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História Ambiental: Histórias Globais da Natureza e Cultura

O sociólogo britânico Anthony Giddens tem nos advertido que a condição histórica na qual sociedade contemporânea tem experimentado, o que ele define como modernidade, é uma sociedade repleta de riscos e constantes ameaças. Essa concepção não tem a finalidade escatológica de despertar o caos ou o desespero coletivo, mas é uma reflexão sobre a modernidade, seus riscos e desafios (Giddens, 1991). Diferente das abordagens sociológicas mais otimistas, que consideravam que o avanço da modernidade nos levaria a uma sociedade mais justa e igualitária, ou mesmo à consolidação de um tipo novo de solidariedade, fundamentada na diversidade, Giddens nos alerta para as ameaças e riscos muitas vezes não imaginados pelo pensamento sociológico clássico. Por isso, é que suas reflexões sobre a “ultramodernidade” é um chamado de alerta, de atenção histórica sobre fenômenos que podem ocorrer fora no radar teórico e das previsões mais utópicas, como por exemplo, a emergência de totalitarismos e movimentos de resistência ao conhecimento científico, por exemplo. E do ponto de vista ambiental, a voz profética que nos alerta sobre os riscos envolvendo o aquecimento global, as mudanças climáticas, o avanço sem precedentes da destruição de ecossistemas, a ocorrência incêndios que nos últimos anos tem atingidos diferentes formações ecológicas no globo, as ameaças às comunidades e povos tradicionais e seus direitos ancestrais, bem como outros fenômenos socioambientais globalmente recorrentes. Esse é um tema que envolve os diferentes campos do conhecimento, mas cujo caminho reflexivo tem exigido cada vez mais a compreensão dos processos históricos envolvidos, e os riscos que historicamente se repetem e perpetuam.

Muitas vezes os caminhos históricos nos apontam para visões românticas sobre o progresso e suas promessas. Mas ao mesmo tempo, como nos alerta Giddens, a desilusão ao “progresso”, é também um dos fatores que fundamentaram a dissolução de “narrativas” da história (Giddens, 1991). Nesse sentido, o ponto de vista histórico, e em especial a história ambiental, pode ser uma ferramenta do conhecimento fecundo e auxiliar no desenvolvimento crítico sobre as consequências da modernidade e no rompimento com certas limitações muito presentes nas perspectivas desenvolvimentista, por exemplo, que tem imperado na relação como ambiente e sociedade se apresentam no contexto latino-americano.

Quando consideramos a abordagem histórica na ultramodernidade não podemos perder de vista as concepções desenvolvidas pelo pensamento ocidental na construção de um conceito instrumental da natureza, com base na ruptura entre o mundo natural e social. A ruptura entre ambiente e sociedade gerava outra ruptura epistemológica, no qual a natureza passava a ser considerada como um tipo de conhecimento exclusivo das ciências naturais. Esse é um tema que parece já estar superado, apesar de que ainda persiste a luta simbólica de campos do conhecimento que se intitulam como detentores do conhecimento e do saber ambiental. E é justamente nessa defesa que vozes como a de Anthony Giddens se unem na crítica epistemológica e na defesa da indissociabilidade entre os problemas sociais e os ambientais (Giddens, 1998). E isso se justifica no fato de pensarmos a natureza a partir de escolhas, ações e práticas sociais, que impactam em processos históricos de mudanças ambientais. Dentre essas vozes destacamos a importante contribuição de Enrique Leff sobre a racionalidade ambiental (Leff, 2001LEFF, E. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez, 2001.). Enrique Leff se posiciona em defesa da ampliação das fronteiras do conhecimento quando pensamos na epistemologia e na racionalidade ambiental. O pensamento ambiental em Leff é inclusivo e democrático, propondo, por exemplo, a adesão de outras formas não-científicas do conhecimento. O saber ambiental como conhecimento errante, desprendido das armadilhas do progresso e outras externalidades dominantes. Essas externalidades podem ser de ordem econômica, social e política, com também pode representar até mesmo o monopólio científico-tecnológico do conhecimento, muitas vezes também excludente e demarcador de fronteiras (Leff, 2001).

