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Primórdios da educação no Brasil - o período heróico (1549 a 1570)

RESENHAS

Marcio Constantino Martino

Mestrando em Filosofia e História da Educação na FE/Unicamp. Consultor permanente do exame nacional do ensino médio (Enem). Professor de matemática da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, até 1999.

MATTOS, Luiz Alves de. Primórdios da educação no Brasil - o período heróico (1549 a 1570). Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora Ltda, 1958.

Uma visão geral

O livro centra sua narrativa em um curto período de nossa história - 21 anos apenas - mas, nas palavras de Mattos, "denso em ocorrências decisivas para o futuro do país", e "um período de personalidades fortes e marcantes". Começa em 1549, com a chegada de Tomé de Souza ao Brasil, trazendo consigo um grupo de missionários jesuítas, chefiados por Manuel da Nóbrega, com a missão de iniciar a catequese e a instrução na colônia.

A fibra desses pioneiros - sua tenacidade alicerçada em uma fé inquebrantável e suavizada por sua extraordinária espiritualidade e solidariedade humana - terminou por tornar essas duas décadas conhecidas, na historiografia da educação brasileira, como período heróico. De fato, 15 dias após o desembarque, ocorria a primeira aula, e era inaugurada a primeira escola brasileira.

Habitando moradias de pau-a-pique, enfrentando toda sorte de privações e doenças, em apenas cinco anos - de 1549 a 1554 - pontilhariam o ainda incerto mapa do Brasil, desde Olinda até São Paulo, com inúmeras escolas e abrigos para menores carentes. As escolas eram instituições extremamente democráticas, que reuniam, numa mesma sala de aula, desde órfãos, menores abandonados, curumins recrutados nas aldeias próximas, até os filhos da burguesia e da incipiente aristocracia local.

A partir de 1554, muda a política jesuíta para a administração da educação na colônia, e a obra de Nóbrega começa aos poucos a ser desmontada por seu superior imediato, Luiz de Grã, provincial da Companhia de Jesus no Brasil (província fundada por Nóbrega). Com o instituto da redízima em 1565, a instrução jesuíta deixa de ser dirigida a crianças carentes, nos moldes desejados por Nóbrega, e passa a atender apenas às elites. O período heróico se encerra em 1570, com a morte de Manuel da Nóbrega.

A obra

O prefácio, escrito pelo próprio autor, já é parte inseparável da obra, e de leitura obrigatória. Ali, o autor divide a história da educação no Brasil em seis períodos: heróico (1549 a 1570), de organização e consolidação (1570 a 1759), pombalino (1759 a 1827), monárquico (1827 a 1889), republicano (1889 a 1930) e contemporâneo (a partir de 1930). Ao período heróico assim se refere: "Em nenhum outro período de nossa história educacional, os educadores se revelaram tão empreendedores, dinâmicos e preocupados com as realidades humanas e sociais que os cercavam, como nesse período heróico, que passamos a estudar."

Mattos dividiu o corpo da obra em quatro partes:

Primeira parte - Esboço de um Sistema Educacional

A situação da colônia era precária em 1549. Malogrado o sistema semifeudal de donatários, vinha o Brasil sendo assolado por piratas e rebeliões indígenas, que colocavam em risco a posse portuguesa da terra. Com sua grande visão de estadista, D. João III opta pela colonização, encarregando dessa tarefa Tomé de Souza. Dentre as diretrizes que dita aos seus escrivães nos famosos Regimentos de 1548, estabelece como um dos pontos cardeais da empreitada "a conversão dos indígenas à fé católica pela catequese e instrução". Era a primeira alusão, na metrópole, à necessidade de educação no Brasil.

Estava em plena expansão em Portugal, nessa época, a província portuguesa da Companhia de Jesus, não apenas pela fé comum com a Coroa, mas também pelos interesses antevistos por esta na finalidade missionária, notável formação científica e organização quase militar daquela organização, chefiada com pulsos fortes por Santo Inácio, seu fundador. O Colégio de Coimbra formava missionários e educadores jesuítas, e de lá saíram os heróicos pioneiros da educação no Brasil, que acompanharam Tomé de Souza em 1549: Manuel da Nóbrega, Leonardo Nunes, Antonio Pires, Azpicuelta Navarro, Diogo Jácome, Vicente Rodrigues. Em uma segunda leva, em 1550, chegariam Manuel de Paiva, Afonso Braz, Francisco Pires e Salvador Rodrigues.

