RESENHAS
Ira Maria Maciel
Doutora em psicologia escolar e desenvolvimento humano pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é pesquisadora e consultora na área de educação e cultura, tecnologia da informação e comunicação, assim como em educação a distância. E-mail: maciel@centroin.com.br
Coleção Literatura para Todos. Brasília: Ministério da Educação, 2006.
Basta alfabetizar? É possível reverter a situação de desigualdade de acesso ao livro e à informação? Como enfrentar a enorme carência de livros produzidos para o período de pós-alfabetização de jovens e adultos? É necessário que as classes populares continuem sem acesso à literatura? Por que continuar a oferecer a jovens e adultos livros que não atendem ao seu perfil cultural? Como favorecer o processo de letramento de jovens e adultos?
A coleção Literatura para Todosinscreve-se como uma ação inovadora/fundadora que procura avançar no enfrentamento dessas questões, inaugurando uma produção de textos específicos de literatura para neoleitores jovens e adultos. Sua gênese está no Projeto de Leituração, criado pelo Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) e a promoção do Concurso Literatura para Todos, que premiou, em 2006, dez obras inéditas para neoleitores jovens e adultos procedentes do Programa Brasil Alfabetizado.
A construção da coleção envolveu nove meses de trabalhos, nos quais os critérios para a seleção das obras especificados no edital do concurso foram exaustivamente debatidos e discutidos. Participaram dessa construção Timothy Ireland (coordenador geral), Tancredo Maia Filho (coordenador técnico) e Ira Maria Maciel (coordenadora pedagógica). A Comissão de Pré-Seleção foi integrada por Cristiane Costa, Heitor Ferraz, Júlio Diniz e Maria de Luz Cristho, profissionais com vasta experiência nas áreas de ensino, pesquisa e análise de textos literários. Fizeram parte da Comissão Julgadora os escritores Antônio Torres, Marcelino Freire, Moacyr Scliar, Milton Hatoum, Rubens Figueiredo, a editora Heloísa Jahn e as professoras e pesquisadoras Jane Paiva, Ligia Cademartori eMagda Soares. A pluralidade dessa Comissão e sua competência profissional foram fatores que contribuíram para minimizar o enorme desafio de selecionar entre os 2.100 originais recebidos os dez livros publicados em 2006.
A diversidade da comissão favoreceu também um permanente processo de construção de conhecimentos e o fortalecimento de uma série de expectativas. Entre as expectativas mais recorrentes estava a de disponibilizar obras de caráter literário para neoleitores jovens e adultos e assim buscar a consolidação do processo de alfabetização e o estímulo à prática da leitura, a partir da leitura literária. A coleção Literatura para Todos oferece uma opção diversa aos textos didáticos e materiais pedagógicos a quem não tem acesso ao livro, seja ele didático ou literário. Propõe a literatura como ferramenta catalisadora do processo de leitura e investe na possibilidade da criação de um vínculo afetivo do leitor com a obra literária.
O que fazer para estimular novos leitores? Como estimular o contato cada vez maior de jovens e adultos com a literatura? Quais os obstáculos enfrentados pelos educandos e educadores em relação à prática da leitura literária? Essas e outras perguntas circularam e foram decisivas para a constituição da coleção.
Apesar de as discussões realizadas no processo de seleção indicarem que as fronteiras de separação entre os gêneros são muito frágeis e como é dificil para o leitor distinguir, por exemplo em Rubem Braga, um conto de uma crônica; apesar de muitas vezes não ter sido fácil discriminar entre as obras concorrentes o diferencial de um conto, uma crônica, uma novela e mesmo de um poema, a coleção Literatura para Todos teve como critério a inclusão de diversos gêneros. A diversidade de gêneros e de temáticas procurou considerar a diversidade dos sujeitos que constituem a educação de jovens e adultos.
Em todos os gêneros da coleção o critério fundamental foi a presença da literariedade. As obras selecionadas refletem o domínio técnico narrativo; a linguagem apresenta uma elaboração artistística, tendo subjacente o objetivo de cativar o leitor e manter o seu interesse pela leitura. Todos os textos selecionados buscaram a comunicabilidade e a possibilidade de a leitura produzir prazer. O investimento na textualidade (construção de linguagem); a adequação ao destinatário (condições de recepção pelo neoleitor); a originalidade e pertinência temática (particularidade e relevância do tema) também foram consideradas na seleção de cada obra.
A coleção Literatura para Todos procurou selecionar as obras que conseguiram articular coesão narrativa (forma e conteúdo) e buscavam alimentar a criatividade e a imaginação do leitor, além de trabalharem com uma linguagem cuidadosa, sem necessariamente facilitar ou optar por uma marca pueril.
