Síndrome congênita do zika e impactos para as famílias: uma revisão integrativa

Resumo

Em 2015, um espectro de anomalias congênitas, incluindo microcefalia, acometeu recém-nascidos como resultado da transmissão vertical pelo vírus zika, posteriormente denominada síndrome congênita do zika (SCZ). Desde então, cerca de 4 mil crianças foram afetadas em 27 países, sendo o Brasil o mais atingido. Cuidadores familiares também têm sido impactados. Esse estudo analisa publicações científicas que investigam as maneiras como a doença afetou as dinâmicas de vida de cuidadores familiares de crianças com SCZ. Realizou-se uma revisão integrativa de literatura consultando as bases de dados PubMed, Biblioteca Virtual em Saúde e Embase. Após as etapas de triagem, foram identificados 31 artigos. Os principais resultados foram agrupados em quatro categorias: a) impactos sociais que evidenciaram mudanças nas relações familiares, nos projetos de vida e no convívio social; b) impactos subjetivos - sentimentos de resiliência, solidão, luto, sobrecarga, medo, incerteza e relação com a espiritualidade; c) impactos econômicos e materiais - perda de renda, aumento de despesas, mudança de moradia e desemprego e d) impactos na saúde - despreparo dos serviços, renúncia do cuidado de si, modificações dos padrões nutricionais e de sono, repercussão para a saúde mental e níveis de estresse, ansiedade e depressão.

Palavras-chave:
Síndrome congênita de zika; Cuidador familiar; Zika vírus; Família; Revisão

Abstract

In 2015, a range of congenital anomalies resulting from mother-to-child transmission of the zika virus emerged. Later called congenital zika syndrome (CZS), the condition includes microcephaly. Since then, around 4,000 children have been affected in 27 countries, with Brazil accounting for the largest proportion of cases. Family caregivers have also been affected. This study analyzes the literature on caregivers of children with CZS and how the disease has affected their everyday lives. We conducted an integrative review using the PubMed, Virtual Health Library, and Embase databases. Thirty-one articles were identified for analysis after screening. The findings were grouped into four categories: a) social impacts - changes in family relationships, life projects, and social life; b) subjective impacts - feelings of resilience, loneliness, grief, overburdening, fear, uncertainty, and spirituality and religion; c) economic and material impacts - loss of income, increased household expenses, change of residence, and unemployment; and d) health impacts - service unpreparedness, selflessness, self-care, changes in nutritional and sleep patterns, and mental health problems, including stress, anxiety and depression.

Key words:
Congenital zika syndrome; Family caregivers; Zika virus; Family; Review

Introdução

Em 2015, uma epidemia de microcefalia em recém-nascidos ocorreu em várias partes do Brasil. Essa situação alertou o mundo e levou a Organização Mundial de Saúde a declarar emergência de saúde pública de interesse internacional (ESPII)¹.

Estudos reportaram a associação desses casos à infecção por zika vírus durante a gestação^2-4 e nomearam a doença de síndrome congênita do zika (SCZ). Trata-se de uma enfermidade complexa que atinge o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças, resultando em uma variedade nos quadros que incluem desde apresentação inicial assintomática até quadros severos que apresentam uma ou mais alterações, como microcefalia, artrogripose, contraturas, alterações auditivas e oftálmicas, dificuldades de deglutição, de aprendizagem^5,6.

Segundo dados da Organização Panamericana de Saúde, 3.720 casos foram reportados em 27 países das Américas até 2018. O Brasil concentrou 80% deles, seguido pela Colômbia, com 6,7%⁷. O alerta de ESPII foi retirado e a doença não é mais considerada epidêmica. Com isso, reduziu-se a grande visibilidade midiática dos primeiros anos da epidemia, mas os desafios permanecem e outros vão sendo agregados. As crianças seguem crescendo e novas demandas surgem em contextos diversos, como educação, acessibilidade e inclusão social.

Estudos realizados desde a identificação dos primeiros casos têm apontado a necessidade de estruturação da rede de saúde para dar conta da complexidade da doença. Dessa forma, houve muitos avanços na descrição de sinais e sintomas, no desenvolvimento e acurácia de testes diagnósticos, na produção de medicamentos, vacinas e nas estratégias de estimulação infantil. Entretanto, a gama de produções centradas na etiopatologia e nas crianças atingidas tem ofuscado o modo como o diagnóstico da síndrome repercute de maneira direta e indireta na vida das famílias.

Pesquisas com cuidadores familiares de pessoas com deficiência têm ressaltado que a rotina de apoio e assistência pode gerar impactos que incluem diversas mudanças nas configurações de vida. Envolvem sobrecarga física, psicológica, financeira, incertezas quanto ao futuro e dificuldades de acesso a serviços. Aspectos relacionados à capacidade de resiliência e a sentimentos associados aos benefícios do papel de cuidar também são apontados^8-10.

A criação, o cuidado e o acompanhamento do desenvolvimento de crianças com doenças crônicas requerem mobilização e mudanças na dinâmica familiar, amplificando as demandas de atenção. Passados seis anos da identificação dos primeiros casos, que impactos têm sido identificados na vida dessas famílias, considerando que a chegada da criança ocorreu num contexto epidêmico permeado de incertezas e desconhecimento? Como a notícia do diagnóstico e a rotina cotidiana de cuidados de uma criança com SCZ repercutem nas dinâmicas de vida das famílias? Como essas questões têm sido abordadas nas publicações científicas? Este estudo empreendeu uma revisão integrativa da literatura que buscou descrever e analisar as principais evidências a respeito dessas questões.

Método

Realizou-se uma pesquisa descritiva e analítica, de natureza quanti-qualitativa, elaborada por meio de revisão integrativa de literatura. Esse tipo de revisão permite a análise de um determinado fenômeno a partir de estudos com diferentes desenhos metodológicos, possibilitando uma compreensão mais completa do tema de interesse¹¹. Foi utilizada a estratégia “problema, interesse e contexto”, sugerida para revisões que agregam pesquisas não clínicas ou qualitativas^12,13, para delinear a seguinte pergunta de investigação: como a síndrome congênita do zika repercutiu, sob diferentes aspectos, nos contextos de vida dos cuidadores familiares das crianças atingidas?

A busca foi feita em junho de 2021 nas bases PubMed, Embase e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), a partir dos seguintes critérios: (a) artigos originais completos, (b) publicados desde 2015 em (c) periódicos com avaliação por pares, que (d) envolvessem cuidadores familiares de crianças afetadas pela SCZ e (e) cujo enfoque estivesse relacionado a seus contextos de vida e possíveis mudanças ocorridas após o diagnóstico. Não houve restrição por idioma. A estratégia de busca, apresentada no Quadro 1, foi feita por descritores combinados, projetados a partir dos repertórios MeSH (Medical Subject Headings) e DeCS (Descritores em Ciências da Saúde).

