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Currículo, ruídos e contestações: os povos indígenas na universidade

Currículum, ruidos y contestaciones: los pueblos indígenas en la universidad brasileña

RESUMO

A história curricular das universidades públicas brasileiras mostra seu compromisso com concepções e representações forjadas nas relações coloniais, de modo que, em seus espaços, formas de produção, validação, aplicação e circulação de conhecimentos ainda são disputadas com base em uma matriz epistemológica ocidental, eurocentrada, racializada. Nesse sentido, questiono se as presenças indígenas nas universidades, ampliadas na última década, podem constituir-se em possibilidade de produção de novos sentidos e de novos arranjos das diferenças. Tais presenças tendem a provocar rupturas nas matrizes curriculares, tensionando outras materializações do conhecimento? As categorias com as quais temos operado a definição desses conhecimentos dão conta da demanda indígena que literalmente ganha corpo na universidade? A experiência em curso em algumas universidades permitide conceber a presença indígena como possibilidade de deslocamentos curriculares.

PALAVRAS-CHAVE:
povos indígenas no ensino superior; geopolítica do conhecimento; currículo

RESUMEN

La historia curricular de las universidades públicas brasileñas muestra su compromiso con concepciones y representaciones forjadas en las relaciones coloniales, de modo que, en sus espacios, formas de producción, validación, aplicación y circulación de conocimientos todavía se disputan con base en una matriz epistemológica occidental, eurocentrada, racializada. En ese sentido, cuestiono si las presencias indígenas en las universidades, ampliadas en la última década, pueden constituirse en posibilidad de producción de nuevos sentidos y de nuevos arreglos de las diferencias. Tales presencias tienden a provocar rupturas en las matrices curriculares, tensando otras materializaciones del conocimiento? Las categorías con las que hemos operado la definición de esos conocimientos dan cuenta de la demanda indígena que literalmente gana cuerpo en la universidad? La experiencia en curso en algunas universidades permitió concebir la presencia indígena como posibilidad de desplazamientos curriculares.

PALABRAS CLAVE:
pueblos indígenas em la universidad; geopolítica del conocimiento; currículum

ABSTRACT

Curricular history of Brazilian public universities has showed their commitment with conceptions and representations forged in colonial relationships, so that the forms of production, validation, application and knowledge circulation are still disputed based on a Western, Eurocentric, racialized epistemological matrix in their spaces. So, we question whether the indigenous presences in the universities, enlarged in the las decade, can constitute the possibility of producing new meaning and arrangements regarding differences. Do such presences tend to cause ruptures into curricular matrices, stressing other materializations of knowledge? Do the categories with which we have worked out the definition of this knowledge account for the indigenous demand that literally gains shape in the university? The experience in progress in some universities allowed the indigenous presence to be conceived as a possibility of curricular displacements.

KEYWORDS:
indigenous people in universities; geopolitic of knowledge; curriculum

POVOS INDÍGENAS, AÇÕES AFIRMATIVAS E ENSINO SUPERIOR NO BRASIL: UMA BREVE HISTÓRIA DE RESISTÊNCIAS E EXISTÊNCIAS

Neste artigo,1 1 Trabalho resultante de pesquisa de doutorado, sob orientação do professor Valter Roberto Silvério (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar), com apoio da agência de fomento Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trata-se da versão revista e ampliada do texto apresentado no Grupo de Trabalho “Currículo” (GT12), na 38ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) de 2017. Para esta publicação, agradecemos as preciosas observações dos pareceristas ad hoc da Revista Brasileira de Educação. abordo a história curricular das universidades públicas brasileiras considerando seu compromisso com concepções e representações forjadas por uma matriz epistemológica ocidental, eurocentrada, fundamentada em um conjunto de hierarquias, para discutir se as presenças indígenas nas universidades, ampliadas na última década, podem constituir-se em possibilidade de deslocar representações acerca da diferença e, em alguma medida, levar a desarranjos epistemológicos e a novas materializações curriculares.

A história da América Latina é atravessada pelos efeitos dos processos coloniais que engendraram o apagamento físico, cultural, linguístico e territorial, deslocamentos e reorganização social e territorial dos povos indígenas, assim como pelos efeitos da escravização de povos africanos, que tiveram também suas culturas, símbolos de identidades e sistemas linguísticos, filosóficos, religiosos, médicos e cosmológicos profundamente afetados. Ao mesmo tempo, apresenta-se uma história, embora invisibilizada, de lutas, subversões, negociações, reexistências, recriações culturais e identitárias desses povos.

As sociedades indígenas latino-americanas, em virtude desse processo, acumularam profundas inequidades que acometem o acesso à educação, do ensino básico ao ensino superior, além de afetarem a atenção à saúde, o direito ao território originalmente habitado e a outras bases de produção material, cultural e social, o acesso a emprego, moradia e a ausência de reconhecimento ou de reconhecimento deformado de identidades e culturas. Ainda hoje essas sociedades resistem aos megaempreendimentos, a ações de ruralistas, grileiros, fazendeiros, policiais e ao próprio Estado, muitas vezes responsável pelo desmantelamento de direitos duramente conquistados.

Especificamente no Brasil, considerar as dinâmicas sociais dos povos indígenas, de qualquer ponto de vista, exige compreendê-los levando em conta suas relações com as sociedades não indígenas e as concepções historicamente estabelecidas a seu respeito ao longo do processo colonialista e sua diversidade sociocultural: língua, identidades, práticas culturais, demografia, organização social, economia e política, história, produção de conhecimento, de encontros entre as diferentes etnias e com segmentos da população não indígena, entre outros aspectos. Diversidade esta que contribui para a formação de um quadro único, rico e complexo das relações sociais e culturais constituídas com esses povos, como escrevera Silva (2003Silva, A. L. A educação de adultos e os povos indígenas no Brasil. Em Aberto, Brasília: INEP, v. 20, n. 76, p. 89-129, fev. 2003.).

A proposta de valorização das diferenças culturais e de reconhecimento da diversidade como um direito que deve ser assegurado aos povos indígenas, cabendo-lhes a proteção do Estado (não a tutela), entretanto, é recente na história do país. Os povos indígenas no Brasil foram, em um primeiro momento, concebidos como “seres incapazes” de gerir a própria vida, “selvagens”, para posteriormente serem concebidos como seres que poderiam ser salvos, mediante ação civilizatória, catequizadora e, assim, integrar o quadro dos trabalhadores da nação. Nesse contexto, é evidente que o direito à terra, à língua e à cultura jamais poderia ser-lhes assegurado (Grupioni, 2006Grupioni, L. D. B. Contextualizando o campo da formação de professores indígenas no Brasil. In: Grupioni, L. D. B. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília, DF: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.). A expansão colonialista sobre os povos indígenas e seus territórios, em virtude da histórica imposição do projeto nacionalista monocultural do Estado brasileiro, caracterizou-se por inúmeras tentativas de superação de sua sociodiversidade e identificação étnica, considerada índice de atraso nacional, de entrave ao progresso e ao marco civilizatório almejado nos moldes europeus (Brand, Nascimento e Urquiza, 2008Brand, A. J.; Nascimento, A. C.; Urquiza, H. A. Os povos indígenas nas instituições de educação superior: a experiência do Projeto Rede de Saberes. In: Lópes, L. E. Interculturalidad, educación y ciudadanía: perspectivas latinoamericanas. La Paz, Bolívia: 2009. p. 377-396. Disponível em: <Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/24880235/Interculturalidad-Educacion-y-Ciudadania >. Acesso em: 30 nov. 2018.
https://pt.scribd.com/doc/24880235/Inter...
).

