juventude também, decidiu me emprestar pra mais essa missão, é desse lugar que eu me coloco. A melhor liderança política, a melhor liderança de povo, não precisa ser aquela que mais se destaca, mas aquela que desce pro chão e que mais se mistura. Nesse momento eu quero ter muita humildade, porque foi assim que trilhei na escola indígena, quando os primeiros professores indígenas assumiu as salas de aula no estado de Minas Gerais. E as lideranças falava “a escola ajuda a demarcar território”, e eu não entendia naquele momento. Foi mais tarde que eu entendi que, na verdade, o que os povos indígenas de Minas Gerais fizeram com a escola foi o amansamento da escola. E nesse momento nós queremos amansar a política. Nesse momento nós queremos também amansar o Congresso Nacional. E que se não tem lugar para todo mundo, nesse lugar do microfone também, o que nós comprometemos é que essa não é uma candidatura individual, de Célia Xakriabá, é uma candidatura da coletividade, da espiritualidade, da ancestralidade. E que se nós conseguirmos chegar dentro desse Congresso Nacional, nós nos comprometemos a transitar desse Congresso Nacional para o Congresso Ancestral. Mas não se pode transitar do Congresso Nacional para o Congresso Ancestral sem a presença de muitos cocares, sem a presença da diversidade. E o que nós já estamos dizendo é que se nós conseguirmos chegar lá, é que no dia da posse nós queremos fazer um janeiro do Acampamento Terra Livre. E se não couber do lado de dentro, que a gente faça do lado de fora. Porque nós precisamos dessa força. E quando desse momento, desde a educação, trilhando dentro desse caminho, as pessoas me perguntava se eu fazia parte daquela primeira turma de professores ali do estado de Minas Gerais, eu falo que não, mas eu tive grande sorte de ter não somente bons professores na escola, mas de reconhecer e considerar que minha primeira escola, a minha primeira Universidade, foi e continua sendo a luta. Desde os 13 anos de idade (Cacique Domingos tá ali...), que foi quando eles me chamaram pela primeira vez. - O primeiro lugar que eu saí do território foi aqui em Brasília. E foi quando teve um momento de depoimento no Congresso Nacional e eles me falaram “É ocê que vai fazer esse depoimento”, e eu falava “Mas como assim? Eu sou só uma criança!” Naquele momento. E aí eu percebi desde muito cedo que a luta, ela escolhe a gente. Não importa o que a gente acha que tem pra falar, mas a luta usa a gente pra ela dizer. Porque muita das vezes, principalmente nós mulheres indígenas, nós também temos sonhos, nós também temos sonhos que parecem individual, embora a luta e o sonho sejam coletivo. E eu falo que até hoje ainda não consegui ter tempo de gerar filhos no útero do meu corpo porque sempre que eu penso parar, estar mais presente dentro da minha casa, dentro da minha família, eu sou chamada a uma nova missão para continuar gerando filho no útero da luta. É importante dizer, reconhecer, que não é somente sobre os três Poderes. Assim como quando tava julgando o Marco Temporal, no mês de setembro, nós falava: “vamo para a Praça dos Três Poderes”. Entender que não é somente sobre Poder Legislativo, Executivo e Judiciário: a luta é o quarto poder. E nós acreditamos, que se nós transitamos com essa presença fortalecedora, dos parentes indígena, dessa candidatura pela terra, dessa candidatura com o povo e para o povo, nós podemos ter a luta como primeiro poder. Nesse momento eu me coloco bastante à disposição. Embora seja o estado que eleja, (eu conto muito com a força dos parentes indígenas do estado de Minas Gerais, assim como meu povo Xakriabá que mais uma vez me empresta pra essa missão), mas eu tenho dito que a luta é para todo mundo. Hoje, eleger candidaturas indígena não é somente um compromisso dos povos indígena, é saldar uma dívida histórica. E quando viram pra nós e fala: “Será que não é muito cedo?” Nós falamos que são 522 anos de luta e resistência! Se isso é estar cedo, nós não sabemos o que é estar tarde. Nós não podemos permitir que as pessoas elas queiram somente tratar das nossas pautas, mas se incomodem com a presença de nossos corpos e de nossas vozes. E hoje mais cedo eu transitava aqui no Acampamento Terra Livre com a companheira Áurea Carolina, mulher negra, deputada, mulher mais votada do estado de Minas Gerais, e que humildemente neste momento diz: “Eu estou entregando um ciclo importante da minha vida e nesse momento eu acredito que é numa transição da bancada do turbante pro cocar que nós vamos fazer a diferença”. É muito importante que, questionando esse lugar de privilégio, porque a cada vez que se coloca nossas candidaturas indígenas à disposição, mas mesmo dentro dos apoio de pessoas que sempre nos apoiaram na luta, mas que não quer nossa presença, nós também temos que começar a questionar. Nesse momento, eu estou pré-candidata a deputada federal pelo PSOL em Minas Gerais e nós acreditamos que não existe outra saída. Ou as pessoas nos escute agora, o chamado dos povos indígenas, o chamado da terra, ou o planeta não vai nos perdoar. Quando pergunta: “Mas vocês estão preparado? Você é tão jovem…Você já foi vereadora? Você já foi prefeita da sua cidade? Você já foi senadora? Você já foi promotora de justiça?” Nós somos promotores de justiça porque nós aprendemos na luta. Eu nunca fui dentro de uma Universidade de Direito, mas nós acreditamos que não há processo de luta que não gere conhecimento. E aqui estão todas as pessoas preparadas engajadas, com o sentimento da terra. E chegou a hora, parente! Chegou a hora. Não é fácil colocar os nossos corpos à disposição. Não é fácil adiar por vários momentos gestar um filho para emprestar pra gerar filhos para o útero da luta. Mas agora nós fazemos um chamado de verdade: vote em alguém que esteja junto com você!

