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Resenha de: FIGUEIRO, Pablo. ¿Querés salvarte? Apuestas, dinero y salvación en el juego de la quiniela. TESEOPRESS. Buenos Aires, 2022. 256 p.

Resenha de: FIGUEIRO, Pablo. . ¿Querés salvarte? Apuestas, dinero y salvación en el juego de la quiniela. TESEOPRESS. Buenos Aires, 2022. 256 p.

O ato de apostar em espaços públicos, de tentar a sorte em uma loteria popular muito nos é familiar. Aqui, o sociólogo Pablo Figueiro aposta alto ao adotar a Quinela, uma loteria popular e tradicional da Argentina, como seu objeto de estudos. 1 1 Uma primeira versão desse texto foi apresentada e debatida com Ariel Wilkis, professor das universidades nacionais de San Martin (UNSAN) e do Litoral (UNL) e o autor durante a mesa de apresentação do livro na XIV jornadas del centro de estudios sociales de la economia realizado pela UNSAM - Buenos Aires - entre os dias 14 a 18 de novembro de 2022. Nela os participantes escolhem um conjunto de números que acreditam que serão sorteados em um próximo evento ou loteria e suas regras e regulamentações podem variar de acordo com a jurisdição de cada província. Partindo de um trabalho de campo etnográfico em duas agências de loteria na província de Buenos Aires, o autor indaga suas lógicas sociais de um jogo que atua transitando entre diversos binarismos: pensamento e ação, credo e rito, cálculo e paixão; e que mobiliza as pequenas esperanças econômicas e simbólicas de seus jogadores em uma circulação contínua de dinheiro e acontecimento. Com isso, adota como objetivo último fazer uma sociologia deste jogo que seja ao mesmo tempo uma sociologia do dinheiro, do simbólico, da esperança, da indústria das apostas, da moral do jogo e da vida cotidiana de seus apostadores.

Fundamentalmente, além de uma sociologia dos jogos, o trabalho permite alcançar uma interpretação sofisticada e sutil sobre os valores que o consumo, a produção, o dinheiro, os modos de produção, o trabalho e outros aspectos que permeiam as possibilidades de existência no capitalismo moderno. Olhar para o jogo com seriedade permite que problematizemos uma perspectiva formalista e utilitária da vida em função dos distintos sentidos que são atribuídos às formas de apostar. Para um “não jogador” (categoria que o próprio autor se inclui) o universo das apostas em um primeiro momento se apresenta como alienígena, destituído de sentidos lógicos e racionais. Entretanto, é quando se defronta com seus interlocutores que se torna possível apreciar a força e a complexidade que esta prática alcança. Buscando compreender o outro o mais próximo possível de seus próprios termos. Uma alteridade que coloca nossos valores, cosmologias, visões de mundo em xeque, e permite que repensemos nosso próprio universo social.

E você, quer se salvar? Pergunta o autor já no título do livro. Um questionamento diário feito por sujeitos que, independente de credo, raça, etnia e origem expressam a “esperança” de futuro, de alcançar uma vida mais digna, de sentir-se pleno em seus direitos e cidadania. A “salvação” tal como é entendida no universo das apostas no contexto argentino implica em uma categoria que insere os sujeitos em uma condição livre de preocupações financeiras. Salva-se com grandes prêmios que “mudam a vida”, tais como os grandes sorteios das loterias do Estado. Entretanto, este não é o caso da Quinela, que tem como uma perspectiva de uma salvação pontual e casual. Uma premiação nesta loteria implica em conseguir um pouco mais de dinheiro para se alcançar o consumo específico, muitas vezes inesperado, de um bem material ou de alcançar pequenos desejos mundanos. Salva-se um pouco e por um breve momento.

O jogo da Quinela, assim, se apresenta como uma perspectiva latente para uma melhoria de vida. Que por menor que seja seu prêmio, permite que sujeitos se sintam vencedores, mesmo que brevemente, em um universo cada vez mais permeado pela precariedade, informalidade e pobreza. Ser salvo, então, implica em ser liberto da falta de recursos e dinheiro, de adquirir meios de sustentar a si e aos seus. Salvar-se da desesperança, da miséria e das mazelas que o capitalismo impõe as pessoas cotidianamente. E para isso, deve-se ter perícia, e saber dominar o jogo como ele se apresenta nas casas de aposta. Saber enfrentar as adversidades da forma como dispõe suas regras. Um jogo de Quinela jogado “corretamente” permite que o jogador alcance um status de vencedor e adquira um diferencial simbólico frente aos demais. E para isso deve ser bravo, saber se pôr em risco, enfrentar as adversidades da vida e flertar com o azar, o vício e a perda.