As distintas ações direcionadas aos povos indígenas no Brasil sempre estiveram associadas ao questionamento de como eles poderiam “participar” da formação da sociedade nacional e com vistas à subsunção de sua diferença sociocultural. Assim, explica Grupioni (2006Grupioni, L. D. B. Contextualizando o campo da formação de professores indígenas no Brasil. In: Grupioni, L. D. B. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília, DF: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006., p. 40), estabeleceram-se concepções hegemônicas de que os povos indígenas “precisavam ser civilizados, salvos enquanto indivíduos, aniquilados enquanto povos culturalmente diversificados”.

Apesar da longa história de imposição colonialista e das práticas etnocidas engendradas contra os povos indígenas, suas culturas e seu sentimento de pertencimento étnico não sucumbiram de todo, visto que eles reelaboraram seus modos particulares de estar no mundo, de construir experiências inéditas de contestação, negociação e hibridação e firmaram-se enquanto coletividades diferenciadas. Baniwa (2006Baniwa, G. L. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.), do povo Baniwa, aponta a articulação de alianças e o surgimento de novas lideranças políticas indígenas, a retração do Estado e o esvaziamento político-financeiro da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), abrigada no Ministério da Justiça, e, em nível mundial, a globalização das questões ambientais como fatores que exigiram o fortalecimento dos movimentos indígenas e colocaram em evidência a problemática relacionada às terras indígenas.

Em consequência, contemporaneamente presenciamos um momento de intensa mobilização por parte de povos indígenas de diferentes etnias que reivindicam direito à língua, à identidade e à cultura diferenciadas, mas cujo desafio maior enfrentado ainda é a posse dos territórios que representam cerca de 13% do território nacional e 23% da área da Amazônia Legal. Tanto do ponto de vista ambiental quanto cultural a relevância dessas terras é incalculável. Segundo a FUNAI, “As terras indígenas são o suporte do modo de vida diferenciado e insubstituível dos cerca de 300 povos indígenas que habitam, hoje, o Brasil” (Brasil, 2017Brasil. Ministério da Justiça. Fundação Nacional do Índio. Demarcação de terras indígenas. Brasília, DF: 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarcacao-de-terras-indigenas?limitstart=0# >. Acesso em: 8 abr. 2017.
http://www.funai.gov.br/index.php/nossas...
).

Baniwa (2006Baniwa, G. L. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006., p. 101-102) explica que o território é condição de vida dos povos indígenas, um fator fundamental de resistência.

É o tema que unifica, articula e mobiliza todos, as aldeias, os povos e as organizações indígenas, em torno de uma bandeira de luta comum que é a defesa de seus territórios. [...] Terra e território para os índios não significam apenas o espaço físico e geográfico, mas sim toda a simbologia cosmológica que carrega como espaço primordial do mundo humano e do mundo dos deuses que povoam a natureza. [...] Os povos indígenas estabelecem um vínculo estreito e profundo com a terra, de forma que o problema inerente a ela não se resolve apenas com o aproveitamento do solo agrário, mas também no sentido de territorialidade. Para eles, o território é o habitat onde viveram e vivem os antepassados. O território está ligado às suas manifestações culturais e às tradições, às relações familiares e sociais.

Atrelada à luta pelo território,2 2 Importante ressaltar que se trata, em nosso país, de uma luta historicamente violenta contra os povos indígenas, e violência inclui confinamento territorial. Em 2017, tivemos notícia do atentado ao povo indígena Gamela, acompanhado de mutilações empreendidas por fazendeiros e pistoleiros em uma área de retomada do território tradicional em Povoado das Bahias, no município de Viana, Maranhão, consequência da ausência de efetivação dos mecanismos de proteção do Estado, de sua omissão em assegurar o direito originário e constitucional que os povos indígenas detêm e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam e da morosidade no processo de demarcação das terras indígenas. Lideranças indígenas do povo Gamela iniciaram processo de retomada das áreas ocupadas por fazendeiros nos anos de 1980. As fases do procedimento demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas são definidas por decreto da presidência da República e atualmente consistem em estudos, delimitações, declarações, homologações, regularizações e interdições , em um processo que pode levar décadas. paulatinamente a educação escolar passou a ser percebida pelos povos indígenas como estratégia de apreensão dos conhecimentos acadêmicos que lhes permitiriam estabelecer relações mais autônomas com setores do indigenismo oficial e com outros segmentos da sociedade brasileira. Assim, de um processo imposto na perspectiva do apagamento das diferenças culturais e do assimilacionismo à sociedade nacional, a educação passa a constituir-se, contemporaneamente, como demanda dos povos indígenas (Gruponi, 2006Grupioni, L. D. B. Contextualizando o campo da formação de professores indígenas no Brasil. In: Grupioni, L. D. B. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília, DF: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.).

Um exemplo da reapropriação da escola, com a definição de seus objetivos em razão dos desejos, da história e da memória da própria comunidade indígena, é trazido com sensibilidade por um estudante Balatiponé da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar): efeito de um processo de devastação cultural, social e linguístico, o povo Balatiponé é reduzido a 23 pessoas na década de 1940. Na última década, contudo, a comunidade passa a reexperimentar a cultura de seu povo, por meio de seu avivamento no corpo, na memória e no cotidiano: as pinturas, o artesanato, as danças, as histórias, os movimentos da língua, a beleza dos cantos, a força das cerimônias.

Se no cenário de reivindicações a educação escolar indígena passava a ser foco de uma normatização pelo Estado brasileiro, desde 1991 (embora essa normatização não significasse o atendimento, de fato, das pautas indígenas) o mesmo não acontecia em relação ao acesso de estudantes indígenas no ensino superior (Freitas e Harder, 2011Freitas, A. E. C.; Harder, E. Alteridades indígenas no ensino superior: perspectivas interculturais contemporâneas. In: Reunión de Antropología del Mercosur, 11., 2011, Curitiba. Anais... Curitiba, jun. 2011. Mimeografado.). Na perspectiva de Lima (2007Lima, A. C. Educação superior para indígenas no Brasil: sobre cotas e algo mais. In: Brandão, A. A. (Org.). Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A, 2007. p. 253-279.), as organizações indígenas pensaram pouco sobre a educação superior porque a luta pela posse dos territórios e por formas que lhes garantissem a manutenção econômica, social e cultural de suas formas coletivas de vida assumiam centralidade em suas preocupações e nas formulações de suas demandas.

Notadamente sobre os debates acerca do acesso de indígenas à universidade, Barroso-Hoffmann (2005Barroso-Hoffmann, M. Direitos culturais diferenciados, ações afirmativas e etnodesenvolvimento: algumas questões em torno do debate sobre ensino superior para os povos indígenas no Brasil. In: Congreso Latinoamericano de Antropologia, 1., 2005, Rosario. Anales... Rosario: ALA, 2005.) e Lima (2007Lima, A. C. Educação superior para indígenas no Brasil: sobre cotas e algo mais. In: Brandão, A. A. (Org.). Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A, 2007. p. 253-279.) apontam que estes trazem à tona os preconceitos embutidos nas representações que os enquadram como “povos primitivos”, além de apontarem os estereótipos que foram capazes de invisibilizar a diversidade dos mais de 305 povos, com 817.963 falantes de pelo menos 274 línguas distintas, como indicam os dados do Censo Demográfico de 2010, reduzindo essa diversidade cultural, em “um ente único e genérico, que todos [...] supomos conhecer - o índio3 3 Sabemos que o termo indígena, assim como índio, é uma categoria colonialmente construída (Batalla, 1982), marcada racialmente, na medida em que se constituem termos de indistinção que obscurecem diferenças muito significativas do ponto de vista social, político, cultural e linguístico entre grupos e povos, muitas vezes radicalmente diferentes entre si. Com isso, é uma categoria que não remete a nenhum conteúdo específico dos grupos que pretende abarcar, de modo que a utilizo aqui sob rasura, como nos ensina Hall (2011). (Lima, 2007Lima, A. C. Educação superior para indígenas no Brasil: sobre cotas e algo mais. In: Brandão, A. A. (Org.). Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A, 2007. p. 253-279., p. 271).