II

Discurso de lançamento da pré-candidatura a deputada federal

[Este discurso foi proferido no dia 11/07/2022, em Belo Horizonte, Minas Gerais. No momento, o espaço “Estação do Peixe” estava lotado por apoiadores, pessoas do movimento negro, do movimento LGBTQIA+, do PSOL, partido de Célia, e também por indígenas de diversos povos - especialmente um grupo que veio do território Xakriabá - que trouxeram Célia pela rua enquanto entoavam cantos em um cortejo ritual.]

Sementes Gerais. Águas Gerais. Que quando pergunta: de onde vem a força dessa menina? Eu sou jovem, eu sou criança, eu sou semente, eu não sou exatamente anciã, mas eu sou onciã. Quando o governo diz: “Olha Sônia (vira-se para Sônia Guajajara, a seu lado), eles estão se tornando mais humanos, tá até com o celular filmando nois”. E nós dizemos que somente sabe ser humano aqueles, aquelas, que sabe ser onça, que sabe ser pássaro, que sabe ser água. Somente sabe ser humano quem sabe ser bicho. Quem tem a capacidade de bichificar, bicho e ficar, bicha e ficar. Nós somos aquelas que não foi matada totalmente na invasão do Brasil. Nós somos aquelas que mesmo com o estupro de mulheres indígena, mulheres preta… Nós somos aquelas que insistimos na festa sem esquecer que permanecemos em guerra. Que retomamos a terra roubada, a casa das ocupações, porque nós sabemos que direito é aquilo que se arranca quando não se tem mais escolha. Nós somos aquelas que já não podemos, porque nunca estivemos em silêncio. Porque agora a Terra está mais do que falando: Ela está gritando. Nós somos aquelas que no dia de hoje, quando estupram uma mulher e as pessoas não considera que isso é um fato político, existe algo de errado não somente com o Governo Bolsonaro, mas com aquelas pessoas que não está se indignando com a dor dos parentes Guarani Kaiowá, da minha companheira Naranda MC que está aqui hoje. E que diz que no ano de 2022 não existe fato político… Se vocês acham que ser um país da homofobia, que mata nossos corpos aqui presente, não é fato político... O que é? Se vocês não acham que é fato político quando derruba casas nas ocupações... Porque nós sabemos o que é reintegração de posse, nós sabemos o que é ordem de despejo, não só pela lei, porque nós dormimos nesse território. E aquelas pessoas que por algum motivo não acordar agora, não vão poder falar depois. Nós sabemos porque nesse momento as pessoas falam: “Está cedo, não é o seu momento, não dá pra esperar mais um pouco?” Todo mundo pode esperar, mas nós já fazemos mais de 522 anos de luta e resistência. “Mas vocês são marinheiras de primeira viagem, Célia, Sônia, a Bancada do Cocar, porque vocês nem têm mandato”. Nós somos sim marinheiras das primeiras viagens, das primeiras viagem: E nós já fizemos muitas! Nesse momento estar como pré-candidata é porque num governo de quatro anos, um governo antiambientalista, anti a diversidade, anti LGBTQIA+, anti os povos indígenas, anti o povo que faz luta nas ocupações, nós somos os principais ministros do meio ambiente, porque nós sustentamo! A Serra do Curral é um caso de repercussão geral porque tem a SAM lá no norte de Minas. A Serra do Curral é um caso de repercussão geral porque tem Macacos aqui pertinho. A Serra do Curral é um caso de repercussão geral mas existe o povo de Brumadinho e Mariana o povo Krenak que não devem ser esquecido. Nesse momento, quando fala “Por que são vocês que têm condição? Vocês estão preparada?” Porque somos nós que não temos as mãos sujas nem de lama, nem de sangue pela mineração! Quantos de vocês gosta dos povos indígenas? Levanta a mão! Quantos de vocês acham que nós somos a solução número um para as crises climáticas, levanta a mão! Agora, quantos de vocês, a não ser os parentes indígena, já votaram em candidaturas indígenas levanta a mão... Ainda dá tempo! Porque nós precisamos eleger o governo Lula para retomar não somente o ministério do Meio Ambiente, retomar e fazer brotar novamente o Ministério da Cultura, mas sobretudo o mistério da cultura. Pra fazer implementar pela primeira vez o Ministério Indígena. Mas nós