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A vida inadequada: a inconstância significativa do sofrimento e seus efeitos na relação médico/paciente

Inadequate life: the inconstance of the meaning of suffering and its effects on the doctor-patient relationship

La vida inadecuada: inconstancia significativa del sufrimiento y sus efectos en la relación médico-paciente

Resumo

O ano é 2021. Retorno à comunidade onde desde 2011 faço trabalho de campo, após um longo período afastado, por conta da pandemia de Covid-19. Reencontro São Martinho, uma colônia de alemães situada na região da Encosta da Serra, RS. Desde meu primeiro ano de pesquisa acompanho a implementação da Estratégia Saúde da Família (ESF), uma ampla política nacional de atenção básica à saúde. Localmente, um de seus principais entusiastas é Fernando, médico de uma das duas equipes de saúde da família da comunidade. Neste trabalho, faço uma retomada desse processo, observando especialmente os efeitos de uma trama de expectativas sociais que foram se formando na relação médico/paciente durante esse período. Por razões que serão exploradas no artigo, a noção de sofrimento mediava essa relação, em uma trama desencontrada de expectativas de conduta. Dos pacientes, por parte do médico. Mas também do médico, por parte dos pacientes.

Palavras-chave:
Políticas de saúde; sofrimento; vida moral; Covid-19; Colonos do sul

Abstract

The year is 2021. I have returned to the community where I have conducted my research since 2011, after a long period of absence caused by the Covid-19 pandemic. São Martinho is a German colony (colônia, in Portuguese) settled in southern Brazil. During my research, I was interested in the implementation of the Family Health Strategy, a primary health care policy that structures Brazilian health care policy. In local terms, one of the Strategy’s major proponents is the doctor responsible for one of the two family health teams present in the community. In the present article, I review of the implementation of the strategy, especially observing the effects of the social expectations formed in the doctor-patient relationship. For reasons that will be explored below, the notion of suffering has worked as a significant mediator in this relationship, in a complex of social expectations regarding self-conduct. This involves the doctor, in relation to his patients, but also the patients, in relation to the doctor.

Keywords:
Healthcare policy; Suffering; Moral life; Covid-19; German colonies of southern Brazil

Resumen

Es el año 2021. Regreso a la comunidad que pesquiso desde 2011, después de un largo período de distancia, debido a la pandemia COVID-19. Me reencuentro con São Martinho, una colonia de alemanes localizada en la región de Encosta da Serra, al sur de Brasil. Desde mi primer año de investigación, sigo la implementación de la estrategia de salud familiar, una amplia política brasileña de atención a la salud. A nivel local, uno de sus principales entusiastas es Fernando, un médico de uno de los dos equipos de salud familiares comunitarios. En este trabajo, realizo una revisión de este proceso, observando especialmente los efectos de las expectativas sociales que se formaron en la relación médico-paciente durante este período. Por razones que se explorarán en el artículo, la noción de sufrimiento mediaba dicha relación, trazando un desencuentro de las expectativas de conducta. Por parte del médico, em relación a sus pacientes. Pero también por parte de los pacientes, em relación al médico.

Palabras clave:
Políticas de salud; Sufrimento; Vida moral; Covid-19; Colonias alemanas del sur de Brasil

Apresentação

É um pensamento muito concreto! (Fernando, médico da comunidade, a respeito do modo como colonas e colonos lidam com a vida)

A fala que abre este trabalho foi proferida por Fernando, médico da Clínica São Martinho, uma Unidade de Saúde da Família (USF), um dos dois canais de atenção básica à saúde de São Martinho,1 1 Nome fictício. Todos os nomes de pessoas (assim como seus sobrenomes), lugares, cidades, bairros, fábricas ou comunidades, diretamente envolvidos na pesquisa, foram alterados. A opção foi feita em minha pesquisa de mestrado, desenvolvida na mesma comunidade entre 2011 e 2013, quando eu acompanhava a implementação de uma política pública de atendimento à saúde. Na verdade, esta foi uma das condições para que a pesquisa fosse realizada, o que, tendo continuado o trabalho de campo na mesma comunidade em minha pesquisa de doutorado, decidi permanecer com a mesma opção metodológico-narrativa. Para que fique claro, por não se relacionarem diretamente com universo social da pesquisa, os municípios de Porto Alegre e Novo Hamburgo permaneceram com seus nomes reais. uma comunidade de origem alemã situada na região da Encosta da Serra, Rio Grande do Sul. Fernando foi meu primeiro interlocutor de pesquisa em São Martinho. Médico, especialista em Medicina de Família e Comunidade, mudou-se para lá em 2010. Um ano depois, em 2011, eu viajei pela primeira vez para São Martinho. Dez anos depois, em 2021, retornei uma vez mais. Nesse período, o modelo da promoção à saúde, como reorientação político-epidemiológica na condução dos fatores determinantes dos processos saúde/doença da população (Carvalho & Buss 2008CARVALHO, Antônio Ivo & BUSS, Paula Marchiori. 2008. “Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção”. In: Lígia Giovanella et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. p. 141-166.), consolidou-se na comunidade, após décadas de vigência de outro modelo, o curativo-ambulatorial, no qual a intervenção era calcada nas perturbações manifestadas, e não nos fatores ambientais dessa manifestação.2 2 Voltaremos a este ponto ao longo do texto. No entanto, Carvalho e Buss (2008:154) notam alguns pontos principais na reorientação do sistema de atendimento à saúde rumo ao modelo de promoção à saúde: elaboração e implementação de políticas públicas de saúde; criação de ambientes favoráveis à saúde; reforço da ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais; reorientação do sistema de saúde. Essa mudança acompanhava uma reorientação nacional no modelo de atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) que, desde 1996, mas com mais ênfase nos anos 2000, passou a ser estruturada preferencialmente a partir da Estratégia Saúde da Família (ESF) (Castro 2007CASTRO, J. D. et al. 2007. “Custo-Efetividade: comparação entre o modelo ’tradicional’ e o Programa de Saúde da Família”. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade , Rio de Janeiro, 3 (10):91-98. ). Neste artigo, portanto, pretendo analisar, em âmbito local, os efeitos dessa mudança, especialmente no que toca a uma trama de expectativas sociais na relação médico/paciente. Etnograficamente, seguiremos dois núcleos particulares: em primeiro lugar, a defesa muito particular de Fernando daquilo que chamava “qualidade de vida” e, em segundo lugar, um grupo específico de seus pacientes, os Klein, um ramo familiar com o qual convivi por três anos, entre 2015 e 2018.3 3 Agradeço imensamente as recomendações feitas pelas revisões ad hoc ao artigo originalmente enviado para publicação. Foram fundamentais para reescrita e clareza do texto final. Aproveito para agradecer também os comentários generosos feitos às versões anteriores deste artigo pelos colegas do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs/UFRGS) e do International Postdoctoral Program (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E, claro, agradeço também a leitura atenta de Carla Souza de Camargo, que sempre auxilia na definição mais objetiva do argumento, do problema e dos objetivos do trabalho.

A trama de fundo, contudo, é algo que perpassa ambos os núcleos dessa narrativa. Trata-se da disputa entre Fernando, enquanto entusiasta do modelo da ESF em São Martinho, e aquele que, desde 2019, tornar-se-ia seu principal opositor político, Denilson, enfermeiro-chefe do Ambulatório Municipal. A disputa se acirrou especialmente em 2021, no contexto da pandemia de Covid-19, quando Denilson passou a ser um grande entusiasta do “tratamento precoce” para a doença, que envolvia, como veremos, uma série de medicamentos que, então, já haviam sido reiteradamente descartados para o tratamento da síndrome causada pelo vírus Sars-Cov-2. Nessa querela, todo o projeto que abrangia a constituição da ESF em São Martinho, que envolvia muito mais atores e processos para além de Fernando (Cf. Oliveira 2018OLIVEIRA, Everton de. 2018. Doentes e Parentes: composições de governo na Estratégia Saúde da Família. São Paulo: Alameda/Fapesp.), mas do qual Fernando havia tomado para si grande parte do empenho em implementá-lo, foi questionado, justamente por sua associação com a imagem de Fernando. Moradoras e moradores mostravam-se sensivelmente mais simpáticos a Denilson, e todo esse processo pareceu criar uma zona de incertezas nas expectativas de pacientes em relação à conduta de Fernando, e deste em relação ao comportamento e à condução da vida de seus pacientes. O projeto de implementação da ESF em São Martinho parecia estar, assim, em risco.

