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Comunidade, escola e juventude: navegando pela história oral de vida de jovens de uma comunidade ribeirinha no Amazonas

VICTÓRIA, C. G.. Comunidade, escola e juventude: navegando pela história oral de vida de jovens de uma comunidade ribeirinha no Amazonas. Curitiba: CRV, 2017.

A vida às margens dos rios amazônicos é cheia de sabores e dessabores, encontros e desencontros, alentos e desalentos; ora calma e pacífica, ora agitada e conflituosa, tal qual o rio (pesquisa), representado pelo professor Cláudio Gomes da Victória em sua marcante obra Comunidade, escola e juventude: navegando pela história oral de vida de jovens de uma comunidade ribeirinha no Amazonas. Essa obra é fruto de suas pesquisas, realizadas no período entre 2011 e 2015, para a produção de sua tese de doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, que lhe possibilitou mergulhar nas nuances da vida da juventude ribeirinha. Dividido em quatro seções, sendo uma apresentação e três capítulos, o livro contém 134 páginas, tem diagramação simples e é de fácil leitura, permeado de fotos e poemas.

Na apresentação intitulada “A nascente”, o autor navega em suas lembranças pelas águas amazônicas durante sua infância e explica o porquê de escolher o tema da juventude de comunidades ribeirinhas como foco de sua pesquisa. Perpassa pela sua história de vida e sua relação com a região amazônica, que o tornou culturalmente amazonense - “[...] gestado na essência do cotidiano” (p. 20) -, até sua formação como educador, que o fez vivenciar relações pautadas no respeito e no diálogo. A condição de o pesquisador ser participante do ambiente que ele estuda, levando em conta sua própria história de vida, é fator preponderante nas pesquisas em ambientes ribeirinhos.

Ainda na apresentação, o autor descreve o lócus da pesquisa, que é a Comunidade Boas Novas, na região do Janauacá, município de Careiro, Amazonas, especificamente a Escola Municipal Arthur Menezes de Oliveira: “[...] barco que conduz as histórias pelas quais navegaremos nesse processo de vivência” (p. 27). A escola enquanto ambiente de encontro para o desenvolvimento da pesquisa é amplamente explicada pelo autor quando afirma:

Ser ali o porto seguro no qual poderiam encostar suas canoas e se permitirem dizer algo de si mesmos. A escola, enquanto espaço de vivências e convivências, apresenta-se como o elemento central na dinâmica cotidiana da vida das crianças e jovens [...]. (p. 27)

Sua escrita poética é marcada por referências às músicas e poesias amazônicas, diferenciando-o, indo além de uma estrutura de trabalho acadêmica, sem vida e sem cor, para uma obra que encanta pela simplicidade e pela beleza literária. Como trabalho técnico, o livro vê-se amarrado ao método científico da etnografia, mas na obra concluída se apresenta a maestria de um “pesquisador viajante” e participante do “trabalho com o cotidiano”. Não se trata de uma relação de entrevistador e informantes, mas estes são tomados como “parceiros” (p. 35) e colaboradores da pesquisa, explorando “experiências vividas” na comunidade em suas múltiplas facetas: religiosa, mística, social e cultural. O autor finaliza a apresentação com as três fases de produção da pesquisa e as narrativas coletadas de seis jovens ribeirinhos, de acordo com a metodologia trabalhada pelo Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO-USP), especificamente a história oral de vida, que é a transcrição literal, a textualização e a transcriação1 1 Essa definição, apropriada da literatura no campo da história oral, confere ao autor do projeto a possibilidade de construção de uma narrativa atenta mais aos sentidos do que é dito durante a entrevista do que à reprodução de palavras de forma literal. Daí a importância do comprometimento por parte do pesquisador tanto com o entrevistado quanto com sua história. História esta que se torna de conhecimento do pesquisador para além do momento da entrevista. O envolvimento que se estabelece pode fugir à cientificidade exigida por alguns, entretanto denota o caráter humano que envolve o trato com pessoas que, mais que objetos de pesquisa, são protagonistas de suas trajetórias, as quais colorem nossas pesquisas e sem as quais não teríamos condições mínimas de levar a cabo projetos de história oral (Boni, 2013apudVictória, 2017, p. 38). . Explica-se que: “o trabalho é uma transcriação das narrativas dos colaboradores, na medida em que foi a partir das narrativas deles que mergulhei no interior do que as suas falas revelam enquanto conhecimento produzido” (p. 40). Mesmo que haja certa desconfiança, temor e medo em alguns teóricos quanto à transcriação - pois colocar no texto o que não foi verbalizado diretamente pode incorrer em ideias equivocadas -, o autor seguiu firme “colocando elementos que me [lhe] saltaram da memória através das falas dos jovens” (p. 39).

