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Representações sociais de mulheres profissionais do sexo sobre a AIDS

Social representations of AIDS by female sex workers

Resumos

Este estudo trata do risco da AIDS para profissionais do sexo e seus parceiros. Foram entrevistadas 40 mulheres com idade entre 19 e 47 anos. Pouco menos da metade tinha parceiro fixo. Utilizaram-se entrevistas semi-estruturadas para a obtenção do material verbal, que foi analisado pelo software ALCESTE. Verificaram-se três aspectos da representação social da AIDS: o primeiro destaca-a como uma doença do "outro" (48,3% das unidades de contexto elementar, ou UCE); o segundo define-a como uma doença que ameaça todos os que não usam preservativo (26,7% das UCEs); e o terceiro estabelece ligação da AIDS com uso de drogas e pessoas "suspeitas" (25,0% das UCEs). Conclui-se que as mulheres que têm relação com parceiro fixo não-cliente e com clientes são mais vulneráveis que as outras, pois elas não transferem a experiência de proteção adotada diante dos clientes para as relações com seus parceiros fixos.

representações sociais; profissionais do sexo; aids; preservativo


This study focuses on female sex workers and their respective partners. Semi structured interviews were performed with 40 women with ages between 19 and 47. Around half of the subjects had a fixed relationship. The software ALCESTE analyzed the collected data. Three salient aspects of the social representations of AIDS were detected and are here considered by order of importance: first, AIDS was seen as a disease which affects others, involving 48.3% of the UCE; second, AIDS was seen as a disease that represents a menace to everybody and was seen as being caused by a neglectful use of condoms (26% of UCE); third, AIDS was associated to the use of drugs and to people arousing suspicion. Data also suggested that women who had fixed relationships out of commercial relations were more vulnerable than the others for they did not behave as protectively with their fixed partners as they did with their clients.

social representations; female sex workers; aids; condoms


ARTIGOS

Representações sociais de mulheres profissionais do sexo sobre a AIDS

Social representations of AIDS by female sex workers

Leandro Castro OltramariI; Brigido Vizeu CamargoII

IUniversidade do Sul de Santa Catarina e Universidade do Vale do Itajaí

IIUniversidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Salvador Di Bernardi, 505, apto 1102 São José, SC CEP 88101-260 E-mail: bcamargo@cfh.ufsc.br

RESUMO

Este estudo trata do risco da AIDS para profissionais do sexo e seus parceiros. Foram entrevistadas 40 mulheres com idade entre 19 e 47 anos. Pouco menos da metade tinha parceiro fixo. Utilizaram-se entrevistas semi-estruturadas para a obtenção do material verbal, que foi analisado pelo software ALCESTE. Verificaram-se três aspectos da representação social da AIDS: o primeiro destaca-a como uma doença do "outro" (48,3% das unidades de contexto elementar, ou UCE); o segundo define-a como uma doença que ameaça todos os que não usam preservativo (26,7% das UCEs); e o terceiro estabelece ligação da AIDS com uso de drogas e pessoas "suspeitas" (25,0% das UCEs). Conclui-se que as mulheres que têm relação com parceiro fixo não-cliente e com clientes são mais vulneráveis que as outras, pois elas não transferem a experiência de proteção adotada diante dos clientes para as relações com seus parceiros fixos.

Palavras-chave: representações sociais; profissionais do sexo; aids; preservativo

ABSTRACT

This study focuses on female sex workers and their respective partners. Semi structured interviews were performed with 40 women with ages between 19 and 47. Around half of the subjects had a fixed relationship. The software ALCESTE analyzed the collected data. Three salient aspects of the social representations of AIDS were detected and are here considered by order of importance: first, AIDS was seen as a disease which affects others, involving 48.3% of the UCE; second, AIDS was seen as a disease that represents a menace to everybody and was seen as being caused by a neglectful use of condoms (26% of UCE); third, AIDS was associated to the use of drugs and to people arousing suspicion. Data also suggested that women who had fixed relationships out of commercial relations were more vulnerable than the others for they did not behave as protectively with their fixed partners as they did with their clients.

Keywords: social representations; female sex workers; aids; condoms

A AIDS é um dos principais problemas referentes à saúde pública no Brasil. Com a mudança do perfil da epidemia, que a partir da década de 90 começou a ser marcada pela feminização, pauperização e heterossexualização, a preocupação com populações que apresentam risco social ou vulnerabilidade tem se tornado cada vez mais presente (Ministério da Saúde, 1999, 2001).

