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Produtos da Sociobiodiversidade: potencial do agroextrativismo sustentável em Mato Grosso do Sul

Resumo

É crescente a busca por sistemas agroalimentares mais sustentáveis. Este trabalho visa indicar as principais iniciativas do agroextrativismo no estado de Mato de Grosso do Sul - biomas Cerrado e Pantanal - seus produtos, as perspectivas de mercado/consumo e o panorama do ambiente institucional. Foram escolhidas espécies nativas que possuem processamento e comercialização realizados por iniciativas familiares. Aspectos relevantes das políticas públicas e análise do potencial de mercado foram baseados em revisão bibliográfica. O aproveitamento de 15 espécies nativas presentes em 12 comunidades, demonstram o potencial dos sistemas alimentares, com reconhecimento dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e da agricultura familiar. Os produtos da sociobiodiversidade valorizam sua origem e suas funções sociais, ambientais e econômicas, podendo conquistar novos mercados sustentáveis, inclusive os internacionais.

Palavras-chave:
Agricultura Familiar; Cerrado; Pantanal; Espécies Nativas; Mercado

Abstract

The search for sustainable agri-food systems is increasing. This study aims to identify the main initiatives of agroextractivism in the state of Mato de Grosso do Sul (Cerrado and the Pantanal biomes), their products, market/consumption perspectives, and the panorama of the institutional environment. Native species with processing and marketing conducted through family initiatives were selected. The relevant aspects of public policies and market potential analyses were based on a literature review. The use of 15 native species present in 12 communities demonstrates the potential of food systems with the recognition of indigenous peoples, quilombolas, traditional communities, and family farming. Sociobiodiversity products value their origin and social, environmental, and economic functions, and can conquer new sustainable markets, including international ones.

Keywords:
Family farming; Savanna; Wetlands; Native species; Market

Resumen

Crece la búsqueda de sistemas agroalimentarios más sostenibles. Este trabajo tiene como objetivo señalar las principales iniciativas de agroextractivismo en el estado de Mato Grosso do Sul - Biomas Cerrado y Pantanal - sus productos elaborados, perspectivas de mercado/consumo y el panorama del entorno institucional. Eligieron especies autóctonas y su procesamiento y comercialización son llevado a cabo por iniciativas familiares. Los aspectos relevantes de las políticas públicas y el análisis del potencial del mercado se basaron en una revisión de la literatura. El uso de 15 especies nativas presentes en 12 comunidades demuestra el potencial para viabilizar sistemas alimentarios, con el reconocimiento de los pueblos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionales y la agricultura familiar. Los productos de sociobiodiversidad valoran su origen, función social, ambiental y económica, y pueden conquistar nuevos mercados sostenibles, incluidos los internacionales.

Palabras-clave:
Agricultura familiar; Cerrado; Pantanal; Especies nativas; Mercado

Introdução

Atualmente são reconhecidas 50.091 espécies na flora e funga brasileira, incluindo nativas, cultivadas e naturalizadas (FLORA E FUNGA DO BRASIL, 2022). Apenas uma fração dessa flora, tão rica em espécies alimentícias, é conhecida, destacando-se a possibilidade de uso dos frutos com potenciais benefícios à saúde, atrativos sensoriais para o seu consumo in natura e desenvolvimento de produtos, que podem contribuir para melhorar a renda das populações locais e para a conservação da biodiversidade (TEIXEIRA et al., 2019TEIXEIRA, N.; MELO, J. C. S.; BATISTA, L., F.; SOUZA, P. J.; FRONZA L. P.; BRANDÃO, M. G. Edible fruits from Brazilian biodiversity: A review on their sensorial characteristics versus bioactivity as tool to select research. Food Research International, v. 119, p. 325-348, 2019.). Os produtos da biodiversidade são essenciais para assegurar a segurança alimentar e nutricional das populações humanas, além de representar um caminho para uso sustentável dos recursos naturais.