precisamos muito mais, nós precisamos de uma bancada combativa no Congresso Nacional, para transitar no Congresso Ancestral e pela primeira vez eleger uma bancada dos movimentos sociais, do MTST, MST e o movimento indígena, inclusive para não darem o golpe. Nós precisamos, porque embora elas sejam candidaturas que precisam ser comprometidas e responsabilizadas pelo estado de Minas Gerais, São Paulo, Roraima, dentre outros, ela é uma eleição territorial, ancestral, estadual, mas também internacional. É uma pré-candidatura muito mais do que pra chegar somente ao planalto central, mas para defender o planeta central que é a Terra. Cada um de nós temos uma emergência, mas o tempo é agora. Eu sei que nós temos uma pauta emergente pra ciência de pé, pra floresta de pé, para os corpos LGBT de pé, para as ocupações de pé, pra nós povos indígenas que não suportamos mais sangrar. - Não queremos mais aquela estátua, onde ela rouba e sequestra nossa história - Mas, nesse momento, nós chamamos cada um de vocês, porque nós somos guardiãs de todos os biomas, e não vai existir nenhum recorte de pauta se não existir planeta. Nós somos bandeiras vivas e precisamos fazer esse chamado. Porque aqueles e aquelas que não acreditam na chance das candidaturas indígenas não acreditam no próprio Brasil. No final de semana, quando matam um militante do PT, a gente sabe o que é ter nosso corpo violentado, nós sabemos que no ano passado nós fizemos quatro mobilizações em Brasília, nós fomos o primeiro movimento a reagir, porque o governo Bolsonaro escolheu nós como inimigo número um. E a primeira pessoa que o governo Bolsonaro atacou foi uma mulher, e as pessoas diz “Quem foi essa mulher?” Foi a Terra! E quando ataca a terra ataca todo o útero das mulheres indígena, das mulheres preta, das mulheres das ocupações, ataca a cidade, ataca o território. Porque nesse momento nós precisamos retomar Minas Gerais, os povos gerais. Minas Gerais é o útero, é onde gera água também pra o planeta. Nesse momento não existe outra alternativa, do que nós encampar com força. Como diz a Maria Bethânia, eu não acredito numa política que não fala em meio ambiente, que não fala em água. E nós falamos de água, nós falamos de meio ambiente, porque não é meio ambiente e nois: nós somos a totalidade da vida. E nós estamos preparadas. Sabe por quê? Nós preparamos na luta, às vezes passando fome, mas nós temos o alimento mais importante, que nos alimentamos de espiritualidade. Não lutar com a mesma arma do inimigo nunca significou que nós estamos desarmada. Nossas vozes ancestrais é à prova de bala. Todo o tempo eles tentam projetar armas de fogo sobre nossos corpos, sobre o corpo da diversidade, mas se eles decidiram passar com a boiada em cima de nossos territórios e dos nossos direito, só me desculpa, porque nós decidimos passar com a diversidade e com o nosso cocar. E pra finalizar, dizer que ainda dá tempo. O mundo está adoecido, mas como diz a companheira maravilhosa Leandrina, que disse que não se pode curar o mal com a mesma enfermidade, nós precisamos de um outro remédio, que vem da espiritualidade. Nós povos indígenas não somos 1% da população brasileira, somos 5% da população do mundo, protegemos em torno de 85% da biodiversidade. Vocês querem prova maior de que nós estamos preparadas pra ocupar e reflorestar o Congresso Nacional? Não foi fácil tomar essa decisão, não é fácil ficar longe das nossas múltiplas territorialidade. Mas nesse momento nós colocamos a disposição porque nós temos uma tarefa coletiva: nós somos a última geração que pode fazer alguma coisa pra barrar a mudança climática, e isso não dá pra adiar. A hora é agora! E pra finalizar mesmo, nós, que sabemos que direito é aquilo que se arranca quando não tem mais escolha, nós queremos chegar lá incomodando. Porque nossa principal vestimenta nós queremos governar com a tinta do urucum, do jenipapo e com a força do maracá. Porque nós somos o povo que resiste pela força do cantar e do reencantar. Antes das Minas Gerais e do Brasil da coroa existe o Brasil e as Minas Gerais do cocar.