O índice de incidência do HIV tem aumentado entre as mulheres. As profissionais do sexo apresentam características específicas que as fazem necessitar de maior cuidado, devido à falta de acesso à rede de atendimento social e sobretudo pela exclusão na qual as mesmas se encontram.

A expressão profissional do sexo, segundo Moraes (1996), derivou dos Encontros Nacionais das Prostitutas. O primeiro deles foi realizado em 1987, na cidade do Rio de Janeiro. Esta expressão designa uma pessoa que faz sexo, de forma impessoal, por uma determinada quantia de dinheiro ou troca-o por qualquer outro bem (Gaspar, 1988).

A presente pesquisa interessou-se em saber como dois grupos distintos de mulheres profissionais do sexo, um que mantém relações sexuais com parceiro fixo não-cliente e outro que não apresentava esta característica, integram a necessidade de prevenção da AIDS no âmbito profissional e no âmbito privado. Quando se trata de parceiro fixo, não se consideram aqui aqueles parceiros que Bajos, Pryen, Warszawski, Serre e Grupo ACSF (1997) denominam clientes exclusivos. Interessa-se pela comparação do sexo venal (realizado com troca de dinheiro) com o sexo realizado sem este tipo de troca.

Pesquisas anteriores (Gaspar, 1988; Moraes, 1996, 1998) demonstram que para as profissionais do sexo há uma divisão entre mundo profissional e o mundo privado, desta forma pode-se pensar que suas estratégias de prevenção à AIDS seriam diferentes conforme a natureza do vínculo com o parceiro sexual (cliente ou parceiro fixo não-cliente).

Para compreender como se dá à divisão entre o mundo profissional e o mundo privado é necessário compreender a unidade da atividade sexual profissional, a saber, o que as profissionais chamam de programa.

O "programa" é a unidade elementar da atividade da prostituta. Sua execução requer acordos prévios sobre três itens: as práticas, ou o conteúdo do serviço que será prestado, o preço, e o tempo disponível pela prostituta. (Freitas, 1985, p. 30)

O programa refere-se tanto ao ato sexual, em troca de uma quantia em dinheiro, quanto ao fato do cliente apenas ocupar um determinado tempo com a profissional do sexo para conversar. Mas, basicamente, ele consiste em "pagamento pelo serviço prestado conforme o combinado, utilização de preservativo masculino, restrição do contato boca a boca (beijo) e ausência de feridas ou assaduras nos órgão sexuais" (Silva, Salmito, Vendramini, & Patrício, 1998, p. 328). O programa é o que diferencia a sexualidade da vida profissional dessas mulheres daquela referente à sua vida afetiva.

A compreensão das implicações da diferenciação entre vida privada e profissional na gestão da sexualidade, diante do risco da AIDS, remete à comparação da forma de pensar o risco do HIV entre mulheres que, num dado momento, só têm relações sexuais com clientes com aquelas que têm relações sexuais com um parceiro fixo não-cliente (marido, namorado, amante).

Conforme Bajos et al. (1998),

O risco é uma propriedade que se refere à passagem de uma situação a outra, à passagem do presente ao futuro. É uma propriedade que a cultura científica ou popular, os grupos, os indivíduos, atribuem a situações que podem trazer conseqüências negativas.1 Nota (p. 36)

É importante considerar, conforme a autora anteriormente citada, que o conhecimento que temos sobre os riscos para a nossa saúde é adquirido de duas formas: pela experiência individual (e direta) ou pela experiência coletiva (mediada pelos grupos sociais); no caso da AIDS, o segundo modo é o mais comum.

A sociedade, através de organizações governamentais e não-governamentais, difunde informações sobre esta epidemia, no sentido de evitá-la. Ao mesmo tempo, esta doença tornou-se objeto de preocupação das profissionais do sexo. Elas conhecem a AIDS através das conversas cotidianas, conselhos, e contato com a mídia preventiva. Esta forma de conhecimento, não especializado, do senso comum, é o que caracteriza o fenômeno das representações sociais da AIDS.