Quadro 1
Estratégia de busca com descritores combinados e operadores booleanos

Estratégia PubMed - 99 publicações encontradas
#1 “Zika Virus”[Mesh] OR “Zika Virus Infection”[Mesh] OR (ZikV) OR (Virus, Zika) OR (Infection, Zika Virus) OR (Virus Infection, Zika) OR (ZikV Infection) OR (Infection, ZikV) OR (Fever, Zika) OR (Zika Virus Disease) OR (Disease, Zika Virus) OR (Virus Disease, Zika) OR (Zika Fever) OR (Congenital Zika Syndrome) OR (Congenital Zika Virus Infection) AND #2 “Infant, Newborn”[Mesh] OR “Infant”[Mesh] OR “Child”[Mesh] OR (Children) OR (Infants, Newborn) OR (Newborn Infant) OR (Newborn Infants) OR (Newborns) OR (Newborn) OR (Neonate) OR (Neonates) OR (Infants) AND #3 “Caregivers”[Mesh] OR “Parents”[Mesh] OR “Fathers”[Mesh] OR “Mothers”[Mesh] OR (Caregiver) OR (Carers) OR (Carer) OR (Care Givers) OR (Care Giver) OR (Spouse Caregivers) OR (Caregiver, Spouse) OR (Caregivers, Spouse) OR (Spouse Caregiver) OR (Family Caregivers) OR (Caregiver, Family) OR (Caregivers, Family) OR (Family Caregiver) OR (Parent) OR (Parenthood Status) OR (Status, Parenthood) OR (Step-Parents) OR (Step Parents) OR (Step-Parent) OR (Stepparent) OR (Stepparents) OR (Parental Age) OR (Age, Parental) OR (Ages, Parental) OR (Parental Ages) OR (Father) OR (Mother) OR (Mothers’ Clubs) OR (Club, Mothers’) OR (Clubs, Mothers’) OR (Mother Clubs) OR (Mother’s Clubs) OR (Mothers Clubs) OR (Mothers’ Club)
Estratégia EMBASE Elsevier - 240 publicações encontradas
#1 ‘Zika fever’/exp OR (infection with Zika virus) OR (Zika virus infection) OR (ZIKV infection) AND #2 ‘newborn’/exp OR ‘infant’/exp OR ‘child’/exp OR (children) OR (animals) OR (newborn) OR (child) OR (newborn) OR (full term infant) OR (human neonate) OR (human newborn) OR (infant, newborn) OR (neonatal animal) OR (neonate) OR (neonate animal) OR (neonates) OR (newborn animal) OR (newborn baby) OR (newborn child) OR (newborn infant) OR (newly born baby) OR (newly born child) OR (newly born infant) AND #3 ‘caregiver’/exp OR ‘parent’/exp OR ‘father’/exp OR ‘mother’/exp OR (care giver) OR (caregivers) OR (carer) OR (carers) OR (family caregiver) OR (family caregivers) OR (biological parente) OR (parentes) OR (fatherhood) OR (fathers) OR (motherhood) OR (mothering) OR (mothers)
Estratégia BVS - 327 publicações encontradas
#1 Mh:”Zika virus” OR Mh:”Infecção por Zika virus” OR (Zika virus) OR (Zika Virus) OR (Virus Zika) OR (Virus Zika) OR (Vírus Zika) OR (Vírus da Febre Zika) OR (Vírus da Zika) OR (Vírus de Zika) OR (ZIKV) OR (ZikV) OR (Zikavirus) OR MH:B04.820.250.350.995$ OR (Infecção por Zika virus) OR (Zika Virus Infection) OR (Infección por el Virus Zika) OR (Infection par le virus Zika) OR (Doença pelo Vírus Zika) OR (Doença pelo Zika virus) OR (Doença pelo Zikavirus) OR (Doença por Vírus Zika) OR (Doença por Zika virus) OR (Febre Zika) OR (Febre pelo Vírus Zika) OR (Febre por Vírus Zika) OR (Febre por Zika) OR (Febre por Zika virus) OR (Infecção Congênita por Zika) OR (Infecção pelo Zika virus) OR (Infecção pelo Zikavirus) OR (Infecção por Vírus Zika) OR (Infecção por ZIKV) OR (Infecção por Zika) OR (Infecção por Zikavirus) OR (Síndrome Congênita de Zika) OR MH:C01.920.500.990$ OR MH:C01.925.081.990$ OR MH:C01.925.782.350.250.990$ OR MH:SP4.012.183.312$ AND #2 Mh:”Criança” OR Mh:”Recém-Nascido” OR Mh:”Lactente” OR (Criança) OR (Child) OR (Niño) OR (Enfant) OR (Crianças) OR MH:M01.060.406$ OR (Recém-Nascido) OR (Infant, Newborn) OR (Recién Nacido) OR (Nouveau-né) OR (Criança Recém-Nascida) OR (Crianças Recém-Nascidas) OR (Lactente Recém-Nascido) OR (Lactentes Recém-Nascidos) OR (Neonato) OR (Neonatos) OR (Recém-Nascido (RN)) OR (Recém-Nascidos) OR MH:M01.060.703.520$ OR (Infant) OR (Lactante) OR (Nourrisson) OR (Lactentes) OR MH:M01.060.703$ AND #3 Mh:”Cuidadores” OR Mh:”Pais” OR Mh:”Pai” OR Mh:”Mães” OR (Cuidadores) OR (Caregivers) OR (Cuidadores) OR (Aidants) OR (Cuidador) OR (Cuidador Familiar) OR (Cuidador de Família) OR (Cuidadores Cônjuges) OR (Cuidadores Familiares) OR (Cuidadores de Família) OR (Cônjuges Cuidadores) OR (Familiar Cuidador) OR (Familiares Cuidadores) OR (Outro Apoiador) OR MH:M01.085$ OR MH:M01.526.485.200$ OR MH:N02.360.200$ OR (Pais) OR (Parents) OR (Padres) OR (Parents) OR (Madrasta) OR (Padrasto) OR (Padrastos) OR MH:F01.829.263.500.320$ OR MH:I01.880.853.150.500.340$ OR MH:M01.620$ OR (Pai) OR (Fathers) OR (Padre) OR (Pères) OR MH:F01.829.263.500.320.100$ OR MH:I01.880.853.150.500.340.210$ OR MH:M01.620.390$ OR (Mães) OR (Mothers) OR (Madres) OR (Mères) OR MH:F01.829.263.500.320.200$ OR MH:I01.880.853.150.500.340.270$ OR MH:M01.620.630$

• Fonte: Autoras.