O desenvolvimento destes produtos forma sistemas produtivos associados à manutenção e à valorização de práticas e saberes da sociedade, assegurando os direitos decorrentes para gerar renda, melhorar a qualidade de vida e do ambiente (MATO GROSSO DO SUL, 2018). Também estão relacionados às cadeias produtivas de interesse dos povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares (BRASIL, 2021a), assim como o cultivo de espécies alimentícias nativas promove estratégias de conservação dos recursos genéticos e de restauração ecológica em áreas degradadas (GONDIM et al., 2021GONDIM, E. X.; FERREIRA, B. H DOS S.; REIS, L. K.; GUERRA, A.; ABRAHÃO, M.; AJALLA, A. C. A.; VOLPE, E.; GARCIA, L. C. “Growth, Flowering and Fruiting of Campomanesia Adamantium (Cambess) O. Berg Intercropped with Green Manure Species in Agroforestry Systems.” Agroforestry Systems, v. 95, p. 1261-1273, 2021.).

Mato Grosso do Sul possui 71.164 estabelecimentos rurais, dos quais 74,6% são representados pela agricultura familiar (IBGE, 2017). Em relação às Comunidades Remanescentes de Quilombos, são 22 reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, distribuídas em 15 municípios (SECID, 2021a); e 84 aldeias indígenas localizadas em 29 municípios, representadas por 08 etnias (SECID, 2021b). Além dessa diversidade social com cultura diversa, Bortolotto et al. (2018BORTOLOTTO I. M.; DAMASCENO-JUNIOR, G. A.; POTT, A. Preliminary list of native food plants of Mato Grosso do Sul, Brazil. Iheringia - Ser Bot, v. 73, p.101-116, 2018.) listaram 294 espécies alimentícias nativas ou com potencial alimentício, incluindo as que têm usos tradicionais e já são comercializadas.

A importância do uso econômico e nutricional de plantas nativas do Cerrado e do Pantanal pelas populações locais, assim como do papel das mulheres na valorização e conservação das plantas alimentícias no MS tem sido discutida recentemente (BORTOLOTTO et al., 2017BORTOLOTTO, I. M., HIANE, P. A., ISHII, I. H. et al. A knowledge network to promote the use and valorization of wild food plants in the Pantanal and Cerrado, Brazil. Regional Environmental Change, v. 17, p. 1329-1341, 2017.; BORTOLOTTO et al., 2021). Apesar disso, houve um desmonte das políticas de segurança alimentar e nutricional no Brasil, com a ampliação da insegurança alimentar grave, o aumento da prevalência de obesidade e das demais doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à alimentação, requerendo novos desafios para impulsionar a adoção de sistemas agroalimentares sustentáveis e saudáveis (POMPEIA; SCHNEIDER, 2021POMPEIA, C.; SCHNEIDER, S. As diferentes narrativas alimentares do agronegócio. Edição especial - Agronegócio em tempos de colapso planetário: abordagens críticas. Ambiente e Desenvolvimento, v. 57, p. 175-198, jun. 2021.).

Articular este potencial de produção e consumo responsáveis com as políticas públicas direcionadas para os povos e comunidades tradicionais, ainda é muito recente no MS. A Política Estadual de Agroecologia, Produção Orgânica e Extrativismo Orgânico Sustentável - PEAPO/MS (MATO GROSSO DO SUL, 2018) visa promover o potencial estratégico dos produtos da sociobiodiversidade, apoiando a agroindustrialização e o acesso a novos mercados sustentáveis. Entretanto, não há um mercado consolidado para a maioria destes produtos, sendo necessário identificar o potencial agroextrativista, as novas parcerias e as políticas públicas (BORTOLOTTO et al., 2021BORTOLOTTO, I. M.; ZIOLKOWSKI, N. E.; GOMES, R. J. B.; ALMEIDA, F. S, CAMPOS, P. C.; AOKI, C Mulheres em rede: conectando saberes sobre plantas alimentícias do Cerrado e Pantanal. Ethnoscientia, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 198-232, abr. 2021.). Desta forma, há um desafio para o fortalecimento do agroextrativismo sustentável, envolvendo associações, cooperativas, redes, circuitos curtos e médios de comercialização, bem como para a promoção do consumo dos seus produtos.