No capítulo 1, denominado “Transcriações: a história na vida, a vida na história”, são relatadas com detalhes as narrativas dos seis jovens colaboradores da pesquisa, que são apresentadas por trechos identificados com o nome do colaborador, uma imagem do contexto da comunidade e uma frase que define a fala dele. Janderson Andrade, Daniel Mosambite, Railson Canavarro, Elionézia da Silva, Lidiane e Kaká [que pediu para que sua identidade não fosse revelada e escolheu esse nome para identificá-la na pesquisa (p. 118)] são os jovens partícipes da pesquisa. O autor transcria as falas dos jovens ribeirinhos, em alguns momentos emocionado, quando salta das letras uma paixão e uma realidade que o identificam com sua própria história de vida. Os depoimentos dos jovens conversam com a poesia e as imagens de um lugar que, à semelhança do rio, ora é calmo e caudaloso, ora é turbulento e delgado.

No capítulo 2, “Afluentes: diálogos no fluxo da vida”, o autor analisa minuciosamente as categorias que representam o viver na Amazônia. Primeiramente, a Comunidade Ribeirinha e todos os elementos que a compõem e a identificam, tais como o mutirão, o ajuri, a dinâmica da descida e subida do rio, a pesca, a casa de farinha e a construção e a locomoção de barcos de pequeno porte, que devem ser entendidos como elementos que constroem a identidade ribeirinha. Esta, para o autor, tem um “significado de vivência e de construção social peculiar, dinamizada pela interação com a natureza e por tudo que dela se expressa” (p. 81). Em seguida, fala-se do “Afluente Escola”, ao se mostrar a realidade desses jovens ribeirinhos. O autor apresenta alguns elementos de identidade que são evidenciados, tais como: fé religiosa, formação acadêmica, trabalho, lazer, sonhos de êxodo, laços familiares e a vida na comunidade. É possível destacar que a forma de pensar desses jovens revela que o conceito de juventude é diferente no contexto amazônico ribeirinho, principalmente em sua relação com a escola. Para eles, “[...] a escola é o barco que poderá conduzi-los a uma melhoria de vida” (p. 96), no entanto é desarticulada da realidade local e não corresponde à sua visão de mundo; “processos culturais vividos no cotidiano dos alunos deveriam estar presentes no currículo daquela escola, tais como: relações de trabalho, pautadas na agricultura, na pesca, na caça, enfim, tudo o que cerca o fazer cultural do lugar” (p. 97). Essa postura, culturalmente engendrada no imaginário popular, supervaloriza o que é externo, essencialmente o que é urbano, colocando a escola apenas como um “[...] algo a mais no dia a dia, aquilo que entra em nossa vida, às vezes, um pouco sem sentido, com a única função de nos possibilitar decodificar símbolos” (p. 98) e passando a ideia de que a vida escolar é quesito obrigatório para a interação com a leitura e escrita, somente. Desse modo, outros espaços assumem o lugar com significado para os jovens - “ao dizer que na igreja se aprende mais do que na escola, está implicada nessa afirmação a dimensão das relações que se dão no interior dessas instituições” (p. 100). E o último afluente explorado pelo autor é a juventude, tomando como ponto de partida a questão do que é ser jovem em uma comunidade ribeirinha. O conceito de juventude “se define pela sua inserção nos diferentes espaços sociais e culturais nos quais ele se apresenta” (p. 104) e “[...] ser jovem se materializa na dinamicidade das relações que construo no meio social no qual protagonizo a vida” (p. 106). Em sua análise, o autor coloca as experiências como elemento constitutivo da “produção histórica” do indivíduo jovem, experiências que são construídas nas relações sociais e culturais no cotidiano, sendo este o espaço-tempo no qual o jovem experimenta os sentidos da vida em comunidade, ressaltando suas “peculiaridades e dinamicidade cultural” (p. 106).