Após a supressão das repetições, foi realizada uma triagem a partir da leitura dos títulos, seguida por leitura dos resumos e então a leitura completa. Em cada etapa foram selecionados os artigos de acordo com a pergunta de pesquisa e os critérios de inclusão. Os artigos selecionados foram incluídos no gerenciador de referências Mendeley.

As autoras formularam três tabelas para extração, síntese e organização das seguintes informações: a) título, dados do periódico, ano de publicação, idiomas disponíveis, autoria e afiliação; b) tipo de abordagem metodológica, instrumento, período, local de coleta dos dados e participantes recrutados e c) objetivos dos estudos e principais resultados encontrados. Os resultados dos estudos foram ainda subgrupados em quatro categorias de impactos: sociais, econômicos e materiais, subjetivos e para a saúde.

O presente estudo dispensa aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, uma vez que utilizou dados de estudos primários já publicados e disponíveis em plataformas digitais.

Resultados

As estratégias de busca identificaram 666 referências, sendo 99 na PubMed, 240 na Embase e 327 na BVS. Cinco referências foram excluídas por não apresentarem informações suficientes para a triagem, duas por serem publicadas em ano anterior ao critério de inclusão e 52 por duplicata. A triagem por leitura dos títulos e resumos resultou em 41 referências para leitura completa, das quais 31 foram consideradas elegíveis para análise (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma de seleção dos artigos.

Características gerais dos artigos

O Quadro 2 apresenta características resumidas dos artigos selecionados. Apenas um estudo foi desenvolvido fora do Brasil, na área rural do Caribe colombiano¹⁴. Os demais, no que se refere ao local de coleta dos dados, estão assim distribuídos: Região Nordeste - 23 artigos, predominando os estados de Pernambuco^15-21 e Bahia^22-27; Região Sudeste - quatro artigos divididos nos estados do Rio de Janeiro^28,29, Minas Gerais³⁰ e Espírito Santo³¹; Região Centro-Oeste - um artigo em Goiás³². Um artigo utilizou dados coletados simultaneamente em estados nas regiões Nordeste e Sudeste³³, outro usou como fonte de dados vídeos disponíveis na plataforma de vídeos YouTube, não especificando as localidades onde foram produzidos³⁴. A coleta de dados dos estudos foi efetuada majoritariamente entre 2017 e 2018 (22 artigos).