O presente trabalho tem por objetivo destacar os produtos da sociobiodiversidade e as iniciativas agroextrativistas em Mato Grosso do Sul, assim como discutir o potencial de acesso aos mercados e as políticas públicas vigentes, relacionados com o desenvolvimento do agroextrativismo na perspectiva de implementação de um sistema agroalimentar sustentável. Este artigo está dividido em quatro partes: a primeira apresenta espécies de plantas nativas utilizadas na elaboração de produtos alimentícios; a segunda evidencia as iniciativas agroextrativistas que geram renda com estes produtos; a terceira trata do potencial de mercado, de consumo e de cadeias produtivas da sociobiodiversidade no MS. A quarta parte discute o ambiente institucional considerado relevante para o agroextrativismo sustentável, seguida das considerações finais.

Metodologia

A obtenção e a organização das informações consideradas relevantes para descrever as perspectivas do agroextrativismo sustentável no estado de Mato Grosso do Sul tiveram um enfoque qualitativo e descritivo. Os dados foram coletados por meio de observações não participante, documentos e revisão bibliográfica. A observação não participante é uma técnica que permite o registro de informações, atuando como um expectador atento (GODOY, 1995GODOY, A. S. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n.3, p, 20-29, 1995.).

Neste trabalho, resgataram-se as informações da observação não participante adotada durante as oficinas de extensão conduzidas entre 2006 e 2021, no âmbito dos projetos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, relatados abaixo. Nestas oficinas foram desenvolvidas preparações e produtos processados, a partir de espécies nativas, com a participação de representantes de comunidades indígenas, quilombolas e em assentamentos rurais com atividades extrativistas.

A identificação das espécies consideradas para discussão neste trabalho está baseada nas experiências destas oficinas. Os critérios para escolha das espécies e seus principais produtos também consideraram a sua participação nas dinâmicas de produção e comercialização destas comunidades conforme proposto por Bispo et al. (2021BISPO, T. W.; GUÉNEAU, S.; BRAGA, C. L.; LIMA, C. C. Cadeias produtivas dos frutos nativos do Cerrado: estudos de caso sobre o agroextrativismo no vale do rio Urucuia em Minas Gerais e no sul maranhense. IGepec, v. 25, p. 133-152, 2021 (Edição Especial: 58ºCongresso da SOBER).), considerando a relevância para a economia local.

As informações sobre a descrição das iniciativas agroextrativistas e os canais de distribuição foram obtidas a partir de sites de projetos de extensão desenvolvidos entre 2019 e 2021, a saber: Agroextrativismo Sustentável: compartilhando saberes e práticas culturais locais (https://agroextrativismosustentavel.ufms.br/) e Valorização de Plantas Alimentícias do Cerrado e Pantanal (https://sabores.ufms.br/projeto/); e de outras instituições e organizações: União das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária - Unicafes/MS (https://www.unicafes.org.br/uf/MS) e Rede de Mulheres Produtoras do Cerrado e Pantanal - CerraPan (https://ecoa.org.br/conheca-os-produtos-e-comunidades-da-rede-cerrapan). A Figura 1 mostra a localização de iniciativas agroextrativistas na conexão Cerrado-Pantanal (BORTOLOTTO et al., 2021BORTOLOTTO, I. M.; ZIOLKOWSKI, N. E.; GOMES, R. J. B.; ALMEIDA, F. S, CAMPOS, P. C.; AOKI, C Mulheres em rede: conectando saberes sobre plantas alimentícias do Cerrado e Pantanal. Ethnoscientia, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 198-232, abr. 2021.).