Para Barroso-Hoffmann (2005Barroso-Hoffmann, M. Direitos culturais diferenciados, ações afirmativas e etnodesenvolvimento: algumas questões em torno do debate sobre ensino superior para os povos indígenas no Brasil. In: Congreso Latinoamericano de Antropologia, 1., 2005, Rosario. Anales... Rosario: ALA, 2005.), os estereótipos e os preconceitos dirigidos aos povos indígenas4 4 Vale destacar que, embora as sociedades pós-coloniais da América Latina tenham sido constituídas com base na hierarquização de atributos de etnia e raça, a engenharia dessa estratificação não é a mesma, assegura Segato (2005). Essa autora nos ajuda a entender como a construção do Outro é, ao mesmo tempo, a produção histórica e geograficamente localizada de uma “coisa”. Considerando a concepção de raça como signo, cujo valor sociológico reside em sua capacidade de conferir significado, a autora discute raça como marca. A marca da posição dos corpos na história é um traço circulante e móvel, que não está exatamente no corpo, mas no signo. Para Segato (2005, p. 3), “o seu sentido depende de uma atribuição, de uma leitura socialmente compartilhada e de um contexto histórica e geograficamente delimitado”. levantam a questão - do seu ponto de vista, equivocada - de como “inseri-los” nas universidades sem temer que isso possa tornar-se um instrumento de ameaça às identidades indígenas e de perda dos vínculos dos estudantes com seu povo de origem. Para a autora, mais que tratar da questão das presenças indígenas na universidade e da produção de conhecimento por meio do diálogo intercultural, seria mais profícuo considerar as relações que já têm sido estabelecidas entre esses conhecimentos - em uma perspectiva bastante assimétrica, é verdade -, buscando-se analisar como efetivamente elas se atualizam e são ressignificadas.

Ainda, Barroso-Hoffmann (2005Barroso-Hoffmann, M. Direitos culturais diferenciados, ações afirmativas e etnodesenvolvimento: algumas questões em torno do debate sobre ensino superior para os povos indígenas no Brasil. In: Congreso Latinoamericano de Antropologia, 1., 2005, Rosario. Anales... Rosario: ALA, 2005.) afirma que nas discussões sobre o acesso indígena em cursos regulares de graduação, mesmo aquelas que se pautam em uma interculturalidade, emerge certa abordagem reificada das categorias saberes indígenas e ciência ocidental, uma em oposição à outra, que tende a invisibilizar os longos percursos da construção da ciência ocidental, muitas vezes em razão de interações entre grupos e conhecimentos. Essa mesma abordagem apresenta a ciência ocidental como um conjunto internamente homogêneo e coeso, bem como “proprietária única de um acervo de conhecimentos e bens resultantes de procedimentos de investigação apresentados como tendo sido de sua criação exclusiva” (Barroso-Hoffmann, 2005Barroso-Hoffmann, M. Direitos culturais diferenciados, ações afirmativas e etnodesenvolvimento: algumas questões em torno do debate sobre ensino superior para os povos indígenas no Brasil. In: Congreso Latinoamericano de Antropologia, 1., 2005, Rosario. Anales... Rosario: ALA, 2005., p. 9).

Está ausente nas universidades brasileiras a autoria indígena, concebida por César (2011César, A. L. S. Lições de abril: a construção da autoria entre os Pataxó de Coroa Vermelha. Salvador: EDUFBA, 2011., p. 18) como

a diversidade de práticas e atos sociais e discursivos, realizados por sujeitos individuais ou coletivos, no sentido de deslocar determinadas posições hegemonicamente constituídas. Assim, torna-se uma prerrogativa de autoria a possibilidade de produzir o gesto de fala, aquelas ações ou “falas” que abalam, deslocam posições de poder instituídas, inaugurando um lugar próprio. Esses gestos, por si mesmos, ou diante da possibilidade de serem narrados, (re)lidos, (re)escritos por diversos atores sociais, constituem movimentos, construções de autoria.

Como analisa Baniwa (2012Baniwa, E. M. Educación superior y pueblos indígenas: avances y desafios. Conmemoración o reflexión? Revista ISEES, Chile: Fundación Equitas, n. 10, p. 115-128, enero/jun. 2012., p. 122), as bibliografias e produções acadêmicas e literárias dos próprios indígenas são desconsideradas até mesmo para complementar os textos clássicos de referência, “servindo mais para disparar algumas reflexões ou para motivar possibilidades interpretativas, porém carecem de qualquer valor para a academia”. É por isso que Boaventura Santos (2002Sousa Santos, B. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 237-280, 2002. 10.4000/rccs.1285 Disponível em: <Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF >. Acesso em: fev. 2017.
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) propõe uma sociologia das ausências em contraposição ao “desperdício das experiências”, dos conhecimentos, das histórias, das culturas. Para o autor, é preciso buscar o que foi silenciado, apagado da história que aprendemos, eliminado dos currículos formais como não tendo importância alguma.

Como a universidade pode abordar o tema da floresta, por exemplo, concebida por populações indígenas como um ser vivo em relação íntima com os povos que a habitam, sem a devida ruptura epistemológica de paradigmas que concebem a floresta pelo prisma da manutenção dos níveis adequados de oxigênio ou extração “sustentável” do meio ambiente para o “desenvolvimento sustentável” da economia-mundo capitalista? A própria concepção de “humano” precisa ser definida sob outra epistemologia: espírito, animais, floresta, plantas podem ser “gente”. Trata-se de outro registro, outra sensibilidade, outra filosofia a orientar a vida coletiva que a razão imperial não dá conta de enunciar ou de ler, como analiso com a pesquisadora Maria Paula Meneses.5 5 Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Assim, compartilho a tese de Wedderburn (2005Wedderburn, C. M. Do marco histórico das políticas públicas de ações afirmativas: perspectivas e considerações. In: Santos, S. A. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília, DF: MEC; SECAD, 2005. v. 5, p. 307-334.) e de Rodrigues e Wawzyniak (2006Rodrigues, I. C.; Wawzyniak, J. V. Inclusão e permanência de estudantes indígenas no ensino superior público no Paraná: reflexões. [ s.l.: s.n. ], 2006. Disponível em: <Disponível em: http://www.acoesafirmativas.ufscar.br/relatorioCUIA.pdf >. Acesso em: mar. 2017.
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), de que o ingresso dos estudantes indígenas na universidade exige a revisão das epistemologias que se estabilizaram nessa instituição, em praticamente todas as disciplinas, cursos e áreas de especialização, e, fundamentalmente, exige também rever sua visão de mundo ou sua função social para responder ao desafio e à tensão da diferença colocados pelos indígenas nesse processo denominado democratização do acesso ao ensino superior.