Quadro 2
Características gerais dos artigos selecionados

Referência	Revista e idioma de publicação	Objetivo	Tipo de estudo e instrumentos	Local, período de coleta dos dados e participantes	Tipos de impactos identificados
Bulhões et al (2020)36	Esc Anna Nery Português e inglês	Investigar as repercussões psíquicas em mães de crianças com complicações decorrentes da síndrome congênita pelo zika vírus	Métodos mistos Questionário sociodemográfico, Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) e entrevista semiestruturada	Estado do Nordeste do Brasil 2017 e 2018 15 mães	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos . Saúde
Bulhões et al. (2020)21	Texto Context - Enferm Português e inglês	Compreender as histórias e vivências das mães que tiveram filhos com a síndrome congênita pelo zika vírus	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas individuais - história oral temática	Goiana, PE, Brasil 2017 e 2018 13 mães	. Sociais . Subjetivos . Saúde
Cajuhi et al. (2020)26	Rev Enferm UFPE Português e inglês	Descrever experiências relacionadas à vivência de cuidadoras sobre o cuidado de crianças com microcefalia associada ao zika vírus	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	Bahia, BA, Brasil 2019 2 mães	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Calazans et al. (2020)17	Rev Bras Enferm Português e inglês	Revelar os problemas adaptativos da mulher abandonada pelo progenitor da criança após SCZ, à luz do MAR (Modelo de Adaptação de Roy)	Qualitativo Entrevistas	Recife, PE, Brasil 2017 6 mães abandonadas pelo genitor	. Sociais . Subjetivos . Saúde
Campos et al. (2018)38	Rev Da Rede Enferm Do Nord Português e inglês	Compreender desafios e perspectivas de mães de crianças com microcefalia pelo vírus zika	Qualitativo Entrevista semiestruturada Questionário sociodemográfico e histórico pré e perinatal	Fortaleza, CE, Brasil 2017 e 2018 12 mães	. Sociais . Subjetivos
Costa et al. (2021)41	Rev Paul Pediatr Português e inglês	Investigar a percepção da qualidade de vida das mães de crianças portadoras de síndrome congênita (microcefalia) associada ao zika vírus	Qualitativo Questionário sociodemográfico Entrevistas semiestruturadas	MA, Brasil 2015 a 2018 10 mães	. Sociais .Econômicos/materiais
Dias et al. (2019)25	Rev Enferm UFPE Português	Descrever sentimentos e percepções de pais de crianças com microcefalia por zika vírus	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	interior da Bahia, BA, Brasil 2017 4 pais	. Sociais . Subjetivos
Félix e Farias (2019)37	Cad Saude Publica Português e inglês	Analisar o impacto do diagnóstico de microcefalia do bebê na função paterna	Qualitativo Questionário Entrevista semiestruturada	interior da Paraíba, PB, Brasil 2016 5 pais	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos . Saúde
Freire et al. (2018)28	Cad Saude Publica Português e inglês	Discutir os impactos na promoção da saúde mental nas famílias a partir do diagnóstico de infecção pelo vírus zika na gestante e/ou a presença da síndrome congênita do zika vírus (SCZV) na criança. Favorecer uma reflexão a respeito da construção do vínculo mãe-bebê nesse cenário.	Qualitativo Observação participante durante atendimentos em unidade de saúde	RJ, Brasil 2016 9 mães com pais, 10 mães com outros familiares ou com amiga, 1 mãe sozinha	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Freitas et al. (2019)32	Rev Enferm Atual Derme Português e inglês	Avaliar o impacto familiar em pais de crianças diagnosticadas com microcefalia pelo Zika vírus	Quantitativo Questionário sociodemográfico Questionário psicossocial ocupacional e de saúde Questionário sobre contexto familiar Escala de impacto familiar	Goiânia, GO, Brasil 2017 68 mães, 8 pais	. Sociais . Subjetivos
Freitas et al. (2020)31	Int J Gynecol Obstet Inglês	Descrever as repercussões, na ótica das mães cuidadoras, da síndrome congênita do zika confirmada (CZS) em seus filhos	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	ES, Brasil 2017 25 mães	. Sociais . Subjetivos . Saúde
Hamad e Souza (2019)39	Esc Anna Nery Português e inglês	Compreender os significados de ter um filho com a síndrome congênita do zika vírus na experiência de mulheres e, a partir disso, o que elas diriam a outras que se encontrem na mesma situação	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	diferentes cidades da Paraíba, PB, Brasil 2017 40 mães	. Sociais . Subjetivos
Kotzky et al. (2019)43	J Dev Behav Pediatr Inglês	Examinar sintoma depressivo severidade e demandas de cuidados entre os cuidadores primários de crianças, de 15 a 26 meses, com evidências de infecção congênita pelo vírus zika (ZVI)	Quantitativo ASQ-3 - Avaliação de atraso do desenvolvimento PHQ-9 - Questionário de saúde - avaliação de risco de depressão NSCH - demandas de apoio e cuidados (Pesquisa Nacional de Saúde Infantil)	PB e CE, Brasil 2017 143 mães, 7 outros familiares	.Econômicos/materiais . Saúde
Kuper et al. (2019)33	PLoS Negl Trop Dis Inglês	Explorar a associação de ter um filho afetado por CZS com depressão, ansiedade e estresse, e para avaliar se essas relações são protegidas por apoio social e status socioeconômico	Quantitativo Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse - DASS-21, Escala de Apoio Social do Estudo de Resultados - MOS-SSS Dados sociodemográficos	Recife, PE e Rio de Janeiro, RJ, Brasil 2017 e 2018 163 cuidadores SCZ, 324 cuidadores não SCZ (geralmente mães)	. Sociais . Saúde
Lima e Souza (2021)35	Cienc e Saude Coletiva Português	Avaliar o papel mediador da autoeficácia parental (AEP) entre os fatores socioambientais e a saúde mental das mães de crianças com síndrome da zika congênita	Quantitativo Questionário Sociodemográfico; Escala de Afetos Positivos e Negativos; Escala de Satisfação com a Vida; Escala de Avaliação da Fadiga; Questionário de Saúde Geral; Escala de Autoeficácia Parental	CE, Brasil Período não informado 69 mães	. Saúde
Lima et al. (2018)27	Rev Baiana Enferm Português e inglês	Compreender as vivências de mães que tiveram filhos com microcefalia.	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	Feira de Santana, BA, Brasil 2017 8 mães	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Lima et al. (2020)19	Rev Bras Enferm Português e inglês	Identificar elementos que contribuem para fortalecer o sistema familiar da criança com síndrome congênita do zika vírus à luz da teoria de Betty Neuman	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	Recife, PE, Brasil 2017 13 mães	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos . Saúde
Melo et al. (2020)15	Viruses Inglês	Analisar alguns dos impactos sociais experienciados por mulheres envolvidas no cuidado de crianças com síndrome congênita do zika	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	Região Metropolitana do Recife, PE, Brasil 2017 16 mães, 4 avós, 2 tias, 1 bisavó	. Sociais . Econômicos/materiais . Subjetivos
Mendes et al. (2020)29	Cien Saude Colet Português e inglês	Analisar as repercussões trazidas pelo diagnóstico na vida das famílias atendidas num Instituto de referência	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	RJ, Brasil 2017 e 2018 15 mães	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Menezes et al. (2019)30	Av En Enfermería Português	Compreender como os familiares de crianças diagnosticadas com microcefalia pelo vírus zika reagiram emocionalmente ao diagnóstico e o impacto desse evento na dinâmica familiar.	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	Montes Claros, MG, Brasil 2017 5 mães	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Pereira et al. (2021)44	Matern Child Health J Inglês	Examinar níveis de estresse parental em cuidadores primários de criança com evidência de SCZ e sua associação com atrasos no desenvolvimento	Quantitativo Questionário Hammersmith Infant Neurological Examination (HINE) - avaliação de função neurológica Ages and Stages (ASQ) - avaliação de desenvolvimento infantil Parenting Stress Index (PSI-SF) - avaliação de depressão e estresse parental	João Pessoa e Campina Grande, PB e Fortaleza, CE, Brasil 2017 146 cuidadores primários	.Econômicos/materiais . Saúde
Queiroz (2019)23	Estudos de Psicanálise Portuguës	Refletir sobre a experiência de atendimento clínico a famílias acometidas com SCZ	Qualitativo Atendimento clínico psicanalítico	BA, Brasil não informado Famílias	. Subjetivos . Saúde
Reis et al. (2020)42	Am J Occup Ther Inglês	Investigar mudanças nos papéis ocupacionais e seus efeitos na saúde mental de mães que têm um filho com síndrome congênita do zika	Quantitativo Questionário status demográfico e socioeconômico, condição de saúde mental e papéis ocupacionais antes do nascimento e no momento de coleta SRQ-20 (avalia desordens mentais comuns DMC) Lista de verificação de funções ocupacionais	AL, Brasil 2017 e 2018 40 mães	.Econômicos/materiais . Saúde
Romero-Acosta et al. (2020)14	Behav Sci (Basel) Inglês	Explorar as percepções sobre ZIKV e saúde mental em mulheres expostas ao ZIKV durante a gravidez na Colômbia	Métodos mistos Entrevistas estruturadas The State-Trait Inventário de ansiedade (STAI) A Escala de Autoavaliação de Depressão Questionário de Saúde Geral Questionário sociodemográfico usando um índice de Hollingshead com base em educação parental, ocupação etc.	Area Rural do Caribe Colombiano, Colômbia 2016 a 2018 17 mulheres expostas ao Zika vírus, sendo 9 mães de crianças com SCZ	. Sociais . Subjetivos . Saúde
Sá et al. (2017)40	Rev Bras em Promoção da Saúde Português e inglês	Identificar as necessidades parentais quanto ao cuidado para o desenvolvimento de lactentes e crianças com microcefalia causada pelo vírus da zika	Qualitativo Grupos focais	Fortaleza, CE, Brasil 2016 23 responsáveis	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos . Saúde
Sá et al. (2020)16	Cad Saude Publica Português	Analisar a dinâmica familiar de criança com a síndrome congênita associada ao zika vírus (SCZV) no município de Petrolina, Pernambuco.	Qualitativo Entrevistas semiestruturadas	Petrolina, PE, Brasil 2017 9 mães, 5 outros familiares	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Scott et al. (2018)20	Interface Commun Heal Educ Português e inglês	Compreender como diferentes contextos (descoberta, casa, unidades de saúde, assistência social, associações) contribuem para formar noções sobre maternidade e infância	Qualitativo Pesquisa etnográfica, diários de pesquisa, entrevistas aprofundadas, pesquisas documentais e na internet	PE, Brasil Desde 2016 Pessoas das redes familiares e dos serviços do estado	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos . Saúde
Souza et al. (2019)24	Rev Baiana Enfermagem Português e inglês	Analisar o itinerário terapêutico de famílias de crianças com microcefalia no interior da Bahia	Qualitativo Entrevista semiestruturada e dados sociodemográficos	Feira de Santana, BA, Brasil 2017 6 mães, 3 pais	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Vale et al. (2019)34	Nurs Inq Inglês	Compreender a experiência e percepções de famílias com bebês diagnosticados com microcefalia relacionada ao zika retratados em vídeos online	Qualitativo Netnografia (etnografia utilizando a internet)	internet 2015 e 2016 18 vídeos de familiares publicados no YouTube	. Sociais . Subjetivos . Saúde
Vale et al. (2020)22	Rev Gaúcha Enferm Português e inglês	Compreender as experiências e práticas de cuidado das mães de crianças com a síndrome congênita do zika	Qualitativo Entrevistas em profundidade	Feira de Santana, BA, Brasil 2017 10 mães, 1 irmã	. Sociais .Econômicos/materiais . Subjetivos
Williams et al. (2019)18	Disabil Rehabil Inglês	Examinar o bem-estar psicológico de cuidadores primários de bebês e crianças com Síndrome congênita do zika (CZS) e as funções dos recursos familiares, estresse parental e estratégias de enfrentamento na adaptação do cuidador.	Quantitativo Questionário Ansiedade de Beck Questionário Depressão de Beck II Questionário Dependencia infantil / estado de saúde Índice de estresse parental Escala pessoal orientada para crises pessoais Escalas de recursos familiares	Recife, PE, Brasil 2018 46 mães, 3 avós, 1 pai	. Saúde