A sorte, muitas vezes implacável, exige que os que a conquistem sejam mais ousados e saibam estar atentos a seus flertes que, assim como o fazem as musas inspiradoras, aparece sem ser chamada e da mesma forma desaparecem sem deixar vestígio. Qualquer coisa, situação ou momento cotidiano pode, em um maior ou menor grau, ser quantificado, ou melhor “numerificado”. Os números fazem parte de nossa sociedade e de nossas vidas. E com isso os jogos de loteria são beneficiados por utilizarem estas numerações em sua estrutura de apostas. Tão importante quanto saber pôr-se em risco é saber reconhecer quando o número “chama”. Saber reconhecer este lado mágico e sobrenatural quando o universo dá sinais para a tomada de ação. O jogo com apostas permite assim que seus praticantes estejam inseridos na liminaridade entre o profano e o sagrado e que assim possam transladar com seus “palpitos 2 2 Apesar da distinção da grafia “palpitos” na Argentina e “palpites” no Brasil, aqui seria possível realizar uma equivalência semântica de seus significados que não é exclusivamente fundada em uma lógica utilitária, para usar uma expressão consagrada de Marshall Sahlins ( 1976, 1995), numa “razão prática”, que, muitas vezes, confunde a percepção sensorial com o julgamento empírico e não consegue enxergar as imposições simbólicas necessariamente arbitrárias e axiomáticas entre demandas funcionais e seus resultados. ” em ambas as dimensões ( Damatta & Soárez, 1999DAMATTA, Roberto & SOÁREZ, Elena. 1999. Águias, Burros e Borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco.).

A sociologia do jogo, como operada aqui, permite entender o cotidiano de uma parte da vida de uma parcela da sociedade argentina que joga, se diverte e aspira uma vida melhor do que a apontada pela ética protestante de valorização do trabalho e que muitas vezes desvaloriza a diversão, o ócio e a brincadeira. Inclusive nas próprias ciências sociais, que preferem dar valor a temas “mais sérios” ou “relevantes”. Entretanto, muitos falham em ver que o jogo, suas lógicas e valores inerentes trazem para a interpretação do mundo moderno e da multiplicidade de formas e sentidos que a coletividade humana permite ter. O que fica claro aqui é que a prática na Quinela e os frutos de suas vitórias são entendidos também como ganhos e recursos legítimos utilizados como complemento pontual e não planejado da renda de uma parcela da população.

O tempo e o espaço são duas dimensões que se desdobram às regras que cada jogo impõe ( Huizinga, 1950HUIZINGA, Johan. 1950. Homo Ludens: a study of the play element of the culture. Boston: Beacon Press.). Este regramento arbitrário muitas vezes é fonte de deslocamento e ação de sujeitos motivados por aspirações que só um apreciador de um jogo específico entenderia. A ganância e a avareza não são atributos apreciados, como aponta Pablo Figueiro: “Quem joga por necessidade, perde por obrigação” (:184), demonstrando que o que se ganha e o que se perde, muitas vezes é menos importante do que seus valores simbólicos. Uma prática que, para a teoria econômica seria entendida como um “bem com valor esperado negativo” (:83), contrariando a lógica da acumulação e a natureza do “homem econômico” e que não deve ser entendida como um fim em si mesmo. A relação entre o pensamento da economia política e o Estado regulador também se fazem presentes e desnudam um crescimento desta atividade que se esforça em se apresentar como moralmente saldável, racionalmente responsável em concordância com certos valores tradicionais. Uma indústria que se complexifica em distintas funções, papeis, empregos, e que, atualmente, começa a aproveitar com muita força do universo tecnológico e virtual das mídias sociais, dos smartphones e da internet ( Cassidy, 2020CASSIDY, Rebecca. 2020. Vicious games: Capitalism and Gambling. London: Pluto Press.).