A coleção destaca-se por seu projeto gráfico. Foi avaliado que o tamanho dos textos literários em circulação, a complexidade da forma, a falta de intimidade com autores e obras deixam à margem excelentes oportunidades de aproximar os neoleitores dos textos literários. Assim, foi definido que os livros da coleção teriam em torno de 40 laudas, levando em conta a etapa de amadurecimento literário, a pouca disponibilidade de tempo do neoleitor trabalhador e o incentivo à leitura até o final do texto. No projeto gráfico considerou-se também que os livros precisariam ser ao mesmo tempo atraentes e práticos e para isso foram selecionados diversos estilos de ilustrações que dialogam com o texto e o universo do neoleitor. A coleção tem um formato e uma mancha gráfica que pretende favorecer a aproximação do neoleitor com o texto e tornar os livros simples e bonitos.
Abraão e as frutas, de Luciana V. P. de Mendonça, apresenta com simplicidade e profundidade os diversos tipos de poemas e os infinitos sabores que as frutas e a poesia podem oferecer. Nas entrelinhas aparecem referências a obras de Manuel Bandeira, Ferreira Gullar ou João Cabral de Melo Neto, homenageando os poetas brasileiros.
Batata cozida, mingau de cará, de Eloí Elisabete Bocheco, toma como ponto de partida uma antiga canção folclórica, uma quadrinha ou cantiga infantil ou ainda um velho ditado. A autora constrói seus poemas com imagens, rimas e palavras e faz um convite para visitar o Brasil do interior, fortemente marcado pela cultura popular.
Os contos Cabelos molhados, de Luís Pimentel, no dizer de Cristiane Costa, são contos enxutos, certeiros como uma flecha apontada para o coração. Os personagens das pequenas histórias, algumas de desfecho surpreendente, procuram revelar situações que mostram o que pode existir de dramático no dia-a-dia do brasileiro.
Caravela (Redescobrimentos), de Gabriel Bicalho, mergulha em imagens marinhas, para fazer da palavra mar o principal tema dos poemas. O autor convida o neoleitor, de maneira bem-humorada, a enfrentar as inúmeras possibilidades de montar e desmontar sílabas e sentidos. O leitor é convidado a participar de um jogo que leva ao "redescobrimento" da própria linguagem.
Cobras em compota, deÍndigo, com sutileza e extrema leveza, recorda memórias da infância, convidando cada um ao encontro com a fantasia, a imaginação e as divagações. A graça e a ironia presentes nos textos têm a intenção de divertir o leitor e aguçar o seu olhar para os acontecimentos do cotidiano.
Entre as junturas dos ossos, de Vera Lúcia de Oliveira, aborda com sensibilidade todos os sentidos e até busca um novo sentido para dar conta de outras sutilezas. "Dei para pisar no rangido dos ventos", um dos versos do livro, mostra a leveza de sua escrita. Os poemas oscilam entre a simplicidade e a apresentação de breves enigmas. O leitor precisa aproximar-se com atenção para descortinar outras faces da poesia, mas em compensação ele entra em contato com a intensidade lírica.
A biografia Léo, o pardo, de Rinaldo Santos Teixeira, apresenta ao neoleitor uma comovente experiência de vida. Com graça e objetividade o autor apresenta os preconceitos vivenciados pelos que possuem a cor parda, sem ficar emaranhado na mágoa e na dor. O autor prefere deixar que fatos falem e revelem o mundo de dificuldades, com raízes fundas no Brasil. Além de possuir coerência temática e originalidade, a obra estimula a imaginação e a reflexão.
Cristiane Dantas,com uma narrativa ágil e profunda,convida o leitor a acompanhar a história de Madalena,uma mulher que teve coragem de enfrentar a vida e ser senhora de si. Convida-o a olhar com firmeza e compaixão as fraquezas e forças humanas, as agruras das mulheres submetidas, as mazelas do interior e da capital, os jogos do poder, o pulsar das relações familiares e toda a beleza e complexidade da vida.
A divertida peça de teatro Família composta, de Domingos Pellegrini, retrata um pai que, entre queixas e resmungos, ajuda à filha solteira a criar o bebê. O leitor é convidado a analisar uma história cotidiana e familiar e perceber como velhas convicções podem balançar com a chegada do futuro genro, um poeta. Todas as questões são enfrentadas com sensibilidade, crítica e humor.
Cezar Dias, em Tubarão com a faca nas costas, apresenta crônicas que trazem um retrato sensível do cotidiano. O leitor é convidado a olhar com empatia a rotina diária de desconhecidos afetados pela dureza da sobrevivência. Cenas aparentemente insignificantes são retratadas com imaginação e delicadeza, amenizando em parte a aspereza diária.