• Fonte: Autoras.

A abordagem qualitativa foi utilizada em 71% (22) dos artigos; 23% (7) foram desenvolvidos por métodos quantitativos e 6% (2) utilizando métodos mistos^14,35. Nos estudos qualitativos, a entrevista semiestruturada foi o procedimento de coleta mais empregado, aparecendo também um estudo de abordagem clínica psicanalítica²³ e dois estudos etnográficos^20,34. As pesquisas quantitativas utilizaram diferentes instrumentos de coleta, a maioria deles usou escalas padronizadas relacionadas aos objetivos propostos.

Os dados primários foram fornecidos por familiares cuidadores de crianças afetadas pela SCZ. As mães foram as principais participantes, sendo referidas explicitamente em 21 artigos. Apenas dois artigos enfocaram aspectos relacionados à paternidade e ambos tiveram exclusivamente os pais como participantes^25,36.

Periódicos brasileiros concentraram a maioria dos artigos (22), sendo 18 disponibilizados de forma bilíngue (inglês e português). As revistas internacionais divulgaram os textos exclusivamente em língua inglesa, à exceção do artigo de pesquisadores brasileiros publicado em periódico colombiano e divulgado em português³⁰. Entre as áreas dos periódicos, destacam-se a enfermagem, com 14 artigos (45%), e a saúde coletiva, sete artigos (22%).

Os artigos foram publicados predominantemente em parceria (média de seis autores por artigo) e, de maneira geral, envolveram mais de uma instituição, nacional ou internacional. Artigos de brasileiros com participação estrangeira envolveram pesquisadores dos Estados Unidos ou do Reino Unido. Apenas um artigo¹⁴ envolveu exclusivamente pesquisadores de fora do Brasil, sendo a autoria de pesquisadores colombianos e espanhóis.

Síndrome congênita do zika vírus e impactos para as famílias

Os estudos analisados tinham entre seus objetivos compreender as experiências, vivências e percepções relacionadas à dinâmica familiar e aos impactos decorrentes do diagnóstico de SCZ. Aspectos como saúde mental, qualidade de vida, problemas adaptativos, necessidades parentais, estratégias de enfrentamento e itinerários terapêuticos também foram investigados.

Os principais resultados identificados foram agrupados e descritos considerando diferentes aspectos: sociais, subjetivos, econômicos/materiais e de saúde. Embora tais aspectos estejam inter-relacionados, optou-se por uma sistematização desses resultados em separado, dando destaque aos elementos mais relevantes do contexto de vida das famílias.

Impactos sociais

A ocorrência da SCZ nas crianças repercutiu diretamente na vida das famílias, em especial das mulheres, mães das crianças, gerando alterações na rotina e na dinâmica familiar. A sobrecarga, exaustão, falta de tempo e sobreposição de atribuições domésticas e de cuidado experienciadas pelas mulheres foi pontuada em diversos artigos^{16,17,21,22,25,27-32,35,37,38}.

Scott et al.²⁰ sinalizaram para uma atribuição quase obrigatória das mulheres ao papel do cuidar, incidindo em isolamento doméstico e na interrupção de projetos pessoais. Melo et al.¹⁵ analisaram esse processo utilizando o conceito de ruptura biográfica, comumente utilizado em estudos de antropologia médica para interpretação das consequências do adoecimento crônico. As autoras destacaram que, embora essas mulheres não estejam necessariamente doentes, recaem sobre elas algumas consequências do adoecimento de seus filhos.

Identificou-se a interrupção de projetos pessoais, como trabalho, emprego e carreira, e mudanças na rotina e nos hábitos. Observa-se a frequente renúncia ao cuidado de si, abandono de momentos de descanso e repouso, bem como a renúncia às atividades de sociabilidade, antes compartilhada com amigos e familiares^{16,21,22,25,26,31,35,39,40}. O suporte social é compartilhado basicamente por mulheres de diferentes gerações: avós, tias e irmãs das crianças aparecem como principais cuidadoras no âmbito familiar. Dar continuidade aos projetos pessoais nesse contexto só é possível quando essa rede de mulheres é acionada, recaindo também sobre elas algumas limitações¹⁵.

Nessa sociabilidade solidária entre mulheres, Scott et al.²⁰ destacaram o papel das associações de mães que atuam como rede de apoio complementar. Por meio delas é possível ampliar o escopo de respostas e lidar melhor com a ausência, insuficiência ou ineficiência das ações estatais¹⁵. Essa articulação entre mulheres e a consequente mobilização política também foram destacadas por Mendes et al.²⁹ como um recurso de fortalecimento individual e coletivo. Sá et al.¹⁶, Kuper et al.³³ e Lima et al.¹⁹ destacam como essa rede de apoio pode funcionar como um fator de proteção para as famílias e de cuidado com os filhos. Ensinar o cuidado para outras pessoas da família é fundamental para que este possa ser mantido mesmo na ausência das mães²². Alguns autores^32,24,29,39 apontaram a concentração das atividades de cuidado nos pais e a dificuldade de encontrar pessoas de confiança para desempenhar essas atividades. Os estudos destacam também que a incompreensão do fardo que esse cuidado representa pode resultar na falta de rede de apoio familiar e no consequente desamparo para os cuidadores.

O impacto na dinâmica familiar e do casal foi pontuado por alguns estudos, que identificaram a interrupção do projeto de ter outros filhos³², o cuidado diferenciado com relação aos irmãos^21,36 e o distanciamento ou a aproximação do parceiro que resultavam em apoio ou conflitos e rupturas^{20,21,26,27,30,31,36,39}.