Este trabalho se trata de uma retomada crítica dos últimos dez anos de pesquisa na Encosta da Serra, dentre os quais diversos foram meus problemas de análise. Mais do que isto, trata-se de uma pergunta que, ao longo do tempo, tornou-se constante em minha pesquisa: por que uma política pública de promoção à saúde, focada na população, não se efetiva justamente entre seu público-alvo? Localmente, por que moradoras e moradores tendiam a não aderir à ESF em São Martinho? A partir de 2011, eu viajei todos os anos para São Martinho, com uma estadia permanente entre 2015 e 2019. Meu foco de pesquisa se iniciou pela atenção básica à saúde, como é classificado o nível primário de atenção no SUS, em especial acompanhando a implementação da ESF em São Martinho, tendo Fernando como principal interlocutor. A partir de 2015, e com os problemas levantados pela pesquisa sobre a ESF, interessei-me pela vida em comum de moradoras e moradores, em especial por suas noções de dor e sofrimento. Residi por quatro anos na cidade, dentre os quais, três deles em um território habitado por parentes próximos, chamado de vila, especificamente a Vila dos Klein. Eis que, entre 2020 e 2021, quando intentava iniciar minhas inserções para um novo foco de pesquisa, tivemos a ocorrência da pandemia de Covid-19. Esse tempo sem poder ir a São Martinho não foi um tempo sem campo, contudo. As informações me chagavam através de redes sociais, trocas de mensagens, telefonemas. Em setembro de 2021, completamente vacinado,4 4 A vacinação contra a Covid-19, no Brasil, iniciou-se em janeiro de 2021, em São Paulo, e acelerou-se a partir de junho do mesmo ano. No caso de minha vacina e da de Carla, a que foi desenvolvida pelo consórcio Universidade de Oxford/AstraZeneca, e produzida, no Brasil, pela Fundação Oswaldo Cruz, previa um esquema de duas doses, com um intervalo de dez semanas (no caso do protocolo adotado pelo município de Porto Alegre na época em que me vacinei). Carla e eu estávamos com as duas doses efetivas, isto é, vacinados com a segunda dose há mais de 22 dias. retornei à comunidade.

A aposta deste trabalho é que a noção de sofrimento, enquanto uma noção que pode ser facilmente capturada por regimes significativos distintos, embasa e dificulta a relação médico/paciente no caso de São Martinho. Grande parte dessas dificuldades se situa numa trama desencontrada de expectativas de conduta. Por parte de Fernando, a expectativa em relação a seus pacientes, sob uma leitura particular do que chamava de “qualidade de vida”, que questionava muito daquilo que, para moradoras e moradores, eram rotinas fundamentais de suas vidas. Por parte de moradoras e moradores, a expectativa em relação a Fernando de que ele se tornasse mais próximo de suas rotinas, o que talvez facilitasse a comunicação entre eles no momento da consulta. E novamente por parte de Fernando, em relação ao sistema municipal de atendimento à saúde, para que integrassem mais harmonicamente uma proposta comum de atenção à saúde. Nessas expectativas desencontradas, as principais angústias que levavam essas personagens a se comunicarem se perdiam em traduções equivocadas, quase sempre pela leitura da inadequação do outro.

Após a introdução, acompanharemos já, de partida, o enredo do desentendimento entre Fernando e Denilson, que envolvia especialmente a adoção do protocolo do “tratamento precoce” para Covid-19, assim como uma perda de protagonismo de Fernando no contexto local. Logo em seguida, descreverei a consolidação da atenção básica à saúde em São Martinho, e suas singularidades, especialmente a partir de minha própria experiência em campo, que completava dez anos em 2021. Nesse processo, a ideia de qualidade de vida será cada vez mais enfatizada por Fernando, o que tendia a apresentar uma dissonância significativa em relação às dimensões éticas e morais da vida de moradoras e moradores. Veremos isto segundo os cotidianos de vida de moradoras e moradores de São Martinho. Em especial, um que se tornou muito próximo a mim desde 2015, que é a Vila dos Klein, onde vivi até 2018. Entenderemos, em seguida, como a atuação de Fernando ao longo dos últimos anos e sua leitura muito particular de como conduzir uma política de promoção à saúde tenderam a acentuar os elementos cotidianos de sofrimento de moradoras e moradores. Atrelado a isto, está a própria possibilidade de moradoras e moradores migrarem para outros canais de atendimento público, como o atendimento ambulatorial, coordenado justamente pelo principal opositor de Fernando. Esse desencontro produz como efeito moral a inadequação do outro, de uma perspectiva valorativa do que constitui os ideais de vida em cada um dos regimes significativos em relação que, por jamais atenderem às expectativas mútuas, produzem um tipo particular de condição, que é a vida inadequada.

2021: A Covid e o esgotamento

No ano de 2020 a Organização Mundial da Saúde anunciava a existência de uma nova pandemia, a da Covid-19, assim chamada a síndrome causada pelo vírus Sars-Cov-2 e suas variantes, primeiramente noticiado na cidade de Wuhan, na China. Rapidamente o vírus se espalhou pelo globo. No início para o continente europeu e, depois, para o continente americano, no que nos toca. No Brasil, os índices de contágio e mortalidade passaram a ser preocupantes muito cedo, desde abril de 2020, noticiado por quase todos os grandes veículos de comunicação, mas também pelos próprios cientistas sociais, que faziam análises semanais a respeito do contexto pandêmico (Grossi & Toniol 2021GROSSI, Miriam Pillar & TONIOL, Rodrigo (orgs.). 2021. Cientistas Sociais e o Coronavírus. Florianópolis: Tribo da Ilha/Anpocs.). Para os profissionais de saúde não foi um período fácil. Pelo contrário. Em uma mistura de negação da ciência e negação dos riscos que a transmissão acelerada do vírus poderia causar (Oliveira 2020aOLIVEIRA, Everton de. 2020a. “Capitalismo do Massacre: enquadramentos da morte na pandemia de Covid-19”. In: Miriam Pillar Grissi & Rodrigo Toniol (orgs.). Cientistas Sociais e o Coronavírus. Florianópolis: Tribo da Ilha; Anpocs. pp. 572-576.), os profissionais de saúde que defendiam o afastamento social, o uso de máscaras como maneira não medicamentosa de evitar a transmissão viral, assim como denunciavam a falácia do “tratamento precoce”, foram atacados por grupos conservadores, dentre os quais se situava o próprio estafe do presidente da República. Em São Martinho, distante de qualquer centro de debate, o mesmo aconteceu. E o protagonista dessa narrativa é Fernando.

O pano de fundo do ataque a Fernando foi sua oposição a receitar o chamado “tratamento precoce”. Em outro trabalho eu me detive de maneira pormenorizada nesta questão (Oliveira 2020bOLIVEIRA, Everton de. 2020b. “Estamos todos vivos? Ciência, política e precariedade na pandemia de Covid-19”. Contemporânea, São Carlos, 10:379-387.), mas, em suma, o tratamento precoce se tratava de um coquetel medicamentoso, composto, entre outras coisas, de Cloroquina e hidroxicloroquina, usualmente receitado no tratamento da malária, Azitromicina, um antibiótico, Ivermectina, um antiparasitário, Vitamina D3, Sulfato de Zinco, e Nitazoxanida, outro antiparasitário. Mais importante que suas indicações regulares, nenhum deles e, em especial, a hidroxicloroquina, foi aprovado pelas testagens double-blind, sendo comprovadamente ineficazes para o tratamento da Covid-19. Mais ainda, todos eram receitados off label, isto é, à parte de quaisquer das indicações presentes na bula medicamentosa, que é indicada pela farmacêutica que desenvolveu o medicamento e aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Nesse contexto, as Secretarias Municipais de Saúde de grande parte dos municípios brasileiros passaram a adotar protocolos particulares, ainda que próximos, do “tratamento precoce” para a Covid-19 (Furlan & Carmelli 2021FURLAN, Leonardo & CARAMELLI, Bruno. 2021. “The regrettable story of the ’Covid Kit’ and the ’Early Treatment of Covid-19’ in Brazil”. The Lancet Regional Health, Londres, 4:1-3.). Em São Martinho não foi diferente. Os expoentes desta opção eram a atual secretária municipal de Saúde, Nanci, velha conhecida de Fernando, que já havia assumido a mesma pasta entre 2013 e 2016, e Denilson, enfermeiro-chefe do Ambulatório Municipal, sem dúvida o principal opositor de Fernando nessa querela.

Há uma situação estrutural nessa disputa. Como se nota em vários trabalhos (Milanezi 2021MILANEZI, Jaciane 2022. “Por uma Abordagem Interdisciplinar, Estrutural e Interseccional de Usuárias(os) do Estado: Comentário Crítico ao Artigo - Categorizando Usuários `Fáceis? e `Difíceis?...- de Gabriela Spanghero Lotta e Roberto Rocha Coelho Pires”. Dados-Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, (65):1-9.; Lotta & Pires 2020LOTTA, Gabriela S. & PIRES, Roberto R. C. 2020. “Categorizando Usuários ’Fáceis’ e ’Difíceis’: Práticas Cotidianas de Implementação de Políticas Públicas e a Produção de Diferenças Sociais”. Dados-Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 63 (4):1-40.; Fernandes 2019FERNANDES, Camila. 2019. “Figuras do constrangimento: As instituições de Estado e as políticas de acusação sexual”. Mana, Rio de Janeiro, 25 (2):365-390.; Oliveira 2018OLIVEIRA, Everton de. 2018. Doentes e Parentes: composições de governo na Estratégia Saúde da Família. São Paulo: Alameda/Fapesp.; Lotta 2010LOTTA, Gabriela. 2010. Implementação de Políticas Públicas: o impacto dos fatores relacionais e organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. Tese de Doutorado em Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Cohn 2009COHN, Amélia. 2009. “A reforma sanitária brasileira após 20 anos do SUS: reflexões”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25 (7):1614-1619.), a atenção primária à saúde (APS), no âmbito do SUS, muitas vezes cria um desencontro em seus próprios canais de atendimento. Isto porque, na Atenção Básica à Saúde, o principal nexo organizativo da APS, no SUS, dois canais de atendimento se destacam: as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as Unidades de Saúde da Família (USF) que, em muitos lugares, como na cidade do Rio de Janeiro e em algumas cidades do Rio Grande do Sul, são chamadas de Clínica da Família. Esses canais são regidos por um planejamento e uma tecnologia de atendimento que foram vagarosamente pensados para alterar o modelo médico-curativo, assim como para aproximar a atenção primária das populações afastadas dos atendimentos hospitalares. Criava-se, assim, uma hierarquia no nível dos atendimentos, de modo a gerir na ponta do sistema os ambientes de saúde/doença e encaminhar apenas os casos necessários aos maiores níveis de complexidade. Isto dependia de médicos dispostos a atuar nessas pontas do sistema. De modo regular. E isto não acontece, na maior parte dos casos. Em São Marinho aconteceu, a partir de 2010, quando Fernando foi contratado, inicialmente em caráter temporário, tendo, em 2013, prestado o concurso para sua vaga e, então, tonando-se funcionário estatutário.

