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Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-1945

RESENHAS

Sandra Escovedo Selles

Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense Brown University, Center for Latin American Studies, Providence, Estados Unidos (Visiting scholar com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq). E-mail: escovedoselles@uol.com.br

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-1945. São Paulo: Editora da UNESP, 2006. 400p.

O estabelecimento do conceito de raças humanas e a elaboração de tipologias raciais deixaram marcas no cenário sociopolítico brasileiro que vêm, ao longo de tantas décadas, desafiando múltiplas análises e tentativas de reparação. Ao lado das publicações mais recentes que oferecem farta argumentação para convencer que raças humanas não existem do ponto de vista genético ou biológico continuam os debates que tentam caracterizar "o racismo à brasileira" para responder à provocação de que "os brasileiros não são racistas". Isso parece sugerir que ainda guardamos uma fantasia de que é possível encontrar uma identidade brasileira resultante dos processos miscegenatórios e determinar um padrão de branqueamento e negritude.

É assim que as questões raciais têm produzido numerosos estudos, mobilizado muitos pesquisadores em diversas áreas do conhecimento, sendo possível afirmar que se trate de uma das temáticas mais investigadas multidisciplinarmente. Particularmente, têm sido objeto de estudo de historiadores e, em especial, brasilianistas americanos, como o professor Jerry Dávila, da University of North Carolina, em Charlotte, nos Estados Unidos. Desde 1993 Jerry Dávila vem acompanhando a história do Brasil, tendo realizado sua tese de doutoramento sob a orientação de Thomas Skidmore. Suas pesquisas tratam do papel desenvolvido pelo pensamento racial nas áreas de políticas públicas e sociais, bem como sobre a construção da memória histórica, tendo como foco as questões raciais. Jerry Dávila esteve durante o ano de 2005 no Brasil como professor visitante na Cátedra Fulbright de Estudos Americanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Conheci Jerry Dávila em julho de 2004 quando proferiu uma conferência no IX Encontro "Perspectivas do Ensino de Biologia" na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Fui atraída para sua conferência porque seu título anunciava a conjugação da história da educação brasileira e eugenia, uma parte da história da biologia que muitos desejavam que não tivesse sido escrita. Entrei naquele auditório lotado e comecei a ouvi-lo trazer de volta a eugenia, mas em vez de repetir o relato das implicações eugênicas já conhecidas, Dávila apresentava, de forma extremamente provocadora, como o pensamento eugênico esteve enraizado na história da educação e no pensamento educacional de nosso país, em um período importante para muitos projetos públicos de transformação da sociedade brasileira.

Na verdade, naquela conferência, o autor estava compartindo dados e análises que se encontram no livro que lançara, pela Duke University Press, no ano anterior - Diploma of whiteness: race and social policy in Brazil, 1917-1945. Quando li esse livro, compreendi com mais propriedade a riqueza do estudo histórico realizado por Dávila e a contribuição que trazia para a área de educação e, sem dúvida, também para o ensino de biologia. Foi, assim, com muita satisfação, que recebi o anúncio da tradução do recém-lançado Diploma de brancura: política Social e racial no Brasil 1917-1945, edição publicada pela Editora UNESP e traduzida por Cláudia Sant'Ana Martins. Essa publicação torna possível que, no Brasil, mais educadores, historiadores e outros estudiosos possam partilhar do valioso material analítico que Jerry Dávila nos apresenta. Na verdade, o livro é de grande auxílio para entendermos os intricados e entrelaçados caminhos que unem, em nosso país, as questões raciais e o processo de criação e expansão do ensino público. O período histórico no qual Jerry Dávila concentrou sua pesquisa é bastante significativo para a história da educação brasileira e tem como cenário o Rio de Janeiro, então capital da República.

A obra convida-nos a refletir sobre essas questões desde a feliz escolha de seu título, uma metáfora que já anuncia o argumento central do livro. Ao examinar políticas públicas brasileiras que expandiram e reformaram o sistema educacional, particularmente no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX, Dávila discute que elas foram elaboradas e executadas tendo como pressuposto a existência de desvantagens raciais brutais entre os brasileiros não-brancos e pobres que os inferiorizavam e atrasavam o país. Assim, eram essas políticas que iriam corrigir tais diferenças, educando esses segmentos da população e curando suas doenças para, por fim, outorgar-lhes um diploma de brancura.

Essa era uma nova forma de conceber a noção de branqueamento adotado no final do século XIX; as políticas e as práticas nas escolas cariocas refletiam uma edição brasileira da "eugenia lamarckiana". Diferente de uma "eugenia darwinista" que imediatamente segregava brancos e não-brancos, a versão brasileira tinha objetivos ambiciosos e de longo prazo, quais os de "transformar uma população geralmente não-branca e pobre em pessoas embranquecidas na sua cultura, higiene, comportamento, e até, eventualmente, na cor da sua pele" (p. 13).