Mattos lembra que de Portugal pouco traziam como modelo. Na metrópole, o analfabetismo assolava desde as classes populares até a nobreza ea família real. Ler e escrever eram privilégios de uns poucos sacerdotes e de alguns funcionários da alta administração.

Chegados ao arraial do Pereira, no recôncavo baiano, em 15 dias inauguram a primeira escola, entregue a Vicente Rodrigues, o Vicente Rijo, sacerdote de 21 anos, primeiro mestre-escola do Brasil. Transferida para a cidade da Bahia, recebe grupos de órfãos recolhidos nas ruas de Lisboa e passa a se chamar Colégio dos Meninos de Jesus, escola associada à Confraria dos Meninos de Jesus, entidade jurídica fundada pelos jesuítas. Ali funcionava um internato onde, além da fé católica, se ensinava a ler e a escrever, e até latim, e um externato para ensinar os filhos dos colonos.

Com base na escola da Bahia, Nóbrega funda, em 1553, a Confraria dos Meninos de Jesus de São Vicente, e o colégio a ela associado. Tanto na Bahia quanto em São Vicente, Nóbrega, grande administrador, deu extrema atenção à necessidade de fortalecer materialmente essas instituições. Doações, inclusive de terras, permitiram seu funcionamento autônomo. O colégio de São Vicente chegou a ter 100 alunos, entre internos e externos, número expressivo para a época. Alguns deles chegaram a ser enviados ao Colégio de Coimbra para complementar seus estudos. Transferido para São Paulo em 1554, o Colégio de São Vicente foi a escola que melhor atendeu aos objetivos educacionais de D. João III.

Mas o projeto educacional de Nóbrega não se limitava a esses dois colégios. Laborioso, fundou escolas congêneres em Olinda, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, São Paulo e Mariçoba (próximo à cidade de Itu). Fazia incansável propaganda junto aos colonos e, com sua adesão, pedia por missionários ao Colégio de Coimbra. Sua estratégia era montar escolas a partir de uns poucos mestres e de crianças trazidas de fora, já instruídas, para dar o exemplo inicial, e a organização de internatos, aos quais chamava de recolhimentos. Nestes, recebia órfãos, filhos da aristocracia local e crianças indígenas, normalmente filhos de caciques. Usava, então, junto aos colonos, um argumento interessante: as vilas que tinham escolas com crianças indígenas estavam mais protegidas contra os ataques da "indiada". Conseguia, com isso, sua simpatia e generosas contribuições. Mas a principal finalidade dos recolhimentos era proporcionar uma educação livre da influência de pais beberrões, violentos ou de mau caráter, uma constante na época.

O plano de estudos elaborado por Nóbrega previa um ciclo primário, com o estudo das primeiras letras e do catecismo cristão. Dependendo de seus dotes naturais, os alunos aprendiam também canto orfeônico e instrumentos musicais. Terminado esse ciclo, a maior parte dos alunos se destinava ao aprendizado de ofícios mecânicos, e apenas os melhores passariam às aulas de gramática latina, correspondentes ao ensino colegial. E, ainda dentre estes, os melhores seriam mandados a Coimbra ou para a Espanha para prosseguirem na carreira sacerdotal ou nos ensinos superiores. Daí saíram, por exemplo, Belchior de Pontes e Antonio Vieira. Estes, talvez, os maiores méritos do trabalho de Nóbrega: oferecer, já naquela época, uma opção profissionalizante para atender às carências da colônia, e um ensino democrático, colocando lado a lado indiozinhos nus e os filhos da aristocracia, promovendo-os segundo o critério único de seus méritos pessoais, sem distinção de classes sociais.

Tentou também levar avante um projeto de educação para meninas, mas seu pedido foi negado pela metrópole, onde, apesar das idéias do humanismo renascentista, essa educação não existia. Aí, Mattos faz uma pausa e discorre sobre a precariedade da educação para o sexo feminino, que viria a se estender até o início do século XX.

Segunda parte - Nova Política Administrativa

Neste ponto, Mattos analisa a oposição ao projeto educacional de Nóbrega, que começa com a substituição do provincial da Companhia de Jesus em Portugal, Mestre Simão Rodrigues, seu principal apoio, por Diogo Mirão, em 1553, após desentendimento com Santo Inácio. Mirão nomeia Luiz de Grã Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, e este se posiciona, de imediato, contra os recolhimentos. Nóbrega se socorre em D. João III, e consegue manter sua obra até 1557, quando falece este soberano.

