Acessibilidade / Reportar erro

KUSIMBA, Sibel. 2021. Reimagining Money: Kenya in the Digital Finance Revolution. Stanford: Stanford University Press. 240 p.

KUSIMBA, Sibel. . 2021. Reimagining Money: Kenya in the Digital Finance Revolution. Stanford: Stanford University Press. 240p.

Com o surgimento da pandemia da COVID-19 e seu lastro de fome, inflação e incertezas, o Brasil tem passado por um processo de bancarização digital, em que diversas pessoas que antes não tinham acesso a contas virtuais passaram a ter. No entanto, apesar de os bancos on-line e fintechs 1 1 Fusão dos termos em inglês financial e technology (finanças e tecnologia), usada para categorizar empresas iniciantes ( startups) que desenvolvem produtos financeiros digitais. Um exemplo recente no Brasil seria a profusão de bancos digitais na última década, como Neon, Nubank e Inter. não exigirem comprovação de renda e terem desburocratizado o acesso ao crédito, os juros altos praticados no mercado colocam uma importante questão: o acesso digital tem facilitado ou prejudicado os brasileiros?

O livro de Sibel Kusimba, antropóloga estadunidense e atual professora associada do Departamento de Antropologia da University of South Florida, foi produzido no âmbito do Institute for Money, Technology and Financial Inclusion da University of California , em Irvine, liderado por Bill Maurer, quando a pesquisadora foi contemplada com três bolsas de pesquisa ofertadas pelo departamento de pesquisa californiano entre os anos de 2012 e 2015 para desenvolver suas pesquisas etnográficas no Quênia. O Instituto há anos vem produzindo poderosas etnografias e reflexões sobre os EUA e países africanos, da América Central e do Caribe, focado nas elaborações nativas sobre a tecnologia financeira, dinheiro digital e scores de crédito orientados por Inteligência Artificial, entre outros. Dado que temos visto emergir novas formas de lidar com o dinheiro, sobretudo aquelas que tratam do universo on-line ( Maurer 2015MAURER, Bill. 2015. How Would You Like to Pay? How Technology Is Changing the Future of Money. Duke University Press Books.), as investigações acerca da gestão doméstica dos recursos ganham novas incorporações, que são mediadas e tecidas pelos recursos digitais, uma vez que as pesquisas se concentram no uso diário e nas implicações das novas tecnologias financeiras.

A antropóloga estadunidense tem parentes no Quênia, e acionou sua rede de contatos familiares para realizar as entrevistas iniciais e seguir o traço do dinheiro digital. A trajetória profissional de Kusimba está intimamente ligada ao país, uma vez que ela produz publicações sobre o Quênia desde 1997, pesquisando temas voltados à origem antropológica e arqueológica das trocas, lideranças, mudanças ambientais e cooperação interétnica. Contando com uma equipe de quatro pesquisadores, utilizou diferentes métodos, como o dos diários financeiros, as amostragens por bola de neve e mais de 200 entrevistas semiestruturadas, de 2009 a 2017. A investigação foi realizada na capital do Quênia, Nairobi, e em cidades menores, como Bungoma, Kitale e Kimilili (a população destas cidades, somadas, não chega a 5% do número total de habitantes de Nairobi). Esta diferença entre capital e interior se mostra relevante também no que diz respeito à utilização do dinheiro digital.

No seu livro, Kusimba consegue associar anos de produção antropológica sobre a África Oriental, que versam sobre temas como o conceito de wealth-in-people (“riqueza nas pessoas”), desenvolvido por Max GluckmanGLUCKMAN, Max. 1941. “Economy of the Central Barose Plain”. Livingstone: Rhodes Livingstone Institute (Rhodes-Livingstone Papers, n. 7: xii+I30). nos anos 1940, com as recentes mudanças tecnológicas que colocam hoje Nairóbi e suas fintechs como a “Savana do Silício”. Ao conectar questões clássicas da antropologia produzida pelos britânicos em África, como os rituais de puberdade e a fricção interétnica a partir do contato com as nações colonizadoras ( Fortes & Evans-Pritchard 1940FORTES, Meyer & EVANS-PRITCHARD, E.E. 1940. African Political Systems. London: Oxford University Press, Amem House, E.C.4.), com os novos processos de bancarização digital, Kusimba atualiza os conceitos historicamente situados na realidade recente queniana.

