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A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação?

RESENHAS

Lúcia Maria Wanderley Neves

Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Educação

RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001, 320p.

Um livro imprescindível! As pessoas que o lerem deverão concordar comigo: é referência obrigatória para todos os que queiram entender mais sobre este "novo modismo educacional", trazido ao Brasil pelos neoliberais no poder.

Marise faz um percurso absolutamente original, que termina por abrir espaço para nova linha de investigação da relação entre trabalho e educação. Ela parte da análise das mudanças atuais no processo de trabalho e na organização da produção e suas repercussões socioistóricas no processo da formação para o trabalho, chegando até aos fundamentos psicopedagógicos da prática educativa. Com isso, traz a questão do trabalho para dentro da sala de aula, ultrapassando a tradicional dicotomia entre estudos macro e micro, na literatura educacional brasileira.

Embora tenha tido como principal objetivo a apreensão da essência do deslocamento conceitual da qualificação à competência, seus motivos e seus significados, Marise vai além e estabelece uma relação entre trabalho e pedagogia, desvelando o caráter interessado da pedagogia das competências na reprodução das relações capitalistas de produção, no espaço escolar e na arena política – apesar da contemporânea roupagem pós-moderna. O resultado é que a autora leva aos professores, na sala de aula, pistas seguras para entender o que está por detrás das novas diretrizes e parâmetros curriculares nacionais. Aos sindicalistas, proporciona elementos de reflexão sobre o papel da escolarização na elevação do nível de consciência política da classe trabalhadora.

Além de uma dimensão ético-política definida, em prol da classe trabalhadora, a autora apresenta sólida argumentação teórica. Mostra erudição, não no sentido de uma construção teórica puramente ornamental, como diz Coutinho1 1 Carlos Nelson Coutinho, Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas, 2ª ed. ampliada, Rio de Janeiro: DP&A, 2000. , mas no sentido da construção de um pensamento que explique a realidade de forma precisa. Marise ousa. Corre riscos. E, construindo o objeto, mostra-se. Sem dúvida, uma pesquisadora de fôlego.

Primeiramente, compreende a qualificação como uma relação social, cujo conteúdo socioistórico se expressa por suas dimensões conceitual, social e experimental. Dessa forma, constata que a noção de competência não substitui a noção de qualificação. Valoriza a sua dimensão experimental, em detrimento das suas dimensões conceitual e social. Valorizar a dimensão experimental da qualificação significa dar lugar de destaque aos saberes tácitos e sociais, em detrimento dos saberes formais, de modo que a qualificação deixe de se expressar em função dos registros de conceitos técnico-científicos das atividades profissionais. Significa, também, romper com os códigos sociais de contratação do trabalho estabelecidos coletivamente e, assim, introduzir novas normas e regras que, mesmo pactuadas coletivamente, aplicam-se individualmente.

A noção de competência desloca dialeticamente a noção de qualificação para um plano secundário, como forma de se consolidar como categoria ordenadora da relação entre trabalho e educação no capitalismo tardio. No seu marco, reconfigura-se a dimensão ético-política da profissão, mediante a ascendência da dimensão psicológica sobre a dimensão sociológica. Consolida-se a tendência de uma profissionalização de tipo liberal, baseada no princípio da adaptabilidade individual às mudanças socioeconômicas.

A partir daí, o livro divide-se em três eixos fundamentais: socioempírico, teórico-filosófico e utópico.

No primeiro eixo – socioempírico – a autora procura apreender o deslocamento da qualificação à competência em nível internacional e nacional, analisando as políticas de educação profissional em países da Europa, América do Norte e América Latina. Em especial, no caso brasileiro, destaca a apropriação da noção de competência pelas políticas que reformam o ensino médio e o nível técnico da educação profissional.

As conclusões que daí se seguem tornam-se relevantes para o campo do trabalho e educação: 1ª) As metodologias de investigação do processo de trabalho com base na competência ancoram-se na teoria funcionalista, atualmente aprimorada pela teoria geral dos sistemas, assim como na análise construtivista. Essa, por sua vez, de aparência inovadora, ancora-se no mesmo construto teórico. Como unidade de análise dessas metodologias, a competência configura-se como uma noção adaptadora do comportamento humano à realidade contemporânea. 2ª) Nos diversos sistemas de competência profissional analisados, a competência está sempre associada à capacidade de o sujeito desempenhar-se satisfatoriamente em situações reais de trabalho, mobilizando os recursos cognitivos e socioafetivos, além de conhecimentos específicos. Nesse sentido, em qualquer abordagem, o corolário é: a competência é indissociável da ação. 3ª) Em todas as metodologias de investigação dos processos de trabalho, a competência humana é tomada como fator de produção.

