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Resenha de: TSING, Anna Lowenhaupt. 2022. O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Tradução de Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 edições. 412 p.

Resenha de: TSING, Anna Lowenhaupt. . 2022. O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo . Tradução de Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 edições. 412 p.

Cerca de sete anos após a publicação original em língua inglesa, O cogumelo no fim do mundo: sobre as possibilidades de vida nas ruínas do capitalismoTSING, Anna Lowenhaupt. 2022. O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Tradução de Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 edições. 412 p. é traduzido para o português brasileiro pela n-1 Edições em 2022. Prefaciada por Joana Cabral de Oliveira, que inspira um comentário bastante oportuno do livro ao destacar suas potencialidades, a obra da antropóloga Anna Lowenhaupt Tsing já deixa sua marca no rol de etnografias indispensáveis para pensar o mundo contemporâneo. Mundo este cada vez mais perturbado pela ação antrópica que, como se sabe, provocou nos últimos anos debates acerca dessa força climático-geológica que caracteriza o chamado Antropoceno. Um mundo, novamente, atravessado pelas transformações radicais que o capital lhe impõe.

Estas não são constatações inauguradas por Tsing, mas são um pano de fundo de que parte sua etnografia para construir a pesquisa. Poderíamos mesmo dizer que sua pergunta se apresenta da seguinte maneira: como pensar, e habitar, um mundo em ruínas? O direcionamento da resposta, entretanto, é feito em composição. Como boa antropóloga, seu meio para alçar a questão depende inteiramente das relações reais estabelecidas na convivência com determinados “outros”. Outros que, num movimento recente na disciplina antropológica apelidado de “estudos multiespécies”, 1 1 Ver Kirksey, Münster e van Dooren ( 2016). não abarcam apenas os humanos em suas diferenças culturais, mas também os não humanos em suas especificidades.

Como Tsing nos conta, o grande trunfo do fungo Tricholoma matsutake é sua habilidade de prosperar em diversas paisagens deterioradas, já que prefere solos pouco férteis aos ricos em matéria orgânica. Outro ponto, não menos importante, é que tal forma de vida só emerge em composição: sem pinheiros e carvalhos, com os quais o matsutake se associa em benefício mútuo (as chamadas “micorrizas”), nem planta, nem fungo são capazes de vir à tona, de subsistir. Alianças são, portanto, fundamentais para que nos meios devastados possam persistir determinados modos de viver. Ainda, não se deve perder de vista um terceiro ponto, a saber, a indeterminação do encontro, em especial com os humanos. Se se está de acordo que a ação humana hoje é capaz de uma escala destrutiva e perturbadora sem precedentes, não deixa de ser verdade que, como demonstra a autora, relações de outra ordem também são estabelecidas ao longo do que chama de “designs não intencionais”. Para Tsing, estamos, humanos e não humanos, aptos a entrar em assembleias 2 2 “Assembleia” é a tradução escolhida por Jorgge Menna Barreto e Yudi Rafael para assemblages. que nos reconfiguram ao mesmo tempo que são transformadas por encontros invariavelmente indeterminados. Assim, a ação humana promove intervenções que podem ou não obter sucesso na produção de biodiversidade, podem ou não multiplicar relações. A “perturbação antrópica” ganha novos contornos, declinando sentidos que vão da concepção estadunidense negativamente valorada (modificar a floresta significaria prejudicá-la) às técnicas sino-japonesas de manejo florestal (mais intervenção significa maior chance de sucesso).

Aliando-se também aos micologistas e aos catadores de cogumelos das florestas nórdicas, chinesas e estadunidenses, Tsing aprende e nos ensina sobre os cogumelos matsutake. Trata-se de uma espécie cuja frutificação não foi ainda possível de se reproduzir fora de suas assembleias nas florestas (para fins produtivo-comerciais) e que, nesse sentido, escapa à lógica da plantation e do projeto de “escalabilidade” da Ciência moderna. Ambos aparecem, na análise de Tsing, como meios de depurar relações, de cortá-las fora de seus emaranhados, de tal modo que, reformulando um conceito caro à teoria marxista, alienam - via “traduções” do capital - as associações constitutivas da vida. De um lado, então, há histórias de seres humanos e não humanos indeterminadas; do outro, tentativas repetidas mas nunca absolutas de comoditização.