O enfoque sobre a importância e as possibilidades de identificação de novos mercados foi abordado a partir de revisão bibliográfica, por meio do portal online de periódicos da Capes, assim como o levantamento das políticas públicas vigentes, com vistas a se obter uma atualização da legislação que contribui na valorização dos produtos da sociobiodiversidade. Ainda como foco da discussão foi proposta uma abordagem de sistemas agroalimentares sustentáveis como possibilidade de encadeamento e interligação de elos desta cadeia produtiva, de forma a promover o agroextrativismo como uma alternativa de desenvolvimento local sustentável.

Figura 1
Localização das comunidades com atividades extrativistas para produção de alimentos a partir de plantas nativas em Mato Grosso do Sul, Brasil

Resultados e Discussão

Produtos da sociobiodiversidade no MS

O aproveitamento dos frutos (castanha e polpa), palmitos e caules (representados pelos principais produtos da sociobiodiversidade) in natura ou processados, agroindustrializados e comercializados a partir de iniciativas locais pelas organizações agroextrativistas no MS demonstraram o potencial de uso alimentício das espécies nativas (Quadro 1).

Os produtos destacados no Quadro 1 são derivados de mais de 20 espécies de plantas nativas, considerando-se que há 8 espécies de Campomanesia (guaviras), três de Hymenaea (jatobás), além de 3 de Acrocomia (bocaiuvas) citadas para o MS (FLORA E FUNGA DO BRASIL, 2022). Destacaram-se também o acuri/bacuri, baru/cumbaru, mangaba e pequi pois apresentaram grande perspectiva de aproveitamento extrativista de frutos e/ou castanhas, com uma diversidade de aplicações em produtos alimentícios para fins comerciais associados às estratégias de manejo. Outros frutos como araçá, jenipapo, jabuticaba, marolo, e o fruto e o caule do jaracatiá, têm sido utilizados em alguns produtos com valor agregado como sorvetes, geleias, licores e outros.

Muitas preparações de produtos artesanais, como os derivados de jaracatiá (Jacaratia corumbensis Kuntze), tarumã (Vitex cymosa Bertero ex Spreng.) e canjiqueira (Byrsonima cydoniifolia A. Juss.) por exemplo, apresentam potencial para aumentar sua comercialização e seus usos pelas populações locais vêm sendo incentivados (DAMASCENO-JÚNIOR; SOUZA, 2010; BORTOLOTTO et al., 2017BORTOLOTTO, I. M., HIANE, P. A., ISHII, I. H. et al. A knowledge network to promote the use and valorization of wild food plants in the Pantanal and Cerrado, Brazil. Regional Environmental Change, v. 17, p. 1329-1341, 2017.). Eles não foram incluídos no Quadro 1 por não serem comercializados, embora sejam processados, com elaboração de sucos, geleias e doces, para consumo local. O mesmo ocorre em relação ao arroz-do-pantanal (Oryza spp.), que é um produto sazonal sem colheitas nos últimos 4 anos (2019 a 2022).

Quadro 1
Plantas alimentícias e produtos da sociobiodiversidade relacionados às iniciativas e organizações no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil

Várias espécies e produtos apresentados no Quadro 1 estão contemplados na Portaria Interministerial do MAPA/MMA n° 10 de 21/07/2021 (BRASIL, 2021a), a qual instituiu a lista de espécies nativas e seus produtos derivados da sociobiodiversidade para comercialização no âmbito das compras públicas, contendo 94 itens com nomes populares, partes mais utilizadas, exemplos de uso, distribuição geográfica e situação de cultivo (colhidas na natureza ou cultivadas). O acuri, o marolo e a laranjinha-de-pacu não estão inseridos nesta portaria, assim como, para a bocaiuva não consta o estado de MS na distribuição geográfica. Frutos de espécies do Pantanal, como laranjinha-de-pacu, apresentaram grande potencial com o desenvolvimento de novos produtos alimentícios em comunidades ribeirinhas. Da mesma forma, há uma importante produção de farinha de bocaiuva nos municípios de Corumbá e Aquidauana - MS. A ausência das espécies e dos produtos derivados na Portaria Interministerial demonstra a necessidade de maior visibilidade da ocorrência das espécies e dos produtos do agroextrativismo do estado.