Mattos argumenta que a Companhia de Jesus era contra os recolhimentos por já haver decidido aplicar seus escassos recursos na formação apenas de vocações religiosas, pois já antevia que, com o crescimento da colônia, cresceriam também seus gastos com esse tipo de educação e, além disso, seria difícil manter aquele ímpeto heróico nos missionários mais novos. Naquela época, faltava tudo, desde vestimentas até alimentação. Os alunos andavam nus, e só os mais graduados tinham algum tipo de roupa. Nóbrega procurava superar essas dificuldades como auxílio de doações de terras, gado e escravos, mas Grã era contra esse tipo de provimento. Pregava uma Companhia despojada de bens, e era contra aceitar recursos da Coroa. Com isso, seus recolhimentos foram sendo fechados, apesar de seus apelos a Mem de Sá, substituto de Duarte da Costa. A pioneira escola da Bahia foi fechada após propositais desmandos de Antonio Blasques.

Nóbrega e Grã tinham projetos próprios para a administração da Companhia no Brasil. Foi então que a Coroa Portuguesa encontrou uma terceira solução, que viria a marcar o fim do período heróico. Ciente da necessidade de manter a posse da terra, o Cardeal Infante D. Henrique, regente do Reino de Portugal durante a menoridade de D. Sebastião, institui, em 1565, a redízima, destinando dez por cento de toda a arrecadação da Coroa com impostos para a manutenção dos colégios da Companhia de Jesus no Brasil. Prevaleceu, também, o ponto de vista de autonomia patrimonial de Nóbrega e, a partir daí, encerra-se o período heróico e inicia-se o período de organização e consolidação, que duraria até 1759.

Terceira parte - Biográfica

Aqui, Mattos traça um esboço biográfico de três grandes figuras ligadas ao período heróico: Martinote, Vicente Rijo e José de Anchieta. Não se detém em Nóbrega, por ter espalhado sua biografia ao longo de toda a obra.

Intrigado com as poucas e evasivas alusões ao professor do primeiro curso de nível ginasial, instituído na escola de São Vicente "[...] aprendem gramática e ensina-a um mancebo de Coimbra, que cá veio desterrado [...]", Mattos, após cuidadosa pesquisa, julga ter revelado o mistério de sua identidade. Tratava-se, segundo ele, de Martinote, ex-aluno da escola de Coimbra. Surpreendido portando um catecismo calvinista, foi envolvido em um cruel processo inquisitorial, do qual só saiu com vida por ser um jovem de apenas 19 ou 20 anos. Desterrado, teria vindo para o Brasil, onde se tornaria o primeiro professor de nível ginasial destas terras. Mattos expõe cuidadosamente suas hipóteses a respeito deste fato.

Vicente Gonçalves, apelidado Vicente Rijo, com apenas 21 anos de idade, foi um dos missionários que desembarcaram com Nóbrega em 1549. Encarregado das primeiras aulas, 15 dias após o desembarque tornava-se o primeiro mestre-escola do Brasil. De saúde precária, não tinha conseguido concluir seus estudos em Coimbra. Mattos faz uma bela descrição da vida desse abnegado missionário, que morreu, aos 72 anos de idade, no Rio de Janeiro.

Belíssima também é a biografia de Anchieta, escrita por Mattos. Apoiado em Simão de Vasconcelos e em Quirício Caixa, seus mais antigos biógrafos, expõe em detalhes a vida desse abnegado jesuíta, nascido nas Ilhas Canárias em 1534 e falecido, aos 63 anos, em Vitória.

Quarta parte - Fim do período heróico

Talvez a parte mais interessante do livro, é onde Mattos, após se limitar a um relato puramente descritivo nas anteriores ("O presente trabalho não pretende ser uma síntese interpretativa do período que focaliza [...]"), contrariando essa pretensão, escreve o capítulo X, onde expõe claramente sua tese, questão central deste trabalho: Talvez tanto Nóbrega quanto Grã desconhecessem as reais motivações da mudança da política jesuíta para o Brasil, e este último só estivesse cumprindo ordens. Mas já se preparava, em Portugal, a injeção de fartos recursos públicos na instrução da colônia, que viria a ser efetivada em 1565, com a instituição da redízima pelo Cardeal Infante Dom Henrique, regente do reino de Portugal durante a menoridade de D. Sebastião. Com ela, dez por cento de todos os impostos aqui coletados pela Coroa seriam destinados às escolas jesuítas. Evidentemente, a aristocracia não desejava que tais recursos fossem destinados à educação de meninos de rua e filhos de indígenas. As novas escolas teriam que se destinar apenas à educação das elites. A nova política administrativa da Companhia de Jesus, engendrada paulatinamente na metrópole, no período de 1553 a 1564, já visava a adequar a instituição às exigências da Coroa para a implantação da redízima. Essa foi a trama que poria fim à mais bela e democrática iniciativa educacional que já houve por estas terras.

