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TONIOL, Rodrigo. 2022. Espiritualidade Incorporada: Pesquisas médicas, usos clínicos e políticas públicas na legitimação da espiritualidade como fator de saúde, vol. 1. Porto Alegre: Editora Zouk. 206 p.

TONIOL, Rodrigo. 2022. Espiritualidade Incorporada: Pesquisas médicas, usos clínicos e políticas públicas na legitimação da espiritualidade como fator de saúde, vol. 1. Porto Alegre: Editora Zouk. 206 p.

Espiritualidade é uma categoria rodeada por controvérsias. Nas ciências sociais, ao ser transformada em objeto de análise, tornou-se um termo abrangente que remete a um conjunto amplo e disperso de fenômenos. Diante disso, diversos autores, optando pelo caminho normativo, buscaram delimitar contornos mais específicos à noção tentando responder à questão: “o que é espiritualidade?”, mas cada vez que uma nova definição era apresentada, menor era o consenso em torno dela. O que para muitos soaria como um complicador, para Rodrigo Toniol este é um dado relevante e que serve como ponto de partida de análise. Para ele, não é a falta, e sim a dispersão de definições na disciplina que faz da espiritualidade uma categoria tão mobilizada. Nesse sentido, em seu livro mais recente, Espiritualidade incorporada: pesquisas médicas, usos clínicos e políticas públicas na legitimação da espiritualidade como fator de saúde, a pergunta que o move não é “o que é”, mas “o que faz” a espiritualidade?

A obra em questão surgiu em meio às investigações de seu doutorado; acompanhando o processo de introdução das terapias alternativas/complementares no sistema de saúde, notou que a espiritualidade não era apenas um objeto presente nas ciências sociais, mas um tema de interesse cada vez mais crescente nas pesquisas médicas, fenômeno ao qual os cientistas sociais não estavam atentos. Para Toniol, uma das hipóteses para isso - como é apresentado na introdução e aprofundado no primeiro capítulo - não estaria somente na suposta falta de diálogo entre as disciplinas, mas principalmente na abordagem predominante nas ciências sociais que, ao utilizarem a categoria para descrever uma forma de relação individual com o sagrado não limitada a instituições religiosas, teriam ocultado das análises as formas institucionais e políticas adquiridas pela espiritualidade na segunda metade do século XX.

Entre os anos 1990 e 2000, no entanto, uma nova leva de autores voltou a refletir sobre a espiritualidade, considerando-a não apenas como uma modalidade de engajamento com o sagrado, mas também como uma categoria que tem sua origem na modernidade ocidental e que, portanto, estaria interligada com outras duas noções desse mesmo período: “religião” e “secularismo” (Albanese 2007ALBANESE, Catherine. 2007. A republic of mind and spirit: A cultural history of American metaphysical religion. New Haven, Connecticut: Yale University Press.; Asad 1993ASAD, Talal. 1993. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.; Bender 2010BENDER, Courtney. 2010. The new metaphysicals: Spirituality and the American religious imagination. Chicago; London: University of Chicago Press. ; Casanova 1994CASANOVA, José. 1994. Public religions in the modern world. Chicago: University of Chicago Press. ). Porém, diferentemente destas duas que dispõem de uma densa bibliografia dedicada a cada uma, a espiritualidade em si foi pouco explorada pelos cientistas sociais, e a explicação para isto estaria na ideia compartilhada de que espiritualidade não teria nada de político, como se tivesse emergido fora do tempo e separada das configurações de poder. Atendendo à recomendação metodológica que Van der Veer (2009VAN DER VEER, Peter. 2009. “Spirituality in modern society”. Social Research: An International Quarterly, 4, 76:1.097-1.120., 2013VAN DER VEER, Peter. 2013. The modern spirit of Asia: the spiritual and the secular in China and India. Princeton: Princeton University Press.) chamou de política da espiritualidade, Toniol argumenta que a espiritualidade não é uma categoria “apolítica” ou “atemporal”, pelo contrário, é historicamente situada e sua emergência é produto histórico de processos discursivos (:23). Por isso, é preciso atentar para os modos pelos quais essa categoria produz realidades, agencia atores e mobiliza instituições, observando seus usos e as configurações de poder e conhecimento articulados a cada vez que ela é anunciada.