A administração municipal conseguiu a mesma regularidade na posição de enfermeiro-chefe do Ambulatório, justamente a vaga ocupada por Denilson, também estatutário. O mesmo, contudo, não aconteceu com os médicos que atendiam no Ambulatório Municipal. Em tempo, vale citar que em muitos municípios grande parte do atendimento ambulatorial é fornecido pela Saúde Complementar e, quando públicos, compõem o atendimento municipal. Desde 2002 as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), em conjunto com o Serviço Ambulatorial Médico de Urgência (Samu), compõem a estratégia nacional de atenção básica do SUS, mas este não era o caso de São Martinho. Isto permitia que, muitas vezes, a pessoa atendida pelos canais da ESF pudesse, também, ser atendida pelos ambulatórios municipais e, assim, os tratamentos indicados não apenas concorriam, como também se anulavam em grande parte dos casos. Acrescido a isto há o fato de que, nos ambulatórios, que funcionam em regime de plantões, os médicos frequentemente não permanecem nas cidades, especialmente nas cidades do interior, como São Martinho.

Voltamos, aqui, à querela entre Fernando e Denilson. No Ambulatório Municipal, Denilson não era apenas enfermeiro-chefe, mas também o coordenador técnico da equipe, inclusive dos médicos plantonistas. Denilson era um defensor do tratamento precoce, assim como boa parte dos médicos que pelo Ambulatório passavam. Uma receita impressa, com o chamado “kit-covid” (isto é, os medicamentos listados acima como parte do tratamento precoce), já estava disponível aos médicos e enfermeiros do Ambulatório. Sob qualquer suspeita de que a pessoa atendida tivesse tido contato com o vírus, ou apresentasse um dos sintomas relacionados à Covid-19, então se receitava o kit-covid. Fernando, por sua vez, era radicalmente contrário a esse protocolo. Expôs sua contrariedade nas sucessivas reuniões do Conselho Municipal de Saúde, mas era sempre voto vencido. Nanci, a secretária municipal de Saúde, apoiava Denilson no protocolo do tratamento precoce.

Em um dos momentos mais tensos da disputa, houve uma ligação telefônica. Era de Fernando para Denilson. O intuito era, de partida, o confronto. Fernando não estava disposto a renunciar à sua posição, assim como Denilson. A conversa foi gravada por Fernando, sob o pretexto de que se sentia ameaçado em sua oposição ao tratamento precoce. Denilson chamava Fernando de “maluco” e “médico de postinho”. Fernando chamava Denilson de “negacionista” e “irresponsável”. A conversa veio à tona. Circulou por vários grupos de WhatsApp de São Martinho. Uma posição tendeu a ser vencedora na disputa, ao menos entre moradoras e moradores, e foi a de Denilson. Fernando estava esgotado. Tentou reverter a situação publicando um artigo em um jornal de baixa circulação e abrangência, relatando o caso do protocolo de tratamento precoce em São Martinho. A publicação não surtiu efeitos entre os demais membros do Ambulatório Municipal e, de certo modo, entre os membros de sua própria equipe da ESF, que não assumiam posições claras na disputa. Fernando foi se tornando cada vez mais marginalizado nas decisões sobre a condução dos atendimentos em São Martinho, reservado a ele apenas aquilo que lhe cabia como médico de uma equipe de saúde da família.

Conhecendo Fernando e São Martinho

Retornemos um pouco no tempo. Para 2011. Eu viajava pela primeira vez a São Martinho. Então, meu principal contato em campo era Fernando, um jovem médico, ainda residente em Medicina de Família e Comunidade, que eu conhecera em Porto Alegre em 2009, quando fora para um congresso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A partir de amigos em comum, conheci Fernando, que me hospedou em sua casa e, em nossas conversas, também com sua esposa, Isabel, interessei-me por algo que eu ainda não fazia ideia do que era, a Estratégia Saúde da Família (ESF). Contudo, Fernando não permaneceu em Porto Alegre. Imediatamente ao terminar sua residência, foi chamado para uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, São Martinho, que, àquela altura, ele também jamais ouvira falar.

São Martinho ficava na região das colônias alemãs do sul do Brasil, especificamente na Encosta da Serra que, no Rio Grande do Sul, abrigava grande parte dessas colônias. Situada a uma distância de aproximadamente 80 quilômetros de Porto Alegre, no sentido do interior nordeste do estado, a Encosta da Serra abriga várias desses antigos territórios de colonização alemã, que foram ocupados entre as décadas de 1830 e 1870, muito por conta da política imperial de ocupar territórios fronteiriços e, também, com imigrantes europeus, tendo em vista uma política de branqueamento da população nacional (Perin 2013PERIN, Vanessa. 2013.“Um campo de refugiado sem cercas”: etnografia de um aparato de governo de populações refugiadas. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Woortmann 1995WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1995. Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo/ Brasília: Hucitec/ Editora da UnB.; Williems 1980WILLIENS, Emílio. 1980. A Aculturação dos Alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional.). Esses povoados formaram-se em comunidades em grande parte autogeridas. As terras, o transporte intercontinental e a recepção eram geridos pelo governo imperial e pela Província, mas o caminho até as linhas de colonização, a construção das casas, das capelas, das escolas e dos espaços de gestão e recreação ficavam a cargo de moradoras e moradores. Isto se transformou em uma das características distintivas das colônias, que era sua organização ao mesmo tempo familiar e pública das comunidades. As famílias de fato organizavam, em consenso, boa parte das atividades comunitárias, mas certas oficialidades também eram requeridas. Como exemplo, a criação da comunidade de São Martinho, oficiada em 1862 por um grupo de moradores, que se comprometiam a construir a capela da comunidade, seu salão recreativo, sua escola e seu serviço de saúde, este concretizado apenas em 1950.

O Hospital Comunitário, criado pela comunidade católica, já havia sido municipalizado nos anos 1970, posteriormente foi vendido e passou a atuar como hospital particular quando, em 1991, foi readquirido pela Prefeitura de São Martinho e transformado em Ambulatório Municipal. Foi integrado ao também recém-criado SUS, assim como a Clínica São Martinho, criada em 2007 e abrigada nas dependências do Ambulatório até 2012 (quando passou a ter uma sede própria), a primeira USF de São Martinho, que atualmente conta com duas unidades. Esses acontecimentos foram acompanhados de uma mudança no perfil socioeconômico da região. Até a década de 1970, colonas e colonos produziam aquilo que podiam, seus produtos eram vendidos ou trocados por bens manufaturados com mercados da região. Mas as limitações eram evidentes, de tal modo que, na década de 1970, como informado por muitos moradores, a situação de pauperismo das famílias só não era mais acentuada por conta daquilo que conseguiam produzir para consumo próprio. Nessa década, com a expansão da indústria calçadista que vinha estendendo suas plantas industriais para a Encosta da Serra (Schneider 2004SCHNEIDER, Sergio. 2004. “O mercado de trabalho na indústria coureiro-calçadista do Rio Grande do Sul: formação histórica e desenvolvimento”. In: Achyles Barcelos Costa & Maria Cristina Passos, A Indústria Calçadista no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos. pp. 25-49.), instalou-se a primeira unidade de uma indústria calçadista em São Martinho, chamadas de fábricas por moradoras e moradores.5 5 Segundo os dados do Ministério do Trabalho e do Emprego de 2016, quando eu estava na comunidade, 51,54% de trabalhadoras e trabalhadores formais empregavam-se nas indústrias calçadistas. Um total de 1008 funcionárias e funcionários de acordo com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Calçadista de São Martinho, para um total populacional de pouco mais de 6.000 habitantes.