Essas plantas nativas fizeram parte da dieta das comunidades do Cerrado e do Pantanal na América do Sul há centenas de anos, entretanto, foi nas últimas duas décadas que passaram a ter maior aproveitamento em função de iniciativas das comunidades e do suporte de instituições de ensino, pesquisa e de ONGs para criação e implementação de áreas de processamento, estudos sobre valor nutricional e possibilidades de agregação de valor, especialmente dos frutos (BORTOLOTTO et al., 2021BORTOLOTTO, I. M.; ZIOLKOWSKI, N. E.; GOMES, R. J. B.; ALMEIDA, F. S, CAMPOS, P. C.; AOKI, C Mulheres em rede: conectando saberes sobre plantas alimentícias do Cerrado e Pantanal. Ethnoscientia, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 198-232, abr. 2021.). Reflexos positivos podem ser observados no Assentamento Andalucia, Nioaque-MS, com ênfase no aproveitamento dos recursos vegetais do Cerrado Sul-mato-grossense, agregando valores aos produtos, e com produção de mudas do baru, de forma a incentivar o processo de desenvolvimento local com sustentabilidade (ARAKAKI et al., 2009ARAKAKI, A. H.; SCHEIDT, G. N.; PORTELLA, A. C.; ARRUDA, E. J.; COSTA, R. B. da O baru (Dipteryx alata Vog.) como alternativa de sustentabilidade em área de fragmento florestal do Cerrado, no Mato Grosso do Sul. Interações, v. 10, n. 1, p. 31-39, 2009.).

O baru e seus produtos (farinha da polpa, castanhas torradas e extrato vegetal da castanha) apresentaram a maior frequência de aproveitamento nas iniciativas e organizações agroextrativistas do MS (Quadro 1), oito iniciativas envolvidas na sua coleta e processamento. Em 2021 foram coletadas 68 toneladas de frutos de baru, envolvendo 10 comunidades locais, indígenas e tradicionais (ECOA, 2022), das quais cinco estão apresentadas neste trabalho (Quadro 1). Fato semelhante foi relatado no sul do Maranhão, onde o baru se destacou dentre os frutos do agroextrativismo, em especial visando a produção da castanha torrada (BISPO et al., 2021BISPO, T. W.; GUÉNEAU, S.; BRAGA, C. L.; LIMA, C. C. Cadeias produtivas dos frutos nativos do Cerrado: estudos de caso sobre o agroextrativismo no vale do rio Urucuia em Minas Gerais e no sul maranhense. IGepec, v. 25, p. 133-152, 2021 (Edição Especial: 58ºCongresso da SOBER).).

O baru, juntamente com a bocaiuva, foram as primeiras espécies exploradas em maior escala para fins comerciais no MS, apresentando vastas áreas de ocorrência no estado. A bocaiuva, o jatobá e o acuri têm sido processados nas próprias comunidades, principalmente para elaboração de farinhas. Destaca-se a importância da obtenção de farinhas, castanhas torradas e de óleos e licores, pois permitem o armazenamento em temperatura ambiente e maior vida útil, representando inovação em produtos, além de possibilidade de alcançar novos mercados, mais distantes geograficamente e sem investir em cadeia de frio.