No que se refere à participação dos pais/maridos/parceiros, esses se mostram menos propensos ao envolvimento no trabalho doméstico e de cuidado^20,30,36. Quando ocorre, essa participação é percebida como uma atitude que deve ser valorizada e elogiada - em contraponto à naturalização das mulheres nesse lugar do cuidado²⁰. Em outros casos, observa-se o sacrifício da função paterna, diante do argumento de manter o papel de provedor e conciliar vida familiar e trabalho^30,36.

Impactos subjetivos

A maioria dos estudos identifica sentimentos diversos acionados no contexto de vida dessas famílias (especialmente as mães), desde o momento da notícia do diagnóstico do filho e ao longo do seu processo de desenvolvimento. Os sentimentos identificados nos artigos foram agrupados na nuvem de palavras condensada na Figura 2. Destacam-se emoções como culpa, medo, solidão, incerteza, estresse, ansiedade, adaptação e preconceito. Esses sentimentos se dão diante da experiência de viver uma epidemia que acometeu recém-nascidos e que acarreta deficiência e atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor das crianças. Soma-se a isso a falta de informações sobre prognóstico, de estratégias para lidar com a situação e o pouco suporte estatal. O artigo de Hamad et al.³⁸ deu destaque a sentimentos positivos, como paciência, amor, força, superação e adaptação a uma situação inesperada. Força de vontade e determinação foram destacados no artigo de Lima et al.²⁷, e solidariedade e resiliência apontadas por Melo et al.¹⁵

Figura 2
Sentimentos elencados nos artigos analisados.

O impacto do diagnóstico nas famílias foi sinalizado de diversas maneiras em 14 artigos^{14,15,20-23,25,27,29-31,34,36,37}. Agregando algumas das pontuações dos artigos de Melo et al.¹⁵, Vale et al.³⁴, Scott et al.²⁰ e Félix et al.³⁶, percebe-se como essa experiência vem de encontro à expectativa familiar de uma maternidade prazerosa. A imagem da criança com deficiência contrasta com o ideário do filho esperado, acionando sentimentos como luto e perda. Vale et al.³⁴ pontuaram que famílias que tiveram o diagnóstico por exame de imagem durante a gestação viveram uma relativa antecipação de sentimentos como fracasso, perda e dor. Ao mesmo tempo, esses puderam dar lugar ao sentimento de vitória ao ouvir o choro no nascimento. O artigo de Félix et al.³⁶ discute a função paterna e a invisibilidade dos pais, que também podem ser muito atingidos com a notícia do diagnóstico. Os autores enfatizam a possibilidade de ocorrência de depressão nesse contexto.

A adaptação familiar se sobrepõe a todos os âmbitos da vida²⁹, e as experiências cotidianas trazem incertezas, surpresas e aprendizados compartilhados^15,22 (“aprender na raça”, “aprendizado pela experiência”). Esse conhecimento obtido na prática cotidiana do cuidado muitas vezes contraria orientações de profissionais de saúde, que em vários momentos demonstraram falta de habilidade, pouco conhecimento e prognósticos equivocados^14,15,31.

A relação com a espiritualidade/religiosidade foi destacada ora como recurso para o apoio familiar e fonte de força para enfrentamento dos momentos difíceis^{15-17,19,21,24,25,27,29,36,38}, ora como recurso interpretativo relacionado a punição, propósito divino e/ou sacralização das crianças e da maternidade^15,28,34,38.

Impactos econômicos e materiais

A perda de trabalho remunerado/emprego foi referida como uma das principais consequências associadas ao nascimento de uma criança com SCZ no Brasil^{15,16,20,24,26-28,35,39-42}. A demanda por cuidados, associada à necessidade de diversificados e constantes atendimentos de saúde, repercutiu nas atividades ocupacionais das famílias. As necessidades dos filhos com SCZ muitas vezes levam à interrupção do trabalho, seja por decisão própria ou dos empregadores.

O aumento nas despesas também foi reportado por alguns estudos^{16,20,27-30,36,39,40}. Junto com o desemprego, a convivência com a SCZ ocasionou a diminuição dos rendimentos familiares e maior empobrecimento¹⁵, repercutindo negativamente na saúde mental das mães⁴¹. Kotzky et al.⁴², compararam famílias cujas crianças apresentaram atrasos no desenvolvimento e aquelas sem atraso. Constataram que cerca de 72% das primeiras e 31% das segundas apresentaram dificuldade para cobrir as despesas básicas, demonstrando que o grau de comprometimento da SCZ parece ser um fator importante na avaliação desse impacto. A permanência no emprego foi apontada por Lima et al.¹⁹ como fator de proteção que contribui para o bem-estar e o fortalecimento familiar.

O aumento nos gastos esteve relacionado a uma série de adaptações: reorganização do espaço doméstico ou mudança de moradia/migrações para redução de custos e melhor acesso a programas sociais; compra de medicamentos e insumos; deslocamento para serviços de saúde; alimentação especial; brinquedos para estimulação das crianças, entre outros^15,16,20. Frente à dificuldade de acesso aos diferentes recursos, algumas famílias improvisaram alternativas para os instrumentos recomendados por médicos e terapeutas²⁰.

Essa nova realidade levou à busca por incremento de renda e à necessidade de mobilização de recursos financeiros, materiais e relacionais¹⁵. Nesse âmbito, destacam-se algumas políticas sociais e articulação de apoios que possibilitaram perspectivas para renda, moradia e trabalho, ainda que precárias. Quanto à mudança de moradia, Sá et al.¹⁶ destacaram a existência de políticas sociais que incluíram as famílias em programas de concessão de moradia, sendo esse um aspecto positivo para as famílias de baixa renda e sem casa própria. A articulação de apoios e parcerias capitaneados pelas associações de mães repercutiu em ganhos materiais ou alternativas de renda por meio da oferta de cursos e capacitações²⁰.

O Benefício de Prestação Continuada, vinculado à Política Nacional de Assistência Social, foi o principal mecanismo estatal de acesso a renda concedido às famílias. Entretanto, alguns artigos destacaram a dificuldade no acesso ao benefício^35,43. Scott et al.²⁰ ressaltaram como os critérios de acesso podem implicar dificuldades na proteção previdenciária e nas possibilidades de trabalho para os familiares.

Impactos para a saúde

À exceção do estudo de Freitas et al.³², todos aqueles que utilizaram métodos quantitativos e mistos apresentaram resultados que demonstram impactos para a saúde mental: piora da saúde mental geral, desordens mentais comuns, depressão, ansiedade e estresse^{14,18,33,35,41-44}.

