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Geografia das disparidades em saúde entre brancos e negros em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

Geography of health disparities among white and black people in Porto Alegre, Rio Grande do Sul

Resumo

Introdução

O artigo discute as disparidades espaciais em saúde ao investigar pessoas brancas e negras, tomando como ponto de partida a trajetória de desenvolvimento do sistema global do capitalismo racial.

Objetivo

Investigar as diferenças existentes entre pessoas brancas e negras nos agravos de HIV, tuberculose e sífilis na escala de distritos sanitários na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Método

Estudo ecológico, com uso de banco de dados secundários e de acesso público, disponibilizados a partir da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Inclui a análise espacial, a estatística descritiva e o uso de medidas de associação.

Resultados

A partir dos distritos sanitários, desvela-se a materialização de geografias de desigualdades e de condições de iniquidade entre pessoas brancas e negras, o que está entrelaçado com o processo histórico de ocupação da cidade de Porto Alegre.

Conclusão

O quesito raça/cor e a sua investigação escalar tornaram-se potência para corroborar as diferenças de qualidade de vida que desfrutam pessoas brancas e negras. Em Porto Alegre, são inequívocas evidências do racismo estrutural em saúde que denotam a urgência de ações no Sistema Único de Saúde, como as políticas de equidade.

Palavras-chave:
iniquidade; disparidades; negros; brancos; Porto Alegre

Abstract

Introduction

This article discusses the spatial disparities in health between white and black people. It begins with the trajectory of development of the global system of racial capitalism.

Objective

To investigate the existing differences between white and black people in the conditions of HIV, tuberculosis, and syphilis in the scale of health districts in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Method

Ecological study using secondary and public databases made available from the Municipal Health Secretariat of Porto Alegre. It includes spatial analysis, descriptive statistics, and the use of measures of association.

Results

It reveals, from the health districts, the materialization of geographies of inequalities and conditions of inequality between white and black people, which are intertwined with the historical process of occupation of the city of Porto Alegre.

Conclusion

The issue of race and color, as well as scalar research, have become powerful tools for correlating the differences in quality of life enjoyed by white and black people. In Porto Alegre there is unmistakable evidence of structural racism in health that denotes the urgency of actions in the unified health system (SUS), such as equity policies.

Keywords:
inequity; disparities; black; white; Porto Alegre

INTRODUÇÃO: UM BREVE RESGATE DA QUESTÃO RACIAL NO BRASIL

Desde a primeira metade do século XX, a raça se tornou uma categoria analítica crítica relevante para a compreensão da realidade social. As obras “Black Reconstruction in America” (1935), de William Edward Burghardt (W. E. B.) Du Bois, e “Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition” (1983), de Cedric Robinson11 Robinson CJ. Black Marxism: the making of the black radical tradition. 2nd ed. Santa Barbara: Univ of North Carolina Press; 2005. 484 p., buscaram defender a escravidão como pedra fundamental do desenvolvimento econômico, político e social dos Estados Unidos, mas que pode ser estendida, em partes, para os Estados-nações forjados no tráfico transatlântico e na dizimação dos povos originários. As contribuições de Du Bois e Robinson tornam-se contemporâneas quando se depara com a operação do sistema econômico pelas intersecções de raça, classe, gênero e sexualidade.

Para Quijano2, o2 Quijano A. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos. 2002;17(37):1-25. https://doi.org/10.36311/0102-5864.17.v0n37.2192.
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padrão universal de classificação dos corpos para a exploração social e biológica se deu com a construção das categorias de “sexo” e “raça”. Para Krieger e Fee33 Krieger N, Fee E. Man-Made Medicine and Women’s Health: the biopolitics of sex/gender and race/ethnicity. Int J Health Serv. 1994;24(2):265-83. http://dx.doi.org/10.2190/LWLH-NMCJ-UACL-U80Y. PMid:8034393.
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, as empreitadas médicas do século XIX reivindicavam o direito de decidir questões sociais controversas com o uso da autoridade científica. As iniciativas do Dr. Samuel Cartwright, da Louisiana, em tentar provar, por meio de métodos científicos, a inferioridade natural dos negros o levaram a uma tarefa de diferenciação fenotípica e de identificação de possíveis vulnerabilidades a doenças, além de buscar similaridades na cor dos órgãos internos. No final do século XIX, essas práticas de diferenciação de brancos e não brancos triunfaram para além dos Estados Unidos. O Brasil, que buscava superar a imagem internacional de um país miscigenado e, logo, fadado ao fracasso no seu desenvolvimento44 Schwarcz LM. Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2011;18(1):225-42. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702011000100013. PMid:21552698.
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, não escapou dessa lógica global.

