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Políticas públicas em educação e o mal-estar docente

PUBLIC POLICIES IN EDUCATION AND TEACHER MALAISE

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCATIVAS Y EL MALESTAR DOCENTE

RESUMO

Esta pesquisa objetivou compreender como a internacionalização das políticas públicas educacionais agravaram o mal-estar vivido pelos docentes do ensino básico e quais os tipos de reflexão que fazem diante dessa realidade. A metodologia de pesquisa teve como base a abordagem qualitativa, a partir da pesquisa-formação e de acordo com a proposta de ateliês lúdicos formativos. A análise dos dados produzidos foi realizada na perspectiva fenomenológica. Como resultado, evidenciou-se que o mal-estar narrado pelos docentes é potencializado por meio de políticas públicas educacionais, a partir do estabelecimento do estado de impotência, em decorrência de uma lógica violenta na qual o lucro se sobrepõe. Constatou-se ainda o crescente movimento de desprofissionalização imposto por uma perspectiva de educação como produto de mercado que tem levado a proletarização, precarização e desvalorização do trabalho docente e descaracterização da escola.

PALAVRAS-CHAVE
mal-estar docente; políticas públicas educacionais; internacionalização

ABSTRACT

This research aimed to understand how the internationalization of public educational policies aggravated the malaise experienced by basic education teachers and what kinds of reflection they make in face of this reality. The research methodology was based on a qualitative approach, established on research-formation and in accordance with the proposal of formative playful workshops. The analysis of the data produced was carried out from a phenomenological perspective. As a result, it became clear that the malaise described by teachers is enhanced through public educational policies, from the establishment of a state of impotence, as a result of a violent logic in which profit is superimposed. It was also noted the growing movement of deprofessionalization imposed by a perspective of education as a market product that has led to proletarianization, precariousness and devaluation of the teaching work and mischaracterization of the school.

KEYWORDS
teacher malaise; public educational policies; internationalization

RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo comprender cómo la internacionalización de las políticas públicas educativas ha agravado el malestar que experimentan los docentes de educación básica y qué tipo de reflexión hacen frente a esta realidad. La metodología de investigación se ha basado en un enfoque cualitativo, fundamentado en la investigación-formación y de acuerdo con la propuesta de talleres educativos lúdicos. El análisis de los datos producidos se ha realizado desde una perspectiva fenomenológica. Como resultado, quedó claro que el malestar narrado por los docentes se potencia a través de las políticas educativas públicas, desde el establecimiento del estado de impotencia, ocasionado por una lógica violenta donde se superpone la ganancia económica. También se señaló el creciente movimiento de desprofesionalización impuesto por una perspectiva de la educación como producto de mercado que ha llevado a la proletarización, precariedad y desvalorización de la labor docente y la descaracterización de la escuela.

PALABRAS-CLAVE
malestar docente; políticas públicas educativas; internacionalización

INTRODUÇÃO

A formação de professores para o ensino básico constitui-se como tema de amplo debate, não importando as agendas políticas às quais esteja submetido. Atualmente, não é raro lidarmos com julgamentos de gestores públicos e de parte da sociedade — completamente alheios aos processos de formação inicial e continuada dos professores, bem como à realidade escolar — que culpabilizam os docentes pelos baixos índices de aproveitamento educacional, construindo a imagem do professor como gerador do insucesso escolar.

No sentido de estruturar a problemática tratada neste artigo, procuramos entender uma pequena medida de um dos fios dessa grande teia complexa que materializa o contexto educacional do Brasil contemporâneo. Nessa busca teórica, uma de nossas observações está centrada no fato de que a estruturação, geração e implementação de políticas públicas no país — a partir da década de 1990 — vem alinhando-se cada vez mais com a lógica do Banco Mundial e de grandes conglomerados empresariais, que sedimentam seus terrenos, cada vez maiores, a partir de uma prática neoliberal assentada nos eixos de desregulação, privatização e liberalização dos mercados, implementando uma suposta modernização do Estado, apostando na equação: mais mercado e menos Estado.

Tal alinhamento vem se concretizando através de políticas globalizantes que financiam a ilusória recuperação do crescimento econômico dos países em desenvolvimento via atuação, especialmente, nos campos da saúde e educação. No campo da educação e, mais precisamente, na formação e prática docente, observamos uma atroz atuação no sentido de padronização e controle para bem atender a lógica do capital e prendá-lo com o domínio cada vez maior no processo de mercadorização da educação. No que concerne à formação docente, observamos que a maior parte de professores formados para atuar no ensino fundamental do país advém de instituições particulares de ensino superior nas quais os currículos possuem uma ênfase técnica acrítica, esvaziada de um aprofundamento teórico e prático, político e social. Ou seja, grande parte dos professores que atuam no ensino fundamental são assujeitados a um ofuscamento da realidade dos sistemas educacionais do país, bem como das razões pelas quais são implementadas determinadas políticas. Tais circunstâncias imputam aos professores o sentimento de impotência e, consequentemente, mal-estar, pois não conseguem conhecer nem ler a fundo o seu próprio campo de atuação.

No âmbito das práticas, poderíamos elencar uma série de situações problemáticas que se apresentam diariamente no exercício docente acentuando o mal-estar, no entanto, vale colocar que inúmeras dessas situações se agravam e se tensionam, sobretudo, a partir de uma série de políticas públicas estabelecidas que instituem a padronização do trabalho docente, a criminalização dos professores, a invisibilização de sua importância social, a culpabilização do insucesso escolar, entre outros. Portanto, o mal-estar docente, na década de 1980, se estabelecia, de modo recorrente, a partir das relações conflituosas entre professores, estudantes, famílias, condições de trabalho e baixos salários; já dos anos 2000 até hoje, acrescenta-se esse conjunto de políticas que ganha corpo contribuindo para o agravamento do mal-estar docente e o significativo aumento de casos de doenças psíquicas que acometem os professores.

É diante desse contexto que Murta (2002)MURTA, C. Magistério e sofrimento psíquico: contribuição para uma leitura psicanalítica da escola. In: COLÓQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 3., 2002, São Paulo. Anais […]. São Paulo: LEPSI IP/FE-USP, 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000032001000300031&script=sci_arttext. Acesso em: 14 set. 2019.
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enfatiza a necessidade de haver um espaço de escuta voltado para os professores que deixam transparecer, em suas falas, o estado de abandono das escolas e desamparo no país. Por entendermos a importância da escuta para o alívio do mal-estar e prevenção do adoecimento é que desenvolvemos este artigo que apresenta parte de uma pesquisa maior interinstitucional intitulada “Contribuições da escuta profana na ressignificação do mal-estar docente”.1 1 Projeto interinstitucional de pesquisa desenvolvido pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Universidade do Estado da Bahia e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Dessa maneira, o objetivo deste artigo é compreender como a internacionalização das políticas públicas educacionais agravaram o mal-estar vivido pelos docentes do ensino básico e quais os tipos de reflexão que fazem diante dessa realidade.

