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Proteção social no capitalismo contemporâneo: contrarreformas e regressões dos direitos sociais

O capitalismo é capaz de transmutar-se e manter sua essência predatória. Os processos históricos agregamlhe características que marcam eras. Vive-se a era da financeirização do capital, com predomínio das megacorporações transnacionais que operam com relativa unidade nas estratégias globais de acumulação e dominação.

Essa configuração do capitalismo acentuou-se nos últimos quarenta anos, no seio da crise estrutural do capital manifesta desde o início da década de 1970, com aprofundamento a partir de 2008, quando um novo ciclo recessivo se espraiou no mundo, impulsionado pela crise imobiliária dos Estados Unidos. No curso da crise, o capital financeiro põe-se no centro das relações econômicas e sociais e, junto a grupos industriais transnacionais, assumiu o comando do conjunto da acumulação.

Este poder das finanças é multideterminado, porém, encontrou na dívida pública apoio fulcral. Esta pressionou o Estado em favor da liberalização dos mercados e das políticas para atrair créditos, como os juros altos, a supervalorização do mercado de ações, além de forçar as privatizações, alimentando, com isso, o mercado financeiro.

A simbiose entre as instituições econômicas e o Estado é parte da estratégia das elites econômicas para recompor seus poderes diante do esgotamento das estratégias de acumulação adotadas no pós-Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1970. A partir de então, um amplo projeto estratégico começou a ser articulado pelas elites econômicas e políticas de potências mundiais, assentado na doutrina neoliberal, transformada em diretriz central do pensamento e da administração econômicos. O neoliberalismo como teoria das práticas político-econômicas assevera que o bem-estar humano é potencializado liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais, em contextos em que os direitos à propriedade privada e ao livre mercado sejam sólidos. Neste projeto, cabe ao Estado criar e preservar estruturas institucionais apropriadas a estas práticas. Isso explica sua participação na conformação do capitalismo contemporâneo, em que são centrais as instituições constitutivas do capital financeiro - os bancos e os investidores institucionais (fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, fundos mútuos etc.).

Assim, a intervenção da burguesia imperial e multinacional subordina o Estado para alcançar suas metas em relação ao domínio político e à acumulação. Neste processo, impõe marcas predatórias em todos os continentes. Entre estas, encontram-se, o aprofundamento das desigualdades sociais e os altos níveis de pobreza em descompasso com o aumento e a concentração da riqueza; o desemprego generalizado e a ampliação das condições precárias de trabalho; a regressão dos direitos sociais e a apropriação do fundo público pelas frações do capital; a criminalização dos movimentos sociais resistentes às opressões e à exploração da classe trabalhadora; a perda de espaços democráticos; a expansão do neoconservadorismo e da ultradireita; e a destruição do meio ambiente.

Nos países da América Latina e do Caribe os elevados índices de pobreza e concentração de renda exacerbam a desigualdade social. Nesta parte do mundo, de economia dependente, são escassas as políticas sociais capazes de incidir em sua redução. A seguridade social, sobretudo a previdência social, que se distingue na história da proteção social na região, sofre contínuas restrições. Os direitos trabalhistas, à saúde e à educação pública, os investimentos públicos em cultura, lazer, habitação, esportes, transportes coletivos e políticas públicas de alimentação e geração de emprego seguem a lógica restritiva. Em vários países da região, as empresas públicas de infraestrutura básica e comunicação, como as de energia elétrica, água potável, esgoto e telefonia foram privatizadas. As processualidades históricas dos países imprimiram-lhes graus diferenciados de regressão dos direitos sociais. Mas não aboliram o nexo neoliberal, apesar da resistência dos trabalhadores.

Diante disso, é relevante esta edição temática da Revista Katálysis intitulada Proteção social no capitalismo contemporâneo: contrarreformas e regressões dos direitos sociais, que a partir de diversos pontos de vistas e perspectivas teóricas do campo crítico, possibilitará visão ampla da temática, com destaque para a realidade brasileira e argentina, sob efeitos da feroz guinada à direita, com avanço assustador do projeto neoliberal.

Abrindo a revista, Acumulação de capital, crise e mercado de trabalho no Brasil contemporâneo, de Gustavo Mello, Maurício de Souza Sabadini e Henrique Braga, relaciona as mudanças no mercado de trabalho brasileiro com a dinâmica da economia capitalista mundial das últimas décadas no contexto de aprofundamento da crise do capital. Em seguida, Alexandre Aranha Arbia traz Análise das políticas para o trabalho no Brasil: como Marx pode contribuir? De modo inovador, pautado no pensamento marxiano sobre a legislação fabril inglesa do século XIX, o autor resgata a legislação trabalhista no Brasil, do governo Vargas ao de Temer, para mostrar seus vínculos com a acumulação do capital. Em Sistema de proteção social brasileiro enquanto instrumento de combate à pobreza, Lauro Francisco Mattei trata da importância dos Sistemas de Proteção Social no combate à pobreza, com base nos sistemas dos países do capitalismo central e na crítica ao sistema brasileiro.

Introduzindo as reflexões sobre a Argentina, Trabajo, derechos sociales y protección social em Argentina de la reconstrucción neoliberal, de Malena Victoria Hopp e Eliana Lijterman, é analisada a reorganização da proteção social na Argentina, iniciada ao final de 2015, sob as diretrizes neoliberais. As autoras referenciam-se nas políticas estratégicas ditas de “inclusão ao trabalho” que estimulam as cooperativas de trabalho e a mercantilização dos direitos sociais.

Tiago Siqueira dos Reis, em Expropriação do funcionalismo público: o gerencialismo como projeto, problematiza o que chama “expropriação social do aparelho do Estado brasileiro” a partir da ideia de administração gerencial relativa às instituições públicas, defendida pelo governo Fernando Henrique entre 1995 e 2002.