Christian55 Christian M. A global critical race and racism framework: racial entanglements and deep and malleable whiteness. Sociol Race Ethn (Thousand Oaks). 2018;5(2):169-85. http://dx.doi.org/10.1177/2332649218783220.
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identifica um padrão global de supremacia branca fundado na história e globalizado pelo capitalismo neoliberal. Para Grosfoguel66 Grosfoguel R. Decolonizing post-colonial studies and paradigms of political-economy: transmodernity, decolonial thinking, and global coloniality. TRANSMODERNITY: Journal of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World. 2011;1(1):38. http://dx.doi.org/10.5070/T411000004.
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, ninguém escapa às hierarquias classistas, generificadas, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do sistema mundial capitalista moderno/colonial/patriarcal. A estrutura e a ideologia racistas penetram nos sistemas raciais nacionais (no Estado, na economia, nas instituições, nos discursos, nas representações), forjam as subjetividades e (re)organizam as relações sociais e geográficas. Assim, o sistema-mundo favorece as nações e as regiões mais próximas de um ideal de branquitude anglo-germânica que impõe rígidas, ainda que, às vezes, nebulosas, relações de centro-periferia. Um país se localiza dentro da organização centro-periferia do sistema-mundo da supremacia branca a partir da sua branquitude, que, por sua vez, configura os territórios nacionais e a estrutura das cidades e das metrópoles e distribui as iniquidades em uma divisão social do trabalho, em que algumas comunidades e alguns corpos que escapam do modelo emanado pelo padrão universal europeu são sistematicamente excluídos por estratégias de necropolítica77 Mbembe A. Necropolítica. Arte e ensaios [Internet]. 2016 [citado em 2020 set 9];2(32):123-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993
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.

Portanto, os desafios metodológicos na busca de explorar e endereçar as iniquidades raciais são obstáculos no campo da saúde88 Kabad JF, Bastos JL, Santos RV. Raça, cor e etnia em estudos epidemiológicos sobre populações brasileiras: revisão sistemática na base PubMed. Physis. 2012;22(3):895-918. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312012000300004.
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9 LaVeist TA. Beyond dummy variables and sample selection: what health services researchers ought to know about race as a variable. Health Serv Res. 1994;29(1):1-16. PMid:8163376.
-1010 Nazroo JY. The structuring of ethnic inequalities in health: economic position, racial discrimination, and racism. Am J Public Health. 2003;93(2):277-84. http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.93.2.277. PMid:12554585.
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tanto pela indisponibilidade de informações sobre raça/cor por meio de dados padronizados e longitudinais quanto pelas mudanças conceituais ao longo da história referentes às categorias de análise de raça/cor/etnia. Entretanto, como provoca Lopes et al.1111 Lopes AA, Silveira MA, Martinelli RP, Rocha H. Associação entre raça e incidência de doença renal terminal secundária a glomerulonefrite: influência do tipo histológico e da presença de hipertensão arterial. Rev Assoc Med Bras (1992). 2001;47(1):78-84. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-42302001000100034. PMid:11340455.
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e Chor et al.1212 Chor D, Faerstein E, Kaplan GA, Lynch JW, Lopes CS. Association of weight change with ethnicity and life course socioeconomic position among Brazilian civil servants. Int J Epidemiol. 2004;33(1):100-6. http://dx.doi.org/10.1093/ije/dyg277. PMid:15075153.
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, as barreiras dos números devem ser superadas e a complexidade e os desafios de aprofundar o debate sobre as desigualdades de raça devem ser endereçados na saúde coletiva.

Neste panorama desafiador de identificar as iniquidades em saúde entre as populações, este texto busca apresentar as disparidades espaciais em saúde em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entre brancos e negros. Para isso, uma breve contextualização do debate sobre raça e saúde é realizada, e, posteriormente, a cidade de Porto Alegre é localizada dentro da trajetória de desenvolvimento no sistema global da supremacia branca. Em razão da limitação escalar de disponibilidade dos dados, a intenção é explorar as diferenças existentes entre brancos e negros no tocante aos agravos de HIV, tuberculose e sífilis.

Raça e saúde: alguns apontamentos

A despeito da Portaria nº 344, de 1º de fevereiro de 201713, e13 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 344, de 1º de fevereiro de 2017. Dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2017. [citado em 2020 Set 9]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt0344_01_02_2017.html
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
dos princípios da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra1414 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra [Internet]. 2007 [citado em 2020 Set 9]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra.pdf
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, que tornou obrigatória a coleta do quesito cor e o preenchimento da raça/cor de usuários(as), a inserção deste campo no agravo da COVID-19, além de sua divulgação com as variáveis de raça, concretizou-se apenas após uma liminar judicial1515 Agencia Brasil. Justiça determina registro obrigatório de raça em casos da Covid-19 [Internet]. Agência Brasil; 2020 [citado em 2020 Set 9]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-05/justica-determina-registro-obrigatorio-de-raca-em-casos-da-covid-19
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/n...
, embora as evidências científicas1616 Ahmed F, Ahmed N, Pissarides C, Stiglitz J. Why inequality could spread COVID-19. The Lancet Public Health. 2020;5(5):e240. https://doi.org/10.1016/S2468-2667(20)30085-2.
https://doi.org/10.1016/S2468-2667(20)30...

17 Laster Pirtle WN. Racial capitalism: A Fundamental Cause of Novel Coronavirus (COVID-19) Pandemic Inequities in the United States. Health Educ Behav. 2020;47(4):504-8. https://doi.org/10.1177/1090198120922942.
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18 Laurencin CT, McClinton A. The COVID-19 pandemic: a call to action to identify and address racial and ethnic disparities. J Racial Ethn Health Disparities. 2020;7(3):398-402. http://dx.doi.org/10.1007/s40615-020-00756-0. PMid:32306369.
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19 Webb HM, Nápoles AM, Pérez-Stable EJ. COVID-19 and racial/ethnic disparities. JAMA. 2020;323(24):2466-67. http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.8598.
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-2020 Yancy CW. COVID-19 and African Americans. JAMA. 2020;323(19):1891-92. http://dx.doi.org/10.1001/jama.2020.6548.
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apontassem para o fardo desigual da pandemia em populações pobres e não brancas, também difundido pela mídia mainstream2121 Blow CM. Opinion. Covid-19’s Race and Class Warfare [Internet]. The New York Times; 2020 [citado em 2020 Set 9]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/05/03/opinion/coronavirus-race-class.html
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,2222 Eligon J, Burch ADS. Questions of Bias in Covid-19 treatment add to the mourning for black families. The New York Times [Internet]. 2020 [citado em 2020 Maio 10]. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/05/10/us/coronavirus-african-americans-bias.html
https://www.nytimes.com/2020/05/10/us/co...
.

