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KRENAK, Ailton. 2017. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras. 104 p.

KRENAK, Ailton. . 2017. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras. 104 p.

O texto Ideias para adiar o fim do mundoKRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o caminho e o destino aos quais a modernidade ocidental está conduzindo a humanidade, uma comparação com o modo de vida, por assim dizer, de povos não modernos, uma provocação, no sentido de um convite ao despertar de novas formas de consciência sobre rumo tomado e rumos possíveis e, ainda, uma crítica à própria modernidade.

Ailton Alves Lacerda Krenak ou, como é mais conhecido, Ailton Krenak, é uma liderança indígena brasileira, membro do povo Krenak, nasceu no Vale do Rio Doce, em Minas gerais, uma das regiões mais negativamente impactadas pela atividade mineradora, tanto nos aspectos físicos quanto nos bióticos, socioeconômicos e culturais. O livro Ideias para adiar o fim do mundo resultou de duas conferências e uma entrevista concedida em Portugal entre os anos de 2017 e 2019.

O texto propõe, inicialmente, três questões: como é que ao longo dos últimos 2 ou 3 mil anos nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas escolhas erradas que fizemos, justificando a violência? Somos mesmo uma humanidade?

Krenak começa sublinhando que a concepção de humanidade que temos é de tipo eurocêntrica, logo, está restrita a um padrão de pensamento, cultura, organização social, econômica e narrativa histórica tipicamente europeu.

Neste cenário, organizações supraestatais e internacionais como ONU, Unesco, OEA são partes da estrutura desta humanidade pensada segundo o estilo europeu: “a humanidade que pensamos ser” (KRENAK 2017KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.: 13). O autor sustenta que este clube da humanidade limita nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade.

Mas, não apenas, sempre de acordo com o autor, este clube é também excludente, porque todos aqueles que não se enquadram no seu padrão de humanidade, dignidade, cidadania, cultura, relações sociais e econômicas é considerado sub-humano.

Hodiernamente, salienta, o padrão de humanidade hegemônico é o da modernidade, com sua lógica econômica acumulativa e ambientalmente predatória, sua cultura racional, seu modo de ser materialista, individualista e consumista, entre outros.

Deste modo, diz Krenak, a humanidade moderna exclui 70% daqueles que vivem em seu próprio seio do clube da humanidade, pois são pessoas para as quais foram negadas as condições mínimas de ser, querendo com isso se referir às condições básicas de dignidade, cidadania e emancipação histórica e espiritual.

A situação é contraditória, porque a modernidade promete àqueles que a ela se integrarem o reconhecimento de sua humanidade, mas os 70% que estão barrados no baile da humanidade foram criados pela própria dinâmica econômica da modernidade. Esta dinâmica foi a responsável pela expulsão do campo para as cidades da maior parte da população, a fim de transformá-la em força de trabalho na empresa capitalista e, ao mesmo tempo, capitalizar os recursos naturais.

Ao longo de seu texto faz uma crítica à outra face da humanidade moderna, que é também outra face da modernidade: o conceito de desenvolvimento sustentável.

Para Krenak, é esta mesma humanidade desumanizada que propaga e defende a ideia de sustentabilidade, um conceito que, em sua concepção, é um mito inventado pelas corporações empresariais para justificar a depredação da natureza, transformá-la em reserva de valor e confiná em espaços convencionados.

De acordo com o autor, o mito do desenvolvimento sustentável serve apenas para legitimar o assalto que as corporações fazem à nossa ideia de natureza; legitima o fracionamento da natureza e sua restrição a parques ambientais, áreas de proteção ou reservas.

Neste sentido, o desenvolvimento sustentável é uma forma de legitimar e, assim, sustentar a perpetuação do capitalismo, uma vez que, por este conceito, garante-se às corporações capitalistas o controle sobre todos os territórios e espaços da terra, que passam a existir sob uma espécie de regime de tutela do capital.

As raízes culturais desse processo estão na ideia de que somos a humanidade e a natureza é nosso objeto, ideia que nos alienou da compreensão de que somos parte deste grande organismo chamado Terra, o que nos levou a pensar que ela é uma coisa e nós somos outra, ou que ela é uma coisa e nós somos os sujeitos, que somos o centro e ela é a periferia.

Krenak faz uma breve crítica a esta ideia de separação entre humanidade e natureza com exemplos da cosmovisão das populações nativas, não modernas. Neste sentido, o autor afirma que tudo o que existe é natureza, que tudo o que pensamos é natureza, o que nos remete à ideia presente entre nativos yanomami de que tudo é natural na medida em que a própria natureza é cultural e vice-versa.

Krenak avança em sua crítica salientando que, na atual fase da modernidade, a globalização, as grandes corporações estão destruindo a natureza e construindo, em seu lugar, ambientes artificiais para nós vivermos. Elas homogeneízam a paisagem mundial, criando edifícios, shoppings centers, ruas pavimentadas, parques naturais, veículos espaciais, enfim, em suas palavras, criam “uma abstração civilizatória”, porque produzem uma vida descolada da terra e da natureza, uma vida que é insustentável, porque sem a terra e a natureza não há vida possível.

O autor sustenta que esse processo só é possível por meio da alienação das pessoas, que são colocadas em lugares artificiais para viver, mas elas precisam de remédios para suportar viver nestes ambientes, por conta do desenraizamento, da falta de referência que o distanciamento, cada vez maior, da natureza produz nelas.