A partir de 2007, a empresa M-Pesa ( Mobile-pesa, “dinheiro” na língua suali, e “móvel”, em inglês) iniciou as suas operações no Quênia. O desenvolvimento de uma tecnologia em parceria com a operadora inglesa Vodafone e da provedora Safaricom permitiu aos usuários da M-Pesa ir até uma loja varejista, mediada por um agente da M-Pesa, e trocar xelins quenianos por e-floats, nome da moeda da Safaricom. A cada transferência a provedora inseria uma taxa. No entanto, diferentemente do Pix brasileiro, que opera essas transações, basta um telefone simples e barato. O dinheiro eletrônico fica vinculado ao número do usuário e ele consegue enviar, via SMS, créditos para amigos, parentes e namorados. Antes mesmo da criação da M-Pesa, os quenianos realizavam transferências bancárias através do sistema airtime, que consistia na compra e venda de cartões pré-pagos entre pessoas. Assim, antes mesmo da criação do ApplePay, Venmo e WeChatPay, o Quênia projetou-se na ponta da lança da inovação tecnológica bancária.

Um dos objetivos principais do livro é mostrar como as transações bancárias digitais são utilizadas para criar vínculos entre amigos e refazer laços de parentesco. A autora descreve também o que ela chama de “ignorância estratégica”, quando uma pessoa não tem recursos suficientes para ajudar outra com um crowdfunding (“vaquinha on-line”) para custear um coming-of-age ritual (“ritual da maturidade”), um funeral de um parente próximo ou financiar o dote da noiva de um irmão, por exemplo. A pessoa foge virtualmente da obrigação da dádiva e das normas da generosidade colocando a culpa nos dispositivos ou numa suposta “falha” tecnológica do sistema. Esta utilização de “desculpas tecnológicas” pode se apresentar como disputa geracional, uma vez que os mais velhos reclamam que os mais novos não os visitam mais e enviam dinheiro digital como forma de suprir a ausência física. Ao longo do livro, Kusimba descreve como pessoas que moram na capital e têm parentes no interior utilizam o sistema M-Pesa para enviar dinheiro para eles. Além disso, em toda transferência, mostra-se relevante que o remetente envie uma mensagem, perguntando como os familiares estão ou se precisam de alguma ajuda extra. É possível observar que o dinheiro digital é utilizado para costurar as relações de parentesco, aproximando ou distanciando as pessoas.

O livro tem 11 capítulos, e se inicia com uma cena etnográfica: Kusimba conversa com Andrew Mullei, que ocupou de 2003 a 2007 o cargo de governador do Banco Central do Quênia, a posição mais alta e destacada da instituição (equivalente, para nós, à Presidência do Banco Central). Mullei faz considerações sobre o surgimento do dinheiro digital, argumentando que significa um avanço em relação à sua forma física, uma vez que este último estaria atrelado ao colonialismo britânico e funcionaria como um combustível para práticas corruptas. Diz ele: “Antes tínhamos dinheiro em espécie, que veio do colonialismo britânico. Dinheiro em espécie pode ser escondido no bolso. Você não vê isso. Você não sabe onde está. Esse dinheiro escondido trouxe corrupção” (:1, trad. livre).

A polissemia da utilização do dinheiro digital é explicitada de forma mais clara no capítulo 9, “Reimagining the debt: The Rat and the Purse”. Se, como vimos na declaração de Mullei, o dinheiro digital viria para demonstrar mais transparência e melhorar a relação das pessoas com as finanças, Kusimba, através da conversa com Brendah, uma interlocutora, define o M-Shwari (o serviço de empréstimos e poupança da M-Pesa) como “um rato que sai à caça de dinheiro à noite” (:128). Uma definição distinta do M-Shwari como um agente necessariamente destrutivo é dada no capítulo 6 pela interlocutora Consolata.