III

O mi(ni)stério da cultura

Fala no evento “Papo na Esteira”

[Fala realizada no evento “Papo na Esteira”, Belo Horizonte, Minas Gerais, em 27 de julho de 2022. O evento ocorreu na “Embaixada do Cocar”, casa que foi a base para mobilizações e morada de Célia e apoiadores ao longo do período de pré-campanha e campanha eleitoral.]

Nandoã paraiá nandoã huminixã Nandoã paraiá nandoã huminixã Heina heina heina Heina heina heina Heina heina heina Heina heina heina Nandoã caipora hintã gõny deym kãynkã Nandoã caipora hintã gõny deym kãynkã Já kãynkã ukã ukã cudaió Já kãynkã ukã ukã cudaió Heina heina heina Heina heina heina Heina heina heina Heina heina heina Dizer que a nossa voz é ancestral. Ela é à prova de balas, a cada vez que tentam projetar armas sobre nossos corpos. Quantas vezes ali em Brasília, em processos de retomada, quando nós pensou que já não poderia mais combater a repressão policial, foi pela força do maracá que nós resistimos. Até pouco tempo, eu nunca tinha sustentado a mão no microfone, porque o primeiro microfone que eu conheci foi o nosso maracá. A primeira tinta que eu conheci não foi a tinta da caneta, foi a tinta do urucum e do jenipapo. A nós que viemos lá do território, do Norte de Minas Gerais, as pessoas sempre pergunta “Uai, tem índio em Minas?”, “Vocês são índios de verdade?” Dizer que o genocídio não foi de mentira, as mulheres indígena foram estupradas não foi de mentira, o Brasil foi invadido não foi de mentira. Então, toda a nossa luta é de verdade.

E as pessoas quando perguntam se nós falamo a nossa língua não reconhece, não considera, que houve uma política de extermínio linguístico. E hoje nós falamos que não exatamente uma cultura, uma língua, que vai sustentar esse território, mas na verdade, é todo o território que sustenta uma cultura, uma língua e uma tradição.

Não conseguiram nos matar na totalidade na invasão do Brasil, nós eramos mais de 5 milhões, hoje não somos nem 1% da população brasileira.

Não conseguiram nos matar na totalidade na ditadura militar, mesmo aqui nos Krenak existindo um reformatório Krenak de tortura dos povos indígena, da ditadura que matou mais de 8 mil indígenas.

Mesmo não conseguindo nos matar na totalidade, no projeto de aculturação, quando Darcy Ribeiro já se preocupava, em pleno século XXI, dizendo que já não era pra existir mais indígenas, porque naquele momento existia uma emergência para que nós povos indígenas, que já iríamos ser exterminados.

