RESENHAS
Soeli Andrea GuralhI; Silvia Regina Ott MiglioriniII
IAssistente social. Mestranda do Programa de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UFPG). E-mail: sguralh@hotmail.com IIPsicóloga. Mestranda do Programa de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UFPG). E-mail: silvia_migliorini@hotmail.com
TRASSI, Maria de Lourdes. Adolescência - violência: desperdícios de vidas. São Paulo: Cortez, 2006. 264 pág.
No rol das temáticas controversas e polêmicas percebidas no âmbito social, a associação entre adolescentes e violência pode ser considerada uma construção bastante significativa, sobretudo, no momento presente. Nesse cenário é que são gestadas as relações abordadas pela autora, Maria de Lourdes Trassi, psicóloga e psicanalista, que conta com uma ampla trajetória profissional, na qual tem destaque práticas relacionadas aos adolescentes autores de ato infracional, tendo atuado na primeira unidade do sistema Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) na década de 1970, posteriormente, na década de 1980, sendo diretora da única unidade da FEBEM para jovens adultos.
O recorte histórico temporal da pesquisa relaciona-se ao período compreendido entre os anos de 1960 a 2005 tendo como lócus espacial a cidade de São Paulo. As problematizações apóiam-se em autores como Hobsbawm, Foucault, Heller, Adorno e Freud.
A pesquisa pauta-se na consideração da temática como uma realidade composta por numerosos determinantes, os quais se referem: ao modo de organização social, política e econômica; às novas tecnologias; às mudanças nas relações de gênero e na percepção da juventude, fundamentalmente em seus novos papéis sociais na família e na sociedade e sua incorporação ao mercado do consumo "de bens materiais e culturais".
Uma hipótese de pesquisa bastante importante para conceber a problemática levantada pela autora é a representação social existente e muito difundida acerca da responsabilidade dos adolescentes pelos elevados índices de criminalidade observados no âmbito nacional, visto que essa forma de representação é o que possibilita, por vezes, a justificação do uso pelo Estado de meios autoritários e repressivos e, em determinado casos, fornece legitimidade a mecanismos cruéis como a tortura e o extermínio.
Com relação ao processo metodológico desenvolvido, cabe destacar que contempla fontes documentais, constituídas de dados estatísticos, relatórios, estudos de casos, pesquisas científicas, entre outros. Além disso, utiliza também como recurso a história de vida, fundamentada em raízes antropológicas e psicanalíticas, realizando o diálogo com os mais diversos saberes e especialidades na construção das análises.
O despertar pelo interesse da leitura de cada capítulo inicia-se pelos títulos convidativos e provocativos. Os capítulos foram construídos de tal forma que cada uma se refere a um período específico (décadas) do recorte temporal selecionado pela autora. A trajetória de vida de alguns adolescentes dentro do sistema socioeducativo nos diferentes momentos abordados na obra servem de pano de fundo para uma problematização de elementos conjunturais e permite que o leitor vislumbre uma maior proximidade com as analises tecidas.
Dessa forma, vale destacar as reflexões levantadas pela autora acerca da realidade do aumento da criminalidade entre os adolescentes a partir da década de 1990, e o cotidiano das instituições para adolescentes que cometeram atos infracionais. São dados de pesquisas e relatórios que descrevem a situação e realidade das unidades de internamento de adolescentes infratores na cidade de São Paulo. E declara com sabedoria que "[...] as políticas de privação de liberdade acabam reforçando a socialização no mundo do crime, a reincidência e a construção da carreira moral da delinqüência no interior da própria instituição destinada ao controle social" (p. 167).
Trassi coloca em questão se a participação dos adolescentes na criminalidade urbana, especialmente nas modalidades violentas, realmente cresceu ou se há uma espetacularização do crime pela mídia.
O capítulo final constitui-se de alguns tópicos que visam ir além da aparência e das "representações sociais falseadoras da realidade sobre o tema adolescência - violência no contexto da cultura" (p. 204). Esse binômio possui múltiplas faces, complexas determinações e articulações, para compreendê-lo faz-se necessário um modo de olhar e compreender que implica a transdisciplinariedade, é necessário transitar por vários saberes.
A autora coloca em discussão se há uma ética possível na violência, e se pensar sobre o futuro implicaria pensarmos uma ética da violência. Temos guerras legítimas e ilegítimas que autorizam a liberação da crueldade no dia-a-dia, pois o outro, quem quer que seja, pode ser um inimigo. Temos que as crianças e os adolescentes são vítimas da guerra e também seus personagens - é possível pensar um futuro para crianças e adolescentes que vivem radicalmente a experiência da violência, ou ainda, existe possibilidade de não repetirem como agentes a violência que os vitimou anteriormente? Há um claro fracasso dos mecanismos reguladores da convivência coletiva - faz-se necessário construir estratégias para acabar com as práticas "dissimuladas ou descaradas de conivência com a crueldade". Num mundo narcisista, imediatista, no qual prevalece uma moral do consumo - no qual há espaço para os ideais e as utopias? Faz-se necessária uma crítica "à sociedade contemporânea e uma valorização radical do ser humano como razão ultima de todo ato social. A ética da solidariedade com o outro [...] um esforço coletivo, transnacional" (p. 254).
A inserção profissional da autora no universo das relações constituintes de seu objeto de estudo, ao mesmo tempo em que exigiu prudência e autocrítica no concernente as suas idéias, convicções e julgamentos, possibilitou o aflorar de um novo olhar para realidade, um profícuo exercício intelectual que consiste naquilo que Roberto Damatta define como: "tornar exótico o natural".
Nesse processo, a autora sinaliza para o fato de que o mérito de uma pesquisa não está em desvelar uma esfera da realidade ainda inexplorada, mas ser capaz de partir de uma esfera por vezes familiar e perceber novos elementos passíveis de questionamentos, aspectos do real ainda não problematizados, romper com o instituído, penetrando nele a fim de constatar onde se deflagram suas lacunas.
E vai além, o desnudamento das realidades vivenciadas pelos jovens aos quais ela recorre para delinear o processo de construção de suas idéias, e muitos outros que ali se encontram representados em meio às folhas, dá o tom da obra - sincera, realista, muito bem embasada, e sensível às conjunturas do sistema nacional de atendimento ao adolescente que cometeu ato infracional.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Set 2008 -
Data do Fascículo
Ago 2008