Segundo Moscovici (1981), as representações sociais se constituem como uma série de opiniões, explicações e afirmações que são produzidas a partir do cotidiano dos grupos, sendo a comunicação interpessoal importante neste processo. São consideradas como teorias do senso comum, criadas pelos grupos como forma de explicação da realidade. Elas se parecem muito com os mitos e crenças das sociedades tradicionais. Assim, a representação social formaliza uma "modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos" (Moscovici, 1978, p. 26).

Os trabalhos de Joffe (1998a, 1998b) revelam como a AIDS tem sido pensada, pelos leigos, como uma doença distante de nós mesmos. As pessoas freqüentemente ligam a origem da AIDS à responsabilidade e à culpabilidade de determinados grupos sociais. Estes estudos apontam que a representação social da AIDS envolve dois elementos, a condição estrangeira e o outro, como responsáveis pela disseminação da epidemia.

A AIDS, na mentalidade de muitas pessoas, está ligada à uma concepção particular do que seria comportamento perigoso.

O comportamento perigoso que produz a AIDS é encarado como algo mais do que fraqueza. É irresponsabilidade, delinqüência – o doente é viciado em substâncias ilegais, ou sua sexualidade é considerada divergente. (Sontag, 1989, p. 31)

A exigência do uso do preservativo, conforme Carvalho (1998), entra em contradição com o discurso da fidelidade amorosa, enquanto um valor instituído culturalmente: "homens e mulheres, partilham a idéia de que 'eu e o outro somos um'" (p. 93). No entanto, mesmo os adolescentes, ao criarem roteiros de propaganda preventiva para os outros, representam as relações sexuais sem preservativo como um erro e associam este tipo de prática à punição de se tornar doente (Camargo, 2000).

Os parceiros sexuais irão agir conforme os modelos e regras de condutas orientadas pelos estereótipos da sexualidade de cada época e cultura. Giami (1998) cita uma pesquisa em que as profissionais do sexo diferenciavam sexo pago do não-pago. O uso do preservativo era restrito ao sexo venal, enquanto o sexo com parceiros regulares, manifestação de uma relação considerada íntima ou amorosa, era feito sem o uso de preservativo. Os critérios descritos para a seleção de um parceiro deste segundo tipo foram: "o sentimento amoroso, 'o conhecimento' do parceiro, a proximidade social, a aparência física e o tipo de relação entre os parceiros" (p. 221).

Deste modo, a atenção em relação à dimensão amorosa na prevenção da AIDS torna-se importante para as pessoas em geral e particularmente para as profissionais do sexo. O presente trabalho pretende comparar as representações sociais sobre prevenção da AIDS de profissionais do sexo, com e sem relacionamento amoroso fixo, e indicar as implicações disto para a proteção frente ao HIV.

Método

Participantes

As participantes da pesquisa foram 40 mulheres profissionais do sexo que desenvolviam suas atividades em casas de prostituição em Florianópolis. Estas mulheres tinham entre 19 a 47 anos. Das entrevistadas 18 possuíam parceiros fixos e 22 não possuíam este tipo de parceria no momento da entrevista. Utilizou-se como critério para a seleção das participantes a realização de programas em locais específicos, como boates, bares ou apartamentos. Utilizou-se este critério com o objetivo de garantir, para as entrevistadas, o sigilo das informações coletadas e com intuito de manter certa padronização na coleta dos dados.

Instrumento

Foi empregada a técnica de entrevista semi-diretiva, em situação individual, para a coleta dos dados. As entrevistas foram realizadas em quartos, pistas de dança (quando não havia clientes) e espaços externos da casa noturna, sempre reservados para garantir a discrição na coleta e a qualidade dos dados coletados. O procedimento para a realização das entrevistas seguiu os seguintes passos: a) solicitar um local, sem a intervenção de terceiros, para a entrevista; b) apresentar o objetivo do trabalho; c) solicitar permissão da entrevistada; d) realizar a entrevista, observando roteiro. O roteiro de entrevista envolveu dados de caracterização para a distribuição nos grupos, conhecimento sobre a AIDS e sobre sua prevenção, e as formas de prevenção por elas empregadas (ver Apêndice).