É nisto que consiste a originalidade deste livro, em evidenciar as formas institucionais do uso da categoria que foram apagadas pelas ciências sociais a partir da análise dos processos de legitimação da espiritualidade no campo da saúde, pondo em perspectiva o próprio debate sobre o tema nas ciências sociais. Para isso, o autor recorre às diferentes instâncias do trinômio médico: ensino, pesquisa e clínica (:37), pois, assim como foi observado por ele, de modo semelhante à introdução das terapias alternativas/complementares no SUS, o processo de legitimação da espiritualidade no campo da saúde também se fundamentava na tríade políticas públicas, pesquisas médicas e protocolos clínicos.

A primeira instância institucional a receber atenção é a Organização Mundial da Saúde, tema do segundo capítulo. Interessado em examinar as formas de presença da espiritualidade na instituição, Toniol reuniu 1.497 documentos datados de 1948, ano de sua fundação, a 2017, que apresentassem em seus textos alguma menção à categoria e organizou-os em dois eixos denominados por ele como: espiritualidade dos Outros e espiritualidade de todos. Por espiritualidade dos Outros, há o conjunto de documentos que fazem referência à espiritualidade como um aspecto relevante para o cuidado em saúde de determinados povos. Esta noção emergiu na instituição através da oficialização da noção de Medicina Tradicional, que insistiu num novo modelo de atenção primária à saúde fundamentado principalmente na valorização dos conhecimentos tradicionais e na perspectiva holística em saúde, especialmente entre as populações do Sul global. A espiritualidade passa a ser de todos quando deixa de ser mobilizada em termos culturais próprios de um povo e passa a se referir em termos de práticas. A noção de Medicina Alternativa e Complementar emerge nos documentos nesse sentido, abrangendo o conjunto de práticas não biomédicas que, sob a alegação de uma perspectiva holística, seria capaz de promover o cuidado em saúde na sua integralidade física, mental e espiritual. A espiritualidade passou a ser considerada uma dimensão presente em todos pela OMS a partir de 1984, que na 37ª Assembleia Geral realizada em Genebra, Suíça, teve recomendada a sua incorporação como dimensão da saúde humana, sugerindo a alternação da definição de saúde de “ausência de doença ou enfermidade” para “um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social” (:56).

Compondo esse quadro de legitimação, o terceiro capítulo é dedicado às pesquisas médico-científicas. Com uma breve revisão da literatura médica sobre a espiritualidade, Toniol nos mostra como esta categoria tem sido um tema de interesse no meio desde o século XIX, principalmente entre os psiquiatras. Em geral, interessados no estudo e na compreensão de fenômenos crescentes no período, como experiências religiosas místicas, transe, hipnotismo, mediunidade etc., seus trabalhos continham um viés de interpretação psicopatologizante. Foi somente na segunda metade do mesmo século que a espiritualidade ganhou mais força na produção médica de maneira positiva, sendo os neurocientistas figuras relevantes nesse processo. Através de suas tecnologias de visualização imagética, foi possível marcar materialmente a espiritualidade não apenas como uma forma de representá-la, mas também de produzi-la como algo tangível, clinicamente observável e localizável no corpo humano, transformando seu caráter subjetivo em um fenômeno universal e marcado na natureza. Quando transformada em uma questão de saúde, ela adquire novos contornos no campo médico, tornando-se parte fundamental para o seu cuidado integral e, portanto, elemento presente em seu prontuário. Por Espiritualidade Incorporada, portanto, Toniol refere-se tanto à espiritualidade do corpo humano e objeto das ciências médicas como à espiritualidade dotada de um corpo em si, como realidade concreta e autônoma inscrita nas políticas de saúde, pesquisas médicas e prontuários clínicos.