No Brasil, as categorias raciais foram coletadas pelo Censo pela primeira vez em 1872. A população livre definia a sua raça, e não a sua cor, como branca, preta, parda ou cabocla, e a população escravizada, como preta ou parda2323 Petruccelli JL, Saboia AL. Caracteristícas étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE; 2008. 204 p. (Estudos e análises. Informação demográfico e socioeconômica)., ainda que a mensuração no país fosse mais próxima das características fenotípicas (aparência física), e não da ancestralidade (origem), como nos Estados Unidos2424 Travassos C, Williams DR. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saude Publica. 2004;20(3):660-78. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2004000300003. PMid:15263977.
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. Em 1890, a denominação “pardo” foi substituída por “mestiço”. Já em 1940, as categorias presentes eram branca, preta e amarela. A categoria “parda” foi atribuída a quaisquer outras respostas. Nos Censos de 1950, 1960 e 1980, a categoria “parda” foi reinserida e, em 1991, os indígenas voltaram a ser contemplados no recenseamento, após mais de cem anos de “esquecimento”. Em 2010, a etnia e a língua falada pela população indígena também foram coletadas.

O problema da falta de informações de qualidade constitui um desafio nos estudos das iniquidades raciais em saúde. É comum a insuficiência de informações detalhadas sobre a raça/cor e etnia dos(as) usuários(as) para refletir a heterogeneidade entre grupos e a heterogeneidade dentro de grupos amplamente definidos1010 Nazroo JY. The structuring of ethnic inequalities in health: economic position, racial discrimination, and racism. Am J Public Health. 2003;93(2):277-84. http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.93.2.277. PMid:12554585.
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. A qualidade das informações evidencia obstáculos metodológicos para tratar das disparidades longitudinais em saúde por grupos raciais, ao considerar a disposição dos dados do Censo Demográfico, dificultado ainda pela coleta e pelo acesso aos dados em nível intraurbano.

É insuficiente incluir a raça em uma análise apenas com o intuito de obter um efeito estatístico significativo sem fornecer uma interpretação adequada do achado99 LaVeist TA. Beyond dummy variables and sample selection: what health services researchers ought to know about race as a variable. Health Serv Res. 1994;29(1):1-16. PMid:8163376. e considerar, na premissa, que não existem evidências de subdivisão de seres humanos em grupos biologicamente definidos2525 Cooper RS. Race, genes, and health—new wine in old bottles? Int J Epidemiol. 2003;32(1):23-5. https://doi.org/10.1093/ije/dyg036.
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, ou seja, a raça é uma construção social, histórica e geograficamente localizada e dependente de trajetória e/ou fatores históricos, culturais e socioeconômicos que influenciam o estilo de vida e impactam o acesso aos cuidados de saúde2626 Pearce N, Foliaki S, Sporle A, Cunningham C. Genetics, race, ethnicity, and health. BMJ. 2004;328:1070-2. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.328.7447.1070.
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.

Raça e saúde: disparidades pelo olhar do capitalismo racial

Em que pesem os desafios de explorar as iniquidades em saúde a partir do recorte de raça/cor e etnia, é importante sublinhar a demanda de ampliar os esforços em revelar os determinantes sociais que contribuem para a manutenção das disparidades em saúde. Aceitar que a construção histórica do sistema global de supremacia branca e do pressuposto da existência de corpos universais tem reproduzido as iniquidades é essencial para mudar o panorama vigente.