Análise dos dados

O material verbal foi gravado em fita cassete, após consentimento das participantes; em um segundo momento ele foi transcrito. Posteriormente foi analisado com apoio do programa informático ALCESTE (Analyse par contexte d'un ensemble de segments de texte; Reinert, 1990). Esse programa organiza e classifica os segmentos de textos das respostas às entrevistas em função da semelhança de conteúdo entre si, empregando uma análise hierárquica descendente (Nascimento-Schulze & Camargo, 2000). Ele permite a elaboração de um dendograma (forma gráfica) da classificação hierárquica descendente, que demonstra as relações existentes entre as categorias temáticas resultantes do procedimento. A descrição das categorias temáticas é realizada principalmente pelo vocabulário característico das mesmas (léxico) e pelas suas palavras com asterisco (palavras variáveis). Isso favorece a análise de conteúdo do material verbal (elementos de representação) e sua comparação segundo as características que o produziram.

Resultados

O corpus analisado neste estudo foi composto de quarenta unidades de contexto inicial (entrevistas). Ele foi dividido em 301 unidades de contexto elementar (UCE) e na análise hierárquica descendente, as duas formas de divisão das UCEs (com mais palavras e com menos palavras) consideraram 176 destas UCE, ou seja, 58,47% do total. Isto indica uma estabilidade regular do procedimento de classificação, provavelmente pela heterogeneidade do material textual obtido com as entrevistas.

Este corpus apresenta um total de 13.852 ocorrências e 1.789 palavras diferentes, uma média de 8 ocorrências por palavra. Depois de realizada a redução das palavras às suas raízes, obteve-se 1.019 palavras com possibilidade de análise, 272 palavras instrumentos (conectores) e 54 palavras que representam variáveis. As 1.019 palavras analisáveis ocorreram 5.066 vezes.

Para a construção do dendograma apresentado na Figura 1 e para a análise subseqüente foram consideradas as palavras com freqüência igual ou maior que a freqüência média (ou seja, > 8) e com c2> 3,84. Cada classe é descrita pelas palavras mais significativas (mais freqüentes) e pelas suas respectivas associações com a classe (Qui-quadrado).


Conforme a Figura 1, através da análise hierárquica descendente sobre o material das entrevistas foram obtidas 6 categorias temáticas. As referidas categorias temáticas indicam três aspectos salientes das representações sociais das profissionais do sexo sobre a AIDS: a AIDS como uma doença do outro, a AIDS como uma ameaça para todos e a AIDS como doença de usuário de drogas e de pessoas suspeitas. O conteúdo das seis categorias temáticas será apresentado reunindo-as em pares, conforme suas semelhanças. Alguns trechos das entrevistas mais característicos de cada categoria temática serão apresentados, para a contextualização das palavras (noções).

A AIDS como uma doença relacionada ao "outro"

Este é o aspecto das representações sociais da AIDS predominante na amostra estudada. Ele envolve as classes (categorias temáticas) 1 e 4, bem como 85 unidades de contexto elementar num total de 176 (48,30%).

A categoria temática 1 (ver Figura 1) foi composta por 39 UCEs (22,16% do total classificado). Contribuíram para essa categoria as UCEs produzidas pelas mulheres profissionais do sexo que não têm parceria fixa, que desempenham suas atividades há mais de um ano e menos de três anos e que revelaram ter iniciado na atividade do sexo venal devido a uma relação amorosa frustrada.

O conteúdo destas UCEs revela, principalmente, o risco de infecção pelo HIV AIDS através de contato sexual com os parceiros fixos. As entrevistadas estabelecem relação entre risco e o não uso de preservativo com namorados, maridos e parceiros freqüentes.

Eu não vou usar preservativo com o meu marido. É o caso das mulheres casadas. O cara pinta e borda lá fora, mas quando chega em casa é o marido dela. Então acontece o mesmo com as mulheres de programa. (Entrevistada 10, faixa etária entre 27 e 47 anos, sem parceiro fixo, com filho).

A noção de relacionamento conjugal indicada pelas palavras marido e mulher, aparece como obstáculo ao uso do preservativo. Nesta classe, o marido é responsabilizado, pelas entrevistadas, por expor a saúde da mulher ao risco de infecção pelo HIV. "Se eu tivesse namorado, eu utilizaria preservativo com ele, porque a gente confia desconfiando. Hoje em dia a gente não confia muito no parceiro." (Entrevistada 34, faixa etária entre 27 e 47 anos, sem parceiro fixo, com filho).

Nesta UCE, a entrevistada, que não possui parceiro fixo, supõe a adoção de um comportamento protetor, na hipótese de ter parceiro. As noções namorado, parceiro e preservativo estão inversamente relacionadas com a palavra confiar.