Rumo ao alcance do referido objetivo, utilizamos a pesquisa-formação como metodologia, convidando todos os sujeitos-pesquisadores (professores do ensino básico) a participarem de vivências formativas organizadas em três eixos relacionados dialogicamente — formação, pesquisa e ensino —, e nos orientamos por meio da perspectiva fenomenológica para refletir sobre os dados produzidos.

O artigo está estruturado, inicialmente, com a discussão da categoria políticas públicas para a área da Educação e sua relação com o mal-estar docente; posteriormente trabalhamos o conceito de mal-estar docente e suas reverberações no ser professor; e, finalmente, apresentamos as análises dos dados produzidos sobre como os professores refletem/ressignificam esse mal-estar.

POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E A POTENCIALIZAÇÃO DO MAL-ESTAR DOCENTE

Partimos de um projeto mais amplo de pesquisa em que investigamos as contribuições da escuta profana para a ressignificação do mal-estar docente juntamente com um grupo de professores do ensino básico. Embora façamos a descrição detalhada desse processo mais a frente, na seção que se ocupa da metodologia de pesquisa, é importante colocar que apresentamos aqui um recorte dessa pesquisa maior. Durante os encontros que tínhamos com os professores e as professoras, exercitamos uma atitude fenomenológica conforme Heidegger (2005)HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15. ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005. já anunciava: deixar que o fenômeno se revele, se mostre em si mesmo por meio do componente “logos” que, para o autor, é fala enquanto ato puro, simples, que expressa distintas realidades.

Nesse exercício, fomos percebendo que as falas dos professores e das professoras que expressavam o mal-estar docente tinham um recorrente e cevado vínculo com as políticas públicas no campo da educação. Assim, no intuito de melhor compreender as relações entre essas políticas e o mal-estar que acomete os professores, decidimos fazer o referido recorte e aprofundar as reflexões. Nesta seção, discutiremos as políticas públicas no campo da educação, sua internacionalização e contribuições para o agravamento do mal-estar docente.

O termo “política” tem origem grega a partir do termo politikó, que expressa a participação dos sujeitos livres das decisões nos caminhos os quais a pólis (cidade) deve tomar. O termo “pública” é de origem latina e exprime o povo, do povo. Desse modo, a política pública designa a participação do povo nas decisões do seu território em articulação com o Estado. Esse mesmo Estado que, numa perspectiva marxista, é uma agressiva construção burguesa de parte da sociedade que se expressa contraditoriamente sobre as relações dos meios de produção. É claro que, se tomamos a etimologia das palavras e a estaticidade do conceito como referências, o debate torna-se mais simples. No entanto, ao tentarmos entender o que o real nos apresenta, dar-nos-emos conta de que as políticas públicas se constituem como um campo de muitas lutas, embates, combates, medição de forças, contradições e interesses. Nesse sentido, observamos que o conceito de políticas públicas está imbricado com o poder do Estado em “[…] atuar, proibir, ordenar, planejar, legislar, intervir, com efeitos vinculadores a um grupo social definido […]” (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2007SHIROMA, E. O.; MORAES, M. C. M.; EVANGELISTA, O. (org.). Política educacional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007., p. 7).

Salientamos que as contradições às quais nos referimos fazem parte da constituição da nossa própria sociedade e, por consequência, do Estado que não tem o alcance de superá-las, mas as administra com mecanismos de controle via políticas públicas que se apresentam num movimento de inter-relações, tensões e forças que, no contexto desse impetuoso conflito, explicita sua representatividade. Desse modo, é coerente considerar que as políticas públicas são forjadas pelos conflitos e pelas pressões em seu interior e entre si, o que nos faz perceber que não se trata de uma construção estática e descomprometida, mas ordenadamente e intencionalmente implementada na defluência dos embates sociais. Assim, entender a razão de ser das políticas públicas implica em ir além de sua conceituação e caracterização e discutir o que se propõe em termos de projeto social do Estado (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2007SHIROMA, E. O.; MORAES, M. C. M.; EVANGELISTA, O. (org.). Política educacional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.). Dessa maneira, ao encaminharmos a discussão para o campo da Educação, estaremos não somente nos referindo às políticas públicas em si, mas paralelamente discutindo alguns fragmentos de um projeto social que vai se modificando ao longo da história e de acordo com as agendas impressas pelos grupos que assumem o poder.

Desse modo, estabelecemos como referência desta discussão a agenda neoliberal vigente que intensifica a internacionalização das políticas públicas em educação no país, determinando o agravamento do mal-estar docente. As reformas implementadas no Estado e na educação a partir da década de 1990 são decisivas como estratégias para o combate à pobreza e a regulação social sob a perspectiva do campo da economia (Leher, 1998LEHER, R. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para o alívio da pobreza. 1998. 267 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.). É fundamental que se diga que esses exatos mecanismos foram adotados como compromissos do então grupo político associado às políticas econômicas capitalistas e globais que buscou aderir à perspectiva neoliberal de educação firmando pactos com os grandes conglomerados financistas.

De acordo com Leher (1998)LEHER, R. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para o alívio da pobreza. 1998. 267 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998., o documento “Financiamento da educação nos países em desenvolvimento: uma exploração das opções políticas”, de 1986, esclarece como se deu a demarcação do início das determinações do Banco Mundial no campo da Educação e sua função preponderante nas ações privatistas das políticas sociais, desresponsabilizando cada vez mais o Estado. É evidente que tal mecanismo, além de sustentar um cenário de desigualdade, a aprofunda, pois, tratando-se da realidade de países em desenvolvimento, os direitos à educação e à saúde são postos em risco. A tônica das implementações do Banco Mundial — que tem determinações diretas nas políticas locais — evidenciam temáticas como a equidade, a justiça e a inclusão em busca de uma educação que prospere em aliviar a pobreza. Desse modo, é possível entender que o cerne dos esforços da referida agência está, sobretudo, no fato de vislumbrar que a pobreza tem um efeito negativo nos processos de globalização e geração de lucros. Logo, suas intervenções pautam-se no esforço, via políticas públicas, de ajustar os processos educacionais às exigências do capital mundial.