A população não branca apresenta prevalências elevadas de condições, como as doenças cardíacas e a obesidade1212 Chor D, Faerstein E, Kaplan GA, Lynch JW, Lopes CS. Association of weight change with ethnicity and life course socioeconomic position among Brazilian civil servants. Int J Epidemiol. 2004;33(1):100-6. http://dx.doi.org/10.1093/ije/dyg277. PMid:15075153.
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,27, o27 Carnethon MR, Pu J, Howard G, Albert MA, Anderson CAM, Bertoni AG, et al. Cardiovascular Health in African Americans: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2017;136:e393-e423. http://dx.doi.org/10.1161/CIR.0000000000000534.
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diabetes2828 Brito IC, Lopes AA, Araújo LMB. Associação da cor da pele com diabetes mellitus tipo 2 e intolerância à glicose em mulheres obesas de Salvador, Bahia. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2001;45(5):475-80. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27302001000500011.
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,29, a29 Marshall MC Jr. Diabetes in African Americans. Postgrad Med J. 2005;81(962):734-40. http://dx.doi.org/10.1136/pgmj.2004.028274. PMid:16344294.
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hipertensão1212 Chor D, Faerstein E, Kaplan GA, Lynch JW, Lopes CS. Association of weight change with ethnicity and life course socioeconomic position among Brazilian civil servants. Int J Epidemiol. 2004;33(1):100-6. http://dx.doi.org/10.1093/ije/dyg277. PMid:15075153.
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, as doenças renais1717 Laster Pirtle WN. Racial capitalism: A Fundamental Cause of Novel Coronavirus (COVID-19) Pandemic Inequities in the United States. Health Educ Behav. 2020;47(4):504-8. https://doi.org/10.1177/1090198120922942.
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, as cardiovasculares3030 Lotufo PA, Bensenisso JM. Raça e mortalidade cerebrovascularisso Brasil. Rev Saude Publica [Internet]. 2013;47(6):1201-4. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047004890.
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,3131 Rubenfire M. 2017 Guideline for High Blood Pressure in Adults [Internet]. American College of Cardiology; 2018 [citado em 2020 Set 10]. Disponível em: http%3a%2f%2fwww.acc.org%2flatest-in-cardiology%2ften-points-to-remember%2f2017%2f11%2f09%2f11%2f41%2f2017-guideline-for-high-blood-pressure-in-adults
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, as respiratórias3232 Barnes KC, Grant AV, Hansel NN, Gao P, Dunston GM. African Americans with Asthma: genetic insights. Proc Am Thorac Soc. 2007;4(1):58-68. http://dx.doi.org/10.1513/pats.200607-146JG. PMid:17202293.
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,33 e o33 Ejike CO, Dransfield MT, Hansel NN, Putcha N, Raju S, Martinez CH, et al. Chronic obstructive pulmonary disease in America’s Black Population. Am J Respir Crit Care Med. 2019;200(4):423-30. http://dx.doi.org/10.1164/rccm.201810-1909PP. PMid:30789750.
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HIV/AIDS1818 Laurencin CT, McClinton A. The COVID-19 pandemic: a call to action to identify and address racial and ethnic disparities. J Racial Ethn Health Disparities. 2020;7(3):398-402. http://dx.doi.org/10.1007/s40615-020-00756-0. PMid:32306369.
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,3434 Stockman JK, Hayashi H, Campbell JC. Intimate partner violence and its health impact on ethnic minority women. J Womens Health (Larchmt). 2015;24(1):62-79. http://dx.doi.org/10.1089/jwh.2014.4879. PMid:25551432.
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,3535 Taquette SR, Meirelles ZV. Discriminação racial e vulnerabilidade às DST/Aids: um estudo com adolescentes negras. Physis. 2013;23(1):129-42. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312013000100008.
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. O baixo peso ao nascer é mais significativo em crianças negras3636 Barros FC, Victora CG, Horta BL. Ethnicity and infant health in Southern Brazil. A birth cohort study. Int J Epidemiol. 2001;30(5):1001-8. https://doi.org/10.1093/ije/30.5.1001.
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, assim como a mortalidade infantil3838 Cardoso AM, Santos RV, Coimbra CEA Jr. Mortalidade infantil segundo raça/cor no Brasil: o que dizem os sistemas nacionais de informação?. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005;21(5):1602-8. [citado em 2020 Set 9]. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000500035.
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500...
, contornando o precário nascer, viver e morrer no capitalismo racial. A maioria destas condições não significa vulnerabilidades em nível biológico, mas precárias condições de vida, que incluem falta de acesso ou acesso precário à alimentação adequada, moradia, transporte, renda, trabalho, escola, serviços de saúde, entre outras.

MÉTODO

Os dados estão disponíveis na Biblioteca Virtual de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre3939 Biblioteca Virtual de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Notificações do SINAN [Internet]. 2020 [citado em 2020 set 9]. Disponível em: https://sites.google.com/view/bvsapspoa/servi%C3%A7os-de-sa%C3%BAde/vigil%C3%A2ncia-em-sa%C3%BAde/notifica%C3%A7%C3%A3o-todas-as-fichas-de-notifica%C3%A7%C3%A3o-do-sinan?authuser=0
https://sites.google.com/view/bvsapspoa/...
. O acesso para as variáveis de notificação de HIV/AIDS, de tuberculose, de sífilis e das causas de mortalidade por raça/cor está agregado nos 17 distritos sanitários do município, e o acesso é aberto e irrestrito. Os dados de raça/cor da população residente nos distritos sanitários foram adquiridos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI)4040 Serviço de Informação ao Cidadão. Lei Acesso a Informação - Protocolo número 002483-20-20 [Internet]. 2020 [citado em 2020 jul 14]. Disponível em: https://sicpoa.procempa.com.br/sicpoa/rest/cidadao/respostas/1953/anexos/1083/conteudo
https://sicpoa.procempa.com.br/sicpoa/re...
- protocolo 002483-20-20 - por causa da incompatibilidade de limites geográficos dos distritos sanitários e dos setores censitários do IBGE. Conforme o Plano Municipal de Saúde de Porto Alegre (2018-2021), as áreas geográficas que compõem o contorno dos 17 distritos sanitários são “quase que integralmente”4141 Porto Alegre. Plano Municipal de Saúde de Porto Alegre [Internet]. 2017 [citado em 2020 Set 9]. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/sms/default.php?p_secao=927
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/sms/de...
correspondentes com as áreas que configuram as 17 regiões do Orçamento Participativo (OP). Foram processados e analisados os dados dos agravos supramencionados para Porto Alegre entre brancos e negros (pretos e pardos) para o período de 2010 a 2019. Em razão da limitação do texto, a análise da série histórica para os distritos sanitários foi realizada para os anos de 2017, 2018 e 2019. O cálculo da taxa a cada 100 mil habitantes foi feito para o município e para os distritos sanitários utilizando como parâmetro a população residente nos distritos segundo o Censo IBGE de 20104242 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: Características da população e dos domicílios - Resultados do Universo [Internet]. 2010 [citado em 2020 set 9]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2010/universo-caracteristicas-da-populacao-e-dos-domicilios
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, fornecido pela LAI por intermédio do protocolo mencionado. Para os distritos sanitários, foi calculado o risco relativo (RR) ou razão de riscos a partir da divisão da incidência do agravo na população (branca e negra) pela população não exposta. Posteriormente, foi mensurado o risco da população negra em relação à população branca nos agravos selecionados com intervalo de confiança de 95% e p-valor, utilizando a MedCalc4343 Schoonjans F, Zalata A, Depuydt CE, Comhaire FH. MedCalc: a new computer program for medical statistics. Computer Methods and Programs Biomed. 1995;48(3):257-62. http://dx.doi.org/10.1016/0169-2607(95)01703-8.
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em todos os 17 distritos sanitários. Algumas dimensões foram selecionadas para subsidiar a argumentação das disparidades existentes nos tópicos de saúde, rendimento e educação para bairros da capital. Estas informações foram coletadas no sítio eletrônico do Observatório da Cidade de Porto Alegre, que disponibiliza um rol de dados na escala dos bairros. Os bairros foram escolhidos de modo a exibir as situações extremas materializadas na metrópole.