Lima e Souza⁴⁴ encontraram correlação entre maior número de filhos e níveis mais baixos de saúde mental das mães. Escores de bem-estar subjetivo relacionado a afetos negativos e fadiga também foram relacionados a uma pior saúde mental dessas mulheres. Os autores sugerem que a autoeficácia parental (AEP - crença de que suas habilidades maternas/capacidade de enfrentamento promovem cuidados bem-sucedidos), quando percebida em níveis maiores, atua como mediadora e fator compensatório nos níveis de saúde mental dessas mães. Esse resultado indica que o uso de estratégias de fortalecimento da AEP por profissionais de saúde pode ser uma ferramenta de cuidado para a saúde mental das famílias.

Transtornos mentais comuns foram identificados em mais da metade das mães investigadas por Reis et al.⁴¹ Estes autores identificaram associação entre perda de trabalho remunerado após o nascimento do filho com SCZ e transtornos mentais comuns. Utilizando o mesmo instrumento, Bulhões et al.³⁵ identificaram que 10 das 15 mães participantes de seu estudo apresentavam sintomas psiquiátricos relacionados a transtornos mentais comuns. Esse estudo foi complementado por uma abordagem qualitativa que apresentou contextos de vida que corroboraram o predomínio do humor depressivo/ansioso, sintomas somáticos, decréscimo da energia vital e pensamentos depressivos.

Graus de estresse alto ou clinicamente relevantes foram identificados em 13% das cuidadoras familiares investigadas por Pereira et al.⁴⁴ O estudo também identificou relação desse estresse com a perda das funções ocupacionais, tal como Reis et al.⁴¹ Quando comparadas a cuidadoras com graus de estresse normais, as mulheres com grau de estresse elevado apresentavam quase cinco vezes mais chances de ter dificuldades de manter-se no emprego e de cobrir despesas básicas.

Williams et al.¹⁸ identificaram graus variados de depressão em cuidadores familiares, majoritariamente mães, sendo que 40% apresentaram níveis leves a graves. Esses sintomas foram mais comuns do que ansiedade (24% leves a moderados). Os autores também observaram associação entre os níveis de ansiedade e depressão com menor capacidade de recursos familiares e maior estresse parental. Graus severos e moderadamente severos de depressão também foram encontrados em 17% dos cuidadores familiares de crianças com SCZ avaliados por Kotzky et al.⁴² Nesse artigo, sintomas depressivos estavam associados a menos recursos econômicos e maior atraso no desenvolvimento das crianças. Adicionalmente, identificou-se diminuição da energia, cansaço e alterações nos padrões de alimentação e fome das participantes do estudo.

Kuper et al.³³, ao comparar mães de crianças com e sem SCZ, observam que níveis de depressão, ansiedade e estresse são comuns em mães de crianças pequenas no Brasil. Entretanto, observaram que mães de crianças com SCZ são particularmente vulneráveis a problemas de saúde mental, e que os recursos de apoio social funcionam como fator de proteção. Na pesquisa conduzida na Colômbia por Romero-Acosta¹⁴ foram identificados piores níveis de saúde geral, depressão e ansiedade em mulheres cujos filhos apresentaram microcefalia. O acompanhamento das famílias indicou que os níveis de autopercepção de saúde e ansiedade pioraram após o segundo ano de vida das crianças.

Artigos de abordagem qualitativa também sinalizaram impactos para a saúde. Alguns reforçaram questões de saúde mental, como estresse^16,30, perda de controle¹⁶, reação depressiva²³ e sofrimento mental³¹. Identificaram ainda impactos para a saúde física, como sobrecarga, desgaste físico, problemas nos padrões de nutrição, atividade, repouso¹⁷, cansaço e outros adoecimentos³⁶.

Aspectos relacionados à estrutura dos serviços de saúde e à oferta de serviços foram mencionados. Scott et al.²⁰ explicitaram falhas na oferta dos serviços estatais que repercutem na dificuldade de acesso e cuidado. Felix e Farias³⁶ indicaram como as políticas/serviços de acompanhamento psicossocial para essas famílias não costumam incluir o pai das crianças. E Freitas et al.³¹ indicaram a dificuldade de acesso aos serviços de saúde para famílias que residem distantes dos grandes centros, assim como a presença de sentimento de culpa nos cuidadores, reforçados pela postura de profissionais de saúde.

Em sentido oposto, Vale et al.³⁴ apontaram a diminuição do sentimento de culpa em decorrência do acolhimento e das orientações dos profissionais de saúde. O artigo de Bulhões et al.²¹ ressaltou a importância da oferta de serviços de grupos terapêuticos como estratégia de acolhimento e cuidado às famílias, e Lima et al.¹⁹ destacaram que a frequência e os atendimentos prestados pelos profissionais de saúde podem ser benéficos para o fortalecimento familiar.

Discussão

Apesar da intensa produção sobre zika⁴⁵, o número de publicações voltadas para o contexto das famílias de crianças atingidas pela transmissão congênita do vírus é ainda restrito. Nos artigos analisados, a escolha predominante foi por métodos investigativos qualitativos, que dão lugar a fala, experiências e interpretações da realidade dos sujeitos envolvidos. Esses métodos parecem ganhar destaque quando o que se investiga é parte de um campo diverso e interligado.

Embora a presente pesquisa tenha se concentrado em periódicos da área da saúde, as análises e escolhas metodológicas apontam para o diálogo com o arcabouço teórico das ciências sociais e humanas. Além dos aspectos ligados à saúde e ao adoecimento, os artigos analisados consideram a interface desses com as questões sociais, políticas, éticas e econômicas. Trata-se de um nicho importante de produção, dada a grande concentração de pesquisas sobre zika no campo das ciências biomédicas^46,47.

Os achados da presente revisão corroboram resultados de estudos enfocando cuidadores de pessoas com diversos tipos de dependência, apontando para a sobrecarga física, psicológica e financeira, bem como para incertezas, afastamento social e dificuldades na relação com serviços de saúde^8-10. No campo mais amplo das pessoas com deficiência, o processo do cuidado costuma ser uma experiência muitas vezes solitária, que encontra pares identitários e reconhecimento no processo - muitas vezes longo - de busca por diagnóstico, atendimentos e informações.

No contexto das famílias de crianças com SCZ, essa experiência ganha contornos distintos. A conjuntura epidêmica e a cobertura midiática trouxeram visibilidade para essa geração de crianças atingidas. Esse fato aumentou também a atenção às famílias de crianças com outras deficiências e doenças raras, que há muito tempo buscam espaço para os cuidados de si e de seus filhos²⁰.