Para o intelectual indígena, é um absurdo para estes povos viverem na abstração civilizatória que são os espaços artificiais, desenraizados e desnaturalizados das cidades e das metrópoles.

Mesmo as iniciativas, pelas estruturas políticas ocidentais, voltadas para, supostamente, valorizar a diversidade cultural da humanidade são tratadas de forma crítica por Krenak como contraditórias, pois ocorrem ao mesmo tempo em que o sistema ocidental destrói esta diversidade, principalmente as mais frágeis. Para o autor, sobram apenas aquelas que interessam às grandes corporações, porque elas facilitam o controle e a administração do todo.

Em uma de suas ideias para adiar o fim do mundo, Krenak defende que é exatamente esta ecologia que deveria integrar nossas experiências cotidianas, orientar nossas escolhas, tendo em mente sempre o lugar em que queremos viver, nosso lugar no mundo e nossa experiência comum enquanto comunidade humana.

De Kopenawa, Krenak retoma as lições do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2010KOPENAWA, Davi e Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Cia. das Letras, 2015 [2010].), no qual o líder yanomami pontua as diferenças entre a cultura ocidental e a do seu povo, para reforçar, ao mesmo tempo, que há lugar para todos os povos e todas as culturas conviverem neste planeta, assim como há diversos povos que não abrem mão de um modo de vida mais sintonizado com o espírito da floresta e com o cosmo natural.

Krenak sustenta, ainda, que este estilo de vida mais natural, integrado à natureza, é possível a todos, mas que não se trata de um modelo de existência semelhante ao do filme Avatar, de uma ficção, e sim de um modo de viver estritamente humano, inscrito em nossas potencialidades, e é isto que o modo de vida dos povos originários demonstra.

Contudo, este modo de vida já foi muito comprometido pelo avanço da modernidade econômica e cultural do Ocidente, e este comprometimento tem aumentado na atualidade com o avanço, principalmente, da mineração e do agronegócio sobre os territórios onde ainda resistem povos considerados não civilizados e que, portanto, não são tidos como parte do clube da humanidade moderna.

Ainda em sua crítica, Krenak diz que os tempos atuais são tempos especializados na criação de ausências, o que significa o esvaziamento dos sentidos de viver em sociedade e dos próprios sentidos da vida.

Mas este esvaziamento não é aleatório e sim parte da própria estratégia de sobrevivência e reprodução do capital, pois, para convencer as pessoas a viverem nos espaços superficiais e artificiais, a levarem uma existência superficial e artificial, as grandes corporações precisam transformá-las em zumbis, em seres destituídos de sentido, destituídos de uma existência dotada de propósito.

Para Krenak, o sentido mais profundo das pregações sobre o fim do mundo é aquele que a própria grande corporação capitalista moderna propaga hoje: destruir os sentidos da vida em sociedade, os sentidos da vida em si e levar as pessoas a desistirem dos próprios sonhos.

A lição mais importante oferecida pelo autor é de que nosso lugar no cosmo não é enquanto humanidade, mas enquanto terra, natureza, pois nossa existência só é viável e possível mediante a existência da terra e, ao mesmo tempo, somos apenas uma das partes que compõem o grande sistema natural, que somente é possível pela existência da terra.

Desta forma, orientar-se pela perspectiva de uma ecologia de saberes como a principal riqueza da humanidade, desatifilializar e reenraizar as pessoas à terra, à natureza, compreender que a humanidade é uma comunidade, e que a existência da humanidade está íntima, direta e fragilmente ligada à existência da terra e da natureza são as ideias necessárias para adiar o fim do mundo.

Destarte, as críticas levantadas por Krenak contra a humanidade e o modo de vida moderno nos remetem a certas passagens do célebre texto de Karl MarxMARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. sobre a acumulação primitiva de capital.

Ontem como hoje, o capital se projeta e avança sobre os não participantes do clube da humanidade de modo selvagem, predatório, violento. Mesmo quando se propõe à preservação de áreas habitadas por povos nativos o capital deixa seu lastro de destruição cultural e identitária entre estes povos.

O texto de Krenak, portanto, precisa ser compreendido num contexto mais amplo: ao mesmo tempo em que é um convite a abraçarmos ideias necessárias para adiar o fim do mundo, também nos convida a refletir sobre essas forças econômicas e culturais incivilizadas que reescrevem no presente a face predatória, selvagem, brutal e cruel do processo de acumulação primitiva de capital, o qual teve como principal alvo as riquezas naturais de povos nativos.

De outro modo, o texto de Krenak também nos proporciona outra reflexão importante: a de que esse processo de acumulação primitiva contemporâneo envolve não apenas formas de expropriação de riquezas econômicas, mas também de expropriação de riquezas culturais e da própria riqueza do existir, a riqueza existencial da humanidade, a riqueza de estar vivo, de dar sentido à vida em sociedade e de dotar a própria vida de sentido.

Em síntese, parece que a última e mais importante ideia de Krenak para adiar o fim do mundo é lutar, resistir ao desencanto e reencantar a humanidade, para que, como ele mesmo coloca, possamos nos sentar juntos para contar histórias uns aos outros.

REFERÊNCIAS

  • KOPENAWA, Davi e Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Cia. das Letras, 2015 [2010].
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Aceito
    06 Jul 2023
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