Para apresentar a distribuição espacial da população por raça/cor entre brancos e negros (pretos e pardos), foram gerados mapas de distribuição percentual de população residente e de cluster. A análise de associação espacial adotada foi a de Getis e Ord4444 Getis A, Ord JK. The analysis of spatial association by use of distance statistics. Geogr Anal. 2010;24(3):189-206. http://dx.doi.org/10.1007/978-3-642-01976-0_10.
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. Este método informa se existe ou não um agrupamento espacial entre vizinhos com valores altos e baixos e é útil para medir a concentração espacial4545 Almeida E. Econometria Espacial Aplicada [Internet]. Editora Alínea; 2012 [citado em 2020 Set 9]. 498 p. Disponível em: https://www.lojaofitexto.com.br/econometria-espacial-aplicada/p?gclid=Cj0KCQjw-uH6BRDQARIsAI3I-Uc4Y91o1rngiGNw8rhZK67wA7Rxnr1DyMD_Re0WVqOCp5sovVNUktYaAk8iEALw_wcB
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. Para ser estatisticamente significativo, o setor censitário com valor alto ou baixo deve ser cercado de vizinhos com valores altos ou baixos. A soma local entre vizinhos é, então, comparada proporcionalmente à soma de todos os setores do município, gerando as classes visuais. Como o objetivo do uso desse método foi o de identificar pontos em que existe uma concentração espacial de população branca e negra, os valores absolutos dessas variáveis foram utilizados no campo de entrada. O output apresenta um indicador de significância em três grupos de classe: cold spot (região com valores baixos e com vizinhos de valores baixos), sem significância (p = 0) e hot spot (região com valores altos e com vizinhos de valores altos). Para a visualização dos resultados, o mapa apresentado possui apenas as classes com altos valores e vizinhos com altos valores (hot spots). Os materiais cartográficos foram processados no software ArcGIS Pro 10.5.1.

RESULTADOS

A distribuição da população por raça/cor revela o distrito sanitário Centro e adjacência Norte predominantemente branco (de 81,3% a 90,8%), conforme a Figura 1a. Os distritos limítrofes com os municípios de Viamão e Alvorada (distritos da Restinga, Lomba do Pinheiro e Nordeste), da região metropolitana, mostram-se mais negros (Figura 1b). O cluster de população branca (Figura 2a), presente em parte dos distritos sanitários Noroeste, Centro e Leste, agrega ex-territórios negros, em especial nos bairros hoje brancos e ricos, como Moinhos de Vento, Mont Serrat, Bela Vista e Higienópolis, enquanto os clusters mais periféricos (Figura 2b), que englobam os bairros Restinga e Lomba do Pinheiro, concentram os piores indicadores (Tabela 1).

Figura 1
(a) Distribuição percentual da população branca; (b) Distribuição percentual da população negra residente por distritos sanitários, Porto Alegre/RS, 2010. Fonte: elaborada pelos autores a partir do Censo Demográfico do IBGE4242 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: Características da população e dos domicílios - Resultados do Universo [Internet]. 2010 [citado em 2020 set 9]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2010/universo-caracteristicas-da-populacao-e-dos-domicilios
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Figura 2
(a) Cluster da população branca; (b) Cluster da população negra residente por distritos sanitários, Porto Alegre/RS, 2010. Fonte: elaborada pelos autores a partir do Censo Demográfico do IBGE4242 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: Características da população e dos domicílios - Resultados do Universo [Internet]. 2010 [citado em 2020 set 9]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2010/universo-caracteristicas-da-populacao-e-dos-domicilios
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Tabela 1
Dimensões selecionadas de demografia, saúde, rendimento e educação em bairros de Porto Alegre/RS