A categoria temática 4 (ver Figura 1) complementa a representação da AIDS como uma doença dos outros, e tem importância devido ao seu número de UCEs típicas (46 - 26,14%). Esta categoria temática foi produzida, principalmente, por mulheres que têm parceiros fixos e com faixa etária entre 27 e 47 anos de idade.

A UCE a seguir é ilustrativa desta classe: "Com ele dá mais prazer. Ele tem o exame dele e eu tenho o meu, porque ele recentemente se separou da mulher." (Entrevistada 35, faixa etária entre 27 a 47 anos, com parceiro fixo, com filho).

A palavra mais importante deste segmento é exame. Esta noção está relacionada com a garantia que se tem para evitar o "HIV". As entrevistadas concebem o teste (exame) como garantia com relação à conduta dos seus parceiros. O exame aparece como forma de controle da conduta sexual do parceiro. A idéia que está contida nesta classe é a de que o teste permite à não utilização do preservativo com o parceiro fixo. A AIDS causa foi associada ao medo, mas a idéia de fazer o exame assegura a mulher, ao menos no imaginário social.

A AIDS como uma ameaça generalizada às pessoas

A categoria temática 2 (ver Figura 1) relaciona-se aos riscos que as entrevistadas percebem de contrair a AIDS, e foi constituída por 27 UCEs (15,34%). Esta classe foi produzida por mulheres que desempenham sua atividade há mais de três anos e que revelaram ter se iniciado na atividade sexual remunerada por causa familiar. Não há, nesta categoria temática, uma homogeneidade de respostas tanto sobre o risco de contrair o HIV, quanto sobre o que é a AIDS.

Uma das palavras mais importantes desta categoria temática é pessoas. As respostas das participantes que contribuíram com esta classe ou categoria temática revelam relatos de pessoas conhecidas das entrevistadas que desenvolveram a AIDS, ou mesmo que já faleceram por causa da síndrome.

Parte das entrevistadas revelou que as pessoas hoje podem viver com a AIDS sem problemas. Por outro lado, outras entrevistadas classificaram a doença como fatal. "Tem gente que vai para aquele estágio terminal de cair cabelos. Eu já vi pessoas. É terrível. Para mim é a pior doença no mundo." (Entrevistada 40, faixa etária entre 27 a 47 anos, com parceiro fixo, com filho).

Algumas disseram que a pessoa que tem AIDS só não morre por sorte. A doença é pensada como uma fatalidade e com todas as suas características mais estereotipadas, como queda de cabelos, perda de peso, entre outras.

As noções doença e mundo aparecem ligadas ao verbo poder, indicando uma concepção de vulnerabilidade, em relação à AIDS, generalizada.

A classe ou categoria temática 5 (ver Figura 1), que também auxilia na compreensão desta segunda dimensão das representações da AIDS (a AIDS representada como uma ameaça a todos), foi constituída por 20 UCEs (11,36%). Não houve nenhuma variável (característica das entrevistadas) que estivesse associada à mesma.

As principais palavras desta classe foram AIDS e doença. Algumas das entrevistadas diferenciaram o HIV da AIDS. Revelaram que a AIDS é uma doença mais avançada que o HIV, mas sem demonstrar compreensão sobre a relação entre o vírus e a síndrome que ele causa. Outras entrevistadas responderam que não sabem exatamente que tipo de doença é essa, mas revelam tratar-se de uma doença que se transmite sexualmente. A noção camisinha, também é muito importante para esta categoria temática, e é apresentada pelas entrevistadas como a forma de se fazer a prevenção da AIDS. Elas revelaram, através das palavras profissão e risco, quanto se perceberam vulneráveis diante da AIDS. O risco foi especificado pela possibilidade do preservativo se romper. A camisinha apareceu aqui como um elemento importante para a prevenção e a segurança das mulheres entrevistadas.

A AIDS como uma doença relacionada a uso de drogas e a pessoas suspeitas.

A categoria temática 3 (ver Figura 1) envolve 26 UCEs (14,77%). Nesta classe também não houve nenhuma variável descritiva das entrevistadas significativamente associada ao conteúdo produzido. A UCE transcrita a seguir é exemplar desta categoria: "O maior risco é aqui em Santa Catarina. Por causa dos travestis, das moças que trabalham em rua, homem casado que sai com essas meninas." (Entrevistada 11, faixa etária entre 27 a 47 anos, com parceiro fixo, com filho).