Tais intervenções ramificam-se em outros fóruns para assegurar o alcance em seus alvos correspondentes: declarações de Jomtien (UNICEF, 1990 apud Thiesen, 2019THIESEN, J. S. Políticas curriculares, Educação Básica brasileira, internacionalização: aproximações e convergências discursivas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-16, e190038, 2019. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945190038
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), Nova Delhi (UNESCO, 1993 apud Thiesen, 2019THIESEN, J. S. Políticas curriculares, Educação Básica brasileira, internacionalização: aproximações e convergências discursivas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-16, e190038, 2019. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945190038
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) e Dakar (UNESCO, 2000 apud Thiesen, 2019THIESEN, J. S. Políticas curriculares, Educação Básica brasileira, internacionalização: aproximações e convergências discursivas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-16, e190038, 2019. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945190038
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); além de documentos financiados pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), pelo United Nations International Children's Emergency Fund (UNICEF), Programme des Nations Unies pour le Développement (PNUD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), conforme evidencia Thiesen (2019)THIESEN, J. S. Políticas curriculares, Educação Básica brasileira, internacionalização: aproximações e convergências discursivas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-16, e190038, 2019. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945190038
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De acordo com Shiroma, Moraes e Evangelista (2007)SHIROMA, E. O.; MORAES, M. C. M.; EVANGELISTA, O. (org.). Política educacional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007., já em 1992, o Brasil acenava para as bases políticas e ideológicas de algumas dessas declarações, fazendo-as florescer em seus terrenos por meio do Plano Decenal de Educação para Todos em 1993: “[…] o Brasil traçava as metas locais a partir do acordo firmado em Jomtien e acenava aos organismos multilaterais que o projeto educacional por eles prescrito seria aqui implantado.” (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2007SHIROMA, E. O.; MORAES, M. C. M.; EVANGELISTA, O. (org.). Política educacional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007., p. 52).

Ao aderir a essas determinações, experienciamos, nos dias de hoje, a implementação de políticas reguladoras, padronizadoras, autoritárias e tecnicistas que, aliadas a outros tipos de políticas, tornam a educação pública cada vez mais vulnerável e desvirtuada daquilo que deve ser sua principal busca: a humanização. Evidenciamos, a seguir, dois exemplos de políticas públicas contemporâneas no campo da educação que são fruto desse processo de internacionalização.

A Medida Provisória (MP) n° 746, de 22 de setembro de 2016 (Brasil, 2016BRASIL. Medida Provisória n° 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei n° 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 23 set. 2016. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/126992. Acesso em: 13 maio 2022.
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), que determinou a efetivação das escolas de ensino médio em tempo integral, a composição de seu currículo e de sua carga horária segundo uma perspectiva de cunho tecnicista e excludente, com a retirada da obrigatoriedade de componentes curriculares como Sociologia, Filosofia, Artes, Educação Física e Espanhol, além da legitimação e do exercício do notório saber.

Apontamos ainda a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), Resolução CNE/CP n° 02, de 20 de dezembro de 2019 (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP n° 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Brasília: Portal MEC, 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=135951-rcp002-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 13 maio 2022.
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). Na ausência de diálogos e debates, essa política estabelece como devem ser estruturados os currículos que formam todos os professores no país em suas formações iniciais. De acordo com sua matriz geradora, essa política carrega, em seu bojo, o retrocesso pautado na pedagogia tecnicista das competências e habilidades como fundamento da formação de professores. Somamos a essas políticas os exames estandardizados em larga escala que anunciam o baixo aproveitamento dos estudantes no país, sem que se leve em conta todos os processos que colaboram para esse resultado. Há de se questionar o modo de execução e divulgação desses resultados que, normalmente, apontam o professor como o culpado do baixo rendimento dos estudantes diante da sociedade.

Chama-nos a atenção o desprezo com que a classe docente foi tratada e alijada na tomada de decisões e encaminhamentos de questões fulcrais no seu exercício profissional. Posturas autoritárias que negam à classe a possibilidade de discutir esses encaminhamentos legais, corrompem e corroem o âmago da profissão. É uma espécie de cerceamento da profissionalização, uma vez que profissionalizar-se implica em conhecer a fundo seu próprio trabalho; as ações e decisões individuais e coletivas específicas e peculiares àquela determinada área; suas implicações teórico-práticas a curto e longo prazo; suas reverberações sociais, culturais e políticas em determinados grupos e comunidades. Como limitar os debates àqueles que fazem parte da autoria do acontecer do processo de ensino e aprendizagem? Tal postura retrata a agenda ultraliberal — que acaba por explicitar um crescente fundamentalismo […] e que, de forma arquitetada, promovem a perda do processo histórico de profissionalização por parte dos professores. (Abreu, 2020ABREU, R. M. A. A profissionalização docente e os desafios na contemporaneidade. Artífices, Salvador, v. 1, n. 1, p. 152-176, 2020., p. 168)

A autora chama-nos a atenção para o agravamento do processo de desprofissionalização. Além disso, pontuamos que esse mesmo agravamento é provocado pela violência da lógica do capital. Essa visão de mundo e das relações sociais que permeiam essas agendas que implementam as políticas públicas voltadas para o campo da educação — conforme afirmamos no início — é um motor que tem se mostrado em pleno movimento no sentido de potencializar o mal-estar docente. Voltamos aqui às questões que norteiam nosso estudo e se materializam como objetivos de pesquisa já enunciados na introdução deste texto: como a internacionalização das políticas públicas educacionais agravaram o mal-estar vivido pelos docentes do ensino básico e quais os tipos de reflexão que fazem diante dessa realidade.

Acreditamos que nos constituímos professores ao longo da nossa própria história e que o mal-estar docente, até certo ponto, faz parte do existir e tem relação direta com questões de ordem subjetiva (endógenas) e exógenas. Durante a pesquisa, pudemos observar essa consideração a partir das expressões dos professores envolvidos que evidenciaram conflitos geradores de mal-estar: consigo próprio, na relação com colegas, com sua classe, com os estudantes e com o Estado enquanto gerador de políticas públicas. Esse último chama-nos atenção neste estudo, pelo fato de ser recorrente nos relatos dos professores; por esses mesmos professores terem clareza quanto ao desamparo sofrido e provocado de modo consciente por essas políticas; e por uma ação de obliteração estruturada e intencional da figura do professor. A seguir, aprofundaremos a conceitualização do mal-estar docente e como ele foi expresso pelos professores.

COMPREENDENDO O MAL-ESTAR DOCENTE

Dá-se o nome de mal-estar docente ao sofrimento e ao desamparo de professores e professoras diante de suas experiências profissionais. A condição de mal-estar docente, que é presença regular na escola contemporânea, surge como um risco ocupacional, provocando o adoecimento, o absenteísmo, o desinteresse profissional, entre outros problemas. Antes de voltarmos nosso olhar à forma como professores e professoras são afetados por esse mal-estar e às políticas públicas de educação que proporcionaram o agravamento do problema, consideremos que o desconforto é constitutivo da existência humana e que possui uma relação profunda com os complexos laços sociais da convivência comunitária.

Segundo Freud (2011)FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2011., o mal-estar e a condição de impotência são intrínsecos à vida em sociedade. Imerso na opressão de um mundo externo, de um conjunto de leis, normas e expectativas sociais, o ser humano é acossado pela necessidade de buscar o prazer e evitar o desprazer; a neurose surge como uma resposta aos ideais, às privações e às exigências impostas pela civilização/cultura (termos utilizados de forma intercambiada pelo autor), pois o sujeito social está comprometido com o sacrifício de satisfações individuais em prol do bem-estar comunitário.