Partindo dos indicadores selecionados no repositório da cidade de Porto Alegre, é possível visualizar as disparidades entre os bairros predominantemente brancos e ricos (distrito sanitário Noroeste) e os mais periféricos, negros e pobres (distritos sanitários da Lomba do Pinheiro, Restinga e Nordeste). O bairro Mário Quintana (distrito Nordeste), inserido em cluster de população negra, possui os piores indicadores em relação ao percentual de nascidos de mães com baixa escolaridade (35,21%), de responsáveis por domicílio com renda de até 1 salário mínimo (38,74%) e de responsáveis por domicílios analfabetos (6,52%) no conjunto de bairros selecionados. Os bairros Bela Vista, Moinhos de Vento e Higienópolis, localizados no distrito sanitário Noroeste e cluster de população branca, possuem as melhores situações em todas as dimensões selecionadas, com 3,2%, 1,96% e 4,26%, respectivamente, com percentual de nascidos de mães com baixa escolaridade e também em relação à totalidade da capital3737 Observatório da Cidade de Porto Alegre. Cidade de Porto Alegre [Internet]. Porto Alegre em Análise; 2020 [citado em 2020 Set 10]. Disponível em: http://portoalegreemanalise.procempa.com.br/?regiao=1_0_0
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.

Na Figura 3, referente à série histórica, observa-se que, de 2010 a 2019, a taxa de HIV/AIDS em Porto Alegre para a população branca reduziu de 117,28 em 2010 para 93,18 em 2019 a cada 100 mil habitantes, enquanto para a população negra houve incremento na taxa, que passou de 224,14 em 2010 para 247,93 em 2019 a cada 100 mil habitantes. A taxa de tuberculose em 2010 era de 113,88 para brancos e 248,99 para negros e, em 2019, passou para 114,77 para brancos e 320,18 para negros a cada 100 mil habitantes. A sífilis teve um incremento da taxa para as duas populações: para a população branca, em 2010, a taxa era de 14,96 e, em 2019, atingiu 162,98 casos a cada 100 mil habitantes, enquanto na população negra a taxa era de 47,69 em 2010 e passou para 435,56 em 2019 a cada 100 mil habitantes.

Figura 3
Série histórica (de 2010 a 2019) da taxa de HIV/AIDS, tuberculose e sífilis para brancos e negros em Porto Alegre/RS a cada 100 mil habitantes. Fonte: elaborada pelos autores a partir de Biblioteca Virtual de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre3939 Biblioteca Virtual de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Notificações do SINAN [Internet]. 2020 [citado em 2020 set 9]. Disponível em: https://sites.google.com/view/bvsapspoa/servi%C3%A7os-de-sa%C3%BAde/vigil%C3%A2ncia-em-sa%C3%BAde/notifica%C3%A7%C3%A3o-todas-as-fichas-de-notifica%C3%A7%C3%A3o-do-sinan?authuser=0
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e Lei de Acesso à Informação4040 Serviço de Informação ao Cidadão. Lei Acesso a Informação - Protocolo número 002483-20-20 [Internet]. 2020 [citado em 2020 jul 14]. Disponível em: https://sicpoa.procempa.com.br/sicpoa/rest/cidadao/respostas/1953/anexos/1083/conteudo
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O risco relativo da população negra no agravo do HIV foi maior em 2019 (Tabela 2) no distrito sanitário Extremo Sul (RR 6,71; IC 3,339-13,484; p < 0,001), Centro (RR 4,99; IC 3,787-6,564; p < 0,001) e Noroeste (RR 4,40; IC 2,735-7,062; p < 0,001). Os distritos sanitários com os menores valores em 2019 foram Leste (RR 1,43; IC 0,936-2,177; p = 0,098), Restinga (RR 1,76; IC 1,186-2,599; p = 0,004) e Centro-Sul (RR 1,77; IC 1,087-2,893; p = 0,022).

Tabela 2
Risco relativo, intervalo de confiança e p-valor para HIV da população negra nos distritos sanitários (2017 e 2019)

No tocante ao risco relativo da população negra para a tuberculose (Tabela 3), o distrito sanitário Centro permaneceu com a pior condição ao longo da série histórica, sendo que, em 2019, o risco relativo foi de 7,91 (IC 6,289-9,950; p < 0,001). O distrito de Cristal, após queda no risco relativo de 2017 (3,05) para 2018 (2,42), posicionou-se em condição de disparidade em 2019 (RR 4,27; IC 2,4849-7,3503; p < 0,001). Nas Ilhas, o risco relativo da população negra teve continuidade da queda no período analisado, atingindo 0,62 em 2019 (IC 0,139-2,786; p = 0,537).

Tabela 3
Risco relativo, intervalo de confiança e p-valor para tuberculose da população negra nos distritos sanitários (2017 e 2019)

Os distritos Noroeste e Centro, que apresentaram altos valores em relação às unidades de análise nos agravos de HIV e tuberculose, também possuíam os maiores riscos relativos à sífilis em 2019 (Tabela 4). Todavia, observa-se que o distrito Centro reduziu o risco relativo quase que pela metade de 2017 para 2019 (8,81 para 4,91), enquanto no Centro-Sul o risco relativo passou de 3,76 (IC 2,135-6,624; p < 0,001) em 2017 para 8,30 (IC 4,977-13,827; p < 0,0001) em 2019.

Tabela 4
Risco relativo, intervalo de confiança e p-valor para sífilis da população negra nos distritos sanitários (2017 e 2019).