O risco de pegar AIDS foi relacionado pelas profissionais do sexo a lugares ou a tipos de pessoas. Seja o Estado de Santa Catarina (como no exemplo), ou mesmo a cidade de Itajaí, como também as mulheres ou travestis que fazem programas nas ruas, estes alvos foram e têm sido pensados como vizinhos da doença. As entrevistadas consideraram que as profissionais do sexo que trabalham nas ruas, são as mais vulneráveis frente a AIDS. Além disso, elas atribuem a utilização de drogas a este tipo de profissional do sexo.

A classe ou categoria temática 6 (ver Figura 1) auxilia na compreensão desta dimensão da representação social da AIDS. Ela é composta por 18 UCEs (10,23%), associadas às mulheres que consideraram o sustento da família como motivo para praticarem o sexo venal. "Eu faço oral de camisinha. O risco de pegar AIDS está principalmente em quem usa droga, daí está drogado e nem sabe o que está fazendo." (Entrevistada 38, faixa etária entre 19 a 26 anos, com parceiro fixo, sem filho).

A camisinha, nesta classe, é vista como uma forma efetiva de se prevenir da AIDS e as entrevistadas fazem questão de relacionar o uso de preservativo principalmente no sexo oral. Elas relatam a oferta de mais dinheiro, por parte de clientes, para o não uso de preservativo, o que, segundo elas, é uma preocupação provocada pela profissão.

Em relação às drogas lícitas, há um dado importante que deve ser levado em conta: o uso de bebida alcoólica é comum pelas entrevistadas enquanto realizam o programa. Muitas delas revelaram que evitam ingerir muita bebida alcoólica para não perderem a capacidade de discernimento, o que comprometeria a prevenção da AIDS, enquanto realizam o programa. Efetivamente, o uso de bebida alcoólica pode diminuir os cuidados relativos à prevenção da AIDS, principalmente quando há clientes que não cumprem os acordos previstos no programa. Mas, as entrevistadas revelaram, em grande parte de suas respostas, saberem desses riscos.

Discussão

A primeira dimensão das representações sociais da AIDS (aquela que a concebe como algo do outro) relaciona a doença como um risco ou perigo que deve ser evitado. Este outro difere em função da entrevistada ter ou não parceiro sexual fixo.

A categoria temática 1 envolveu as mulheres sem parceiros fixos, que desempenhavam suas atividades há mais de um e menos de três anos e que revelaram ter se tornado profissional do sexo em função de uma relação amorosa frustrada. Para elas o outro pode ser o parceiro fixo (o marido ou namorado). O fato das mesmas considerarem que começaram a praticar sexo venal por terem em sua história uma desilusão amorosa articula-se com a associação da doença aos parceiros amorosos. Esta forma de pensar a AIDS demonstra, ao inverso, a importância do envolvimento afetivo e da experiência deste grupo com o que se considera prevenção desta epidemia.

Em contrapartida, o grupo de mulheres com parceiro fixo e com idade mais avançada, típico da categoria temática 4, focalizou o cliente como o outro associado a AIDS. Elas estabeleceram uma relação entre o risco e a profissão. Aqui, o perigo também está relacionado com um rompimento de preservativo, que pode ocasionar uma infecção pelo HIV. O teste sorológico é considerado por elas como um cuidado suficiente com os parceiros fixos. Algumas pesquisas (Carvalho, 1998; Tura, 1998) demonstram como as formas de relacionar o cuidado com a AIDS estão pautadas em relações de desconfiança, enquanto que nas relações conjugais (parceria fixa) esta desconfiança fica muito diminuída ou dá lugar à confiança. Resumindo, o perigo de uma infecção pelo HIV é relacionado ao outro, no qual a pessoa não confia.

A segunda dimensão das representações sociais da AIDS, identificada a partir do conteúdo da categoria temática 2, envolve uma concepção alarmante da AIDS. A doença é pensada como uma ameaça generalizada, que está próxima de todas as pessoas. As entrevistadas que compartilham esta concepção, em suas entrevistas, relataram casos de pessoas íntimas ou conhecidas que contraíram o HIV, ou mesmo que faleceram por causa da AIDS. Como as pessoas citadas estão ligadas direta ou indiretamente à atividade do sexo remunerado, esse grupo relaciona AIDS às suas atividades profissionais.