Nesse contexto, é importante situar as vilas de São Martinho, territórios que se formam a partir da partilha de uma propriedade original entre as sucessivas gerações descendentes, que tendem a permanecer na localidade como vizinhos, mas também parentes. Em 2015, eu me mudei para uma dessas vilas, a Vila dos Klein. Ela havia se formado quando José Klein e Noêmia Klein, então com seus nove filhos (teriam mais quatro após a mudança), mudaram-se do Alto da Graça, uma comunidade predominantemente de colonização italiana, apesar de os Klein serem de descendência germânica, para São Martinho, comprando 32 hectares em declive, de difícil trato, mas atrativos, em comparação com os 11 hectares que possuíam no Alto da Graça. Eram meados dos anos 1970. De lá para cá, de seus 13 filhos, seis acabaram residindo em terrenos pertencentes à antiga propriedade - chamada também de terras de família -, três se mudaram para outras cidades, e três já vieram a falecer, um deles, Venâncio, enquanto eu fazia trabalho de campo, em 2017. Fomos então gradualmente integrados ao cotidiano dessa vila, o que se mostrou fundamental para minha pesquisa. Além disso, mostrou-se essencial para toda a minha estadia, pois sua amizade amenizava, e muito, os perrengues do trabalho de campo. Fomos, no plural, porque em toda a minha estadia eu estava acompanhado de Carla, minha esposa, que permaneceu em São Martinho por todo o período do trabalho de campo. Ir acompanhado de Carla mostrou-se fundamental para o andamento da pesquisa, para o modo como ela se desenvolveu, na relação com minhas vizinhas. O fato de estar sempre com Carla projetava em seus maridos mais confiança em mim, como também o fato de que com Carla apaziguava alguns interditos da relação entre homens e mulheres, no contato com minhas vizinhas.

O artigo não pode fugir desse efeito de perspectiva (Marques 2003MARQUES, Ana Claudia. 2002. Intrigas e Questões. Vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumará.) ao se situar no debate proposto, isto é, possivelmente tender a se aproximar de uma posição de discurso mais ligada a moradoras e moradores. Justamente porque, em campo, ao menos entre 2015 e 2018, eu era, de fato, mais próximo de moradoras e moradores do que da equipe da Clínica São Martinho, com notável exceção de Fernando, médico da equipe da Clínica São Martinho, que sempre debatia comigo questões relativas à comunidade, ao serviço municipal de saúde, aos problemas enfrentados pela equipe etc.

2011: Um projeto

A Clínica São Martinho era uma das duas Unidades de Saúde da Família (USF) atuantes no município de São Martinho. Ficava na comunidade de São Martinho, enquanto a outra ficava no Mirante, comunidade do alto da serra. Realidade comum aos municípios do interior, os médicos contratados revezavam-se no atendimento da unidade até a chegada de Fernando, em 2010. Uma confluência de projetos: Fernando atuava politicamente pela consolidação da Atenção Primária à Saúde nos moldes da saúde da família, e o então secretário municipal de saúde de São Martinho esforçava-se para implementar o que chamava de medicina comunitária.

Isto implicava implementar, em São Martinho, a saúde sob a perspectiva da Promoção da Saúde. Em linhas gerais, elencam-se cinco campos para a efetivação desse projeto: 1. a elaboração e a implementação de políticas públicas de saúde; 2. a criação de ambientes favoráveis à saúde; 3. o reforço da ação comunitária; 4. o desenvolvimento de habilidades pessoais; 5. e a reorientação do sistema de saúde. Por conta de sua generalidade, a promoção da saúde pode gerar tanto políticas voltadas a mudar o estilo de vida, como políticas voltadas a processos comunitários de mudança social, a “promoção da saúde radical”, como a defendida pelo movimento sanitarista, nos anos 1980, no Brasil (Carvalho & Buss 2008CARVALHO, Antônio Ivo & BUSS, Paula Marchiori. 2008. “Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção”. In: Lígia Giovanella et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. p. 141-166.). Esta opção apresentou-se como uma alternativa de baixo custo - ainda que de uma alta complexidade de gestão - ao processo de “securitização do social” (Soares 2008SOARES, Laura Tavares. 2008. “Políticas sociais na América Latina”. In: Lígua Giovanella et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz . pp. 923-944.:943), assim como ao modelo “hospitalocêntrico” (Weber 2006WEBER, César Augusto Trinta. 2006. Programa de Saúde da Família: educação e controle da população. Porto Alegre: AGE.:100) de atenção à saúde, e uma saída ao modelo “norte-americano”, com ênfase nas práticas médico-curativas como principal método de intervenção, que vinha sendo adotado pelo Brasil desde o regime militar com maior ênfase (Escorel 2008ESCOREL, Sarah. 2008. “História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990”. In: Lígia Giovanella et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. pp. 385-434.).

No cotidiano da Clínica São Martinho, idealmente a porta de entrada para essa estratégia multifacetada da promoção à saúde, havia alguns núcleos dramáticos que envolviam a clínica e seus atendimentos. Em especial, havia o acompanhamento médico, termo utilizado por Fernando para mapear os casos e poder referenciá-los nas diversas atuações da Clínica, assim como nos grupos de trabalho (discussões sobre doenças crônicas feitas periodicamente com os pacientes), nas visitas domiciliares, nas atividades coletivas, e na consulta em si. Fernando tornou-se um grande amigo. Pensávamos em conjunto os problemas enfrentados cotidianamente na Clínica São Martinho. Fernando me contava sobre suas aspirações para São Martinho, suas impressões dos atendimentos, e o que achava prejudicial para o maior mal que julgava acometer seus pacientes, a ansiedade e a depressão. Mas nessa relação, entre mim e Fernando, algo se tornou visível há pouco tempo. Fernando estava cada vez mais absorto em seus debates político-acadêmicos, enquanto seus pacientes procuravam trazê-lo de volta à rotina dos atendimentos, isto é, para os problemas concretos enfrentados pela Clínica São Martinho.

Retornemos, contudo, a 2011. No inverno daquele ano, fazia doze meses que Fernando estava em São Martinho. Ele usava uma expressão, à época, que depois abandonaria, que era seu anseio organizar o sistema. Logo, o sistema estava desorganizado. O sistema, neste caso, era aquilo que lhe cabia na organização da atenção primária à saúde na comunidade. Quem desorganizava? Os médicos do ambulatório, principalmente, que se revezavam em plantões pelo interior do Rio Grande do Sul e, para Fernando, não tinham qualquer responsabilidade para com os pacientes de cada cidade, assim como para com seus tratamentos. Mas, por vezes, Fernando também se queixava de seus pacientes, de serem ansiosos e, no afã de um atendimento imediato, não esperarem até a próxima consulta agendada e se consultarem com qualquer médico plantonista. “Têm um pensamento muito concreto”: era o que, por vezes, Fernando dizia a respeito dessa atitude por parte de seus pacientes.

Nos anos que se seguiram, Fernando foi lentamente conseguindo organizar o sistema, talvez por isso sua queixa tenha se dissipado ao longo do tempo. Lembro que na passagem de 2012 para 2013 as consultas já haviam mudado completamente de enredo. Se, em minha primeira viagem a São Martinho, eu via Fernando se comiserando por não conseguir prosseguir com um tratamento médico com cada um de seus pacientes, dois anos depois, ele conseguia transitar muito bem pelas gramáticas, pela sua, mas, especialmente, pela de seus pacientes. Duas ocasiões me vêm à mente neste momento. Na primeira delas, um senhor, já paciente de Fernando, queixava-se de sua depressão. “Essa coisa dá para ver nos olhos”, ele dizia, apontando para mim e concluindo: “o senhor, por exemplo, não tem depressão. Tá nos olhos!”. Este era um caso delicado. O senhor, alcoolista, já havia ateado fogo em sua própria casa. Então Fernando lhe propunha deixar a schnaps [cachaça] e a bier [cerveja],6 6 Não há uma tradução convencional para o alemão das colônias, ora denominado taytx, ora hunsrik. Como oralidade, a língua se preservou em muitas variações de acordo com a família, com as vilas e mesmo com a religião, católicos ou luteranos. Se fôssemos seguir algum acordo em relação a essas línguas, teríamos que traduzir cachaça por ’xnaps e cerveja por pia, aproximando essas palavras da tentativa de Úrsula Wiesemann (Wiesemann 2008), linguista ativa também na tradução da língua Kaingang do RS, de codificar a oralidade da colônia. Mas o trabalho da autora tem inúmeras críticas, desde as mais conservadoras, que afirmam que a língua da Encosta da Serra está fadada à morte, até as mais progressistas, que afirmam que seu trabalho não levou tão a sério as variações linguísticas presentes na região. Por isso, optei pela escrita no alemão formal. já se apropriando de algumas palavras em alemão, para se medicar com alguns psicotrópicos para a depressão. Ele perguntou: “mas esse é de virar os olhos, não é?”. Era, Fernando respondia, mas replicava: “Não é melhor se viciar em medicamento do que em schnaps?”. O Senhor então parecia convencido. Aceitou a medicação, apesar de eu não o ter visto novamente na clínica nos anos subsequentes.