Ainda nessa parte, Mattos discorre sobre o rumo que tomou a educação nos novos moldes elitistas, e sobre como poderia ter sido se seguisse a orientação inicial de Nóbrega. Aponta três diferenças fundamentais. Em primeiro lugar, em vez de manter as estruturas patrimoniais descentralizadas, a Companhia de Jesus, de imediato, incorporou todo o imenso patrimônio, duramente acumulado pela fibra daqueles pioneiros. Isso facilitou sua expropriação por Pombal em 1759, quando da expulsão dos jesuítas do Brasil. Em segundo lugar, temos, nas palavras do próprio autor, "[...] a substituição do caráter eminentemente democrático do primeiro (plano de Nóbrega) pelo padrão seletivamente aristocrático do segundo) [...] Em suma, o sistema educacional da colônia não era mais [...] uma agência de congraçamento de raças e de franca aculturação democrática. Tendia, pelo contrário, a acentuar as linhas divisórias das etnias e das classes sociais, gerando essa perniciosa mentalidade que até hoje subsiste entre nós de considerar a educação de grau médio e superior como privilégio das classes economicamente mais favorecidas e abastadas [...]" Finalmente, em terceiro lugar foi a importância dada por Nóbrega ao ensino profissionalizante "[...] os documentos posteriores a 1570 silenciam por completo sobre esse importante setor educacional [...] Essa atitude de desinteresse pelo trabalho profissional [...] foi outra herança que nos legou o novo sistema educacional da colônia, herança essa que infelizmente persiste até nossos dias [...] Apesar da grande revolução industrial por que estamos passando, não temos até hoje o sistema educacional de que necessitamos nas proporções que os nossos tempos exigem; nem mesmo há entre nós a consciência dessa necessidade[...]" Lembremos que este livro foi escrito em 1958.

Manuel da Nóbrega tinha uma extraordinária visão de futuro. Se não tivesse sido tolhido pela metrópole, pontilharia as terras brasileiras com suas escolas, que se constituiriam na base cultural de uma nação bem diferente. Foram escolas como essas, instituídas nos momentos adequados, que fizeram a história da educação e a grandeza da nação norte-americana.

Algumas considerações finais

Este livro foi escrito em 1958, quando, aqui no Brasil, ainda se praticava a "velha história". Sua narrativa está centrada na biografia de Nóbrega, e falta-lhe uma certa perspectiva dialética, de que o texto é rico em possibilidades, pois apresenta, desde o início, o embate de diferentes idéias, que prevaleceriam de acordo com os interesses das classes dominantes.

É interessante apontar, também, que o texto, talvez por objetivar apenas o estudo da educação no período, só nos mostra uma faceta desses primeiros missionários que por aqui desembarcaram. Ainda que imbuídos da mais pura fé cristã, enfrentaram uma terra rude, e, com certeza, foram rudes também. Não hesitaram em fazer uso de escravos e do uso abusivo do trabalho indígena. Sua fé não foi suficiente para ver os negros como seres humanos. Suas missões de instrução e catequese estavam afinadas com os interesses de ocupação da terra pela Coroa. Aqui, como de resto em toda a América, não houve troca cultural entre dominantes e dominados. Houve um transplante da cultura dominante, que simplesmente aniquilou a dominada. O livro deixa de abordar,também, a ação da Inquisição nas terras brasileiras.

Finalmente, o livro nos aponta que, infelizmente, vem de longe a tradição elitista de nossa escola pública, e a estreita vinculação da Igreja da época com as classes dominantes. O ensino religioso, de qualidade indiscutível, sempre se destinou à formação das elites.

Estas considerações de modo algum têm a intenção de apontar defeitos nesta obra, até por fugirem ao seu escopo. Trata-se de um admirável trabalho de pesquisa, de leitura imperdível pela sua cientificidade e seriedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2000
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