A esse respeito, Rodrigues e Wawzyniak (2006Rodrigues, I. C.; Wawzyniak, J. V. Inclusão e permanência de estudantes indígenas no ensino superior público no Paraná: reflexões. [ s.l.: s.n. ], 2006. Disponível em: <Disponível em: http://www.acoesafirmativas.ufscar.br/relatorioCUIA.pdf >. Acesso em: mar. 2017.
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) alertam para o fato de que, embora se ressalte a importância da diversidade sociocultural dos povos indígenas, o que acontece efetivamente é que os sistemas cognitivos e lógico-simbólicos desses povos têm sido tratados generalizadamente de “crenças, hábitos e costumes”, contribuindo para a negação dessas especificidades e gerando uma caricatura daquilo que seria o objeto de um trabalho com comunidades de culturas diferenciadas, ou melhor, coletividades socioculturais.

Sem essa ruptura epistemológica, a pergunta de Baniwa (2012Baniwa, E. M. Educación superior y pueblos indígenas: avances y desafios. Conmemoración o reflexión? Revista ISEES, Chile: Fundación Equitas, n. 10, p. 115-128, enero/jun. 2012., p. 122) permanece:

Como pode um estudante indígena do povo Kaxinawá, Werekena ou Kaingang conseguir discutir sobre sua filosofia indígena, algo elementar para produzir literatura, desde seu povo e para seu povo, se os objetivos das carreiras de licenciatura intercultural e os das universidades são outros? No marco da situação descrita, como pode ser apreciada a produção acadêmica e literária indígena?

De uma disposição curricular pensada a partir do indivíduo e uma sociedade homogênea, passa-se ao desafio de lidar com a ideia de povos, isto é, de “coletividades que pretendam manter-se culturalmente diferenciadas” (Lima, 2007aLima, A. C. S.; Barroso-Hoffmann, M. (Orgs.). Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil: políticas públicas de ação afirmativa e direitos culturais diferenciados. Rio de Janeiro: Museu Nacional; UFRJ; Laced, 2007. (Relatório técnico publicado do material referente a seminário realizado em agosto de 2004)., p. 268). Como apontam Brand e Nascimento (2010Brand, A. J.; Nascimento, A. C. La construcción escolar de la educación intercultural: desde la educación infantil hasta la educación superior. In: Congreso Internacional en la Red sobre Interculturalidad y Educación, 1., 2010, Cidade do México. Anales… Cidade do México: Editora da Universidad Autónoma Metropolitana - Iztapalapa, 2010. v. 1, p. 1-15. Disponível em: <Disponível em: http://www.congresointerculturalidad.net > Acesso em: fev. 2017.
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), são representantes de povos, com conhecimentos e processos sociais e históricos diferenciados que agora adentram os espaços historicamente identificados com os interesses das elites coloniais e, portanto, anti-indígenas em sua concepção.

Para Lima e Barroso-Hoffmann (2007Lima, A. C. S.; Barroso-Hoffmann, M. (Orgs.). Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil: políticas públicas de ação afirmativa e direitos culturais diferenciados. Rio de Janeiro: Museu Nacional; UFRJ; Laced, 2007. (Relatório técnico publicado do material referente a seminário realizado em agosto de 2004)., p. 25), “levar a sério” a presença dos estudantes indígenas dentro das universidades implica novos arranjos epistemológicos e políticos que possibilitem a constituição, desde dentro, por exemplo, de direito cultural nos currículos universitários, línguas indígenas, saúde indígena, “reconhecendo a autoridade intelectual dos portadores de conhecimentos tracionais”, dispensando-se a comprovação de seus conhecimentos por meio de diploma universitário. O risco aqui é de que a diferença seja “capturada” na forma de conteúdos de conhecimento, seja instrumentalizada para informar, esvaziando-a de sua potencialidade para questionar ou deslocar o que está hegemonicamente configurado como o cânone da aprendizagem.

Quem melhor chama atenção sobre o enredamento do conhecimento no currículo é Macedo (2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Para a autora, o que seria o projeto crítico de currículo visando à emancipação é, antes de tudo, um projeto de ensino, “na medida em que dá centralidade ao conhecimento como ferramenta dessa emancipação, um conhecimento que é, portanto, externo ao sujeito e, muitas vezes, apenas estratégico” (Macedo, 2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 727). O conhecimento assim tomado não é prática de significação, explica Macedo, mas uma coisa, um produto sócio-histórico.

De vários modos, continuamos a experimentar, no século 21, um racismo muito mais perigoso do que o racismo institucional do passado. Trata-se de um racismo que está arraigado nas estruturas. É necessário elaborar um novo vocabulário para que possamos acessar as novas estruturas do racismo. [...] O conhecimento acadêmico deve estar em diálogo constante com as formas de luta (Davis, 2012Davis, A. Angela Davis: “Enfrentamos hoje um racismo mais perigoso”. [dez. 2012]. Entrevistadora: C. Ramos. Geledés Instituto da Mulher Negra, São Paulo, 9 dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://www.geledes.org.br/angela-davis-enfrentamos-hoje-um-racismo-mais-perigoso/ >. Acesso em: nov. 2018.
https://www.geledes.org.br/angela-davis-...
)

O “processo social de fabricação do currículo”, como descreve Silva (2013Silva, T. T. Apresentação. In: Goodson, Y. F. Currículo: teoria e história. 14. ed. Petrópolis: Vozes , 2013., p. 8), envolve interesses, rituais, conflitos simbólicos e culturais, necessidades de legitimação e de controle que interseccionam eixos de diferenciação como classe, raça, gênero e nação, de modo que “o currículo não é constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos”.

Assim, a produção discursiva em torno de serem os povos indígenas incapazes de gerir seus próprios projetos era eficaz para considerar a ilegitimidade de serem proprietários ancestrais de grandes extensões de terra. Seus conhecimentos ancestrais, na medida em que eram definidos na dicotomia com a ciência ocidental, poderiam ser explorados, dissecados e patenteados (e não descartados). Suas práticas religiosas sendo afirmadas como crendices e costumes não viriam a ameaçar os pilares do catolicismo. Esses conhecimentos que nos constituem e marcam nossas formas de pensar, materializados nos currículos, vão sendo sistematicamente reiterados em narrativas, recortes históricos, imagens, notícias jornalísticas, produções audiovisuais.

Sendo, contudo, o efeito de um processo constituído de conflitos e lutas entre diferentes tradições e concepções sociais, marcado geopolítica e historicamente, o currículo não é um todo coeso e estável, e sim “um artefato social e histórico, sujeito a mudanças e flutuações”, assegura Silva (2013Silva, T. T. Apresentação. In: Goodson, Y. F. Currículo: teoria e história. 14. ed. Petrópolis: Vozes , 2013., p. 8). Para Goodson (2013Goodson, Y. F. Currículo: teoria e história. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.), “o conhecimento e o currículo não são coisas, como a noção de ‘conteúdos’ tão entranhada no senso comum educacional nos leva a crer. Conhecimento e currículo corporificam relações sociais”, portanto não são nada desinteressados. As condições de produção e reprodução de ideias, concepções, perspectivas de pensamento, são negligenciadas no “acabamento” dos currículos, fica a aparência de um texto asséptico. Essa desconexão das condições de produção do currículo é uma estratégia fundamental para assegurar a validade universal suposta dos conhecimentos que o currículo visa objetificar, assim como sua inquestionabilidade, já que vêm de nem sabemos onde - como mercadoria fetichizada. Vejamos como melhor coloca a questão Macedo (2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
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, p. 731, grifos meus):