Essas recomendações resultavam de uma leitura muito particular que Fernando fazia daquilo que entendia por promoção à saúde, além daquilo que ele chamava de “ciência biopsicossocial”. A etiologia biopsicossocial era uma conduta recomendada aos médicos de família e comunidade, como Fernando, especialidade forjada ao longo de décadas, articulada ao projeto de reforma sanitária dos anos 1970/1980 (Escorel 2008ESCOREL, Sarah. 2008. “História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990”. In: Lígia Giovanella et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. pp. 385-434.:393-397, 428-429; Anderson et al. 2007ANDERSON, M. I. P. et al. 2007. “A Medicina de Família e Comunidade, a Atenção Primária à Saúde e o Ensino de Graduação: recomendações e potencialidades”. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, 3 (11):157-172. :158; De Marco 2006DE MARCO, M. A. 2006. “Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação permanente”. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, 30 (1):60-72.). Mas, articulada por Fernando, a “ciência biopsicossocial” era uma operação pragmática, uma captura daquilo que lhe era trazido à cena do consultório e que, a partir mesmo da construção de um entendimento sobre o sofrimento do paciente, fornecia o caminho adequado para sua defesa de uma qualidade de vida, que via, em grande parte, as condutas usuais de colonas e colonos como sua principal barreira.

A vida judiada: Trabalho, força e sofrimento enquanto estética de si

Acontece que grande parte dessas recomendações afetavam o eixo daquilo que mulheres e homens chamavam de vida judiada, isto é, grande parte de suas rotinas diárias, de seus trajetos cotidianos, de suas relações com vizinhos e familiares, de seu trabalho e de suas partilhas de colheitas, de comidas, do chimarrão, de conversas. Este termo, problemático em si, derivação de um estereótipo antissemítico de um grupo étnico-religioso - os judeus - é utilizado por moradoras e moradores como sinônimo de sofrimento e de dor, enfatizando por vezes um, por vezes outro, agrupando ambos vez ou outra.7 7 Não tenho condições de traçar aqui, assim como não encontrei qualquer trabalho que o faça, historicamente, o paralelo entre o uso corrente dessa noção entre os colonos alemães do sul do Brasil e sua origem antissemítica. As impressões e as suposições, claro, são evidentes. Mas, documentalmente, existe uma lacuna até agora não preenchida. Tratava-se, portanto, de uma narrativa de vida moral, no modo como Kleinman (2006KLEINMAN, Arthur. 2006. What Really Matters: living a moral life amidst uncertainty and danger. Oxford: Oxford University Press.) entende isto, como uma existência ética marcada pela sobreposição de duas ordens de realidade: em primeiro lugar, um sistema de valores que é, geralmente, local e, em segundo lugar, por uma atitude ética que lhe é correlata, que permite a classificação do que é certo e do que é errado na condução da vida. Na maior parte das vezes, a “vida moral” se realiza quando as duas ordens de realidade se chocam, quando as sensações de incerteza, vulnerabilidade e descompasso para com o sistema de valores passam a ser regulares na condução da vida.

As narrativas da vida judiada raramente traziam uma especulação em si sobre a vida, sobretudo nas conversas da Vila. Na roda do chimarrão, na mesa do café, ou nas cadeiras do jardim, eram sobre suas relações que minhas vizinhas e vizinhos falavam, dessas do cotidiano, mas também daquelas do tempo da infância. E aquilo que persistia, que qualificava todas e todos a partilhar a mesma condição de mundo eram as terras, as casas, mas, igualmente importante, a pobreza, isto é, aquilo que era qualificado enquanto ser pobre na Vila dos Klein. Fundamentalmente, isto se relacionava, de alguma maneira, com todas as intempéries do passado, fossem mortes, incêndios, tristezas. O período que abarca os anos 1970 era especialmente trazido à tona, auge da crise agrícola em São Martinho, quando as roças já haviam se tornado menores e pouco produtivas.8 8 Um excelente trabalho para se entender a decadência da atividade agrícola na colônia permanece sendo o de Ellen Woortmann (1995). Disto até o estabelecimento das primeiras indústrias calçadistas houve um hiato de aproximadamente dez anos, o período de maior sofrimento nas narrativas das casas entre minhas vizinhas e vizinhos.

10 da noite, o chão branco de geada já, e eu tinha que esfregar as roupas das meninas lá fora. Porque não tinha fralda descartável naquela época. Nós nem sabia o que era isso. Era de pano mesmo. Muitas vezes minha mãe pegava lençol velho, rasgava em quadradinho e nós fazia as fraldas! [...] Eu vejo essas gurias novinhas e te digo, eu não ia aguentar ver elas passando por tudo que a gente passou! (Fátima Silva, caderno de campo 27/10/2015).

A pobreza figurava como uma das coisas mais notáveis da vida judiada. Primeiro, porque implicava um período determinado de tempo, o tempo de guri, uma faixa de tempo bem pouco precisa que variava entre os anos 1960 e 1980 para minhas vizinhas e vizinhos, tempo de muito sofrimento. Em segundo lugar, porque esse sofrimento era cotidianamente superado pelo projeto da casa, pelo esforço em constituir uma vida economicamente mais estável. Por isso mesmo nem tudo era lamentação ao se falar da pobreza. As jocosidades eram permitidas para um tempo que o cotidiano atestava estar no passado, mas também entre certas visitas, em detrimento de outras. Com Fátima Silva (sétima filha de dona Noêmia), Carla e eu rapidamente nos tornamos visita de cozinha, dessas com as quais se conversa em meio às demais tarefas de casa. “Parecia tudo uns gato amontoado numa cama só”, dizia-me Fátima Silva a respeito da casa de madeira de dona Noêmia, em uma das noites em que conversávamos à volta de sua mesa, na cozinha.

A pobreza era, assim, uma das dimensões fundamentais da vida partilhada entre os Klein, terreno de dores, superações e jocosidades da vida judiada. Ligava-os, portanto, simultaneamente às suas terras, às suas casas e à sua história enquanto elemento ativo nas relacionalidades do cotidiano, na narrativa atual da rotina. Os Klein eram pobres, apesar de terem deixado para trás a miséria. Mas o apreço que tinham pelas suas casas, classificadas como igualmente pobres, não pode ser apartado dessa narrativa moral. E também o trabalho, um certo trabalho chamado de “cuidar de”, cuidar da casa, esforçar-se para mantê-la, relacionalmente, narrativamente, mas sobretudo economicamente, dessas coisas que não eram separadas na condução moral da vida. E então o emprego nas fábricas era sobretudo valorado, pois viriam provavelmente dali os recursos para que um projeto da casa, de sua permanência e de sua manutenção, se efetivasse. Todos os Klein já haviam passado, em algum momento, pelas fábricas. Talvez o mais orgulhoso fosse Artur Silva, genro de dona Noêmia e casado com Fátima Silva. Era chanfrador em uma das fábricas de São Martinho, cargo que dividia com apenas mais um colega em toda a fábrica e, mesmo tendo se aposentado no período em que éramos vizinhos, permaneceu em sua função, tamanho era o apreço, ele dizia, que seus chefes tinham por ele.

Vale notar também que, entre meus vizinhos, trabalhar era ser forte, ter um corpo forte. Corpo forte, poderíamos dizer, no modo como Anton Blok (1981BLOK, Anton. 1981. “Rams and Billy-Goats: a key to the mediterranean code of Honour”. Man, Londres, 16 (3):427-440.:434) definia a força dos sicilianos, que implicava a capacidade de defesa da integridade moral, mas também todo um regime de comportamentos definidores de gênero, a moral fazia-se em sua aparição pública, era ativada enquanto objeto de disputa, especialmente quando se tratava de desdenhar o outro a fim de promover a si mesmo. Esta era a questão do “ponto de honra”, o nif, entre os Cabila (Bourdieu 2006BOURDIEU, Pierre. 2006. “Tres Estudios de Etnología Cabilia”. In: P. Bourdieu, Sociología de Argelia e Tres Estudios de Etnología Cabilia. Madri: Centro de Investigaciones Sociológicas/ Boletín Oficial del Estado.:250-287). Era também a questão daquilo que Herzfeld (1987HERZFELD, Michael. 1987. Anthropology Through the Looking Glass: critical ethnography in the margins of Europe. Cambridge: Cambridge University Press.:140) chamou de moral shifter, enquanto uma operação estratégica de classificação moral, que acionava o nós e o eles, aquilo que era atributo pessoal - como a força ou qualquer outra característica - e aquilo que era a falta deste atributo; enfim, uma classificação daquilo que era admirável e daquilo que era desdenhado. Isto entrava no cálculo do cuidado da vida de moradoras e moradores, do cuidado do corpo, na definição de cuidar de, como uma apreciação mais ampliada de trabalho, que implica um esforço demasiado para se apresentar enquanto um corpo forte, adequado à apreciação moral, o que, por vezes (e não poucas vezes), fracassava.

O ideal de força, como um ideal comum em comunidades rurais, já havia sido notado na Encosta da Serra. Ellen Woortmann, tendo realizado a primeira etnografia entre os colonos do sul, resgata a ideia de força como fundamental na apreciação moral de colonas e colonos, mulheres e homens. A autora dizia, quanto aos homens, que eram esperados sua força física relacionada ao trabalho, resistência à dor e ao desgaste físico, resistência aos efeitos da bebida (Woortmann, 1995WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1995. Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo/ Brasília: Hucitec/ Editora da UnB.:172), prudência, senso de justiça e solidariedade para com parentes e vizinhos (Woortmann 1995WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1995. Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo/ Brasília: Hucitec/ Editora da UnB.:142). Às mulheres eram atribuídas as mesmas expectativas, além de uma a mais, a da responsabilidade para com os filhos, o que a autora ressalta que tendia a ser uma expectativa cada vez mais em declínio (Woortmann 1995WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1995. Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo/ Brasília: Hucitec/ Editora da UnB.:142-143). Nessa apreciação moral, um corpo não disposto ao trabalho, ao cuidado, em sentido ampliado, e mesmo às suas dores decorrentes, era um corpo fraco, moralmente inadequado.