Durante o período de 1917 a 1945, os pressupostos da "eugenia lamarckiana" foram incorporados nas políticas educacionais e nos projetos levados adiante pelos educadores reformistas tanto para as escolas do Rio de Janeiro quanto para a formação dos professores. Para Dávila, os educadores

Tinham fé irrestrita na capacidade do estado de funcionar de maneira técnica e científica para transformar a nação. Os condutores da expansão e reforma educacional acreditavam que a maior parte dos brasileiros, pobres e/ou pessoas de cor, eram sub-cidadãos presos na degeneração - condição que herdavam de seus antepassados e transmitiam a seus filhos, enfraquecendo a nação. Os mesmos educadores tinham também fé na sua capacidade de mobilizar ciência e política para redimir essa população, transformando-a em cidadãos-modelo (p. 12-13).

Em seu estudo, Dávila baseia-se em numerosas fontes documentais primárias, depoimentos, fotografias, artigos de jornais e examina minuciosamente diversos arquivos brasileiros e internacionais. Com apurado cuidado metodológico, Dávila faz uma articulação dessas fontes, evidenciando que tais políticas eram dirigidas por uma lógica que refletia o pensamento médico e sociológico das elites brancas. O autor encontra evidências de que, durante a Velha República e a Era Vargas, as políticas educacionais reformistas que se estabeleceram primariamente na cidade do Rio de Janeiro, embora tenham ampliado o acesso à educação aos segmentos marginalizados socialmente, estabeleceram formas diferenciadas de tratamento às crianças desses segmentos. Os educadores e intelectuais interpretaram o pensamento eugênico do seu tempo e com essas idéias marcaram as instituições e as práticas no processo de expansão do ensino público.

Na verdade, o autor afirma que as políticas foram uma faca de dois gumes: "Por um lado, criaram novos recursos e novas oportunidades direcionadas a pessoas historicamente excluídas. Por outro, participantes na educação pública foram tratados de maneira desigual - os alunos pobres e de cor foram marcados como doentes, maladaptados e problemáticos" (p. 13). De acordo com Dávila, a escola que os pioneiros da educação projetaram conjugava a meritocracia, o cientificismo e a modernidade, e dessa escola sairiam os cidadãos que construiriam o ideal de nação que almejavam. Para que as crianças não brancas e de cor assumissem esse papel idealizado era preciso que se submetessem aos métodos e às práticas que demarcavam o padrão europeizado e branco. A associação da psicologia com a medicina higienista, expressa nos testes de inteligência e as avaliações de cunho higienistas, marcaram e excluíram as crianças consideradas "problemas" ou inaptas à aprendizagem.

É importante destacar que Dávila tanto em seu livro original quanto na tradução brasileira parece estar, o tempo todo "falando em português", isto é, sua compreensão e análise demonstram uma profunda identidade com as questões raciais brasileiras. Ele não opta por estabelecer comparações entre as políticas raciais americanas e as brasileiras, um caminho bastante comum entre estudiosos dessa temática. Buscando compreender a problemática brasileira a partir de um olhar bem criterioso, Jerry Dávila também não cai na armadilha de repetir a denúncia de racismo ou dos abusos do projeto civilizatório impostos à sociedade brasileira. Ao explorar seu material documental, Dávila reinterpreta uma realidade já conhecida e constrói sua análise compreendendo nuances do pensamento educacional brasileiro de forma bastante original e provocadora para futuros estudos:

Para os educadores brasileiros e sua geração intelectual, raça não era um fato biológico. Era uma metáfora que se ampliava para descrever o passado, o presente e o futuro da nação brasileira. Em um extremo, a negritude significava o passado. A negritude era tratada em linguagem freudiana como primitiva, pré-lógica e infantil. Mais amplamente, as elites brancas equiparavam negritude à falta de saúde, preguiça e criminalidade. A mistura racial simbolizava o processo histórico, visualizado como uma trajetória da negritude à brancura e do passado ao futuro. (p. 25)

O livro é dividido em seis capítulos que seguem a uma introdução que muito bem problematiza as questões que serão desenvolvidas mais detalhadamente no restante do livro. No capítulo "Construindo o homem brasileiro" o autor aborda as particularidades da "eugenia brasileira", explorando a adoção da modalidade lamarckiana francesa pelos eugenistas brasileiros, já que era essa modalidade a que acenava com a possibilidade de curar as mazelas da população. As palavras de Miguel Couto - "Se o Brasil é um grande hospital, então pode ser curado" - marcam bem a distinção de uma perspectiva lamarckiana adotada no Brasil, em contraste com a segregacionista darwiniana ou mendeliana empregada em outros países. Associações como a Sociedade Eugênica de São Paulo, bem como a Liga de Higiene Mental, tiveram em seus quadros, médicos como Afrânio Peixoto, antropólogos como Roquete Pinto e o sociólogo e educador Fernando Azevedo, este tendo atuado como secretário da Sociedade Eugênica. Para Dávila, os eugenistas brasileiros diferiram dos colegas de outros países porque "retiraram a eugenia dos laboratórios e a levaram para as políticas públicas" com o intuito de melhorar o estado físico e médico da população e transformar seus valores culturais, isso porque: "[...] ela fornecia [...] um código simplificado para explicar as idéias de inferioridade racial e definir estratégias a fim de lidar com ela, ou aperfeiçoá-la. [...] os eugenistas armaram seu grupo com uma solução científica para o que era basicamente um problema social" (p. 55). O capítulo prossegue apresentando a influência do pensamento eugênico brasileiro, destacando a contribuição das ciências médicas e psicológicas para a elaboração das políticas públicas educacionais.