Mais do que essa faceta da universalidade, no entanto, interessa-me destacar o fato de que a definição do currículo como projeção de identidades e o caráter instrumental que o conhecimento ganha na construção dessa identidade são instrumentos poderosos de universalização. Ao longo da história do pensamento curricular, eles vêm construindo um sentido para currículo que busca impedir o surgimento do imprevisto e a manifestação da alteridade6 6 Macedo (2012, p. 734-735), em referência a Biesta (2006), nos desafia a considerar que “para dizer que há educação é preciso [...] deixar emergir o sujeito como aquele que surge como o inesperado. Nesse sentido, não há como se criar métodos ou modelos para garantir a relação intersubjetiva que caracteriza a educação e permite ao sujeito surgir. [...] A definição do que se espera do sujeito de antemão impede que ele seja sujeito, entendendo sujeito como ‘o que não é inventado’ (Derrida, 1989, p. 59). O sujeito que todos devem ser é apenas um projeto dele, e o currículo que o projeta age como uma tecnologia de controle que sufoca a possibilidade de emergir a diferença”. . Dessa forma, não apenas nas Diretrizes Curriculares Nacionais, mas também nelas, a centralidade do conhecimento e a redução de educação a ensino funcionam como discursos poderosos no sentido do controle da diferença. [...] Assim, o que poderia ser uma ampliação de sentidos para a educação, englobando o sujeito e sua subjetivação, acaba subsumido em uma matriz na qual o aprendizado/ensino de um conhecimento externo ao sujeito lhe garante a construção de uma identidade conforme um projeto prévio.

Corazza (2001Corazza, S. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Editora Vozes, 2001., p. 10), por sua vez, discute que o currículo disponibiliza “apenas uma das tantas maneiras de formular o mundo, de interpretar o mundo e de atribuir-lhe sentidos”. A consideração instigante que faz a autora é de que “a sintaxe e a semântica curricular têm uma função constitutiva daquilo que enuncia como sendo ‘escola’, ‘aluno/a’, ‘professor/a’, ‘pedagogia’ e, inclusive, ‘currículo’”. Silva (2013Silva, T. T. Apresentação. In: Goodson, Y. F. Currículo: teoria e história. 14. ed. Petrópolis: Vozes , 2013., p. 10) também enfatiza a dimensão produtiva do currículo quando diz que o currículo não deve ser visto apenas como expressão ou representação de interesses sociais determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. “O currículo não apenas representa, ele faz”. Faz o quê? Para Goodson (2013Goodson, Y. F. Currículo: teoria e história. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.), o currículo inventa tradição e uma escolarização, cria os “eleitos” e as disciplinas que vão ser institucionalizadas nas universidades. Para Silva (1999Silva, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.), o currículo como significação produz identidades sociais - lembremo-nos, no entanto, do que pontua Macedo (2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
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): produz em conformidade com um catálogo prévio de subjetividades possíveis.

A seguir, procuro discutir deslocamentos, estes mais precisamente epistemológicos, produzidos pelas presenças indígenas na universidade. Procuro também fazer um esforço analítico para não projetar as experiências indígenas dentro de um paradigma pós-colonial de vitimização,7 7 A expressão está em Achile Mbembe, “As formas africanas de autoinscrição”, Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n. 1, p. 171-209, 2001. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-546X2001000100007. aprisionando-as em um passado de espoliação, nem exagerar a afirmação de uma singularidade cultural monolítica, estável e autêntica, inapreensível por meio da radicalização da diferença, que igualmente congelaria quaisquer experiências dos entre-lugares da cultura.

CURRÍCULO, RUÍDOS E CONTESTAÇÕES

Ao marcar um encontro com dois estudantes indígenas em dias diferentes, no contexto das clássicas sessões de entrevista individual, deparo-me, ao chegar ao local combinado, com três estudantes de um mesmo povo em um dos dias; e, no outro, com dois estudantes de outro povo. Essa presença coletiva pode perturbar a concepção que temos de indivíduo ou nos levar, enquanto pesquisadores, a reconsiderações sobre o que efetivamente implica o trabalho com coletividades ou representantes de povos indígenas. A presença coletiva dos estudantes nesses encontros tende a provocar um desarranjo naquilo que parecia metodologicamente harmônico, tende a nos interrogar sobre o termo de autorização de uso da voz, sobre o sigilo e a confidencialidade das entrevistas.

Como afirma Silva (1995Silva, T. T. Descolonizar o currículo: estratégias para uma pedagogia crítica. Dois ou três comentários sobre o texto de Michael Apple. In: Costa, M. V. (Org.). Escola básica na virada do século. Porto Alegre: Editora UFRGS, 1995. p. 30-36., p. 34) ao comentar o texto de Michel Apple, “são as próprias experiências presentes dos/das estudantes que podem servir de base para a discussão e a produção de um novo conhecimento”. Em outros termos, com Macedo (2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
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, 2017Macedo, E. Mas a escola não tem que ensinar? Conhecimento, reconhecimento e alteridade na teoria do currículo. Currículo sem Fronteiras, [s.l.: s.n.], v. 17, n. 3, p. 539-554, set./dez. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org/vol17iss3articles/macedo.pdf >. Acesso em: jul. 2018.
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), é preciso que emerjam o imprevisto, o inesperado.

Antes do primeiro encontro de entrevista, Oponé8 8 Oponé e Murí são as únicas nomeações fictícias neste trabalho. quer se certificar de que vamos mesmo conversar sobre sua experiência na universidade e me pergunta quais seriam elas. Como o conhecimento do povo é coletivo, a sua preocupação é em não falar do que é coletivo sem antes consultar a coletividade. Assim, em nosso primeiro encontro, conversamos sobre o termo de compromisso que eu havia elaborado e questiono-o acerca de sua concordância ou não com as condições constantes no documento. Oponé me pede para refazê-lo incluindo dois itens. Ele havia participado de uma palestra a respeito de ética em pesquisa na própria universidade e quer se assegurar de que eu pontuarei em todo o trabalho que ele é Balatiponé e que fala pelo seu povo. Oponé não quer que suas palavras sejam literalmente generalizadas como a experiência indígena. Por meio de uma segunda inclusão no termo, ele quer estar certo de que os conhecimentos ancestrais de seu povo sobre o uso de plantas medicinais não serão violados, assim não devo perguntar-lhe sobre a prática da medicina indígena entre o seu povo, querendo conhecer o uso específico das plantas, as práticas culturais de cura e as palavras que são cantadas e pronunciadas.

Penso que a condição colocada por Oponé é potencialmente disruptiva, do ponto de vista metodológico, por introduzir uma nova interrogação sobre a própria condução da pesquisa, sobre a responsabilidade do pesquisador e a possibilidade de definição dos instrumentos de pesquisa, conjuntamente. Penso que a solicitação que o estudante me faz é capaz de interrogar os discursos historicamente hegemônicos sobre como, para que e para quem se produz conhecimento e sobre a suposta neutralidade da ciência. Para Oponé, tais questões não são apenas de ordem metodológica, elas estão ligadas a questões mais amplas de defesa do patrimônio cultural do seu povo.