Debruçando-se sobre não apenas os cogumelos matsutake, mas igualmente sobre as redes e os emaranhados que são tecidos em torno deles, Tsing como que opera então um “giro” copernicano 3 3 Como se sabe, Pierre Clastres ( 2003) anunciava a urgência de uma “revolução copernicana” na antropologia política ao colocar no centro de nosso pensamento analítico as concepções e as formulações indígenas. Tiro proveito dessa imagem. em torno da centralidade dos não humanos para o pensamento antropológico. Pois ao considerarmos que nos últimos séculos a história humana e social acaba por “invadir” a história natural, 4 4 Ver texto fundamental de Dipesh Chakrabarty ( 2013). confundindo-se com ela na interferência de processos ecológicos e climáticos, o nome mesmo do Antropoceno sugere aí um lugar de destaque de nossa espécie que pode vir a minorar a centralidade da interdependência de seres. Ao contrário, a etnografia e a análise de Tsing explicitam os meios pelos quais mundos são feitos conjuntamente e, portanto, entende que é impossível falar de vida sem coimplicação, sem “encontros” e “contaminações” com os não humanos. Os cogumelos matsutake vêm à tona em boa hora ao se mostrarem indispensáveis para compreender o mundo de hoje e para projetar, no futuro, “possibilidades de vida”. Fazem-nos, assim, repensar conceitos fundamentais trabalhados pela autora, dentre eles: dádiva e mercadoria; espécie biológica; indivíduos e assembleias etc.

Falar de “mundos”, no plural, é necessário porque o livro não se furta a pensar multiplicidades ontológicas, embora não trate do assunto nomeadamente. “Projetos de fazer-mundo” é uma das expressões empregadas por Tsing para demarcar a capacidade dos fungos, bem como das plantas e de outros seres vivos, de produzir efeitos e transformações, de cultivarem-se a si mesmos e a outrem fora da lógica da identidade solipsista ou autocontida. Se nenhum é agente a priori, porque não existe agência predefinida fora do encontro, todos são potencialmente fazedores de mundos, dado que essa habilidade é menos uma propriedade intrínseca do que uma atividade, uma ação. Nesse sentido, para Tsing, fazer história é para todos, cabendo a nós perceber, ouvir e contar diferentes estórias. 5 5 A distinção entre history e story é replicada na tradução do inglês pelos tradutores com as palavras respectivas de “história” e “estória”.

Pode-se argumentar que O cogumelo no fim do mundoTSING, Anna Lowenhaupt. 2022. O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Tradução de Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 edições. 412 p. é um livro sobre o capital e suas fissuras. Ainda que Tsing execute uma etnografia do capitalismo, é tanto quanto possível afirmar que sua análise deságua menos numa crítica ao capitalismo do que numa crítica à noção de progresso: o que a antropóloga faz em seu livro consiste numa tentativa de desmonte das promessas de progresso que ainda tomam forma hoje. Seja pela formulação da ideia de “espaços pericapitalistas”, seja pela narração dos modos de vida que precariamente sobrevivem em meio às ruínas capitalistas, apreende-se que existem histórias e economias paralelas à marcha do prometido progresso econômico global, embora jamais alheias a ele. Deve-se notar que o sentido de progresso evocado é nuançado, pois, tal como Tsing o entende, pode significar tanto as promessas de desenvolvimento (econômico-produtivo) como as ruínas inelutáveis que deixa em seu rastro. Ou seja, a antropóloga se situa num lugar de dupla recusa do progresso, o que significa em realidade a recusa da ideia total de progresso que, bom ou mau, seria inexorável. Há cadências múltiplas de vida fora do ritmo implacável do progresso capitalista.

Disso, tira-se que com as estórias narradas passamos a conhecer modos de sobrevivência para nós até então inauditos: a vida ainda é possível na medida em que vivemos precariamente, quer dizer, vivemos entre encontros “abertos”, imprevisíveis, cujo caráter indeterminado possibilita reimaginar tanto quanto de fato adentrar futuros alternativos à destruição total e ao falso progresso. Vir-a-ser é uma palavra de ordem, mais do que uma constatação de uma certa “ontologia matsutake”.