A vida inadequada: uma pragmática do sofrimento

Nessa relação entre distintas concepções daquilo que seria necessário à condução da vida, a clínica praticada por Fernando, assim como a narrativa moral da força que levava para um trabalho demasiadamente desgastante para moradoras e moradores não eram universos distintos entre si, mas transformações pragmáticas de um mesmo processo de captura, que tinha como principal matéria-prima a vida de colonas e colonos. A pragmática deve ser entendida, aqui, não como uma oposição ao simbólico ou ao ritual (como o terreno da prática), mas como um movimento de captura e transformação de narrativas e corpos, que não estabelece realidades duradouras. Do modo como me aproprio do termo, ele não se relaciona ao terreno da práxis, mas à característica assistemática dos signos, aquilo que Deleuze e Guattari chamavam de “língua menor” (Deleuze & Guattari 2007aDELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 2007a. “20 de Novembro de 1923 - Postulados da Linguística”. In: G. Deleuze & F. Guattari, Mil Platôs. São Paulo: Editora 34. pp. 11-59. :13-17). A língua, para os autores, como expressão da linguagem, não é comunicativa nem informativa. O que caracteriza a língua são os atos de fala, os atos interiores à linguagem, que se executam no momento da fala. É o ilocutório. Nesse processo, não existe enunciação individual nem sujeito da enunciação. A enunciação é sempre operada por agenciamentos coletivos. Toda língua, deste modo, é uma língua menor, em variação pela própria fala, que jamais forma estrutura ou constantes.

Acontece que, acontecendo, essa língua subvertia reciprocamente signos médicos e signos morais. Naquilo que se relaciona à vida moral, a linguagem raramente se constitui em palavras. Como lembra Veena Das (2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley/Los Angeles: University of California Press.:1-17), as palavras muitas vezes subvertiam o que havia de vivido nessas memórias. Pois então se falava da família, do tempo de guri, dos falecidos, da roça que se partia em terrenos vicinais, da fome, da pobreza e das casas que materializavam a superação desse tempo. Aquilo que é aludido a memórias, relações, à rotina ou à própria passagem do tempo não ganha, necessariamente, a palavra “sofrimento”, ainda que, muitas vezes, isto retornava à rotina sob o signo da depressão, na relação com o atendimento médico. Mas então, acontecendo como língua da vida, toda essa ordem do sabido se materializava em palavras situadas em um regime distinto de signos, mas não distante, e muito menos puro, que passava a ser simbioticamente atrelado à própria vida, como o discurso médico.

Esta é, portanto, a característica pragmática de certos signos, como o sofrimento. Sigo, aqui, a definição de Stengers e Pignarre (2011PIGNARRE, Philippe & STENGERS, Isabelle. 2011. Capitalist Sorcery: Braking the spell. Nova York: Palgrave Macmillan. ), que defendiam a pragmática como a análise que não tomasse um processo social pelo fim (no caso deles, o capitalismo), que conseguisse prestar atenção, acompanhar suas consequências, já que o capitalismo se externaliza diferentemente de acordo com quem enfrenta. Os autores, por sua vez, partem da definição de Deleuze e Guattari (2007bDELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 2007b. “587a.C. - 70d.C. - Sobre Alguns Regimes de Signos”. In: G. Deleuze & F. Guattari, Mil Platôs. São Paulo: Editora 34 . pp. 61-107.:103-106), para os quais a pragmática deve levar em conta, entre outras coisas, que uma transformação incorpórea (ou significativa) não se dissocia daquela essencialmente corporal (ou física). Todo regime de signos, que estabelece o universo do real, envolve um agenciamento que atua em duas frentes relacionadas. Em uma delas, organizam-se os corpos e o universo do concreto, estabelecendo uma forma de conteúdo assimilável. Em outra frente, organizam-se a linguagem e os signos, estabelecendo uma forma de expressão, ou o que Michel Foucault (2005FOUCAULT, Michel. 1995. “O Sujeito e o Poder”. In: H. Dreyfus & P. Rabinow, Michel Foucault, uma Trajetória Filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. pp. 231-249.:7-13; 2008:49) chamaria de regime de verdade (que relaciona os discursos).

Assim, uma análise pragmática dá ênfase ao acontecimento, e não às possíveis estruturas subjacentes ao acontecimento. É situacional, poderíamos dizer, ainda que o próprio enquadramento do contexto só se torne inteligível pelos signos apropriados pelo movimento pragmático. A pragmática do sofrimento, neste sentido, expressa sua intensa capacidade em ser apropriada por regimes de signos distintos. Nesse trânsito significativo, o trabalho era um dos índices privilegiados do limite moral pelo qual o sofrimento poderia significar, a narrativa de superação privilegiada de uma vida moral, uma vida judiada, ou o índice privilegiado de uma vida inadequada, sem sentido e alvo de uma política de saúde.

Como resultado dessas transformações, desses deslizes significativos, como o distúrbio diagnosticado na consulta e uma vida moral dedicada ao trabalho, restavam escolhas éticas fadadas ao fracasso, que colocavam a vida cotidiana entre limites por vezes insuportáveis. Todas elas envolviam, de alguma forma, uma relação entre o trabalho e a dor. Na clínica, tudo levava a crer que o trabalho nas indústrias calçadistas não apenas aumentava exponencialmente os casos de DORT (Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho) e LER (Lesões por Esforço Repetitivo), como também estimulava os casos de ansiedade e depressão, como doenças diagnosticadas e analisadas de acordo com os manuais oficiais de transtornos e doenças. As casas, materialização da vida moral, levavam seus residentes a saírem para o trabalho, que envolvia sobremaneira parte dos cuidados da casa, de sua manutenção, de seu projeto, ainda que judiado. Mas esta era sempre uma via de mão dupla.

Pois se o trabalho implicava, por um lado, a realização de uma vida moral, por outro lado, fazia circular apreciações sobre aqueles que a ele se dedicavam ou se retiravam. Eram as fofocas. A acusação de preguiçoso é um exemplo típico desta apreciação, uma negativa, que buscava hierarquizar posições através de uma conduta prescrita, ainda que esta prescrição fosse operacionalizada diferentemente de acordo com o que estava em jogo. O trabalho possibilitava, deste modo, uma classificação: havia aqueles que trabalhavam, e havia os preguiçosos que, por esta acusação, ocupavam uma posição similar aos de fora, como eu, também acusados de não trabalharem.

Lembro-me do caso de Fátima Klein, já citado em outro trabalho (Oliveira 2022OLIVEIRA, Everton de. 2022. “Morte e vida na colônia: o problema do suicídio entre os colonos alemães do Sul do Brasil”.Etnográfica, Lisboa, 26 (2):351-369.), como o caso mais expressivo que tenho na memória, pois nos envolveu a todos, na vila. Fátima Klein era nora de Noêmia Klein, a matriarca da Vila dos Klein, casada com seu filho Olavo Klein, que se tornou um grande amigo durante minha estadia na vila. Fátima Klein já não saía de casa para trabalhar. Ela havia sido diagnosticada com um glaucoma ocular em 2008, que a fez ficar com apenas 20% de sua visão em seu olho esquerdo, segundo os diagnósticos que havia recebido. Fátima teve que deixar definitivamente a fábrica, e ficou encostada no INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) desde então, lutando com um advogado por sua aposentadoria por invalidez. Além da dor, que a impedia de continuar trabalhando nas fábricas, o que gostava, havia as fofocas. Quando Fátima saía de casa para buscar lavagem para os porcos ou ajudar Olavo na lida da roça, constava que ela estava tentando enganar o INSS, e ficar encostada tinha a ver com o fato de ser preguiçosa. Fátima, então, ficava em casa para evitar mais fofocas. Visitava suas vizinhas, especialmente Fátima Silva, mas já não frequentava tanto a região mais movimentada da comunidade, as ruas das lojas, fábricas e da Igreja Matriz. Fátima não trabalhava mais, não rotineiramente.

As fofocas entravam, portanto, no cálculo da vida judiada, da vida moral na colônia, que articulava uma gramática da dor e um idioma singular da casa. Ambos tinham no trabalho seu enredo. Mas as fofocas não tinham qualquer rumo definido, a não ser o de simplesmente existirem. Moralmente referenciado ao trabalho, seu enredo em geral tinha como protagonistas qualitativos morais como algum preguiçoso ou preguiçosa da comunidade, mas, na mesma proporção, algum louco ou louca, aqueles cujo comportamento parece não fazer mais sentido. A irmã de Fátima Klein já passara por essa alcunha, de louca. Anos antes de saber de seu parentesco com Fátima, eu a havia visitado na companhia de Sônia, então agente comunitária de saúde, no inverno de 2012. Sônia contava-me que a mulher que visitaríamos tinha crises de desmaio constantes, o que preocupava Fernando. As visitas das agentes comunitárias de saúde sempre aconteciam em meio às demais tarefas de moradores e moradoras, e lembro-me de que a irmã de Fátima preparava um pão para seus quatro irmãos, que também moravam com ela. Uma conversa agradável, mediada pelo chimarrão e em torno do fogão de lenha, que esquentava as manhãs congelantes de São Martinho. Mas, surpreendendo-me, quando saíamos da casa, Sônia perguntou-me: “E aí? Você achou ela com cara de louca? Pois é. Pra mim é tudo fingimento para ganhar o INSS!”. Louca, preguiçosa e fingida. Como poderia, ainda, fazer pão?