Oponé me faz ainda pensar sobre o nosso idioma acadêmico universalizante e generalizante. Um dos critérios de validade de um conhecimento, inclusive nas ciências humanas, tem sido a sua capacidade de produzir generalização. Entre esses estudantes indígenas, percebo atenção às suas especificidades, como em resposta aos esforços generalizantes e homogeneizantes empreendidos historicamente pelas instituições nacionais. É recorrente a presença de expressões como: “pelo menos é assim na minha cultura”, ou “eu estou falando da minha etnia”, “com o meu povo é assim”. Procuram referir-se às suas etnias e povos com a devida especificidade que lhes marca a diferença.

Murí, estudante indígena de graduação, está em uma atividade de extensão com outros colegas, entre os quais uma professora de educação básica que, ao se referir às práticas pedagógicas que desenvolve, conta que no “Dia do Índio” trabalhou tocando um instrumento indígena para as crianças e pintando o rosto delas. Mal acaba de dizer, volta-se para Murí, como que se recordando de sua presença ali, e lhe pede desculpas. Por quê? O seu pedido advém de seu reconhecimento, ainda inicial, de uma prática estereotipante, folclorizada e generalizante de abordar a temática com as crianças e do seu constrangimento ao reconhecer, na presença de Murí, que desconhece absolutamente esse outro com cujas representações trabalha na escola no “Dia do Índio”.

A suposta “natureza” dos indígenas lhe era familiar. A naturalização do conhecimento sobre o “outro” simboliza a persistência de uma relação colonial, explica Hountondji (2009Hountondji, P. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. In: Sousa Santos, B.; Meneses, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 117-129. (Coleção CES).). A presença de Murí, contudo, parece perturbar a naturalidade com que sempre foi narrada a experiência, o “ser” e o tempo do “outro”. A sua presença é capaz de tornar nosso conhecimento, ocidentalmente fundado, em algo desfamiliar. A professora, constrangida, parece já não estar tão à vontade para falar do que ela supunha conhecer. A presença de Murí desautoriza a linearidade da narrativa que temos há séculos recontado sobre o “outro” - agora ali presente - Murí. A linearidade dessa narrativa está sujeita, na presença de Murí, a uma cesura, a uma interrupção.

Penso que as presenças indígenas nesses contextos podem constituir-se em possibilidade de deslocar o espaço-tempo dos signos, de deslocar os contextos de significação, introduzindo a incerteza, a ambivalência, a dissonância e a interrogação naquilo que parecia coerente e ordenado (Costa, 2006Costa, S. Dois Atlânticos: teoria social, antirracismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2006.), uma vez que essas presenças singulares podem criar condições para a produção de novos sentidos e de novos arranjos das diferenças que podem desestabilizar a própria institucionalização dos currículos escolares, forjados ainda em bases universalizantes e por meio do privilégio de conteúdos e categorias que hierarquizam conhecimentos.

Os deslocamentos ao currículo provocados pela presença indígena, em particular no contexto da universidade, no entanto, parecem-me menos um movimento intencionalmente produzido, no sentido de uma resistência planejada ou deliberada em espaços institucionalmente definidos para uma suposta ruptura, e mais por deslocamentos que vão acontecendo nos interstícios das relações de poder. A presença performativa cotidiana dos estudantes indígenas é capaz de provocar fissuras que desestabilizam os binarismos e a própria biblioteca colonial9 9 Expressão presente em Valentin Y. Mudimbe no livro The invention of Africa: gnosis, philosophy and the order of knowledge (Bloomington, Indiana University Press, 1988) e que diz respeito ao vocabulário e às etiquetas coloniais inventadas para se referir à África, constituindo no imaginário “a caricatura do continente construída pelas fantasias epistémicas ocidentais”, como escreve Meneses (2010, p. 247-265). que constituem a matriz eurocêntrica de produção, validação e circulação de conhecimento na academia. Entretanto, esses deslocamentos não se podem dar no plano individual, mas coletivo, como possibilidade de articulação de outras alternativas epistemológicas.

Penso inicialmente que um dos desafios à educação não está em adaptar ementas, ampliar o rol de disciplinas optativas ou práticas de extensão universitária, mas desconstruir o conhecimento canonizado e hegemônico e sua materialidade - os currículos - sem marcas racistas e evolutivas. O envolvimento de professores e estudantes indígenas em um grupo de pesquisa, em torno de uma temática até então tornada ausente na academia, por exemplo, pode ser espaço para se forjar outros desenhos de pesquisa em que outros conhecimentos passem a circular discursiva e curricularmente. Ainda assim, não há garantias de uma efetiva descolonização da produção de conhecimento, e sim possibilidades. Como alerta Apple (1996Apple, M. W. Consumindo o outro: branquidade, educação e batatas fritas. In: Costa, M. V. (Org.). A escola básica na virada do século. Cultura, política e educação. São Paulo: Cortez, 1996. p. 25-43., p. 25),

nessa sociedade, como em todas as outras, apenas certos significados são considerados “legítimos”, apenas certas formas de compreender o mundo acabam por tornar-se “conhecimento oficial”. Isso não é uma coisa que simplesmente acontece. Nossa sociedade é estruturada de tal modo que os significados dominantes têm mais possibilidades de circular. Esses significados, obviamente, serão contestados, serão resistidos e algumas vezes serão transformados, mas isso não diminui o fato de que culturas hegemônicas têm maior poder para se fazerem conhecidas e aceitas.

Não sabemos ainda em que nível as presenças indígenas na universidade têm propiciado a problematização do que é conhecimento, ciência e currículo, por exemplo, ou o diálogo com povos indígenas, suas cosmovisões, lutas, conceitos e categorias, mas elas nos têm permitido pensar na possibilidade de desinvisibilização de histórias, conhecimentos, experiências, corpos, línguas e culturas que rejeitam as ausências e as distorções historicamente impostas para disputarem vozes na universidade, além de também presentificarem outras vozes: as vozes do silêncio, dos espíritos, das árvores, dos rios, dos cantos ancestrais, dos xamãs - um pouco do que Sheila Walker e Jesús Chucho García vêm chamando de conocimientos desde adentro (Walker, 2012Walker, S. (Org.). Conocimiento desde adentro. Los afrosudamericanos hablan de sus pueblos y sus historias. Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2012.).

As presenças indígenas na universidade, em outras palavras, parecem ultrapassar a linha abissal10 10 Refiro-me aqui à discussão empreendida por Sousa Santos (2007 ). que definia, de um lado, conhecimentos, línguas, experiências, corpos e culturas legítimos, respeitáveis e presentificados em todos os espaços do Estado-nação, e, de outro lado, conhecimentos, línguas, experiências, corpos e culturas tornados ausentes, ilegítimos e abjetos. Por isso, tenho a mesma convicção que Macedo (2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
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, p. 734) ao dizer que a escola (no caso, a universidade) “não pode se contentar em ensinar a linguagem dessa comunidade, em transformar o sujeito em representante dessa linguagem, sob pena de torná-lo um sujeito genérico”.

Essas presenças questionam potencialmente e diluem as fronteiras traçadas entre os maniqueísmos do vocabulário colonial, requerendo a desessencialização dessas categorias. Tendem a causar a cesura temporal na narrativa do contemporâneo, da qual os indígenas não tomavam parte, bem como provocar uma interrogação na definição do tempo, uma vez que são presenças simultâneas, e não presenças passadas da iconografia que estudamos nos livros de história.

As presenças indígenas na universidade deslocam ainda as condições de identificação, negociando culturalmente o estabelecimento do vínculo de pertença à coletividade étnica de origem - e, ao contrário do que muitos temiam, em alguns casos, fortalecendo-o.