Uma das técnicas de pesquisa mais originais utilizadas pela autora é a de pedir aos seus entrevistados que produzam desenhos dos mapas mentais do destino e da origem do dinheiro. No desenho de Consolata, ela retrata o M-Shwari como um cofre com três linhas perpendiculares pelas laterais, que representariam três fechaduras, que indicariam o M-Shwari como um lugar seguro para guardar as finanças, pois somente três pessoas teriam acesso ao dinheiro guardado.

No fim do capítulo 8, “Ignorância Estratégica”, Kusimba demonstra que as pessoas entrevistadas tendem a assumir obrigações financeiras que são maiores do que os seus ganhos, e que elas precisam usar esta ignorância estratégica para diminuir o peso de dizer não para um amigo ou ente querido. Isto resulta, diz Kusimba, “numa espécie de liminaridade e incerteza no que diz respeito aos laços sociais das pessoas” (:127, trad. livre). Uma justificativa para esta atitude, de assumir compromissos maiores do que se pode arcar, é que há, no Quênia, historicamente, o hábito de criar cooperativas informais, que podem variar de 5 a 25 pessoas, com fins de guardar ou investir dinheiro. Esta prática, que tem o nome de chama, é uma variação de outra, de nome harambee (“vamos nos unir”), que ficou popular nos anos 1980 e acabou sendo estigmatizada nas décadas seguintes por estar associada à corrupção política e ao clientelismo. Até hoje, diz Kusimba, o termo ainda é por vezes associado a práticas moralmente vistas como negativas.

O livro de Kusimba se apresenta como uma importante etnografia, que traz valorosas contribuições para pensarmos a utilização dos dinheiros digitais atualmente. Entre elas, podemos citar a utilização da metodologia dos mapas mentais, para entender os fluxos do dinheiro, sua origem, a tessitura ou o desmembramento de relações amorosas, de parentesco ou de amizade. A sua etnografia contribui, também, para entender o dinheiro digital como um fato social em si, sem necessariamente representar uma metáfora de uma determinada realidade. As transações on-line, apesar de sua aparente imaterialidade, estão presentes na forma como os interlocutores de Kusimba percebem a si e o mundo ao seu redor, lidando com incertezas, projetando futuros e elaborando formas coletivas de poupar e contribuir coletivamente para uma determinada causa.

Se, por vezes, a bancarização é vista como algo positivo por diferentes policy makers do Quênia ao Brasil, com diversas tonalidades políticas, precisamos debater mais a fundo a questão do endividamento e dos juros compostos atrelados a uma suposta facilidade e naturalização da digitalização como algo necessariamente positivo e inovador. O exemplo queniano, como podemos ver no livro de Kusimba, aponta para uma maior complexificação do problema, e demonstra como o acesso fácil ao crédito digital pode criar ilusões de consumo e dívidas. Trata-se de um livro fundamental para entendermos a capilaridade do dinheiro digital na África Oriental e para traçarmos paralelos com a nossa realidade.

Referências

  • FORTES, Meyer & EVANS-PRITCHARD, E.E. 1940. African Political Systems London: Oxford University Press, Amem House, E.C.4.
  • GLUCKMAN, Max. 1941. “Economy of the Central Barose Plain”. Livingstone: Rhodes Livingstone Institute (Rhodes-Livingstone Papers, n. 7: xii+I30).
  • MAURER, Bill. 2015. How Would You Like to Pay? How Technology Is Changing the Future of Money. Duke University Press Books.
  • 1
    Fusão dos termos em inglês financial e technology (finanças e tecnologia), usada para categorizar empresas iniciantes ( startups) que desenvolvem produtos financeiros digitais. Um exemplo recente no Brasil seria a profusão de bancos digitais na última década, como Neon, Nubank e Inter.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2023
  • Aceito
    18 Out 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com