Nesse cenário, Freud não deixou de considerar que a subjetividade de cada pessoa está em conflito com a necessidade de ingressão no mundo do trabalho, devido ao seu “[…] caráter imprescindível para a afirmação e justificação da existência na sociedade.” (Freud, 2011FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2011., p. 26). É a força de trabalho que move o estado-nação e permite seu desenvolvimento econômico e social; a profissão carrega consigo um forte traço de identidade e expõe o sujeito às circunstâncias agravantes da desigual e insatisfatória vida em sociedade. Consequentemente, o exercício da profissão, apesar de ser notável e essencial, traz implicações negativas para a saúde mental e a qualidade de vida da massa trabalhadora, sobretudo em um contexto de políticas educacionais internacionalizadas. Essa relação de subordinação entre a necessidade de subsistência e o trabalho expressa a função controversa do trabalho na busca pela felicidade individual:

Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa porção da realidade, na comunidade humana. […] A atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente, isto é, quando permite tornar úteis, através da sublimação, pendores existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados. E, no entanto, o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade. As pessoas não se lançam a ele como a outras possibilidades de gratificação. A imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho. (Freud, 2011FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2011., p. 26)

Levando isso em consideração, o autor aponta três fontes para o sofrimento humano, sendo elas “[…] a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade.” (Freud, 2011FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2011., p. 27). A primeira remete à relação conflituosa com a natureza, que não se rende ao domínio da humanidade, apesar de inúmeras tentativas; a segunda é uma consideração acerca da efemeridade da condição humana e a inevitabilidade do envelhecimento e da morte; já a terceira fonte de sofrimento engloba a cultura e a vida em comunidade, representando a perplexidade humana diante das instituições que foram criadas com o intuito de promover a proteção e o bem-estar, mas fracassam continuamente em seus propósitos.

Em tom de conclusão acerca das duas primeiras fontes de sofrimento, Freud salienta o fato de que “[…] nunca dominaremos completamente a natureza, e nosso organismo, ele mesmo parte dessa natureza, será sempre uma construção transitória, limitada em adequação e desempenho.” (Freud, 2011FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2011., p. 27). Ao descartar a possibilidade da abolição do sofrimento relacionado à natureza e ao corpo, o autor nos deixa entrever duas conclusões acerca da terceira fonte: em primeiro lugar, “a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos” (ibidem, p. 27) também se refere à compreensão da nossa constituição psíquica como uma natureza indômita, incapaz de ser resguardada pelos sistemas sociais; além disso, essa última fonte de sofrimento nos corrói devido à possibilidade palpável de mudança, pois instintivamente compreendemos a civilização/cultura como um conjunto maleável de valores e recursos sociais, dotado da capacidade de constante autoaperfeiçoamento, representando igualmente a assistência e a hostilidade, causando uma frustração contínua. Em suma, a natureza e o corpo estão além do nosso domínio, enquanto as instituições que nós mesmos criamos sempre irão nos parecer flexíveis e adaptáveis; a distância entre a possibilidade de mudança e a mudança significativa de fato surge, então, como mais um fator de mal-estar.

No contexto educacional, a relação entre o mal-estar e o trabalho docente gera um tipo bastante específico de esgotamento profissional. De acordo com o metaestudo de Kasper e Rinaldi (2017)KASPER, S. A.; RINALDI, R. P. Revisão de literatura acerca do mal-estar docente. In: SEMINÁRIO FORMAÇÃO DOCENTE: INTERSECÇÃO ENTRE UNIVERSIDADE E ESCOLA, 2., 2017, Dourados. Anais […]. Dourados: GEPPEF, 2017. p 840-851., relatos de professores e conclusões de pesquisas revelam uma grande variedade de motivos principais e secundários que causam ou contribuem com o mal-estar docente, entre eles: a desvalorização social da profissão docente, os baixos salários, a falta de infraestrutura e a escassez de recursos materiais nas instituições de ensino, o descaso das famílias de estudantes, a sobrecarga de funções e a longa jornada de trabalho, a cultura do individualismo e a ausência de trabalho coletivo entre o corpo docente, as adversidades da formação continuada, a falta de acessibilidade e as dificuldades de inclusão para pessoas com deficiência, o excesso de estudantes na sala de aula, a indisciplina estudantil e a violência na escola, que é, muitas vezes, um ambiente hostil. No entanto, a questão não pode ser encerrada com uma lista de fatores comuns, pois as queixas dos professores são muitas e diversas; em alguns casos, outras percepções acerca do processo educacional entram em pauta, como a falta de autonomia no exercício da profissão, a necessidade de avaliação sistemática e a autoculpabilização perante o baixo rendimento dos estudantes.

A docência é uma ocupação interpelada pelo seu valor social; o próprio ato de educar agrega uma enorme quantidade de significados, sendo visto como fundamental para a coletividade e o progresso social e também como um serviço ou uma mercadoria, proporcionando lucros para as diversas instituições que o promovem. Na sala de aula, enfrentando muitas condições adversas, em uma instituição pública ou particular, o profissional docente faz parte de um projeto pedagógico que visa trabalhar uma gama de conhecimentos através de metodologias previamente definidas. Nesse contexto, consideramos a figura docente como intrincada, multifacetada e até, eventualmente, ambivalente: sinônimo de instrução e esclarecimento, ao mesmo tempo em que pode vir a ser cúmplice do estado-nação ao reger suas políticas educacionais. É evidente que existem muitos fatores conflitantes, entrecruzados com a subjetividade do processo de ensino e aprendizagem, que emergem durante o exercício da profissão e contribuem para o mal-estar docente.

Um desses fatores está concretizado na instituição de políticas públicas educacionais que desconsideram as reais necessidades de docentes e estudantes, em um claro, organizado e intencional projeto de desmonte do ensino público que proporciona o desfiguramento dos professores para dar lugar às privatizações e à retirada de direitos. Para Coutinho (2019COUTINHO, L. G. Mal-estar na escola: o discurso dos professores diante dos imperativos educativos contemporâneos. ETD: Educação Temática Digital, v. 21, p. 348-362, 2019., p. 350), “[…] a escola hoje vive sob uma forte tendência neoliberal, caracterizada pelo individualismo e pela extrema competitividade fundamentada pela ideologia meritocrática que exige dos educadores uma educação voltada para o mercado.”. Essas condições implicam em um sistema de ensino acrítico e imediatista: um modelo rigoroso de organização curricular que orienta a aquisição de conhecimentos utilitários e instrumentalizadores, ignorando as especificidades, vivências e subjetividades dos estudantes. O sujeito enquanto docente, sendo sujeito social e parte do sistema educacional, é quase sempre impotente diante das exigências de políticas públicas e de suas consequências para a tessitura social.