Quando se fala de perdas em apostas, muitos são os discursos que referenciam ao vício, a compulsividade das grandes perdas que arruínam a vida (apostou a casa, a herança, a mulher, os filhos, a fortuna etc.). Entretanto, tanto na Quinela como em muitos outros jogos institucionalizados, estamos falando de apostas em dinheiro e que aqui, os valores recebidos podem ser exatamente idênticos aos dispendidos para uma aposta. Assim, é o dinheiro que se torna, em um certo sentido, o motor de continuidade de tais práticas e que, muitas vezes, continua a ser um problema econômico e moral. Não apenas na quantidade de valores gastos, mas na qualidade dos valores gastos, se tornando barreiras morais aos sujeitos que jogam e que, apesar disso, em muito se assemelha às aspirações do mercado financeiro apostado diariamente por membros das elites mundiais. Por ser uma loteria cujas apostas e os prêmios são considerados baixos, este jogo se apresenta como um sistema permanente de circulação de dinheiro e que é considerado como uma fonte (nem a principal, nem a única) de recursos legítimos dentro das atividades cotidianas. Assim, a Quinela, como aponta Pablo Figueiro, se apresenta como uma transgressão menor, quase irrisória ao lado das grandes perdas nos cassinos e das apostas esportivas do turfe, ambas atividades permitidas e reguladas no contexto argentino.

Alguns de seus interlocutores afirmam: “ninguém se salva, ninguém se arruína jogando a Quinela” (:112). Sua popularidade não pode ser entendida sem esse aspecto que oferece esse gasto supérfluo, acessível, não calculado, mas dentro dos parâmetros do possível. A aposta aqui é vista com o sacrifício, nos termos de Mauss e Hubert (2013MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. 2013 [1968]. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac Naify. [1968]), de uma quantidade de dinheiro, que é gasta com o intuito de se alcançar uma graça futura. Fica assim evidente que o sacrifício desse dinheiro é condição da busca que o jogo abre e cuja lógica de expansão da própria subjetividade transforma equivalências em diferenças. Pois, idealmente, todos os apostadores começam com as mesmas condições de se tornarem vencedores, porém, somente uma parcela se consagra ganhadora do prêmio.

Por fim, é preciso salientar que Pablo Figueiro acerta “na cabeça” ao escolher a Quinela como seu foco privilegiado de reflexão, pois permite que o leitor alcance uma perspectiva ímpar da sociedade argentina que, em suas crises intermitentes, tem na economia uma de suas principais fontes de preocupação. Ao direcionar os holofotes para o jogo, encontramos discussões sobre dinheiro, mercado, economia, mas também sobre desejos, esperança e perspectivas de futuro. Com isso, convido, a quem interessar, a fazer uma aposta na leitura de uma obra marcadamente densa e profunda, mas que cativa seus leitores com sua simplicidade e clareza na forma com que suas ideias estão dispostas em suas páginas.

Referências

  • CASSIDY, Rebecca. 2020. Vicious games: Capitalism and Gambling London: Pluto Press.
  • DAMATTA, Roberto & SOÁREZ, Elena. 1999. Águias, Burros e Borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho Rio de Janeiro: Rocco.
  • HUIZINGA, Johan. 1950. Homo Ludens: a study of the play element of the culture Boston: Beacon Press.
  • MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. 2013 [1968]. Sobre o Sacrifício São Paulo: Cosac Naify.
  • SAHLINS, Marshall. 1976. Culture and Practical Reason Chicago e Londres: The University of Chicago Press.
  • SAHLINS, Marshall. 1995. How “Natives Thinks: About Captain Cook, for Example Chicago e Londres: University of Chicago Press.

Notas

  • 1
    Uma primeira versão desse texto foi apresentada e debatida com Ariel Wilkis, professor das universidades nacionais de San Martin (UNSAN) e do Litoral (UNL) e o autor durante a mesa de apresentação do livro na XIV jornadas del centro de estudios sociales de la economia realizado pela UNSAM - Buenos Aires - entre os dias 14 a 18 de novembro de 2022.
  • 2
    Apesar da distinção da grafia “palpitos” na Argentina e “palpites” no Brasil, aqui seria possível realizar uma equivalência semântica de seus significados que não é exclusivamente fundada em uma lógica utilitária, para usar uma expressão consagrada de Marshall Sahlins ( 1976SAHLINS, Marshall. 1976. Culture and Practical Reason. Chicago e Londres: The University of Chicago Press., 1995SAHLINS, Marshall. 1995. How “Natives Thinks: About Captain Cook, for Example. Chicago e Londres: University of Chicago Press. ), numa “razão prática”, que, muitas vezes, confunde a percepção sensorial com o julgamento empírico e não consegue enxergar as imposições simbólicas necessariamente arbitrárias e axiomáticas entre demandas funcionais e seus resultados.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2022
  • Aceito
    08 Nov 2023
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