Nesses casos extremos, restava a Clínica. Longe de ser o último recurso, moradoras e moradores se consultavam rotineiramente com Fernando, ainda que suas recomendações geralmente ficassem exatamente neste terreno, da recomendação. Segui-las ou não se ajustava a uma série de outras expectativas, dentre as quais as relacionadas à casa se destacavam. O trabalho, em particular, era geralmente privilegiado, mesmo em situações em que o afastamento médico era a atitude mais recomendada da perspectiva de Fernando. Muito irritado quando isso acontecia, Fernando acusava as fábricas de não permitirem licenças a suas funcionárias e funcionários. E de fato não permitiam, em um cálculo econômico do esgotamento físico que, também a mim, parecia perturbador. Mas esse cálculo não era tão distante da valoração moral do trabalho que levava homens e mulheres a se dedicarem às suas atividades mesmo nas situações mais adversas. O qualificador, uma vez mais, eram as fofocas, aquilo que se dizia ou não se dizia sobre uma pessoa, de acordo com a situação. E ter a reputação de trabalhadora ou trabalhador abalada era ter grande parte da vida moral colocada sob dúvida.

Por ironia, Fernando contribuía indiretamente para isso. Ao direcionar toda a sua atenção e o seu antagonismo às fábricas, aos médicos plantonistas e à política de bem-estar que se propunha implementar em São Martinho, baseada fundamentalmente na reconstrução de um certo comunitarismo perdido com a industrialização da colônia, Fernando deixava de dar atenção às casas e às fofocas. Emitia licenças de até 15 dias para funcionárias e funcionários das fábricas, o limite para não ter que entrar com pedido de afastamento no INSS. Mas seus pacientes, ele dizia desde 2011, insistiam em desorganizar o sistema. Não seguiam tratamentos, retornavam ao trabalho antes do vencimento da licença, não faziam o resguardo necessário. Porque sabiam que, caso se afastassem por tempo em demasia, fingido, louco, preguiçoso ou encostado seria o que de melhor ouviriam de seus colegas de trabalho.

2021, de novo: os moradores e a Covid 19

Quando retornei a São Martinho, em setembro de 2021, todos estavam de volta às suas rotinas usuais. As restrições em relação à Covid-19 ainda não haviam cessado, apesar do avanço na vacinação, especialmente a partir do mês de junho. Ainda assim, desde abril de 2020 (Dihl 2020DIHL, Bibiana. 2020. “Paradas desde o fim de março, fábricas calçadistas retomam atividades no RS”. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/04/paradas-desde-o-fim-de-marco-fabricas-calcadistas-retomam-atividades-no-rs-ck8yuo3pt02lt01nte2c4igw5.html . Acesso em 04/05/2020.
https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia...
) grande parte das atividades já havia retornado à rotina pré-pandemia, especialmente a atividade das indústrias calçadistas. Entre moradoras e moradores, a relação para com as restrições relativas à pandemia de Covid-19 também não era das mais amistosas. Meus antigos vizinhos e vizinhas tendiam a achar exageradas as medidas sanitárias, especialmente as que recomendavam o afastamento social. E isto vinha acompanhado de muitas das expectativas relacionas ao curso cotidiano da vida, como os ideais de força, do trabalho e, não menos importante, de sair de casa para se dedicar às atividades rotineiras.

Nesse ínterim, nas conversas que retomei especialmente com Fátima Silva, mas também com Fátima Klein, a disputa entre Denilson e Fernando era ponto de pauta das conversas no jardim. Com muito cuidado, pois todas as minhas antigas vizinhas e também os vizinhos sabiam de minha proximidade com Fernando. Fátima Silva me perguntava: “o que está acontecendo com Fernando?”. Eu lhe respondia que, até onde sabia, nada demais, nada fora do usual, ao menos. Respondia-lhe, achando que se tratava disso, que Fernando estava estressado com o trabalho, como sempre, com o modo como a administração pública estava lidando com as insistências das fábricas de retomarem tão cedo as atividades, mas nada que já não o estressasse há muito tempo. Mas Fátima insistiu: “não, não é disso que eu tô falando. Tô falando dele tá assim... meio fora”. Então entendi do que se tratava. E perguntei o porquê da indagação. Fátima contou que havia sabido da briga de Fernando com Denilson, mas não sabia o motivo ao certo. Contei-lhe o mote da discussão, sem entrar em detalhes, e Fátima pareceu satisfeita.

“Ficar sabendo”, “ouvi dizer”, “tem uma notícia” eram todas expressões-chave quando se queria transmitir uma fofoca em São Martinho. E nessa fofoca parecia haver um lado considerado “meio fora”, que seria Fernando, e o lado de Denilson que, há tempos, ganhava a simpatia de moradoras e moradores de São Martinho. Denilson havia chegado a São Martinho no mesmo período em que Fernando, há dez anos, aproximadamente. Foi aprovado para se tornar estatutário no mesmo concurso em que Fernando também foi aprovado, em 2013. Mas, diferentemente de Fernando, sempre se interessou pelas relações pessoais que poderia manter fora do Ambulatório. Não apenas visando à ascensão política - que de fato teve, tornando-se coordenador clínico do Ambulatório e, em 2021, presidente do Conselho Municipal de Saúde -, mas também tendo em vista uma certa aproximação de moradoras e moradores, um certo convívio mais próximo com a rotina da comunidade. Fazia parte do time de futebol de funcionários da administração municipal, assim como Fernando e, até 2018, eu mesmo, mas permanecia na quadra após o jogo, era uma pessoa de fácil comunicação, enquanto Fernando geralmente restringia o máximo possível a conversa fora do ambiente da Clínica.

Nesse jogo de apreciações, Fernando sempre foi visto como empenhado e altamente qualificado para São Martinho, tendo que lidar, muitas vezes, com rumores de que deixaria a cidade para retornar a Porto Alegre ou a outro grande centro. No entanto, Denilson partilhava daquela qualidade que Boltanski (2004BOLTANSKI, Luc. 2004. As Classes Sociais e o Corpo. São Paulo: Paz e Terra.:34) lembrava que sempre foi muito apreciada entre pacientes das classes trabalhadoras, a simpatia, a franqueza, o fácil trato, ou a humildade. E na querela com Fernando, Denilson defendia o tratamento precoce, que ia diretamente ao encontro do anseio de colonas e colonos de retornarem às suas atividades usuais, de retornarem às fábricas, de saírem de casa.

A inadequação como resultado inesperado: Considerações finais

Entre brigas, desentendimentos e uma tendência da Secretaria Municipal de Saúde em adotar, do mesmo modo, a política do tratamento precoce, Fernando se viu esgotado. Ele mesmo havia se tornado inadequado, ao menos diante das expectativas de moradoras e moradores, em grande parte pacientes da Clínica São Martinho. Tudo aquilo que, de sua perspectiva, implicava uma certa inadequação em relação à vida de colonas e colonos retornava como fofocas e julgamentos a respeito de sua própria posição na briga com Denilson, do ponto de vista de uma vida moral que tem justamente no trabalho e no ideal de força prescrições éticas fundamentais. Fernando, que cogitou seriamente deixar São Martinho, permaneceu na comunidade. Mas sua leitura do que seria a implementação de ESF em São Martinho certamente se encontrava na chave do fracasso. Todas as suas expectativas a respeito de como a Atenção Básica atuaria na cidade acabaram não levando em conta justamente a composição multifacetada do próprio atendimento à saúde em nível local, que envolve uma série de outras questões, dentre as quais a mais elementar é justamente a disposição de outros canais de atendimento, no mesmo nível. Mas, nessa relação de inadequação, nesse deslize significativo da noção de sofrimento por registros distintos, o que restava também eram os pacientes.