E por considerar a importância dos ensinamentos de Leff, que nos apontam para uma ecologia da vida, das relações, do engajamento e da esperança, esse editorial também gostaria de prestar uma homenagem especial a um grande pensador e ativista brasileiros, que defende a natureza, as ancestralidades, os territórios e as territorialidades, e que nos deixou no dia 07 de setembro de 2023. Carlos Walter Porto-Gonçalves foi um dos mais importantes geógrafos de sua geração, e um pensador dedicado às questões socioambientais no Brasil e América Latina. Na academia foi responsável pela formação de mestres e doutores engajados na defesa dos territórios e saberes que vão além das fronteiras acadêmicas. Procurou se aproximar dos movimentos ambientais, com destaque por sua atuação em apoio a Chico Mendes e aos movimentos em defesa dos povos do campo, das cidades, e das florestas. Por isso, essa edição também é uma homenagem a Carlos Walter Porto-Gonçalves, pelo reconhecimento e inspiração na construção de um saber ambiental plural e engajado. Considerando a ampliação e o diálogo entre os campos da epistemologia ambiental e a interface qualificada com diferentes áreas do conhecimento, os editores de Ambiente & Sociedade apresentam essa nova edição, com artigos importantes e ricos no debate interdisciplinar envolvendo as humanidades ambientais.

Assim, essa edição espera contribuir com a ampliação do debate em ambiente e sociedade, cheios de desafios, oportunidades e esperança, e abrimos o Volume 27 da Revista Ambiente & Sociedade.

No artigo “Avaliação Ambiental do Uso de Agrotóxicos na Região do Cerrado do Brasil”, os autores, Marina Teodoro, Vitor S. Duarte, Mariana R. M. Costa, Ryan Nehring, Sandro Dutra e Silva, Giovanni A. Boggione & Hamilton B. Napolitano, procuram relacionar a expansão da fronteira agrícola no Cerrado com o uso sem precedentes de pesticidas, com ênfase no glifosato e na atrazina. Essa pesquisa, feita de forma interdisciplinar, e envolvendo diferentes grupos de pesquisa, propõe um mapeamento do consumo médio estimado de agrotóxicos por safra e os riscos associados à contaminação por glifosato e atrazina no estado de Goiás. Os argumentos deste artigo nos ajudam a refletir acerca dos desafios e ameaças para produção de alimentos de forma sustentável no Cerrado brasileiro.

Os autores Leonardo Marques Pacheco & Carlos Valério Aguiar Gomes, em seu artigo “A trajetória do movimento social do extrativismo florestal: Mudanças nas lutas e estratégias políticas, demandas e conquistas na Amazônia brasileira”, analisam o papel central dos movimentos sociais surgidos na década de 1980 na América Latina. Os pesquisadores analisam as transformações históricas em relação às conquistas, estratégias e demandas das populações extrativistas, com ênfase na Amazônia brasileira. O principal argumento é que o movimento continua forte na região, mas com lutas simbólicas em relação às metas e propósitos do movimento.

Além dos artigos relativos à temática da história ambiental, essa edição da Revista Ambiente & Sociedade conta outros artigos numa perspectiva interdisciplinar sobre as questões que envolvem a relação entre ambiente e sociedade. Nesse sentido, no artigo “Convivencialidade e sustentabilidade: estudos de caso sobre a governança de recursos naturais no Brasil”, Tiago Juliano, Caroline Malagutti Fassina, Cristina Isis Buck Silva, Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade & Edson Pereira de Souza Leão Neto exploram, de forma comparativa, as possibilidades e limitações à convivencialidade no regime da produção de meliponíneos e da pesca manejada do pirarucu (Arapaima spp.) na região amazônica, e do extrativismo do palmito juçara (Euterpe edulis) em porções da Mata Atlântica. Os resultados do artigo concluem que a retomada do sentido comunal como princípio de ação política pode ser um fator que possibilita horizontes mais amplos quanto à sustentabilidade dos regimes de governança desses recursos.

Os autores Aline Costa Gonzalez, Irene Carniatto & Vilmar Alves Pereira, em seu artigo “Impactos dos Desastres Socioambientais no Oeste do Paraná entre 2010 e 2020”, realizam uma análise dos desastres socioambientais e seus impactos em três municípios do Oeste do Paraná (PR), utilizando-se da análise de documentos e outros dados secundários. Com isso, os resultados deste artigo mostram que vendavais, alagamentos e granizos são os desastres mais frequentes na região estudada. Esse cenário, segundo os autores, corrobora para a necessidade de ações de gestão de riscos e de desastres, subsidiando processos de adaptação dos municípios às mudanças climáticas, com redução dos riscos e dos desastres.