Penso, com Bhabha (1998Bhabha, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.), que a problematização do discurso do estereótipo e dos processos de subjetivação pode ser um caminho para a compreensão e a quebra das categorias hegemônicas. Além disso, considero que a presença indígena pode ser concebida como estratégia que carrega possibilidades de subversão e indagação do imaginário racializado, em que imagens, concepções e conhecimentos constituídos com base em um conjunto de deformações possam ser desnaturalizados, deslocados de seus lugares a-historicamente construídos e contemporaneizados, possibilitando a construção de diferentes significados, em um processo que Hall (2010Hall, S. El espectáculo del “Outro”. In: Hall, S. Sin garantías: trayectorias y problemáticas en estudios culturales. Ecuador: Envión Editores; Instituto de Estudios Sociales y Culturales Pensar; Universidad Javeriana; Instituto de Estudios Peruanos; Universidad Andina Simón Bolívar, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ram-wan.net/restrepo/documentos/sin_garantias.pdf >. Acesso em: nov. 2017.
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) chama de trans-codificação.

Esse autor identifica pelo menos três estratégias de trans-codificação: a “reversão dos estereótipos”, “imagens positivas e negativas” e a trans-codificação pelos “olhos da representação” (Hall, 2010Hall, S. El espectáculo del “Outro”. In: Hall, S. Sin garantías: trayectorias y problemáticas en estudios culturales. Ecuador: Envión Editores; Instituto de Estudios Sociales y Culturales Pensar; Universidad Javeriana; Instituto de Estudios Peruanos; Universidad Andina Simón Bolívar, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ram-wan.net/restrepo/documentos/sin_garantias.pdf >. Acesso em: nov. 2017.
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, p. 439-442). A primeira estratégia refere-se à tentativa de reverter a carga valorativa atribuída aos estereótipos populares, o que não significa necessariamente subvertê-los, tampouco romper a estrutura binária racial que os sustenta. A segunda estratégia busca questionar o regime racializado de representações e consegue, por meio de uma inversão da oposição binária - ao substituir imagens depreciadas e “negativadas” da vida e culturas negras por um conjunto de imagens “positivas” -, estabelecer certo equilíbrio na representação de imagens. Subjacente a essa estratégia, Hall (2010Hall, S. El espectáculo del “Outro”. In: Hall, S. Sin garantías: trayectorias y problemáticas en estudios culturales. Ecuador: Envión Editores; Instituto de Estudios Sociales y Culturales Pensar; Universidad Javeriana; Instituto de Estudios Peruanos; Universidad Andina Simón Bolívar, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ram-wan.net/restrepo/documentos/sin_garantias.pdf >. Acesso em: nov. 2017.
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, p. 442) localiza o reconhecimento e a celebração da diferença e da diversidade no mundo. O problema é que ao complexificar e ampliar as representações do que é ser negro, não necessariamente desloca as representações racializadas negativamente: “desafia os binarismos, mas não os mina”.

Para o autor, a terceira estratégia é a que confronta os regimes de representação desde dentro de suas complexidades e ambivalências. Diferentemente das outras duas, essa “olha” para as formas de representação e não está exatamente ocupada em introduzir novos conteúdos para contrapor significados. Ela toma o corpo como o lugar privilegiado das estratégias de representação e procura subverter os estereótipos fazendo-os funcionar contra si mesmos. De que modo? Por meio da subversão do “olhar” racializado. Se o “olhar” racializado produz imagens racializadas e se familiariza em “olhá-las” racializadamente, é por meio da subversão com e no corpo - atravessado pelos eixos de raça, gênero e sexualidade - que esse “olhar” vai ser confrontado, estranhado. Ou seja, se as representações que seguem estereotipando incidem sobre o corpo, é com o corpo que elas podem ser desfamiliarizadas.

Não se trata também de forjar uma nova semântica multicultural no interior da universidade, mas de reinventar a gramática cultural. Não podemos desconsiderar os efeitos gigantescos e de longo alcance da colonialidade em nossas paisagens psíquicas e culturais, tampouco sua influência hegemônica sobre as redes de informação e meios de comunicação e sobre nossas instituições acadêmicas.

Operar na chave da diferença exige esforços epistemológicos e políticos muito mais amplos. A pluralidade da política, como assinala De La Cadenã (2008De La Cadenã, M. Política indígena: un análisis más allá de “la política”. Crónicas urbanas: análisis y perspectivas urbano regionales, Lima: Centro Guaman Poma de Ayala, año 12, n. 13, p. 139-171, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.ram-wan.net/documents/05_e_Journal/journal-4/5.%20marisol%20de%20la%20cadena.pdf >. Acesso em: mar. 2017.
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), vai exigir o enfrentamento de um dos maiores desafios políticos e sociais do século XXI: a redefinição da ideia do Estado-nação e de seus projetos de homogeneização das diferenças culturais que têm historicamente imperado nas políticas públicas para garantir a construção da cidadania nacional. Concordo com a autora quando diz que pluralizar a política requer novas possibilidades de representação da cultura e do conhecimento, o que significa ampliar a plataforma política de representação da alteridade, inclusive curricularmente.

PARA ROMPER AS CADEIAS LINEARES E CONSENSUAIS DE REPETIÇÃO EPISTEMOLÓGICA

Dos resultados desses esforços trata Coronil (2005Coronil, F. Natureza do pós-colonialismo: do eurocenrtismo ao globocentrismo. In: Lander, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, set. 2005. p. 50-62. (Coleccion Sur Sur)., p. 59): “ao [se] descentralizar as epistemologias do Ocidente e ao [se] reconhecer outras alternativas de vida, [produzir-se-á] não só imagens mais complexas do mundo, mas também modos de conhecimento que permitam uma melhor compreensão e representação da própria vida”. Nesse sentido, para Bhabha (1998Bhabha, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998., p. 352), não importa simplesmente “mudar as narrativas de nossas histórias, mas transformar nossa noção do que significa viver, do que significa ser, em outros tempos e espaços diferentes, tanto humanos como históricos”.

A alteração dramática dos currículos e das práticas pedagógicas, embora tenha impacto na desconstrução de imaginários racializados, não basta, como apontam diversos autores. Essa complexa tarefa exige a revisão radical da estrutura universitária. Refiro-me fundamentalmente aos objetivos de ensino e de formação na universidade e seu atrelamento histórico com uma parcela da população que pretendia representar a sociedade nacional. Até porque, argumenta Miskolci (2014Miskolci, R. Um saber insurgente ao sul do Equador. Periódicus, Salvador: UFBA, v. 1, p. 43-67, 2014. http://dx.doi.org/10.9771/peri.v1i1.10148
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), os saberes insurgentes, ainda que tenham adentrado os espaços institucionalizados de produção de conhecimento, não produziram alterações substantivas no circuito, sobretudo internacional, de produção tradicional de conhecimento. Impactaram, com efeito, temas de pesquisa e metodologias, mas não modificaram a estrutura disciplinar de produção de conhecimento, tampouco a geopolítica do conhecimento. Nesse contexto, torna-se ainda mais complexo examinar as possibilidades de deslocamento que as presenças indígenas poderão provocar no interior das universidades e depois fora delas, mas certamente desafiam o funcionamento convencional das engrenagens do processo de produção racializado de conhecimento.