Diante dessa impotência, agrava-se o mal-estar docente, que prejudica a escola e a sociedade como um todo. Souza e Leite (2011SOUZA, A. N.; LEITE, M. P. Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil. Educação & Sociedade, Campinas, v. 32, n. 117, p. 1105-1121, dez. 2011. https://doi.org/10.1590/S0101-73302011000400012
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, p. 1109) descrevem o mal-estar docente como um fenômeno social que propicia uma crise de identidade para o profissional, manifestando “[…] sentimentos negativos intensos como angústia, alienação, ansiedade e desmotivação, além de exaustão emocional, frieza perante as dificuldades dos outros, insensibilidade e postura desumanizada.”. Em outras palavras, as autoras explicitam a relação de interdependência entre o ambiente de trabalho, a saúde mental e a eficácia docente: as desfavoráveis condições de trabalho causam um grande desconforto ao professor, consequentemente deteriorando a relação com os estudantes e a qualidade do exercício docente na escola. Em última instância, a alienação e a precarização docentes chegam a corromper a esperança profissional nos princípios educacionais e comunitários.

Pereira (2017)PEREIRA, M. R. De que hoje padecem os professores da Educação Básica? Educar em Revista, Curitiba, n. 64, p. 71-87, 2017. https://doi.org/10.1590/0104-4060.49815
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também considera como os problemas relacionados ao mal-estar docente ultrapassam a insatisfação diante da vida profissional e alcançam o campo da vida pessoal. Baseado nos resultados de uma pesquisa-intervenção de orientação clínica, o autor afirma que os professores e as professoras da educação básica, com frequência, relatam sofrer de estresse, ansiedade, irritabilidade, depressão, ataques de pânico, toxicomania, entre outros problemas de saúde. Nesse sentido, o mal-estar docente pode ser caracterizado como um “estado depressivo”, ou seja, um quadro sintomático que é mais bem definido pela “miséria neurótica” do que pela melancolia:

Diferentemente da melancolia, o estado depressivo seria na verdade uma expressão de defesa contra o horror ante o vazio da existência ou contra o horror por não se achar em condições de atender às demandas do outro social. Longe da angústia de despedaçamento, próprio das psicoses, e muito mais próximo da angústia da castração neurótica, o estado depressivo parece revelar algo ainda mais peculiar: uma espécie de aflição petrificada que se passa quando a pessoa que sofre imagina como asfixiante o outro que sustenta o seu narcisismo. Ora ele é aquele que opressivamente o invade, ora ele é aquele que desamparadamente lhe falta. (ibidem, p. 77)

Ainda fundamentado nos resultados da pesquisa-intervenção, Pereira (2017)PEREIRA, M. R. De que hoje padecem os professores da Educação Básica? Educar em Revista, Curitiba, n. 64, p. 71-87, 2017. https://doi.org/10.1590/0104-4060.49815
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tece três considerações sobre a figura do professor que encontra refúgio na inércia do estado depressivo:

  1. o profissional docente é afetado pela perspectiva frustrada de mudar a realidade de alunos e alunas que são, muitas vezes, estudantes pobres de escolas que não oferecem perspectiva otimista de futuro; a incapacidade de promover modificação social acarreta a inibição ou a desistência durante o exercício de suas funções profissionais;

  2. a presença do narcisismo é perceptível entre o corpo docente, causado pela rivalidade inerente à profissão e pelas ilusões gloriosas no trajeto de investimento pessoal e autodesenvolvimento; ou seja, o professor está em conflito com a própria idealização da profissão docente; e

  3. os sentimentos de impotência e inferioridade são ainda maiores quando há falta de conhecimento acerca de estudantes adolescentes e do aparelho político-social que é a escola; o exercício da profissão se torna frustrante quando o profissional falha em compreender a educação, a política e a sociedade contemporânea, assim como questões de subjetividade e diversidade cultural.

Nesses três pontos destacados, ficam evidenciadas as constantes exigências da profissão que causam ou amplificam o mal-estar docente: as complexas demandas do quadro estudantil e o contato com as consequências de profundas desigualdades sociais entram em choque com uma existência profissional igualmente idealizada e precarizada. Acrescentamos que os docentes de ensino básico precisam acompanhar as particularidades da infância e da adolescência de uma nova geração de estudantes, ou seja, como os alunos e as alunas interagem com o mundo ao redor e como lidam com as tecnologias, os meios de comunicação e a cultura popular; é necessário até mesmo considerar a apatia ou a resistência de estudantes que não se adequam às atividades planejadas, pois o que funcionou outrora nem sempre coaduna com as preferências e sensibilidades da nova juventude. Ao mesmo tempo, é indispensável que o docente acompanhe as mudanças no processo de profissionalização, estando a par dos mais novos documentos normativos e das concepções curriculares, como a já citada BNC-Formação de 2019 (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP n° 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Brasília: Portal MEC, 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=135951-rcp002-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 13 maio 2022.
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) e a recente Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pd. Acesso em: 13 maio 2022.
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), e sempre atentando à interação conflituosa de vieses políticos no exercício da profissão. Em todos os sentidos, o processo de ensino e aprendizagem exige dinamismo no autodesenvolvimento profissional e no envolvimento político, impondo diversos obstáculos aos profissionais que precisam repensar continuamente suas concepções de mundo e práticas de ensino.

O trabalho docente é cansativo e interminável, e não é à toa que já foi comparado aos esforços de Sísifo, o personagem mitológico que acabou condenado a rolar uma pedra montanha acima durante toda a eternidade; a metáfora expressa a angústia, a monotonia e a sensação de futilidade que acomete muitos professores e professoras, mas falha em capturar a importância do ensino na vida cotidiana em nossas sociedades. Considerando que o sistema de educação possui objetivos tanto intelectuais quanto humanísticos e que o processo de ensino e aprendizagem — quando bem desenvolvido — reflete positivamente em todos os outros aspectos da sociedade, a responsabilidade social do corpo docente é imensa, e as suas conquistas em sala de aula repercutem no decorrer de muitas gerações. Tudo isso salienta a importância de uma metarreflexão que considere a docência em um amplo contexto sociocultural, buscando a construção de uma perspectiva bem fundamentada acerca dos fatores que afetaram e afetam os professores e as professoras durante o exercício da profissão, tendo em vista que o mal-estar docente é um fenômeno grandemente influenciado por decisões governamentais e políticas públicas de educação.