Complementando as dez obras escolhidas, o manual Literatura para todos: conversa com educadores, preparado por mim, Jane Paiva e Ligia Cademartori, em tom de conversa amena, apresenta a coleção ao educador e discute a importância da literatura e da prática de leitura. As obras e seus autores são apresentados com suas experiências na área de leitura e de literatura. A conversa sobre livros, leitores, literatura e o papel do educador desenvolve-se a partir de um pingue-pongue com especialistas e escritores que participaram das comissões julgadoras. Conversa com educadores apresenta também depoimentos de oito educadores sobre sua própria experiência com a leitura e sua prática na formação de leitores. Para aproximar mais os educadores dos desafios relativos à formação do leitor e ao direito à literatura, o conteúdo foi editado pelo escritor e jornalista Cláudio Figueiredo, especialista na área de comunicação.
Para que possamos, porém, atingir o objetivo de formar uma comunidade de leitores, é imprescindível termos um dialógo permanente com educandos e educadores sobre a temática do livro. Ir ao encontro dos desejos e do contexto de vida dos neoleitores é o primeiro passo para construir uma relação mais constante e consistente dos educandos e educadores com o objeto livro.
As obras literárias derivadas do concurso Literatura para Todos, para atender às demandas educacionais, precisam ser acompanhadas de ações mediadoras, dando continuidade a consultas e realizando pesquisas sistemáticas em relação à leitura literária, em especial:
Identificar de modo contínuo os interesses e os obstáculos enfrentados pelos educandos e educadores em relação à prática de leitura e desenvolver um conjunto de ações para realizar as mudanças necessárias.
Realizar investimentos tendo em vista a democratização da leitura, sabendo que esse processo passa pelo enfrentamento de questões de natureza estrutural e econômica. A desigual distribuição de bens simbólicos precisa ser superada com ações concretas e criativas, considerando a multiplicidade de cenários da realidade brasileira.
Os projetos de produção de materiais ou seleção de obras literárias devem contemplar a diversidade dos sujeitos da educação de jovens e adultos e a diversidade regional. Além de procurar construir uma base comum, na qual sejam discutidas questões da existência humana nas suas dimensões éticas e políticas, é importante desenvolver um trabalho que considere a pluralidade das regiões brasileiras e socialize o patrimônio material e imaterial dessas realidades culturais.
Ao apresentar os diversos cenários da sociedade brasileira, é necessário explicitar os contrastes, as similariedades e até os antagonismos. Desse modo, poderá ser fortalecido o processo de abertura para a diversidade, contribuindo para a convivência com a diferença e a preservação da identidade brasileira.
Projetos relacionados à prática social da leitura devem investir em processos de acompanhamento e avaliação dos produtos, visando adequar a linguagem às características e aos intereses dos neoleitores. A introdução da leitura literária é uma escolha positiva e produtiva e precisa ser desenvolvida de forma consistente e criativa.
Desenvolver projetos específicos de formação de mediadores que promovam o estímulo à leitura e sejam aliados na superação de dificuldades de aprendizagens dos neoleitores e que possam também socializar informações e conhecimentos sobre o campo da leitura literária.
A formação dos educadores em relação ao desenvolvimento da leitura literária é da maior importância para a inserção dessa modalidade nos projetos educacionais e no cotidiano escolar. Esse investimento deve ter entre seus objetivos um modo de escolarização que considere os aspectos da literariedade e que possa potencializar todas as funções da literatura.
O acesso ao texto literário pode capturar os neoleitores jovens e adultos para a prática social da leitura e torná-los leitores ativos por excelência. O texto literário possibilita a produção de significados e sentidos e contibui para que os sujeitos façam leituras críticas do mundo e para que possam criar novas possibilidades para a vida. Mas a leitura por si só não é uma poção mágica que possa enfrentar as mazelas do sistema educacional e do mundo. O professor, antes de tudo, precisa, no ato da leitura, deslocar o seu ponto de observação e considerar o mundo por uma nova óptica, outra lógica, outros meios de conhecimento. Calvino, em seu livro Seis propostas para o próximo milênio, diz-nosque do universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar a nossa imagem de mundo.
Sem dúvida, o professor leitor tem um diferencial e já demonstra uma nova postura. Porém, para aumentar a proficiência da leitura dos alunos, o professor precisa, antes de tudo, perceber-se como sujeito produtor e portador de um saber político-pedagógico, transformador de sua própria prática, a partir de uma atitude analítica, reflexiva e investigativa da realidade social e profissional.
A sociedade como um todo precisa, também, estar engajada em um projeto de transformação do cenário social e educacional. Todos nós temos de nos entregar ao ato de conhecer, à interrogação ilimitada, a um fazer lúcido, à paixão pela democracia e pela liberdade, à exposição à atividade criadora tendo em vista a criação de conhecimento e a elaboração de propostas de solução criativa para as demandas educacionais.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Out 2007 -
Data do Fascículo
Dez 2007