Segato, em meados de 2005, quando um maior número de universidades brasileiras passava a implementar políticas de ação afirmativa, já vislumbrava o potencial desestabilizador das presenças dos signos ausentados nas universidades, ao argumentar que a introdução (deliberada, e não como exceção) do signo ausente poderia provocar alterações no modo como “olhamos e lemos a paisagem humana nos ambientes pelos que transitamos” e poderia acabar “por minar, erosionar, desestabilizar a estrutura [hierárquica] no seu lentíssimo ritmo de reprodução histórica” (Segato, 2005Segato, R. L. Raça é signo. Brasília, DF: 2005. (Série Antropologia, n. 372). Disponível em: <Disponível em: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/segatoracaesigno.pdf >. Acesso em: 11 dez. 2018.
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, p. 11). Acredito, com a autora, que as presenças indígenas podem provocar alguma fissura nas cadeias lineares e consensuais de repetição epistemológica, para, quem sabe, produzirmos outras ciências, mais adequadas aos desafios históricos e urgentes colocados pela diferença em nosso país.

De fato, a presença indígena na universidade pode produzir deslocamentos político-epistemológicos que permitam a constituição de novas problemáticas para a ciência, para a qual a ampliação e a revisão das formas de pensar, de significar e semantizar experiencias será uma exigência crucial. Como nos provocou M’Bokolo (2014M’Bokolo, E. [Conferência de abertura]. In: Evento do Comitê Científico Internacional para o IX volume da Coleção História Geral da África. Novas concepções da África e das diásporas nas ciências sociais e humanas. São Carlos: Comitê Científico Internacional; UFSCar, 27 ago. 2014.), em sua conferência no Brasil, precisamos pensar mais, pensar mais não só sobre velhos conteúdos, conceitos, categorias, paradigmas e currículos que precisam ser “descolonizados”, mas também sobre novas problemáticas, porque, ainda que alguns conceitos tenham caído em desuso, o peso de suas ideias permanecem conferindo significado e definindo o lugar epistemológico que a África e suas diásporas ou conhecimentos e povos indígenas, por exemplo, ocupam na construção da história global.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Trabalho resultante de pesquisa de doutorado, sob orientação do professor Valter Roberto Silvério (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar), com apoio da agência de fomento Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trata-se da versão revista e ampliada do texto apresentado no Grupo de Trabalho “Currículo” (GT12), na 38ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) de 2017. Para esta publicação, agradecemos as preciosas observações dos pareceristas ad hoc da Revista Brasileira de Educação.
  • 2
    Importante ressaltar que se trata, em nosso país, de uma luta historicamente violenta contra os povos indígenas, e violência inclui confinamento territorial. Em 2017, tivemos notícia do atentado ao povo indígena Gamela, acompanhado de mutilações empreendidas por fazendeiros e pistoleiros em uma área de retomada do território tradicional em Povoado das Bahias, no município de Viana, Maranhão, consequência da ausência de efetivação dos mecanismos de proteção do Estado, de sua omissão em assegurar o direito originário e constitucional que os povos indígenas detêm e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam e da morosidade no processo de demarcação das terras indígenas. Lideranças indígenas do povo Gamela iniciaram processo de retomada das áreas ocupadas por fazendeiros nos anos de 1980. As fases do procedimento demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas são definidas por decreto da presidência da República e atualmente consistem em estudos, delimitações, declarações, homologações, regularizações e interdições , em um processo que pode levar décadas.
  • 3
    Sabemos que o termo indígena, assim como índio, é uma categoria colonialmente construída (Batalla, 1982Batalla, G. B. El concepto de indio en América: una categoría de la situación colonial. Anales de Antropologia, Ciudad de México: UNAN, n. IX, p. 105-124, 1982. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.unam.mx/index.php/antropologia/article/view/23077 >. Acesso em: mar. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22201/iia.24486221e.1972.0.23077
    http://www.revistas.unam.mx/index.php/an...
    ), marcada racialmente, na medida em que se constituem termos de indistinção que obscurecem diferenças muito significativas do ponto de vista social, político, cultural e linguístico entre grupos e povos, muitas vezes radicalmente diferentes entre si. Com isso, é uma categoria que não remete a nenhum conteúdo específico dos grupos que pretende abarcar, de modo que a utilizo aqui sob rasura, como nos ensina Hall (2011Hall, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2011.).
  • 4
    Vale destacar que, embora as sociedades pós-coloniais da América Latina tenham sido constituídas com base na hierarquização de atributos de etnia e raça, a engenharia dessa estratificação não é a mesma, assegura Segato (2005Segato, R. L. Raça é signo. Brasília, DF: 2005. (Série Antropologia, n. 372). Disponível em: <Disponível em: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/segatoracaesigno.pdf >. Acesso em: 11 dez. 2018.
    http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/F...
    ). Essa autora nos ajuda a entender como a construção do Outro é, ao mesmo tempo, a produção histórica e geograficamente localizada de uma “coisa”. Considerando a concepção de raça como signo, cujo valor sociológico reside em sua capacidade de conferir significado, a autora discute raça como marca. A marca da posição dos corpos na história é um traço circulante e móvel, que não está exatamente no corpo, mas no signo. Para Segato (2005Segato, R. L. Raça é signo. Brasília, DF: 2005. (Série Antropologia, n. 372). Disponível em: <Disponível em: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/segatoracaesigno.pdf >. Acesso em: 11 dez. 2018.
    http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/F...
    , p. 3), “o seu sentido depende de uma atribuição, de uma leitura socialmente compartilhada e de um contexto histórica e geograficamente delimitado”.
  • 5
    Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
  • 6
    Macedo (2012Macedo, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 42, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742012000300004
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    , p. 734-735), em referência a Biesta (2006Biesta, G. J. J. Beyond learning: democratic education for a human future. Boulder: Paradigm, 2006.), nos desafia a considerar que “para dizer que há educação é preciso [...] deixar emergir o sujeito como aquele que surge como o inesperado. Nesse sentido, não há como se criar métodos ou modelos para garantir a relação intersubjetiva que caracteriza a educação e permite ao sujeito surgir. [...] A definição do que se espera do sujeito de antemão impede que ele seja sujeito, entendendo sujeito como ‘o que não é inventado’ (Derrida, 1989Derrida, J. Psyche: inventions of the other. In: Waters, L.; Godzich, W. (Ed.). Reading de man reading. Minneapolis: University of Minnesota, 1989. p. 25-64., p. 59). O sujeito que todos devem ser é apenas um projeto dele, e o currículo que o projeta age como uma tecnologia de controle que sufoca a possibilidade de emergir a diferença”.
  • 7
    A expressão está em Achile Mbembe, “As formas africanas de autoinscrição”, Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n. 1, p. 171-209, 2001. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-546X2001000100007.
  • 8
    Oponé e Murí são as únicas nomeações fictícias neste trabalho.
  • 9
    Expressão presente em Valentin Y. Mudimbe no livro The invention of Africa: gnosis, philosophy and the order of knowledge (Bloomington, Indiana University Press, 1988) e que diz respeito ao vocabulário e às etiquetas coloniais inventadas para se referir à África, constituindo no imaginário “a caricatura do continente construída pelas fantasias epistémicas ocidentais”, como escreve Meneses (2010Meneses, M. P. Outras vozes existem, outras histórias são possíveis. In: Garcia, R. L. (Org.). Diálogos cotidianos. Petrópolis: DP et Alii, 2010. p. 247-265., p. 247-265).
  • 10
    Refiro-me aqui à discussão empreendida por Sousa Santos (2007 Sousa Santos, B. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov. 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 3 dez. 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2018
  • Aceito
    25 Jul 2018
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