O capítulo seguinte, "Educando o Brasil", discute as relações entre raça, classe e a distribuição demográfica dos habitantes do Rio de Janeiro no período de sua investigação, ressaltando o papel dos dados estatísticos disponíveis na construção de uma visão racializada da população carioca. O capítulo 3 talvez seja o que mais expresse o processo de exclusão provocado pela racialização das políticas educacionais voltadas tanto para a escola quanto também para a formação docente. Para analisar "O que aconteceu com os professores de cor do Rio?" Jerry Dávila utiliza imagens fotográficas, do acervo Augusto Malta e de outras fontes, para registrar a diminuição ostensiva da presença de professores de cor das escolas cariocas anteriores a 1930, contrastando com o crescente número de moças de origem social mais favorecida, formandas do Instituto de Educação dos anos de 1930-1940. Tomando como base essas fontes iconográficas e documentais Dávila prossegue discutindo como o pensamento eugênico esteve na base das reformas educacionais de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. A perspectiva de formar uma elite de professores, a importação de testes de inteligência e de condicionamento físico foram elementos preponderantes que excluíram os professores de cor e os alunos pobres.

O capítulo 4, "Educação Elementar", examina mais detidamente as reformas de Anísio Teixeira e a ênfase na experimentação que dominou suas propostas educacionais. O quinto capítulo, "A Escola Nova no Estado Novo", analisa o impacto do Estado Novo sobre os educadores e a repressão que se abateu sobre os reformistas. Chama a atenção para a adesão da Igreja e dos militares para a continuidade técnica da reforma após a saída de Anísio, ao mesmo tempo em que discute os antagonismos com as políticas dos educadores progressistas. Assim, o capítulo explora como o Estado Novo deu continuidade à proposta progressista, introduzindo mudanças que aumentaram ainda mais as pressões para o enquadramento racializado dos alunos e professores. O último capítulo, "Comportamento branco: as escolas secundárias do Rio", é dedicado especialmente a examinar o padrão cultural europeizado no Colégio Pedro II em contraste com as escolas vocacionais cariocas. A experiência da Escola Amaro Cavalcanti, idealizada por Anísio Teixeira e Venâncio Filho, baseando-se nos modelos norte-americanos, é compreendida por Dávila como uma tentativa frustrada de romper com padrões que não apenas cerceavam a liberdade dos alunos, como também acentuavam as diferenças de classe.

Jerry Dávila encerra seu livro examinando como a fascinação com a raça é um traço marcante no Brasil. No epílogo, "O persistente fascínio brasileiro pela raça", vai buscar diversas situações contemporâneas para conferir atualidade ao argumento central do seu livro. Para ele, embora as teses eugenistas tenham perdido a credibilidade após o término da Segunda Guerra ainda é possível perceber os pressupostos que as alimentaram em instituições e em muitas práticas, indicando como a metáfora raça humana continua a ser recriada na sociedade brasileira.1 1 Ver entrevista de Jerry Dávila publicada em < www.sbenbio.org.br/>. Vai encontrá-la em expressões corriqueiras que circulam no Brasil, como no vocabulário do futebol - "raça rubro-negra" - ou também em comentários jornalísticos sobre a divulgação de pesquisas genéticas que tentam caracterizar o "homem brasileiro". Dávila compreende que essas são formas recriadas de apresentar a "democracia racial brasileira" e o pensamento eugênico dos anos de 1930. Para o autor, a metáfora ainda persiste no debate atual quando se afirma que agora são as instituições, mais do que os indivíduos, que precisam ser reformadas para solucionar as desigualdades racial e social. Por fim, Jerry Dávila considera que a obsessiva fixação com a identidade racial brasileira reflete as estratégias compartilhadas pelas elites: o conforto de sermos racialmente miscigenados e a outorgação do diploma de brancura. Para ele, um diploma de "negritude" seria impensável tanto nos anos trinta do século passado como ainda nos dias atuais.

O argumento de Jerry Dávila e a análise de seu livro provocam novas leituras sobre este importante momento da história educacional brasileira e nos desafiam a continuar buscando formas de enfrentamento para a profunda injustiça que marca o acesso à educação em nosso país. Se ao contrário dos educadores reformistas estamos mais conscientes das armadilhas ideológicas de nosso tempo, esta obra certamente contribui para isso e oferece-nos material para apurar nossa capacidade de examinar como recriamos metáforas raciais ao lado do desejo de um futuro melhor para as novas gerações.

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    Ver entrevista de Jerry Dávila publicada em <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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