Em contrapartida, a categoria temática 5 indica uma representação sobre a AIDS, enquanto uma doença associada à prática sexual desprotegida (sem preservativo). Foram especificados dois motivos para esta prática arriscada: a falha do preservativo (seu rompimento) e o descumprimento do acordo estabelecido para o programa por parte de alguns clientes (a retirada do preservativo durante a relação sexual).

A terceira dimensão das representações sociais da AIDS, indicada pelas classes ou categorias temáticas 3 e 6, envolve uma concepção da doença enquanto conseqüência do sexo com parceiros suspeitos e do uso de drogas, sobretudo o álcool.

A categoria temática 3 demonstra o entendimento das entrevistadas de que as mulheres que fazem programas nas ruas correm mais risco do que elas. É interessante relembrar que todas as entrevistadas desenvolvem suas atividades em boates ou casas noturnas. Elas diferenciam os clientes que freqüentam as casas onde trabalham dos que procuram as mulheres que fazem o trottoir, ou seja, a denominada prostituição de rua. Consideram que as pessoas que desenvolvem suas atividades na rua estão mais suscetíveis a problemas com clientes, como doenças e uso de drogas. Esta diferenciação também foi verificada por Gaspar (1988), Moraes (1996) e Andrade (1998) que constataram a desvalorização das mulheres que desenvolvem suas atividades nas ruas, por parte das mulheres que estão nas boates.

Com relação à categoria temática 6, a preocupação das entrevistadas com as drogas fica evidente. O foco de preocupação é com a bebida alcoólica, as mesmas consideraram a necessidade de estar o mais sóbria possível para não perder a capacidade de se prevenir da AIDS, pois, conforme elas, muitas vezes, durante o relacionamento, os clientes retiram o preservativo sem a profissional perceber. Estes dados estão de acordo com outras pesquisas (Gaspar, 1988; Moraes, 1996; Silva et al., 1996; Gravato, Tellini, Henriques, Lacerda, Martin & Brito, 1996), que identificam o uso do álcool como fator multiplicador de risco para a saúde.

Considerações Finais

Uma parcela significativa de mulheres profissionais do sexo deixa de usar, ou usa esporadicamente, o preservativo com seu parceiro fixo. Elas elaboram explicações sobre a confiança ou desconfiança dependendo de se no momento têm, ou não, um relacionamento amoroso estável. Assim, quando escolhem uma estratégia para evitar a AIDS, elas explicam de um determinado lugar, posicionando-se frente ao fenômeno, elaborando explicações que dêem conta da realidade que necessitam explicar.

Não foi possível identificar se o tempo de relacionamento nos casos das mulheres com parceiro fixo interfere, ou não, no abandono do preservativo. Foi observado que com três meses de relacionamento algumas participantes já não usavam mais o preservativo com o parceiro fixo. Em contrapartida, em alguns casos, mesmo com um relacionamento conjugal de um ano, algumas ainda mantinham relações sexuais protegidas. Talvez estas características sejam mais influenciadas por questões de ordem da personalidade. Identificou-se que o relacionamento fixo é uma variável que, no caso das entrevistadas, tem relação com o abandono do preservativo. Este estudo demonstra que mesmo havendo um contato direto e mais cotidiano destas profissionais com preservativo, e mesmo sabendo utilizá-lo com eficiência, existem entre elas lógicas de pensamento que justificam a utilização do mesmo com algumas pessoas e não com outras. Os dados apresentados nesta pesquisa indicaram que dimensões psicossociais, como o tipo de relação entre as mulheres e seus parceiros e o grau de envolvimento nesta interação social, são elementos importantes para a compreensão e efetivação de práticas preventivas em relação à AIDS. Disto decorre a necessidade de novos estudos em Psicologia Social, que examinando o contexto amoroso e sexual das relações entre homens e mulheres, podem auxiliar nas estratégias preventivas com relação a esta epidemia.

1 A tradução do francês é nossa.

Recebido em 08.nov.03

Revisado em 14.abr.04

Aceito em 22.jul.04

Leandro Castro Oltramari, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, é doutorando do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da mesma instituição.

Brigido Vizeu Camargo, doutor em Psicologia Social pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris), é professor no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e supervisor do Laboratório de Psicossociologia da Comunicação e da Cognição Social (LACCOS).

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  • Nota
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Aceito
      22 Jul 2004
    • Revisado
      14 Abr 2004
    • Recebido
      08 Nov 2003
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