Mesmo não conseguindo nos matar com vários projetos, ultimamente, principalmente nos últimos quatro ano, têm tentado nos matar pelo projeto de agriculturação.

Tentando impor um modo de ocupar o território que não é o nosso, pela monocultura, pela agropecuária, pela expansão agrícola, não levando em consideração nosso modo de vida.

Nós morremos coletivamente duas vezes, quando nos nega a identidade e quando nos nega o território. Porque não é só sobre permanecer viva, porque quando morre a nossa língua, quando morre a nossa cultura, quando morrem nossos cantos, morre parte de nós coletivamente.

Eu venho do território Xakriabá, entrei na escola em 1996, e aprendi desde cedo que antes de aprender dentro da escola, o primeiro livro que eu li foi meu avô.

E nesse primeiro livro que eu li, que foi meu avô, eu entendo que hoje em dia é muito importante continuar lendo um livro, mas como não perder a capacidade de ler as pessoas? Como não perder a capacidade de ler a terra? Como não perder a capacidade de ler a periferia, de ler o território, de ler a cidade? Porque na cidade a gente é capaz de construir estruturas inteiras, mas a gente perde nossa relação maior que é com o território.

E em 1996 eu entro na escola, nunca pensei em ir pra faculdade, nem existia ensino médio no território, mas em 2007 formou a primeira turma no ensino médio com professores indígenas aqui no estado de Minas Gerais, em 2009 eu tentei a prova na UFMG, passei no curso de licenciatura. Foi a primeira vez que eu vim fora do território durante mais de um mês e tive um impacto muito grande na Universidade. Eu falei “Gente, não tem como transferir a Universidade pra aldeia?”.

Porque quando a gente percorria aqueles corredores as pessoas perguntavam se nóis era índio de verdade, e eu falava assim “Onde cêis mora?”. Perguntei pra um menino, que tinha uns 12 anos e ele falou “Eu venho de Santa Luzia”. Eu disse “Não, qual é a sua origem?”. Ele: “Não sei, só sei que minha mãe é médica e meu pai é policial”. Eu ainda falei assim: “Sabia que seu pai costuma bater em nós quando nós estamos lá em Brasília?”.

E isso pra dizer que as pessoas sabem o endereço, mas elas não sabem a origem.

E quando pergunta a nossa identidade as pessoas têm carência de saber de onde vêm, porque perderam as relações culturais. Todo mundo tem cultura, todo mundo vem de casa com um jeito diferente de fazer a comida… inclusive a comida também o pessoal fala “Cê come igual nós?”. Eu falo “Cê que come igual nós, cê sabia que o cardápio, a culinária brasileira, é inspirada também nas tradições indígena?”.

Aí, quando eu vou pra Universidade, curiosamente o território me chama para ser professora de cultura, então eu nunca fui professora de disciplinarização, matemática, geografia, eu fui professora de cultura de 2013 até 2015, e vivi um momento muito desafiada, porque professora de cultura no território são para as pessoas que têm entendimento da cultura com profundidade, mas nem domina muito a caneta. Naquele momento eu me senti armada e desarmada, e eu fui ensinar na escola e fora da escola a língua akwe᷉, fui ensinar as pinturas corporais, ensinar a matemática, a geometria das pinturas, ensinava através do arco e flecha a velocidade da física.

Foi quando os meninos que já iam saindo para os institutos federais, em Januária, Jataí, São Francisco, falaram: “Heim, tia Célia, os meninos falaram que a nossa escola é fraca, porque eu ainda não sei raiz quadrada”. Aí eu respondi “Mas ele sabe a velocidade da flecha? Não. Ele sabe a geometria da pintura corporal? Também não. Ele sabe sobre o uso do território e a história do povo dele? Também não”. Falei assim “Então volta lá e fala que a escola dele também é fraca”.

Isso pra dizer que não é o grau de ensino que vai dizer que a nossa escola é inferior, é porque a escola, a cultura precisa dialogar com a vida.