No artigo “A produção do humano na Oceanografia Clássica: uma crítica a partir da Oceanografia Socioambiental”, os autores Gustavo Goulart Moreira Moura & Antônio Carlos Sant’Ana Diegues versam acerca da produção do pescador artesanal através da análise de um grupo de profissionais que mobilizou conhecimentos e verdades para a criação de uma legislação de pesca no estuário da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul (RS). Seguindo a perspectiva da Oceanografia Socioambiental, os pesquisadores constatam uma formação discursiva estruturada por eixos paradigmáticos clássicos da oceanografia, promovendo a estereotipificação dos pescadores artesanais e a criação de políticas públicas de pesca.

A partir de uma avaliação do ciclo de vida híbrida, utilizando-se da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008 a 2018, Celso da Silveira Cachola & Sérgio Almeida Pacca, no artigo “Emissões de carbono das famílias brasileiras por meio da POF e da matriz de insumo-produto”, analisam a pegada de carbono das famílias brasileiras. Os resultados obtidos pelos autores indicam que as famílias brasileiras mais pobres foram responsáveis por quase 12% do total de emissões de carbono em 2018, enquanto que as mais ricas por cerca de 8% do total dessas emissões (ainda que representassem quase 2,5% do total de famílias brasileiras em 2018).

Em seu artigo “Environmental assessment of pesticide use in the cerrado region of Brazil”, os pesquisadores Marina Teodoro, Vitor S. Duarte, Mariana R. M. Costa, Ryan Nehring, Sandro D. Silva, Giovanni A. Boggione & Hamilton B. Napolitano realizam um mapeamento do consumo médio de pesticidas por safra, e uma compreensão dos riscos de contaminação por glifosato e atrazina no estado de Goiás (GO). Os resultados desse artigo possibilitam compreender que as áreas em estudo servem de base para o entendimento dos desafios e das oportunidades de sustentabilidade associados à agricultura no cerrado brasileiro.

As autoras Giulia de Paula Silveira & Elisa Hardt desenvolveram o artigo “Impacto da certificação REDD+ nas taxas de desmatamento da RESEX Rio Preto-Jacundá na Amazônia”, cujo objetivo é avaliar o impacto de um Projeto REDD+ para a conservação de floresta da RESEX Rio Preto-Jacundá, no estado de Rondônia (RO). A partir de uma análise quantitativa de forma comparativa entre dois períodos temporais (2004-2012 e 2012-2020), os resultados do artigo apontam que, depois de 2015, há uma maior tendência de desmatamentos dentro da RESEX em detrimento ao estado de RO; enquanto que, entre os anos de 2016 e 2019, todos os desmatamentos aconteceram dentro dos limites do Projeto REDD+.

Com base na aplicação de uma matriz de indicadores, Anna Carolina Espósito Sanchez & Valéria Ghisloti Iared, em seu artigo “Educação ambiental na rede pública de ensino do oeste do Paraná”, analisam a incorporação da educação ambiental em escolas estaduais situadas no Núcleo Regional de Toledo, no PR. As autoras desse artigo, em termos de resultados, observaram que as 59 escolas participantes relatam a existência de ações em educação ambiental; mas destacam que os recursos tanto financeiros quanto humanos para a área, bem como a aproximação das escolas com as comunidades do entorno se mostram bastante frágil. Com isso, o artigo nos permite fazer um panorama da percepção e atuação das escolas no campo da educação ambiental, embora sejam necessários estudos ainda mais amplos.

No artigo “A trajetória do movimento social dos extrativistas florestais da Amazônia: Mudanças nas lutas políticas, estratégias, demandas e conquistas”, Leonardo Marques Pacheco & Carlos Valério Aguiar Gomes analisam como as mudanças têm afetado a dinâmica relacionada à mudança de escala; assim como essa mudança afeta a percepção de conquistas, estratégias e demandas pelo movimento dos extrativistas florestais da Amazônia brasileira, utilizando-se, para isso, de arquivos de organizações locais e nacionais, e entrevistas aplicadas a lideranças do movimento social em questão. Os resultados do artigo apontam que o movimento (marcante na região até os dias atuais) vem modificando suas estratégias e demandas, mas o que não significa dizer que estão se tornando menos eficazes em reivindicarem suas demandas por meio da política.

Desejamos a todos uma leitura gratificante!

References

  • GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: UNESP, 1998.
  • GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991
  • LEFF, E. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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