O pequi e a guavira, embora com possibilidades de desenvolvimento de produtos com maior valor agregado, têm seus frutos comercializados principalmente in natura. A castanha de pequi apresenta inúmeras possibilidades de uso ainda inexploradas no MS, possivelmente devido à dificuldade de sua extração e a falta de tecnologias apropriadas. Em produtos processados a partir de frutos de cupuaçu, maracujá e muruci foi observado maior facilidade de acessar mercados, como na forma de polpa, de fácil uso nas escolas (MOTA et al., 2021MOTA, J. S. da; SILVA, D. W.; PAULETTO, D. A inserção de produtos da Sociobiodiversidade na alimentação escolar no município de Santarém, PA. Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento, v. 15, n. 1, p. 92-114, 2021.). A elaboração de produtos do agroextrativismo foi relevante para as economias locais, se destacando tanto no âmbito da pesquisa científica quanto de mercado, focando no aproveitamento, processamento e comercialização (BISPO et al., 2021BISPO, T. W.; GUÉNEAU, S.; BRAGA, C. L.; LIMA, C. C. Cadeias produtivas dos frutos nativos do Cerrado: estudos de caso sobre o agroextrativismo no vale do rio Urucuia em Minas Gerais e no sul maranhense. IGepec, v. 25, p. 133-152, 2021 (Edição Especial: 58ºCongresso da SOBER).).

Os sabores diversificados e especiais foram evidenciados na organização de diversas receitas, favorecendo a geração de renda e qualidade de vida em comunidades tradicionais (DAMASCENO-JÚNIOR; SOUZA, 2010, BORTOLOTTO et al., 2017BORTOLOTTO, I. M., HIANE, P. A., ISHII, I. H. et al. A knowledge network to promote the use and valorization of wild food plants in the Pantanal and Cerrado, Brazil. Regional Environmental Change, v. 17, p. 1329-1341, 2017.). Formas que identifiquem e diferenciem estes tipos de produtos e suas origens precisam ser incentivadas, assim como mercados com preços justos (GUÉNEAU et al., 2017GUÉNEAU, S.; DINIZ, J. D. de A. S.; MENDONÇA, S. D; GARCIA, J. P. Construção social dos mercados de frutos do Cerrado: entre sociobiodiversidade e alta gastronomia. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v. 7, n. 1, p. 130-156, 2017.). A valorização das espécies nativas no MS, com a agregação de valor aos produtos da sociobiodiversidade discutidos, pode representar um diferencial do agroextrativismo de base sustentável.

Iniciativas Agroextrativistas no MS

As iniciativas analisadas neste artigo evidenciaram o aproveitamento especialmente de frutos de espécies nativas presentes nas aldeias indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, assim como na agricultura familiar. No Quadro 2, foram indicadas estas comunidades e suas principais associações, cooperativas e grupos relacionados do agroextrativismo no MS, que comercializam frutos nativos e seus produtos, assim como características relacionadas à área e o tempo de atuação destas iniciativas.

Quadro 2
Informações sobre as principais iniciativas em agroextrativismo sustentável que comercializam espécies alimentícias de Mato Grosso do Sul, Brasil

As iniciativas apresentadas no Quadro 2 articulam e estimulam a participação de pessoas para o desenvolvimento do agroextrativismo sustentável e para a comercialização dos produtos. Alguns já possuem a produção de mudas de espécies nativas e início de implantação de sistema agroflorestal, demonstrando o potencial de fortalecer processos territoriais de conservação e promoção de sistemas alimentares sustentáveis. Conforme breve descrição, a maioria das iniciativas agroextrativistas apresentadas neste trabalho iniciaram seus empreendimentos antes de 2010. Dentre as 12 comunidades apresentadas no Quadro 2, cinco fazem parte da CerraPan, uma rede composta por mulheres articulada com a ONG Ecoa, duas cooperativas pertencentes à União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) do MS e outras 4 mencionam mulheres como gestoras, o que caracteriza uma força de trabalho das mulheres e um diferencial nessa linha no Estado.