Na Figura 4, é possível visualizar uma média do risco relativo no triênio em cada um dos agravos selecionados. Verifica-se que nos distritos sanitários Centro e Noroeste, locais onde há predominância de bairros ricos e clusters de população branca, o risco relativo foi maior para a população negra nos três agravos. Para o HIV, além dos distritos mencionados, Lomba do Pinheiro, Glória e Sul se posicionaram na classe de risco relativo de 2,22 a 3,30 para negros em relação aos brancos. O risco relativo da tuberculose no Centro, Sul, Noroeste e Leste também apareceu nas classes superiores mapeadas (de 2,30 a 7,91). Para a sífilis, o risco relativo para os negros foi maior no Centro, Noroeste e nas Ilhas, enquanto no distrito da Restinga, onde está um dos bairros mais negros da cidade, o risco relativo para esta população se enquadrou nas classes de menor valor (1,40 a 1,95) nos três agravos.

Figura 4
Média do risco relativo no triênio (da esquerda para direita, 2017, 2018, 2019) da população negra para HIV, tuberculose e sífilis, por distritos sanitários de Porto Alegre/RS. Fonte: elaborada pelos autores a partir de Biblioteca Virtual de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre3939 Biblioteca Virtual de Atenção Primária à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Notificações do SINAN [Internet]. 2020 [citado em 2020 set 9]. Disponível em: https://sites.google.com/view/bvsapspoa/servi%C3%A7os-de-sa%C3%BAde/vigil%C3%A2ncia-em-sa%C3%BAde/notifica%C3%A7%C3%A3o-todas-as-fichas-de-notifica%C3%A7%C3%A3o-do-sinan?authuser=0
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e Lei de Acesso à Informação4040 Serviço de Informação ao Cidadão. Lei Acesso a Informação - Protocolo número 002483-20-20 [Internet]. 2020 [citado em 2020 jul 14]. Disponível em: https://sicpoa.procempa.com.br/sicpoa/rest/cidadao/respostas/1953/anexos/1083/conteudo
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DISCUSSÃO

Em Porto Alegre, as narrativas da violência legal e extralegal durante a transformação urbana do século XX incluíram a remoção da população negra de bairros hoje predominantemente brancos e ricos, além da estigmatização dos modos de vida4646 Rosa MVF. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante a pós-abolição (1884-1918). Beyond the invisibility: social history of racism in Porto Alegre (1884-1918) [Internet]. 2014 [citado em 2020 Set 10]. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/281205
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. A partir da década de 1960, nos auspícios da tecnocracia do regime civil-militar, as ações violentas de remoção se transformaram no modus operandi da urbanização que buscava, por meio de obras de infraestrutura e embelezamento urbanístico, ressignificar a modernidade na capital e deslocar para longe da área central a população pobre e de cor4747 Cabette A, Strohaecker TM. A dinâmica demográfica e a produção do espaço urbano em Porto Alegre, Brasil. Cad Metrop. 2015;17(34):481-501. http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3409.
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,4848 Gamalho NP. Malocas e periferia: a produção do Bairro Restinga. Atelie Geogr. 2010;4(2):122-41. http://dx.doi.org/10.5216/ag.v4i2.9911.
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. A remoção forçada, coordenada por agentes do Estado, ainda persiste atualmente na capital, a despeito da pandemia do novo coronavírus4949 Kervalt M. MPF pede interrupção da remoção de famílias da Vila Nazaré. Zero Hora [Internet]. 2020 [citado em 2020 Set 10]. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/03/mpf-pede-interrupcao-da-remocao-de-familias-da-vila-nazare-ck835qyyc00i201rzprpaoa5x.html
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.

O saldo histórico da aliança entre Estado e agentes especulativos faz de Porto Alegre a quinta cidade brasileira com o maior índice de segregação racial5050 Mariani D, Roncolato M, Tonglet A, Ducroquet S. O que o mapa racial do Brasil revela sobre a segregação no país. Jornal Nexo [Internet]. 2015 [citado em 2020 Set 10]. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela-sobre-a-segrega%C3%A7%C3%A3o-no-pa%C3%ADs
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. Forjada em um ideal europeu pelas suas características climáticas, culturais e migratórias, constatou-se que as estratégias de exclusão da capital e do próprio estado do Rio Grande do Sul remontam à transição colonial para a República e, de forma mais acirrada na segunda metade do século XX, consolidaram uma paisagem desigual e fragmentada.

Com o uso de métodos de análise espacial e estatística descritiva, foram exibidas as disparidades nos agravos da tuberculose, sífilis e HIV/AIDS entre as populações branca e negra, confirmando o abismo nas situações de saúde. É sintomático desse processo histórico o atual quadro de disparidades nas condições de vida da população que reside nas áreas centrais e periféricas. O risco relativo, que permitiu visualizar em que medida a população negra se encontra em maior risco em relação à branca nos agravos selecionados, indicou a existência de um gap significativo entre brancos e negros em distritos como Centro e Noroeste, os quais, embora, outrora, já tenham sido predominantemente negros e agora sejam compostos por brancos e dotados da infraestrutura e da clamada modernidade da capital, registraram os riscos relativos mais significativos.

Como Ayres et al. tem apontado51, o51 Ayres JRCM, França I Jr, Calazans GJ, Saletti HC Fo. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafi os. In: Czeresnia D, Freitas CM. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ; 2003. p. 117-39. estudo das diferenças sociais no processo de adoecimento é indispensável para a elaboração e a compreensão do conceito de vulnerabilidade. Adensa-se a esse aspecto a investigação sobre a relação espacial e as disparidades de HIV, tuberculose e sífilis na população negra. Aspectos relacionados às características dos bairros e do seu ambiente construído, como a densidade demográfica, a caminhabilidade, o transporte público e o nível de segregação, também têm sido considerados na interpretação da dinâmica do HIV nos Estados Unidos5252 Duncan DT, Kim B, Yazan A, Al-Ajlouni A, Callander D. Neighborhood-Level structures, factors, HIV, and communities of color. In: Ojikutu BO, Stone VE, editors. HIV in US communities of color. Switzerland: Springer Nature. 2021. p. 147-68. http://dx.doi.org/10.1007/978-3-030-48744-7_9.
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, identificando comunidades de cor em desvantagem em relação à população branca.