A judicialização dos direitos é o ângulo de reflexão sobre os direitos sociais apresentado por Michaele Lemos Peixoto e Hayeska Costa Barroso em Judicialização e seguridade social: restrição ou efetivação de direitos sociais? As autoras problematizam o fenômeno da judicialização como mecanismo de acesso aos direitos diante das restrições das regulações e dos limites dos processos judiciais.

Estado Capitalista brasileiro: análise dos direitos sociais em tempos de ortodoxia neoliberal é a contribuição de Patrícia Soraya Mustafa. Nela a autora analisa o documento Uma Ponte para o Futuro e as medidas adotadas pelo governo Temer, como a contrarreforma trabalhista, as Emendas Constitucionais (EC) nº 93 e 95 e a proposta de contrarreforma da previdência social, procurando apontar consequências para a classe trabalhadora. Em Renda mínima e proteção social: aspectos históricos, teóricos e conjunturais, Robson Roberto da Silva ocupa-se da trajetória dos programas de renda mínima e de sua relação com os padrões de proteção social nos países do capitalismo central e da América Latina.

O artigo Interesses capitalistas e desafios para a efetivação dos direitos sociais: ataques e regressões, de Laís do Nascimento Vidal Lage, mostra a ofensiva capitalista às conquistas civilizatórias no Brasil, com ênfase nos anos recentes.

Adiante, agregando contribuições sobre a Argentina, Judit Evelyn Frank, Rosana Pieruzzini e Maricel Salera em Intervención social y los giros en la política problematizam indagações surgidas no marco do projeto de investigação sobre a intervenção social e suas relações com os processos de territorialidade e desterritorialidade na cidade de Paraná (província de Entre Ríos, Argentina). O propósito das autoras é oferecer um desenho operacional dos conceitos chaves nos dados empíricos que o caso oferece. Já o texto La responsabilidad social como estrategia de protección social en el capitalismo contemporáneo de Mariangel Sánchez e Tânia Maria Santana dos Santos parte da contrarreforma do Estado nos anos 1980 na América Latina, em que a estratégia de privatização ocorreu sob o viés da chamada Responsabilidade Social, para mostrar que esta potencializa a hegemonia burguesa.

Encerrando a parte temática, O social e o comum: neoliberalismo, biopolítica e renda universal, de Murilo Duarte Costa Corrêa e Cainã Domit Vieira, descortina a renda universal como uma linha de ataque biopolítico capaz de catalisar o que as autores denominam “instituição do comum” que, em suas opiniões, encerram a “alternativa ao dualismo mistificador entre neoliberalismo e welfarismo”.

Bruna Carolina Bonalume e Adriana Giaqueto Jacinto abrem o espaço tema livre com Encarceramento juvenil: o legado histórico da seletividade e criminalização da pobreza, abordando o encarceramento juvenil e o modo como a violência atravessa o cotidiano dessa população, inclusive pela seletividade da justiça em sociedades marcadas pela desigualdade de gênero, classe e raça/etnia.

Na sequência, A unidade financeirização e autorreprodução do capital: pressupostos marxianos e elementos contemporâneos, de Rodrigo Fernandes Ribeiro, analisa a unidade entre o processo de autorreprodução ampliada do capital e o fenômeno contemporâneo da financeirização, partindo de fundamentos marxianos.

Diana Bento de Mello, em El Programa Puntos de Cultura y sus destinatarios: un estudio de caso en la Provincia de Buenos Aires, trata da implementação do Programa Puntos de Cultura sob a ótica de seus destinatários, com ênfase no período a partir de 2016 quando houve mudança de gestores. Já em Emancipação política e a luta pelo direito à cidade, Ada Kallyne Sousa Lopes traz reflexões teóricas sobre o solo histórico em que se processa a luta pelo direito à cidade no Brasil e os limites decorrentes das determinações histórico-estruturais à emancipação política da cidade. O debate segue com Territorialidade quilombola e trabalho: relação não dicotômica cultura e natureza, de Maria Sueli Rodrigues de Sousa e Joaquim José Ferreira dos Santos, trazendo o trabalho e territorialidade quilombola como “processos não dicotômicos se tomada a categoria trabalho como não mediada por proprietários dos meios de produção, em que a relação cultura e natureza ocorre numa dinâmica em que o ser humano faz a si e o meio onde vive e trabalha”.

Fechando a edição, tem-se a resenha da obra de Fábio Régio Bento, Marxismo e Religião: revolução e religião na América Central, feita por Vinicius Pinheiro de Magalhães, segundo o qual a obra “permite que se vislumbrem possibilidades contra-hegemônicas nos espaços religiosos conservadores e reacionários”.

Com esta organização, a primeira edição de 2019 preserva o compromisso acadêmico da Revista Katálysis de alimentar o debate crítico sobre a sociedade capitalista, oferecendo aos seus leitores os preciosos textos apresentados, os quais, sob argumentos consistentes, trazem à tona as características contemporâneas do capitalismo e a regressão dos direitos sociais. É indubitável que estas produções acadêmicas jogarão luzes e impulsionarão as lutas sociais em defesa dos direitos essenciais à emancipação política na sociedade burguesa, combinada à luta pela emancipação humana - que pressupõe uma sociabilidade libertária, sem exploração, alienação e opressões. Deste modo, em tempos obscuros e temerários, esta edição é um lampejo de luz candente. A esperança é que, ao aproveitá-la, muitos se ponham em movimento, fortalecendo as lutas anticapitalistas.

Maria Lucia Lopes da Silva, Brasília, 5 de janeiro de 2019.

References

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019
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