Estudos anteriores apresentam movimentos que se destacam no MS em relação à organização social de mulheres voltadas ao extrativismo, além da ECOA e Unicafes/MS, como o Movimento de Economia Solidária (especialmente por comunidades indígenas e agricultoras de assentamento de reforma agrária), demonstrando o papel das mulheres na valorização e conservação das plantas alimentícias do Cerrado e Pantanal no MS, sendo fundamental impulsionar esse movimento em rede (BORTOLOTTO et al., 2021BORTOLOTTO, I. M.; ZIOLKOWSKI, N. E.; GOMES, R. J. B.; ALMEIDA, F. S, CAMPOS, P. C.; AOKI, C Mulheres em rede: conectando saberes sobre plantas alimentícias do Cerrado e Pantanal. Ethnoscientia, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 198-232, abr. 2021.).

As comunidades rurais, associações e cooperativas de agricultura familiar e solidária que processam espécies nativas do MS, como as ilustradas no Quadro 2, têm se fortalecido ao longo dos anos, de forma a promover a cultura local e o ecoturismo. Para tanto, as redes de produção, comercialização e consumo visam avançar na conservação ambiental, no intercâmbio de metodologias e tecnologias sociais, não só em nível local, mas regional, nacional e internacional.

De forma semelhante, Bispo et al. (2021BISPO, T. W.; GUÉNEAU, S.; BRAGA, C. L.; LIMA, C. C. Cadeias produtivas dos frutos nativos do Cerrado: estudos de caso sobre o agroextrativismo no vale do rio Urucuia em Minas Gerais e no sul maranhense. IGepec, v. 25, p. 133-152, 2021 (Edição Especial: 58ºCongresso da SOBER).) consideraram que o fator chave para a melhoria da comercialização e, consequentemente, da qualidade de vida, no caso dos agroextrativistas, é a organização da cadeia produtiva, onde estão incluídos a qualidade da matéria-prima, a melhoria da logística e do processamento dos frutos nativos, assim como maior interação ao longo das cadeias.

Nesse sentido, é possível observar que as iniciativas agroextrativistas, assim como a agregação de valor aos produtos processados, possibilitaram a manutenção das condições para comercialização, sendo necessário incentivar o acesso a mercados mais dinâmicos, fator decisivo para obter vantagens competitivas valorizando produtores e práticas locais inclusivas.

Mercados e consumo para produtos sustentáveis

De maneira geral, os produtos da sociobiodiversidade apresentaram reduzida participação no mercado de produtos agroindustrializados, sendo a maioria processados em pequena escala. Entretanto, uma perspectiva de cadeia produtiva sustentável para as espécies nativas do Pantanal e Cerrado de Mato Grosso do Sul foi identificada neste trabalho, cujos principais atores estão destacados na Figura 2. Observam-se os principais elementos, a partir de alguns frutos nativos, para elaboração de alimentos com valor agregado e seus canais para comercialização até o consumidor final.

Figura 2
Representação esquemática de uma cadeia agroindustrial de produtos do agroextrativismo sustentável com destaque para sociobiodiversidade no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil

As farinhas de frutos nativos apresentaram vários canais de distribuição, sendo comercializadas nas casas de artesão em diferentes municípios como Aquidauana, Campo Grande e Corumbá-MS, no mercado municipal de Campo Grande e em empreendimentos locais, como feiras, empórios, lojas e centrais de comercialização de economia solidária, entre outros estabelecimentos comerciais locais. No caso da guavira, com a safra concentrada entre novembro e início de dezembro, é frequente a presença de esquemas de atravessadores que ofertam esses frutos nas rodovias e centros urbanos de MS. Entretanto na feira indígena em Campo Grande, ocorre tradicionalmente a venda direta da guavira a granel, proveniente da coleta de frutos pelos indígenas. Uma forte participação de atravessadores foi relatada na comercialização de pequi em áreas de Cerrado de Minas Gerais e Maranhão, assim como diminuição da participação dos agroextrativistas no preço final do produto e possível dependência e subordinação às regras estabelecidas pelo intermediário (BISPO et al., 2021BISPO, T. W.; GUÉNEAU, S.; BRAGA, C. L.; LIMA, C. C. Cadeias produtivas dos frutos nativos do Cerrado: estudos de caso sobre o agroextrativismo no vale do rio Urucuia em Minas Gerais e no sul maranhense. IGepec, v. 25, p. 133-152, 2021 (Edição Especial: 58ºCongresso da SOBER).).