No segundo eixo – teórico-filosófico –, verifica-se como a noção de competência tem ordenado as relações de trabalho e as relações educativas, considerando-se os contextos econômico-político e sociocultural contemporâneos. Nesse momento, Marise constata que a noção de competência se situa no plano de convergência entre a teoria interacionista da formação do indivíduo e da teoria funcionalista da estrutura social. A primeira demonstra que, sob a concepção naturalista de homem, a competência torna-se uma característica psicológico-subjetiva de adaptação do trabalhador à vida contemporânea. Já a segunda situa a competência como fator de consenso necessário à manutenção do equilíbrio da estrutura social, à medida que o funcionamento desta última ocorre muito mais por seqüência de fatos previsíveis. Observa, ao fim, que a lógica da competência incorpora alguns traços da teoria do capital humano, mas os redimensiona com base na especificidade das relações sociais contemporâneas.

No decorrer da exposição, fica evidente que a concepção natural-funcionalista de homem redunda numa concepção subjetivo-relativista de conhecimento. A validade do conhecimento, assim compreendido, é julgada por sua viabilidade ou por sua utilidade. Afirma-se o predomínio da conotação utilitarista e pragmática do conhecimento. O seu caráter histórico-ontológico é substituído, dessa maneira, pelo caráter experiencial. A noção de competência está envolta, portanto, por um ciclo que se fecha por dois extremos: o racionalismo positivista e o irracionalismo. Por ser uma percepção do mundo experiencial na forma de representações subjetivas, a competência é uma noção apropriada ao pensamento pós-moderno, que tende a tomar a crítica à razão instrumental-positivista como crítica a toda razão, negligenciando que a crítica fundamental realizou-se pela dialética. As noções de competência – principalmente no plano educativo – e de empregabilidade – no plano do trabalho – compõem um conjunto de novos signos e significados talhados pela cultura pós-moderna, desempenhando papel fundamental na reprodução da sociedade quanto à forma de os trabalhadores localizarem-se e moverem-se diante da nova lógica do capital. Na conclusão desse eixo, a autora afirma que, se realizada sob a perspectiva pós-moderna, a teoria da competência torna-se conservadora em dois sentidos: porque assume e se limita ao senso comum como lógica orientadora das ações humanas, e porque reduz todo sentido do conhecimento ao pragmatismo.

No terceiro eixo – utópico – a autora demonstra os limites da noção de competência sob a perspectiva da formação humana, indicando a necessidade de sua re-significação com base numa concepção de mundo que tem a transformação da realidade da classe trabalhadora como projeto. Aqui, Marise retoma a escola unitária de Gramsci como proposta de estruturação da instituição escolar enquanto espaço de formação humana. Essa retomada, na minha opinião, é mais do que necessária. Transformada em senso comum pelos movimentos emancipatórios brasileiros no final dos anos de 1980, a proposta de escola unitária foi compreendida apenas como uma via de superação do dualismo histórico da nossa história educacional. Em sua retomada, a autora defende a proposta de escola unitária na sua dimensão teórico-metodológica, baseada na concepção gramsciana que pressupõe: em nível teórico, novo nexo entre teoria e prática que sintetize, numa só dimensão, o pensar e o agir; e, em nível prático, a apropriação coletiva do saber construído coletivamente pela humanidade para a construção também coletiva de um novo mundo. Segundo palavras do próprio Gramsci, "o advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola mas em toda a vida social".2 2 Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, vol.2, p. 40.

Nessa perspectiva, a autora do livro aponta, com muita propriedade, que a escola unitária, síntese da escola ativa e criadora, é uma escola viva, construída com base numa profunda e orgânica ligação entre ela e o específico dinamismo social objetivo que nela se identifica. A autodisciplina e a autonomia moral e intelectual são conquistadas à medida que os trabalhadores educandos identificam na escola esse dinamismo, no sentido não de conservar sua condição de classe dominada, mas de transformá-la. As competências que se desenvolvem na escola unitária não são mecanismos de adaptação à realidade dada, mas são construções intelectuais elevadas que possibilitam à classe trabalhadora ser dirigente. O trabalho é tomado como princípio educativo, como elemento da atividade geral e universal que, no seu estado mais avançado, guarda o momento histórico da própria liberdade concreta.

A escola unitária é, pois, a possibilidade apresentada pela autora para a construção de nova competência reapropriada pela classe trabalhadora, com base em seus motivos e de seus significados. Somente a partir daí a escola unitária passa a se constituir um instrumento teórico-prático de hegemonia política. Ao ressaltar a dimensão política do deslocamento conceitual da qualificação à competência, Marise reintroduz no debate educacional e na prática política contemporânea a noção de luta de classes enquanto possibilidade de transformação social fundada na vontade coletiva.

  • 1
    Carlos Nelson Coutinho,
    Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas, 2ª ed. ampliada, Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
  • 2
    Antonio Gramsci,
    Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, vol.2, p. 40.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2003
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