PERCURSO METODOLÓGICO

Conforme assinalamos na introdução deste texto, apresentamos aqui um recorte do projeto de pesquisa e extensão intitulado “Contribuições da escuta profana na ressignificação do mal-estar docente”. Decidimos aprofundar o referido recorte, pois, nas atividades extensionistas desenvolvidas nos moldes dos ateliês lúdicos que promoveram momentos de escuta individual e coletiva, ficou muito evidente que as narrativas dos professores convergiam, grandemente, para um mal-estar desencadeado pelas políticas públicas educacionais que assumem, cada vez mais, a perspectiva neoliberal e neotecnicista.

Desse modo, evidenciamos que a metodologia desta pesquisa foi fundamentada com base em uma abordagem qualitativa, a partir de uma perspectiva fenomenológica, pois, para além das leis e generalizações, voltamos nossa atenção para a qualidade do fenômeno que não está relacionada tão somente à racionalização, mas é compreendida também a partir de um modo de ver o mundo, submerso nele próprio e do qual somos parte ativa. Ser parte ativa implica em buscar, empregar sentido e, para tal, é necessário duvidar, indagar e, levando em conta a particularidade desta pesquisa, primordialmente, escutar. Nessa perspectiva, o fenômeno que pesquisamos aqui, em particular, diz respeito à internacionalização das políticas educacionais como potencializadoras do mal-estar docente vivido pelo ser professor: suas dores, suas queixas, suas aflições, seus traumas, etc.

Nesse sentido, entendemos que o contato direto que o pesquisador estabelece com os sujeitos e com os fenômenos é intermediado pelo contexto. De acordo com Martins (2000)MARTINS, J. A pesquisa qualitativa. In: FAZENDA, I. (org.). Metodologia da pesquisa educacional. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 47-58., um dos aspectos principais da pesquisa qualitativa diz respeito à descrição sumária dos eventos e à própria dinâmica que permeia a relação dos sujeitos com os eventos ou dos eventos com a vida.

Portanto, tendo em vista a natureza do nosso objeto de pesquisa que nos direcionou para a referida abordagem, evidenciamos ainda que, dentro dessa mesma abordagem, utilizamos a metodologia da pesquisa-formação. No campo da educação, esta metodologia propõe uma fuga de paradigmas reducionistas e pragmáticos, enfatizando uma proposta que oportuniza a seus participantes vivências formativas e investigativas que entrelaçam os campos da formação, da pesquisa e do ensino entremeados pela escuta numa perspectiva profanadora.

Salientamos que, nesta pesquisa, a escuta profana é inspirada em Agamben (2007)AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. quando nos coloca o importante movimento de desconsagração da racionalidade, da verdade. Segundo o autor, a profanação pode ser entendida como todo movimento ou gesto que impulsiona a ampliação da democratização, o acesso a algo. Logo, uma vez que a escuta já se encontra largamente amparada em mecanismos de um saber restrito, através da legitimação e valorização de determinadas características, acaba sendo operacionalizada e institucionalizada sob a tutela de grupos específicos. Então, buscamos uma escuta profana para que se transforme em possibilidades de livre exercício, pois a educação enquanto exercício democrático necessita dessa escuta na tentativa de se impor como uma das vias para possíveis ressignificações e uma das possibilidades do alívio do mal-estar e da prevenção do adoecimento.

Assim, utilizamos estratégias diversificadas para efetivar o ato da profanação nos encontros realizados com os professores participantes da pesquisa. Por meio do desenvolvimento de ateliês lúdicos, primeiramente numa proposta presencial e posteriormente numa dinâmica virtual, reunimos um arcabouço de dados elementares para as análises. Tivemos os ateliês em dois formatos em função da pandemia ocasionada pelo SARS-CoV-2 (novo coronavírus). Desse modo, por meio das narrativas, os professores puderam expressar suas emoções, uma vez que os discursos eram legítimos, carregados de significados — isto é, eram um relato de vida, claramente revestido de luta, resistência, desejos e vontades, brotavam do interior dos sujeitos, das ações ou das experiências em que estavam imersos.

Por essa razão, estabelecemos os ateliês lúdicos formativos como lócus da escuta profana e, de igual modo, como espaço apropriado para a produção dos dados, em que vivenciamos o exercício de uma escuta sensível, exercitando o não estabelecimento de juízo de valor ou pré-conceitos, suscitando reflexões — individuais e coletivas — sobre situações do cotidiano escolar. A despeito do processo aqui descrito — e por mais livres que os sujeitos-pesquisadores se sentissem —, ressaltamos a nossa consciência de que o que empregamos sentido a partir desta pesquisa é uma pequena parte de um universo do não dito, pois sabemos que a linguagem não dá conta de tudo expressar.

Os ateliês lúdicos formativos têm origem nas ideias de Loris Malaguzzi. O autor define os ateliês como um agente transformador das experiências educativas e, portanto, subjetivas; um espaço de possibilidades, de criatividade, de autonomia, de descobertas e de ludicidade (Edwards, Gandini e Forman, 2015EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância. v. 1. Porto Alegre: Penso, 2015.). Desse modo, o ateliê lúdico é inserido como uma proposta de ação dentro da metodologia de pesquisa-formação aqui enunciada que buscou superar a participação dos sujeitos-pesquisadores como meros receptores de conteúdos; pelo contrário, exercitamos uma perspectiva colaborativa de pesquisa. A propósito da dinâmica de organização dos encontros, iniciamos as atividades extensionistas em caráter presencial. De início, contamos com um total de 28 sujeitos nas atividades presenciais, todavia, devido a mudança para o formato remoto em função da pandemia, tivemos uma redução do número de professores. Sendo assim, o número exato de sujeitos participantes da pesquisa, os quais contribuíram significativamente para produção dos dados, corresponde a 18 professores, como apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Quantidade e área de formação dos participantes do projeto.

No formato presencial, a fim de fomentar as narrativas e exercitar a escuta profana nos ateliês lúdicos, elaboramos atividades diversificadas, como o tapete dos sentidos, com o uso de objetos escolares e não escolares para que os sujeitos pudessem rememorar situações do trabalho ou da vida. Contamos também com momentos de danças circulares, debates, confecções de cartazes, rodas de conversa, encenações teatrais envolvendo situações escolares, momento cinema com exposição de filmes, entre outras.

Na modalidade remota, fizemos um esforço para manter a proposta dos ateliês lúdicos, quinzenalmente. Assim, por meio das rodas de conversas (on-line), analisamos cenários educacionais, políticos e sociais a partir de atividades desenvolvidas no Google Drive, com a utilização de charges, reportagens, epígrafes, imagens, vídeos, canções, etc. Utilizamos situações-problema vinculadas à educação, ao trabalho e ao mal-estar docente. Ainda por meio dos diários experienciais que foram desenvolvidos ao longo do projeto, refletimos sobre os fragmentos produzidos pelos participantes e evidenciados nos respectivos diários. Tanto os encontros presenciais como os remotos foram gravados com o intuito de retomarmos as falas dos sujeitos participantes e encontrarmos nas narrativas do seu fazer docente aspectos que apontassem de onde provinham as causas do mal-estar docente.