Não à toa, há uma relação transpassada no livro de certa homologia entre forma e conteúdo, o pensado e o pensar, 6 6 Lembremos que os cogumelos matsutake inspiram Tsing a contar histórias de sobrevivência e, assim, inspiram-na a pensar a própria precariedade do mundo que ela formula conceitualmente em sua obra. que reflete uma virtude já identificada por Claude Lévi-Strauss no espírito humano. Ao comentar o funcionalismo de Alfred Radcliffe-Brown em O totemismo hojeLÉVI-STRAUSS, Claude. 1975. O totemismo hoje. Petrópolis: Vozes., ele diz: “Em cada um de seus empreendimentos práticos, a antropologia não faz mais do que verificar a homologia de estrutura entre o pensamento humano em exercício e o objeto humano ao qual ele se aplica. A integração metodológica de fundo e forma reflete, à sua maneira, uma integração mais essencial: a do método e da realidade” ( Lévi-Strauss, 1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975. O totemismo hoje. Petrópolis: Vozes.:96). Neste aspecto, é como se Anna Tsing reatualizasse seu pensamento (antropológico) em composição com o fungo matsutake, exprimindo assim uma propriedade do pensar que é também uma propriedade geral das relações: fazer-com. E não é trivial acionar essas histórias, pois, como Donna Haraway resgatou em Staying with the trouble: “It matters what ideas we use to think other ideas” ( Strathern 1992STRATHERN, Marylin. 1992. Reproducing the Future. Manchester, UK: Manchester University Press. citada em Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham e London: Duke University Press.:34). A escolha de um suposto objeto de pesquisa não pode ser impensada: ela define também, ao menos em Antropologia, como nossos conceitos e, logo, nosso pensamento se formularão. Assim, as contribuições do trabalho de Tsing com os cogumelos matsutake, bem como de seu grupo de pesquisa Matsutake World Research Group, continuarão a dar frutos enquanto ainda persistirem as formas de vida fúngicas.

Referências

  • CHAKRABARTY, Dipesh. 2013. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, n. 91:4-22.
  • CLASTRES, Pierre. 2003. Capítulo 1: “Copérnico e os selvagens”. In: CLASTRES, Pierre, A sociedade contra o Estado São Paulo: Cosac & Naify.
  • HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene Durham e London: Duke University Press.
  • KIRKSEY, Eben; MÜNSTER, Ursula & VAN DOOREN, Thom. 2016. “Multispecies Studies Cultivating Arts of Attentiveness”. Environmental Humanities, v. 8, n.1:1-23.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975. O totemismo hoje Petrópolis: Vozes.
  • STRATHERN, Marylin. 1992. Reproducing the Future Manchester, UK: Manchester University Press.
  • TSING, Anna Lowenhaupt. 2022. O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo Tradução de Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 edições. 412 p.

Notas

  • 1
    Ver Kirksey, Münster e van Dooren ( 2016KIRKSEY, Eben; MÜNSTER, Ursula & VAN DOOREN, Thom. 2016. “Multispecies Studies Cultivating Arts of Attentiveness”. Environmental Humanities, v. 8, n.1:1-23.).
  • 2
    “Assembleia” é a tradução escolhida por Jorgge Menna Barreto e Yudi Rafael para assemblages.
  • 3
    Como se sabe, Pierre Clastres ( 2003CLASTRES, Pierre. 2003. Capítulo 1: “Copérnico e os selvagens”. In: CLASTRES, Pierre, A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify.) anunciava a urgência de uma “revolução copernicana” na antropologia política ao colocar no centro de nosso pensamento analítico as concepções e as formulações indígenas. Tiro proveito dessa imagem.
  • 4
    Ver texto fundamental de Dipesh Chakrabarty ( 2013CHAKRABARTY, Dipesh. 2013. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, n. 91:4-22.).
  • 5
    A distinção entre history e story é replicada na tradução do inglês pelos tradutores com as palavras respectivas de “história” e “estória”.
  • 6
    Lembremos que os cogumelos matsutake inspiram Tsing a contar histórias de sobrevivência e, assim, inspiram-na a pensar a própria precariedade do mundo que ela formula conceitualmente em sua obra.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2023
  • Aceito
    23 Jul 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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