Estudo conduzido em Teresina, no Piauí5353 Sousa KAM, Silva KCO, Julião JRN, Araújo LM, Araújo TME, Oliveira FBM. Profile of the patients with notified associated tuberculosis the AIDS in the Piauí between 2001 and 2007. Rev Enferm UFPI. 2012;1(3):188-93., sobre o perfil das notificações de tuberculose no SINAN entre 2001 e 2007 revelou a predominância da incidência dessa doença em negros (68,67%) em comparação à população branca (4,42%). No Rio Grande do Sul, a situação epidemiológica da tuberculose entre 2003 e 2012 indicava uma prevalência da taxa de 45 casos a cada 100 mil habitantes5454 Mendes AM, Bastos JL, Bresan D, Leite MS. Epidemiologic situation of tuberculosis in Rio Grande do Sul: an analysis about Sinan’s data between 2003 and 2012 focusing on indigenous peoples. Rev Bras Epidemiol. 2016;19(3):658-69. http://dx.doi.org/10.1590/1980-5497201600030015. PMid:27849278.
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, demonstrando a situação díspar que a capital, Porto Alegre, encontra-se em relação à média estadual e como o quadro se agrava quando avaliado por grupos raciais. Destarte, as iniquidades observadas em Porto Alegre passam a suscitar outras investigações, em que impera o uso da categoria raça/cor como variável de produção de desigualdades.

Em Porto Alegre, a herança da mobilização civil do Orçamento Participativo e a existência de movimentos sociais negros, que, desde o fim da escravidão, estão presentes em diferentes temáticas e buscam dar visibilidade as disparidades, têm forjado implicações institucionais relevantes no enfrentamento das iniquidades em saúde. Desde a década de 2010, a existência de uma Gerência de Equidade Étnico-Racial, atualmente vinculada à Diretoria-Geral de Atenção Primária em Saúde do município, tem desempenhado papel importante de ações de educação em saúde, como a experiência do curso das Promotoras de Saúde da População Negra. A existência dos Comitês Técnicos de Saúde da População Negra nas Gerências Distritais de Saúde do município se apresenta como alternativa para enfrentar o cenário de disparidade identificado na capital do Rio Grande do Sul. A precarização do serviço de saúde, entretanto, no contexto do novo modelo de financiamento da atenção primária e a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2019, que considerou inconstitucional a existência do Instituto Municipal da Estratégia de Saúde da Família de Porto Alegre (IMESF), responsável pela gestão da saúde em parte considerável dos territórios vulneráveis da capital, podem colocar em xeque não apenas a política de equidade da população negra, mas a condição de acesso aos serviços das populações vulneráveis de toda a cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, buscou-se resgatar, em uma perspectiva histórica, como a raça se constituiu como categoria relevante para identificar e compreender a diferenciação entre os corpos, as comunidades e as nações nos auspícios do capitalismo racial. Amparado em estudos da teoria racial crítica, do marxismo negro e da decolonialidade, apresentou-se como a trajetória de constituição do arranjo social e geográfico no Brasil, em especial da cidade de Porto Alegre, forjou a manutenção das situações díspares entre brancos e negros.

A análise espacial é uma importante ferramenta para apoiar o conhecimento e a interpretação de fenômenos complexos em saúde pública, como o racismo. O uso de métodos geoestatísticos, aliado aos conhecimentos da epidemiologia, amplia a potência dos saberes da geografia e da saúde coletiva, que permitem investigações mais aproximadas da realidade. É mister salientar, contudo, a necessidade da qualificação dos dados, sobretudo da completude do preenchimento do campo raça/cor, como atenta a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Em um período de incertezas, de crise econômica e de desmonte do SUS, o acesso a dados públicos, aliado à exploração de informações em escalas cartográficas maiores, tende a ser mais eficaz na execução de medidas de intervenção/ação e, consequentemente, na redução de iniquidades.

O cenário de iniquidade em Porto Alegre sinaliza para a necessidade de novas investigações sobre as disparidades raciais que venham incluir categorias analíticas relevantes, como sexo, faixa etária, renda e condições ambientais e infraestruturais. O desafio metodológico é imenso, já que os limites dos distritos sanitários utilizados para a produção de informações em saúde na capital do Rio Grande do Sul não respeitam os limites dos setores censitários, forçando o uso de métodos de ajuste estatístico mais complexos. O olhar intraurbano como o apresentado neste texto deve ser encorajado, já que pode revelar as iniquidades em escalas onde a ação local tende a ser ainda mais potente.

  • Como citar: Polidoro M, Mahoche MJ, Bairros F, Meneghel SN, Rainone FN, Canavese D. Geografia das disparidades em saúde entre brancos e negros em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Cad Saúde Colet, 2023; Ahead of Print. https://doi.org/10.1590/1414-462X202331010454
  • Trabalho realizado no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) - Porto Alegre (RS), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nenhuma.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2020
  • Aceito
    20 Fev 2021
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