A obra é concluída com o terceiro capítulo, “O rio encontra o mar”, que expressa a realização de uma das principais fases do trabalho em História Oral, que é a fase da devolutiva das narrativas; é o reencontro após algum tempo como os mesmos jovens da pesquisa, agora vivendo outras realidades, o que mostra a dinâmica da vida e das experiências da juventude ribeirinha.

O reencontro com a história de vida desses jovens que protagonizam, nas mais variadas formas, a experiência da juventude, marca um outro tempo, que se distancia do que foi narrado, mas que se aproxima dos desejos, dos sonhos e das lutas de seis vidas tocadas pelo desejo de encontrar um porto seguro. (p. 117)

É nesse capítulo que é apresentada a vida atual dos entrevistados, como suas experiências os foram levando para navegar em outros rios; mas a escola, a comunidade e suas vidas são pontos de ancoragem nos quais a reminiscência é fator de tranquilidade nas “águas turbulentas da vida”. A obra pode ser entendida como um quadro bem pintado da vivência e da realidade dos jovens ribeirinhos, criado de maneira clara e objetiva pelos que, navegando nos rios e comunidades ribeirinhas, aprenderam a respeitar o ritmo da existência de um amazônida.

REFERÊNCIAS

  • BONI, M. Transcriação e colaboração: mais que conceitos, uma forma de compartilhar conhecimentos. NEHO - Núcleo de Estudos em História Oral da USP, São Paulo, 30 ago. 2013. Disponível em: Disponível em: https://nehousp.wordpress.com/2013/08/ Acesso em: 20 jan. 2020.
    » https://nehousp.wordpress.com/2013/08/
  • VICTÓRIA, C. G. Comunidade, escola e juventude: navegando pela história oral de vida de jovens de uma comunidade ribeirinha no Amazonas. Curitiba: CRV, 2017.
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    Essa definição, apropriada da literatura no campo da história oral, confere ao autor do projeto a possibilidade de construção de uma narrativa atenta mais aos sentidos do que é dito durante a entrevista do que à reprodução de palavras de forma literal. Daí a importância do comprometimento por parte do pesquisador tanto com o entrevistado quanto com sua história. História esta que se torna de conhecimento do pesquisador para além do momento da entrevista. O envolvimento que se estabelece pode fugir à cientificidade exigida por alguns, entretanto denota o caráter humano que envolve o trato com pessoas que, mais que objetos de pesquisa, são protagonistas de suas trajetórias, as quais colorem nossas pesquisas e sem as quais não teríamos condições mínimas de levar a cabo projetos de história oral (Boni, 2013BONI, M. Transcriação e colaboração: mais que conceitos, uma forma de compartilhar conhecimentos. NEHO - Núcleo de Estudos em História Oral da USP, São Paulo, 30 ago. 2013. Disponível em: Disponível em: https://nehousp.wordpress.com/2013/08/ . Acesso em: 20 jan. 2020.
    https://nehousp.wordpress.com/2013/08/...
    apudVictória, 2017VICTÓRIA, C. G. Comunidade, escola e juventude: navegando pela história oral de vida de jovens de uma comunidade ribeirinha no Amazonas. Curitiba: CRV, 2017., p. 38).
  • Financiamento: Secretaria de Estado de Educação e Desporto do Amazonas (SEDUC/AM); Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2020
  • Aceito
    14 Jun 2021
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