Inicialmente, afirmamos que o mal-estar se encontra instalado na profissão docente, pois, embora os professores atuem em áreas diferentes, o estado de mal-estar é relatado por todos. Com relação à vinculação profissional, observamos 12 professores atuantes na rede pública e seis na particular. Observamos ainda que o mal-estar é comum independente dessa vinculação, pois a internacionalização das políticas públicas no campo da Educação impele a modelação dos sistemas educacionais institucionalizados, com ampla participação dos organismos multilaterais (Libâneo, 2012LIBÂNEO, J. C. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012. https://doi.org/10.1590/S1517-97022011005000001
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). No país, esse processo de internacionalização é fortalecido por projetos políticos partidários que negam a soberania da classe docente, desconsiderando a característica humana e multirreferencial da educação, estabelecendo sérias contradições, uma crise identitária docente desconstruindo a profissionalização.

No Quadro 2, apresentamos o tempo de profissão e compreendemos que o período de serviço tem grande influência no modo como o professor lida com o mal-estar gerado pela profissão. Por um lado, nota-se que, por via dos saberes construídos a partir de sua própria experiência, é possível reunir recursos para lidar — com um menor grau de sofrimento — com o sentimento de abandono e impotência. Por outro lado, o longo tempo de exercício da profissão causa-lhe desgaste de várias ordens, estabelecendo, muitas vezes, o limite do insuportável. Foi possível observar que, independentemente do tempo de serviço, os professores vinculados ao sistema público de educação possuíam uma visão mais crítica sobre o processo de internacionalização e suas consequências.

Quadro 2
Tempo de profissão dos participantes do projeto.

Os professores recém-chegados ou com um tempo médio de profissão também conseguiam perceber o modo como são afetados pelo referido processo nas condições de trabalho, na formação, na autonomia, na escolarização, na valorização e na infraestrutura das escolas. No entanto, não estabeleciam com clareza parâmetros comparativos com relação a contextos distintos de geração de políticas. Observamos que um entendimento comum aos dois grupos foi a constatação da crescente falta de autonomia, pois tais políticas, ao se utilizarem de modelos estandardizados nos sistemas educacionais, furtam dos professores sua capacidade de pensar e refletir criticamente os processos educacionais e o mundo. São políticas que apostam na desintelectualização do trabalho docente em nome do capital (Oliveira, 2020OLIVEIRA, D. A. Políticas conservadoras no contexto escolar e autonomia docente. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2015335, p. 1-18, 2020. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.15335.069
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).

As narrativas explicitadas — que buscamos escutar, profanamente, em conjunto — nos ateliês lúdicos evidenciaram categorias que mostramos no Quadro 3. Inicialmente, mostraremos os dois grandes grupos por elas formados e, em seguida, faremos uma análise de três subcategorias com maior incidência, na qual as que tiveram menor incidência transversalizam.

Quadro 3
Agrupamento de categorias.

As grandes categorias presentes apontam, respectivamente, para um mal-estar ocasionado pelo estado de impotência e o estabelecimento de um estado permanente de desprofissionalização da profissão docente. A respeito do primeiro grupo, concordamos com Nóvoa (2017NÓVOA, A. Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, Brasília, v. 47, n. 166, p. 1106-1133, out./dez. 2017. https://doi.org/10.1590/198053144843
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, p. 1110) quando afirma que “[…] o projecto político da privatização é, hoje, conduzido em nome da ‘salvação’ da dimensão pública da educação.”. São projetos mais arrojados, audaciosos e violentos, pois transpõem os muros das instituições particulares e caminham rumo ao domínio das instituições públicas, estabelecendo, em seu interior, o conceito da administração empresarial — e vão além: estipulam, à força, um currículo e as práticas impressas nele em nome do capital.

A categoria da desprofissionalização se estabelece por uma série de situações que vão desde a perda de direitos trabalhistas e diminuição do salário até a perda de autonomia no exercício docente. Ou seja, a morte simbólica e real do professor. Além disso, tais políticas implementadas determinam um cenário de intensificação de um trabalho burocratizado, hiperprogramado e sujeito ao controle, baseado na produtividade e prestação de contas. Um movimento que vai além do cerceamento da profissionalização, uma vez que profissionalizar-se implica na construção e no exercício de saberes específicos e éticos. Para além desse cerceamento, está a desprofissionalização. Como impedir que os profissionais da educação façam parte das discussões e decisões que delineiam o seu campo de atuação? Impede-se pelo fato de que a natureza do trabalho docente é dialógica, dialética, faz refletir e humanizar-se. Por essa razão, para a lógica que norteia as atuais políticas públicas, é preciso desprofissionalizar os professores e deixá-los à sorte do seu mal-estar.

O Gráfico 1 nos mostra que a sensação de impotência diante das políticas públicas vigentes foi a subcategoria mais recorrente nas narrativas dos professores, aparecendo em 47% das causas de mal-estar apresentadas por eles. A impotência se mostra diante de si como profissional, da realidade social educativa e dos pares. A política pública em sua face internacionalizada, tal qual se apresenta, oblitera dos professores a capacidade de reação. Políticas que temem a escola pela sua capacidade socializadora e pelo fato de, ainda hoje, nela habitarem coletivos mobilizadores que fomentam uma reflexão crítica sobre a realidade. Desse modo, muitos professores vão sendo colocados no lugar da impotência por uma lógica economicista que desvirtua a natureza do ato educativo convergindo os esforços docentes para a produção de ações no sentido de alcançar metas que sejam expressivas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), por exemplo. Tal movimento vem provocando um arrefecimento do poder de reação dos coletivos escolares frente aos seus projetos políticos pedagógicos como espaços de construção coletiva. A escola já não reflete sobre si, seus problemas, seus protagonistas, seu entorno; e os professores dedicam grande parte do seu tempo sendo engolidos pela produção de relatórios, pela preparação dos estudantes para avaliações em larga escala e pelo preenchimento de plataformas, promovendo uma espécie de maquiagem sofrível e sofrida da realidade escolar, o que, consequentemente, potencializa o mal-estar (Oliveira, 2020OLIVEIRA, D. A. Políticas conservadoras no contexto escolar e autonomia docente. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2015335, p. 1-18, 2020. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.15335.069
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).

Gráfico 1
Narrativas dos professores acerca do mal-estar docente.

A segunda subcategoria mais recorrente foi a educação como produto de mercado. Observamos que nem todos os professores que estabeleceram essa categoria em suas narrativas têm claro os fundamentos que sustentam essa lógica. No entanto, são muito conscientes das práticas implementadas sob a égide desse raciocínio, a exemplo dos serviços terceirizados no interior das escolas que têm sérias influências nas rotinas pedagógicas; o empenho do estado em desresponsabilizar-se cedendo cada vez mais espaço às empresas; o fortalecimento crescente do discurso que aponta para saídas fantasiosas, de curto prazo, e que colocam no professor a maior parte da responsabilidade do processo de ensino e aprendizagem, em lugar de implementar ações pautadas numa discussão crítica sobre as causas e condições sociais e históricas que geram esse estado de crise da educação.