Gente, é muito importante a química e a física, não vai ficar com raiva de mim, mas eu nunca usei raiz quadrada pra ir no mercado comprar uma coisa. Nós trabalhando com os Maxakali as noções de matemática e as pessoas não sabem, mas na cultura Maxakali, por exemplo, quando nois tava trabalhando aqui com eles, não existia o símbolo divisão, existia compartilhamento. Até que nós foi lá comprar uns tecidos com eles e falou “Ó, deu dois tecidos pra um, dois pra outro, mas aqui faltou, nois errou na conta, só deu um pra essa pessoa”. Eles responderam “Não, se não for pra dividir igual, pode ficar procêis”.

Então isso pra entender que existem maneiras diferentes de pensar a partir da cultura. E toda tradução existe uma tradição, mas quando as pessoas não traduzem direito, aí acontecem as traições.

Aí como sempre estão falando assim: “Ah, mas vocês não falam português, vocês não estão interagindo”. De repente, quando a gente fala português, “Ah, você deixou de ser”. E essa coisa de deixar de ser é tão interessante e engraçada porque nois fica dois meses fora do território e as pessoas nos perguntam se nós deixamos de ser. E tem pessoas que trabalham a vida inteira com os povos indígenas, 20 anos, 50 anos, e ninguém perguntou se a pessoa se tornou indígena. É como se sempre tivesse uma cultura mais forte do que a outra. E nós entendemos que se a caneta é a arma do século XXI, a nossa cultura, nosso modo de fazer, também é.

E por isso que todo mundo se inspira bastante em uma fala que veio muito forte enquanto eu tava no território, principalmente nesses quatro anos, quando o governo Bolsonaro exterminou com o Ministério da Cultura, eu falei:

“Nenhum governo pode acabar com o Ministério da Cultura, porque ele não vai acabar com o mistério da cultura. O mistério da cultura, ela mora dentro de nós”.

Quando nós estávamos em Brasília, para barrar aquele veto da lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc, nós estávamos ali e invocamos a mesma força, da força ancestral que nós sempre tivemos, do nosso lugar, da nossa ancestralidade, nenhum governo ia acabar com nosso direito, porque o que mantém o Brasil de pé é a força da música, o que mantém o Brasil de pé é a força do teatro, o que mantém o Brasil de pé é a diversidade de povos, o que mantém o Brasil de pé é a cultura. E mesmo as pessoas que não gostam da cultura, a gente fala “o que vocês, os filhos de vocês, fazem no final de semana? Vocês não vão ao cinema? Vocês não escutam música?”. Então não existe pensar o Brasil, pensar a humanidade sem pensar cultura. É pensar um Brasil deserto.

Por isso a cultura tem centralidade também na nossa política, porque ela não nasce nesse momento, ela não vai acabar em outubro, ela está dentro de nós, no nosso modo de conceber enquanto pessoa e enquanto bicho, porque eu falo que só sabe ser humano aqueles/aquelas que sabem ser bichos, aqueles/aquelas que sabe ser terra, que sabe ser água.

É com cultura que nós vamos construir a verdadeira revolução nesse país.

Referências

  • MOTA, Liliane Rodrigues. 2020. Estudo sobre o léxico Akwe᷉ Xakriabá: uma proposta de escrita e uma chamada para a revitalização da língua Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Formação Intercultural para Educadores Indígenas, Habilitação em Língua, Artes e Literatura), Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
  • TEDLOCK, Dennis. 1991. The spoken word and the work of interpretation Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
  • ERRATA:

    No artigo Xakriabá, C. A política e a poética de Célia Xakriabá: três discursos da primeira deputada indígena eleita por Minas Gerais (2022). Mana, v.29, n.2, e2023030, 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/1678-49442023v29n2e2023030.pt:
    Na página 1, onde se lê como autora Célia Xakriabá, Câmara dos Deputados, Brasília, DF, Brasil
    deve-se ler como autoras Célia Xakriabá1 e Ana Paula Rodrigues2.
    1Câmara dos Deputados, Brasília, DF, Brasil
    2Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    Na página 26, acrescente-se a nota de autor:
    Ana Paula Rodrigues é doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Antropologia e cientista social pela Universidade Federal de Minas Gerais.
    E-mail: anapsrodrigues1@gmail.com
  • Financiamento

    A autoras agradecem o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES e da Wenner-Gren Foundation

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2023
  • Aceito
    07 Jun 2023
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