Essa vida inadequada como efeito de um desencontro entre narrativas distintas, ainda que pragmaticamente relacionadas por signos dúbios, como sofrimento, está de acordo com o que já é produzido na literatura sobre as margens do Estado (Ferreira 2019FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. 2020. “Notas sobre a rotina: tempo, sofrimento e banalidade do poder na gestão de casos de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro”.Antropolitica, Niterói, 47:118-142.; Vianna & Farias 2011VIANNA, Adriana & FARIAS, Juliana. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37. <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332011000200004⟨=pt >. Acessado em: 02/07/2011.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Das 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley/Los Angeles: University of California Press.; Das & Poole 2004DAS, Veena & POOLE, Deborah. 2004. Anthropology in the margins of state. Santa Fé/Oxford: SAR/James Furry.; Jeganathan 2004JEGANATHAN, Pradeep. 2004. “Checkpoint: anthropology, identity and the state”. In: V. DAS & D. POOLE, Anthropology in the margins of state. Santa Fé/Oxford: SAR/James Furry . pp. 67-80.). Esses trabalhos marcam o modo como, na relação com órgãos da administração pública, populações não familiarizadas com suas dinâmicas, seus processos, sua linguagem e suas rotinas, na busca de soluções para litígios, crimes, reparações ou mesmo desaparecimentos, tendem a ter acentuada a dor que porventura já sentem. O efeito de Estado nessas situações tem por fim a potencialização de uma sensação de descompasso ético, moral e linguístico. Não podem ser ouvidas, pois não acessam a linguagem burocrática; não podem ser atendidas, pois não foram ouvidas. Além disso, é difícil enquadrar em uma única explicação aquilo que aflige, pois, muitas vezes, a dor é cotidianamente vivida nas tarefas do dia a dia, nas memórias que elementos do cotidiano suscitam. Não há, portanto, “um” sofrimento.

Nessa condição, uma relação com os canais de atendimento à saúde, em especial em um contexto em que os dois principais canais se encontravam em uma disputa de perspectivas, colocava moradoras e moradores em uma série de checkpoints da conduta, que se distribuía no aparato burocrático do atendimento à saúde. Retiro esta expressão como ela é utilizada por Letícia Ferreira (2019FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. 2020. “Notas sobre a rotina: tempo, sofrimento e banalidade do poder na gestão de casos de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro”.Antropolitica, Niterói, 47:118-142.), de sua leitura sobre a etnografia que Pradeep Jeganathan (2004JEGANATHAN, Pradeep. 2004. “Checkpoint: anthropology, identity and the state”. In: V. DAS & D. POOLE, Anthropology in the margins of state. Santa Fé/Oxford: SAR/James Furry . pp. 67-80.:67-80) realizou na cidade de Colombo, Sri Lanka, resumida na famosa compilação de Veena Das e Deborah Poole sobre as margens do Estado (Das & Poole 2004DAS, Veena & POOLE, Deborah. 2004. Anthropology in the margins of state. Santa Fé/Oxford: SAR/James Furry.). A leitura de Ferreira permite que levemos o argumento de Jeganathan - de que, no baixo escalão, uma série de barreiras e fronteiras estatais constituem objetos mais ou menos permanentes de assujeitamento e de atribuição identitária - para o nível mais propriamente burocrático. Na rotinização da peregrinação pela burocracia há mesmo uma certa gestão do sofrimento aceitável, daquele que pode ser traduzido em demandas e resultados, daquele que pode ser, poderíamos dizer, pragmaticamente operado em regimes distintos e, por vezes, resulta em mais peregrinação e em mais sofrimento.

Sofrimento, loucura, fingimento e preguiça. O sofrimento, então um processo ou mesmo uma ética de condução da vida, era qualitativamente referenciado em uma linguagem imperativa, que tinha como efeito uma vida que não podia mais ser referenciada como vida moral, e sequer como uma vida saudável, no sentido biopsicossocial. Era uma vida em tratamento, inadequada para o serviço de saúde, inadequada para a vida moral de São Martinho. Era uma vida depressiva, fingida, louca ou mesmo estressada, que deveria se adequar ao que porventura lhe causasse dor, pois, caso contrário, não se adequaria a nada. O efeito dessa inadequação, dessa pragmática que faz o sofrimento ser tanto moral quanto médico, desse trabalho que, causando dor, deve ser encarado para não cair na chave da preguiça ou da inadequação clínica, são corpos e pessoas que permanecem trabalhando e buscando suprir as expectativas mais variadas, ainda que seja justamente isto que, muitas vezes, leve a um esgotamento físico e mental. Por sua vez, cansado de ser inadequado e emocionalmente esgotado, Fernando lançava-se cada vez mais à defesa de uma qualidade de vida para seus pacientes, opunha-se ao protocolo do Ambulatório municipal e, assim, via mais e mais distante a possibilidade de realização de seu projeto pessoal, o que o esgotava ainda mais. O que restava eram vidas inadequadas. Por parte dos moradores, inadequados em seu sofrimento. Por parte de Fernando, inadequado em sua conduta médica. E, pragmaticamente, o que restava era um território significativo que fazia com que a ênfase fosse dada justamente àquilo que potencializava cada uma dessas “inadequações”.

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Notas

  • 1
    Nome fictício. Todos os nomes de pessoas (assim como seus sobrenomes), lugares, cidades, bairros, fábricas ou comunidades, diretamente envolvidos na pesquisa, foram alterados. A opção foi feita em minha pesquisa de mestrado, desenvolvida na mesma comunidade entre 2011 e 2013, quando eu acompanhava a implementação de uma política pública de atendimento à saúde. Na verdade, esta foi uma das condições para que a pesquisa fosse realizada, o que, tendo continuado o trabalho de campo na mesma comunidade em minha pesquisa de doutorado, decidi permanecer com a mesma opção metodológico-narrativa. Para que fique claro, por não se relacionarem diretamente com universo social da pesquisa, os municípios de Porto Alegre e Novo Hamburgo permaneceram com seus nomes reais.
  • 2
    Voltaremos a este ponto ao longo do texto. No entanto, Carvalho e Buss (2008CARVALHO, Antônio Ivo & BUSS, Paula Marchiori. 2008. “Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção”. In: Lígia Giovanella et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. p. 141-166.:154) notam alguns pontos principais na reorientação do sistema de atendimento à saúde rumo ao modelo de promoção à saúde: elaboração e implementação de políticas públicas de saúde; criação de ambientes favoráveis à saúde; reforço da ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais; reorientação do sistema de saúde.
  • 3
    Agradeço imensamente as recomendações feitas pelas revisões ad hoc ao artigo originalmente enviado para publicação. Foram fundamentais para reescrita e clareza do texto final. Aproveito para agradecer também os comentários generosos feitos às versões anteriores deste artigo pelos colegas do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs/UFRGS) e do International Postdoctoral Program (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E, claro, agradeço também a leitura atenta de Carla Souza de Camargo, que sempre auxilia na definição mais objetiva do argumento, do problema e dos objetivos do trabalho.
  • 4
    A vacinação contra a Covid-19, no Brasil, iniciou-se em janeiro de 2021, em São Paulo, e acelerou-se a partir de junho do mesmo ano. No caso de minha vacina e da de Carla, a que foi desenvolvida pelo consórcio Universidade de Oxford/AstraZeneca, e produzida, no Brasil, pela Fundação Oswaldo Cruz, previa um esquema de duas doses, com um intervalo de dez semanas (no caso do protocolo adotado pelo município de Porto Alegre na época em que me vacinei). Carla e eu estávamos com as duas doses efetivas, isto é, vacinados com a segunda dose há mais de 22 dias.
  • 5
    Segundo os dados do Ministério do Trabalho e do Emprego de 2016, quando eu estava na comunidade, 51,54% de trabalhadoras e trabalhadores formais empregavam-se nas indústrias calçadistas. Um total de 1008 funcionárias e funcionários de acordo com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Calçadista de São Martinho, para um total populacional de pouco mais de 6.000 habitantes.
  • 6
    Não há uma tradução convencional para o alemão das colônias, ora denominado taytx, ora hunsrik. Como oralidade, a língua se preservou em muitas variações de acordo com a família, com as vilas e mesmo com a religião, católicos ou luteranos. Se fôssemos seguir algum acordo em relação a essas línguas, teríamos que traduzir cachaça por ’xnaps e cerveja por pia, aproximando essas palavras da tentativa de Úrsula Wiesemann (Wiesemann 2008WIESEMANN, Ursula. 2008. “Contribuição ao desenvolvimento de uma ortografia da língua Hunsrik falada na América do Sul”. Associação Internacional de Linguística - SIL Brasil, Cuiabá.), linguista ativa também na tradução da língua Kaingang do RS, de codificar a oralidade da colônia. Mas o trabalho da autora tem inúmeras críticas, desde as mais conservadoras, que afirmam que a língua da Encosta da Serra está fadada à morte, até as mais progressistas, que afirmam que seu trabalho não levou tão a sério as variações linguísticas presentes na região. Por isso, optei pela escrita no alemão formal.
  • 7
    Não tenho condições de traçar aqui, assim como não encontrei qualquer trabalho que o faça, historicamente, o paralelo entre o uso corrente dessa noção entre os colonos alemães do sul do Brasil e sua origem antissemítica. As impressões e as suposições, claro, são evidentes. Mas, documentalmente, existe uma lacuna até agora não preenchida.
  • 8
    Um excelente trabalho para se entender a decadência da atividade agrícola na colônia permanece sendo o de Ellen Woortmann (1995WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. 1995. Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo/ Brasília: Hucitec/ Editora da UnB.).
  • 9
    Everton de Oliveira é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS/campus Litoral Norte). Analista de Assuntos Culturais da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do RS. Pós-doutorando no International Postdoctoral Program (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde - PPGAS/UFRGS e membro do Colegiado Gestor do Comitê de Antropologia e Saúde da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado

: John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2021
  • Aceito
    20 Mar 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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