“Ao mesmo tempo, vemos o poder público articulando com os grandes empresários pra que a manutenção do exercício de educação somente aconteça para as elites, aí você também entra em choque.” (Professora A). O fragmento apresentado, extraído de uma das narrativas, aponta para dois aspectos importantes nesta análise: o primeiro é que os agentes financeiros, aliados às elites do país, agem no sentido de ajustar a educação às exigências do capital mundial, visando à formação de sujeitos polivalentes, flexíveis e produtivos, que sejam capazes de sustentar os interesses reinantes neoconservadores (Frigotto, 2009FRIGOTTO, G. Teoria e Práxis e o antagonismo entre a formação politécnica e as relações sociais capitalistas. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, supl. 1, p. 67-82, 2009. https://doi.org/10.1590/S1981-77462009000400004
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). O segundo nos aponta para a consciência do professor de que os processos educacionais pautados e em vigor excluem, violentando-o no sentido de, muitas vezes, se perceber agente dessa exclusão sem muitas possibilidades de ações de combate.

Com 23,5% foi evidenciada a subcategoria o massacre das políticas públicas educacionais. Relacionado a essa categoria, temos o seguinte fragmento: “Como podemos ajudar o outro se também estamos sendo engolidos e massacrados?” (Professora B). O campo educacional tornou-se também um cenário desesperador de busca pela sobrevivência. Como pensar em refletir, analisar, questionar, resistir e lutar por direitos quando se tem em jogo uma condição de precariedade latente que põe em risco aquilo que é essencial — alimentação, educação e saúde? Falamos de uma extensão massiva da miséria no país e, associado a isso, a proletarização docente que colabora pouco para que os professores se utilizem de recursos emocionais mobilizadores para transpor tal condição. Chamamos atenção para o fato de que esse mesmo massacre e essas mesma proletarização, sustentados pela atual pauta política, contribuem para a subtração dos direitos trabalhistas, bem como uma significativa queda salarial e, por consequência, de poder aquisitivo dos profissionais docentes. Uma relação extremamente agressiva nasce nesse processo, pois, ao tempo dessa proletarização, aos professores são demandadas constantes qualificações por conta de uma intensa complexificação dos sistemas escolares e dos modos de ensino. A esse professor o Estado cobra sem criar condições para que existam possibilidades de formação contínua. Logo, notamos um duro golpe na dignidade profissional do docente diante das situações às quais é submetido em seu espaço de trabalho, da dificuldade de acesso aos bens culturais, da baixa autoestima e da desvalorização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordamos, nestes escritos, categorias relevantes que nos permitiram discutir, analisar e entender melhor um objeto de pesquisa complexo e atual. Um estudo que possibilita aos profissionais da educação a construção de um olhar crítico referente à internacionalização de políticas públicas para o campo educacional e que, por consequência, levam ao agravamento do mal-estar docente, afetando, em grande medida, a atuação do professor em seus espaços de trabalho, sua identidade profissional e sua saúde mental e física.

Ressaltamos que o mal-estar docente exige uma compreensão multi e interdisciplinar na medida em que coloca em questão as doenças emocionais que são consequência da realidade laboral — que é também política e social —, na qual os docentes estão inseridos. Nesse sentido, ressaltamos a importância de contribuições do campo da Psicologia, tendo em vista o estado permanente de impotência dos professores diante das determinações via políticas públicas, que gera profundas crises identitárias e os tornam cada vez mais adoecidos emocionalmente. Chamamos atenção para a necessidade de contribuições do campo da Sociologia na medida em que há um desgaste e descrédito social, a despeito das inúmeras exigências às quais os professores são imputados em função de novas configurações da sociedade, não possuindo êxito em suas tentativas de atendê-las, pois não dependem de seu único esforço. E, finalmente, observamos ser de grande importância as contribuições do campo político no sentido de reverter sentidos e estratégias que projetam no professor o fracasso do sistema educacional e tenta maquiá-lo com políticas ditas erradicadoras da pobreza quando, em sua essência, homogeniza todo o sistema educacional a fim de submetê-lo em favor do capital rentista.

Para nós, é evidente que os países em desenvolvimento têm certa liberdade para aderir a essa política internacionalizada. No entanto, não nos furtamos de inferir que esses mesmos países, por conta, sobretudo, da sua condição de pobreza, sofrem grande pressão dos organismos multilaterais na formulação de suas diretrizes para o ensino. Isso porque as políticas educacionais vêm sendo estabelecidas a partir de uma economia global, ou seja, por relações de poder, decisões e orientações externas às demandas do país, fundadas em princípios neoliberalistas, buscando alcançar padrões gerenciais direcionados exclusivamente à geração de produtos.

Os resultados desta pesquisa nos apontam para dois aspectos básicos que são consequência da internacionalização das políticas públicas educacionais: o estado de impotência e a desprofissionalização. Ambos se configuram como estado crescente e potencializadores do mal-estar docente. Nesse aspecto, ressaltamos a necessidade de ampliação das discussões nos coletivos docentes sobre quais os interesses que estão por trás dessas políticas que têm colaborado para a baixa qualidade da educação, formulação de currículos engessados, má gestão da escola, do ensino-aprendizagem, das avaliações e até mesmo da formação de professores. Dessa forma, pretendemos demonstrar, com este escrito, que a discussão sobre políticas públicas é ampla, ao mesmo tempo que necessária, pois implica leitura crítica da realidade dos vigentes sistemas de ensino e compreensão sobre o conceito e as causas do mal-estar.

A partir das análises realizadas, compreendemos que as políticas públicas materializam o projeto de um país e que o campo de lutas caracteriza a centralidade das políticas públicas, além de entendermos como esse campo é determinante para a construção de diferentes naturezas de sociedade e que cada uma dessas naturezas atende a uma visão de homem e de mundo. Portanto, não é lugar comum, tampouco démodé nos questionarmos: que mundo queremos construir? Que não nos furtem o direito de compor esse campo e de lutar pela autonomia docente, por professores sãos, respeitados e conscientes da sua identidade e da sua profissão. Profissão esta que se constitui, essencialmente, pelo seu caráter político e social.

  • 1
    Projeto interinstitucional de pesquisa desenvolvido pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Universidade do Estado da Bahia e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.

REFERÊNCIAS

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  • BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular Brasília: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pd Acesso em: 13 maio 2022.
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  • BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP n° 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Brasília: Portal MEC, 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=135951-rcp002-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 13 maio 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2021
  • Aceito
    28 Jun 2022
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