Esse movimento causa efeitos significativos na rotina das instituições, conforme é exposto no quarto capítulo escrito em coautoria com Emerson Giumbelli. Nele, ambos relatam suas experiências de pesquisa em um hospital público de Porto Alegre, contexto em que a espiritualidade passou a fazer parte da rotina hospitalar de dois modos: através da atuação do grupo responsável pela prestação de assistência religiosa a pacientes e funcionários e na oferta de práticas terapêuticas no setor oncológico. No primeiro caso, os agentes religiosos recorriam à noção de espiritualidade para justificar sua presença naquele ambiente, sem que, desse modo, o princípio da laicidade fosse ferido. No segundo, a noção de cuidado espiritual possibilitou que práticas terapêuticas, como, por exemplo, o reiki, fossem incorporadas no tratamento em saúde, com o argumento de que isso contribuiria para a diminuição das desistências por motivos religiosos - mesmo que muitas vezes fossem recusadas por exatamente este mesmo motivo. Com essas situações, o que os autores pretenderam demonstrar é como a espiritualidade permite que agentes e discursos religiosos estejam presentes em espaços seculares, organizando a realidade daquele hospital e redimensionando as relações entre secular e religioso a todo momento, sem que as suas distinções sejam diluídas completamente.

No quinto e último capítulo do livro, Toniol apresenta a “face da moeda”: a espiritualidade e a religião não como fatores protetivos de saúde, mas sim como comprometedoras do bem-estar. O conceito de “problemas religiosos ou espirituais” foi introduzido em 1994, junto com um conjunto de novos transtornos, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), documento de referência na orientação de psicólogos e psiquiatras. O principal responsável por demandar a inclusão desta noção no DSM, o psicólogo transpessoal David Lukoff, a partir de uma experiência em estado psicótico vivenciada em seus vinte e poucos anos e do seu contato com o xamanismo como membro da Fundação Ojai, passou a refletir sobre a forma como as experiências espirituais eram compreendidas no meio médico. Seu questionamento era em relação à diferença de tratamento do xamã, que tinha sua experiência de crise iniciatória validada como espiritual, enquanto sua experiência pessoal, por exemplo, seria considerada como um episódico psicótico. Esse processo de psicologização da espiritualidade, ao invés de patologizar a figura do xamã, universalizou a noção de experiência e de crise espiritual, considerando-a não como uma caraterística de algumas culturas específicas, mas potenciais em todos os indivíduos de sociedades.

A universalização da espiritualidade é observável em todos os processos de sua legitimação no campo da saúde, seja como um fator positivo, seja como um diagnóstico. Uma coisa é evidente - e este é o argumento geral do livro - sua legitimação está intimamente interligada com a possibilidade de apresentá-la como universal, deslocando-a mais do âmbito da cultura para o da natureza. É notória, após a leitura, a potência de não se partir de uma definição a priori do que seja espiritualidade, e os ganhos analíticos de analisá-la a partir de seus usos e dos dispositivos comprometidos em torná-la real. Com isso, Toniol convida a ampliar os horizontes e as perspectivas em relação a como esta categoria opera no mundo, produzindo realidades e efeitos diversos.

Referências

  • ALBANESE, Catherine. 2007. A republic of mind and spirit: A cultural history of American metaphysical religion New Haven, Connecticut: Yale University Press.
  • ASAD, Talal. 1993. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam Baltimore: The Johns Hopkins University Press.
  • BENDER, Courtney. 2010. The new metaphysicals: Spirituality and the American religious imagination Chicago; London: University of Chicago Press.
  • CASANOVA, José. 1994. Public religions in the modern world Chicago: University of Chicago Press.
  • VAN DER VEER, Peter. 2009. “Spirituality in modern society”. Social Research: An International Quarterly, 4, 76:1.097-1.120.
  • VAN DER VEER, Peter. 2013. The modern spirit of Asia: the spiritual and the secular in China and India Princeton: Princeton University Press.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2023
  • Aceito
    12 Maio 2023
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