A epidemia de SCZ no Brasil afetou majoritariamente as famílias mais pobres e complexificou contextos de vida já marcados por exclusões diversas, evidenciando interseccionalidades já presentes. As dificuldades enfrentadas por essas famílias demonstram a permanência de negligências nas estruturas sociais, econômicas, de saúde, de assistência social e saneamento básico, ao mesmo tempo em que exigem ações imediatas e emergenciais^48-50.

A centralidade das mães no protagonismo no cuidado familiar, identificada na quase totalidade dos artigos analisados, evidencia uma aliança de mulheres que se expressa nas redes de apoio e solidariedade, especialmente familiar e comunitária. As rotinas exaustivas partilhadas pelas mulheres explicitam a manutenção e o reforço das desigualdades sociais de gênero, que definem a maternidade e o cuidado como uma condição de existência feminina. Essa configuração limita as suas escolhas, ocasionando rupturas biográficas¹⁵, interrupções e remodelações de projetos de vida que não são experienciados da mesma maneira pelos homens nas famílias de crianças com SCZ^25,36.

A agência dessas mulheres tem desafiado o tom de tragédia veiculado pela mídia e pela corrida científica frente à “ameaça global”⁵¹. São mulheres que ressignificam suas vidas, suas trajetórias, seus projetos. Articulam-se em associações, constroem e compartilham conhecimentos e “vão aonde têm que ir”¹⁵ para reivindicar direitos frente ao Estado. Desenvolvem notável resiliência diante de uma rotina exaustiva que impacta não apenas a saúde de seus filhos, mas a delas. Esse movimento traz diferentes impactos, que são negligenciados num processo de renúncia do cuidado de si em função do cuidado do outro, e também da identificação de certos benefícios e sentimentos positivos advindos do papel de cuidar⁹.

A produção teórico-feminista, bem como as discussões políticas relativas à igualdade de gênero e à divisão sexual do trabalho, tem destacado o papel das mulheres nas atribuições de cuidado. Durante muito tempo, as funções biológicas de gestar, parir e amamentar foram vinculadas ao cuidado, fortalecendo o seu entendimento como atividade intrinsecamente feminina⁵².

Embora fundamental para o desenvolvimento humano, tanto no campo da aprendizagem quanto no campo da socialização, a ação do cuidar tem sido comumente afastada da noção de trabalho. Assim como outros trabalhos domésticos, o cuidado é entendido como uma ocupação de menor valor, desprezada e invisibilizada, tanto no interior das famílias quanto no entendimento das relações de produção e reprodução econômica e social⁵².

Kittay⁵³, ao analisar o trabalho direcionado ao cuidado de pessoas em situação de dependência, enfatiza que esse tipo de trabalho, de forma imposta ou não, tem sido tradicionalmente atribuído às mulheres no âmbito familiar. Em geral é realizado de modo não remunerado ou mal pago, trazendo repercussões maiores para aquelas em condições de vida impactadas pelo racismo, pela pobreza e por outras formas de desigualdade. Há um atravessamento de gênero quando tratamos de questões como dependência, maternidade e cuidado, embora não exista nada que justifique a atribuição do cuidado de forma intrínseca, inevitável ou exclusiva às mulheres.

O contexto de comoção social da epidemia de SCZ colocou em evidência as crianças atingidas e as mulheres envolvidas nos seus cuidados, no entanto, elas compartilham com muitas outras mulheres e pessoas com deficiência seus lugares de cidadania. Isso implica considerar que o ato de cuidar, como observado de maneira convergente por Kittay⁵³ e Tronto⁵⁴, envolve aspectos morais, psicológicos, sociais, culturais, econômicos, políticos e técnico-normativos. O cuidado deve ser compreendido como um valor democrático, que afeta toda a sociedade, e não como uma relação exclusivamente dual ou como algo privado, a ser definido no âmbito das famílias e das redes pessoais que incluem pessoas dependentes. Essa dimensão da vida deve ser considerada como algo a ser definido no seio das decisões políticas e encarada do ponto de vista da justiça social.

Conclusões

As respostas às emergências em saúde pública, quando centradas exclusivamente em estratégias biomédicas, focadas nos agentes de transmissão e no tratamento das doenças como ameaça, têm sido insuficientes. É necessário expandir o olhar para os contextos de vida e compreender que políticas públicas são tão ou mais eficazes na medida em que conseguem se aproximar da realidade cotidiana das pessoas.

Os resultados dessa revisão constituem um panorama inicial amplo para a compreensão dos impactos experienciados por cuidadores familiares de crianças com SCZ, em particular pelas mulheres. Enquanto estudo de revisão de literatura, há limitações que dizem respeito a possíveis escapamentos na identificação dos artigos para compor o escopo de análise. Outras estão relacionadas à dinâmica de desenvolvimento de uma doença cujo conhecimento está em construção: as crianças estão crescendo, e com isso novos desafios e impactos podem ser identificados.

Chama a atenção o fato de que poucos estudos se referiram aos irmãos das crianças com SCZ; quando o fizeram, foi de forma indireta. Uma parte da literatura no campo das doenças crônicas ou deficiências na infância aponta para impactos na vida dos irmãos^55,56. Sugere-se que esse seja um elemento de atenção para estudos futuros, considerando tanto os irmãos já existentes antes do nascimento da criança com SCZ quanto aqueles que vieram posteriormente.

É imprescindível aprender com o que já foi documentado. Os estudos analisados sinalizam para recursos e estratégias de enfrentamento que parecem funcionar como mecanismos protetores, minimizando os impactos da síndrome congênita do zika nos diversos âmbitos da vida daqueles diretamente envolvidos no cuidado. Entre esses, destacaram-se: manutenção do trabalho remunerado e renda; garantia de uma rede de apoio e suporte social, incluindo estratégias como creches e serviços de suporte às famílias; atendimento e acolhimento psicossocial; e estratégias de ações de saúde que fortaleçam os mecanismos de percepção de autoeficácia parental.

Apesar de a doença não ser considerada epidêmica na atualidade, casos novos têm sido notificados^57,58. Por outro lado, Costa et al.⁵⁹ estimaram a taxa de letalidade em torno de 10%. É preciso compreender como as dinâmicas familiares têm sido afetadas nas chegadas e nas perdas das crianças quando “não se fala mais no assunto”.

Os desafios são muitos. Às realidades aqui apresentadas soma-se um contexto antes inimaginável de sobreposição com a pandemia de COVID-19, ocasionando restrições e impactos sentidos pela sociedade como um todo, mas que afetam particularmente essas famílias. Isso remete a uma questão importante que se impõe para as ações tradicionais de vigilância em saúde de doenças transmissíveis, que é quando há o fator de cronicidade do adoecimento e de suas consequências.

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  12 Maio 2023
• Data do Fascículo
  Maio 2023

Histórico

• Recebido
  17 Fev 2022
• Aceito
  25 Out 2022
• Publicado
  27 Out 2022