O mercado para os produtos da sociobiodiversidade ocorre ainda de forma pontual no MS, sem regularidade de produção e de distribuição ao longo dos anos, no entanto apesar de um mercado incipiente, novas parcerias estão sendo criadas para comercialização, enfatizando os aspectos relacionados à dieta, nutrição e meio ambiente/conservação (BORTOLOTTO et al., 2017BORTOLOTTO, I. M., HIANE, P. A., ISHII, I. H. et al. A knowledge network to promote the use and valorization of wild food plants in the Pantanal and Cerrado, Brazil. Regional Environmental Change, v. 17, p. 1329-1341, 2017.; BORTOLOTTO et al., 2021). Para que sejam criados mercados ou estruturas de cadeias de suprimentos baseados na localidade é necessário repensar questões como potencial produtivo da região, análise do mercado do consumidor, tradição e cultura da região, fatores mercadológicos e sociais (SOUZA et al., 2020SOUZA, A. B. DE; FORNAZIER, A.; DELGROSSI, M. E. Sistemas agroalimentares locais: possibilidades de novas conexões de mercados para a agricultura familiar. Ambiente e Sociedade, v. 23, 2020.).

Observa-se que nos últimos anos, os produtos da sociobiodiversidade têm sido comercializados em feiras locais e em eventos científicos, como o Simpósio de Frutos Nativos e Exóticos e o Seminário Estadual da Guavira, aproximando produtores e consumidores. No caso de redes de mercados em Campo Grande-MS, foi encontrada a castanha de baru torrada, porcionada e embalada por empresas que não estão diretamente ligadas às iniciativas agroextrativistas. Tendo em vista a tendência de circuitos longos de comercialização e da gastronomia, Guéneau et al. (2017GUÉNEAU, S.; DINIZ, J. D. de A. S.; MENDONÇA, S. D; GARCIA, J. P. Construção social dos mercados de frutos do Cerrado: entre sociobiodiversidade e alta gastronomia. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v. 7, n. 1, p. 130-156, 2017.) enfatizam a necessidade de incluir um sistema que identifique e diferencie os produtos das cooperativas que se preocupam com a qualidade, preços justos, e que valorize o contexto socioambiental das comunidades extrativistas. Também os consumidores podem ser influentes na promoção da sustentabilidade, alinhando suas compras com o pensamento sustentável (NYSTRÖM et al., 2019NYSTRÖM, M.; JOUFFRAY, J. B.; NORSTRÖM, A. V.; CRONA, B.; SØGAARD JØRGEN-SEN, P; CARPENTER, S. R.; BODIN, Ö.; GALAZ, V.; FOLKE, C. Anatomy and resilience of the global production ecosystem. Nature, v. 575, n. 7, 2019.).

Algumas das iniciativas descritas no Quadro 2 participam de programas de compras públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), embora ainda seja pequena a aquisição de produtos com os frutos nativos nestes programas. Bispo et al. (2021BISPO, T. W.; GUÉNEAU, S.; BRAGA, C. L.; LIMA, C. C. Cadeias produtivas dos frutos nativos do Cerrado: estudos de caso sobre o agroextrativismo no vale do rio Urucuia em Minas Gerais e no sul maranhense. IGepec, v. 25, p. 133-152, 2021 (Edição Especial: 58ºCongresso da SOBER).) alertaram sobre a forte dependência de compras públicas para a manutenção das cadeias produtivas do agroextrativismo, principalmente por parte de cooperativas e associações, que direcionam as vendas e os padrões de produtos para os mercados institucionais, como o PNAE e o PAA.

Os produtos agroindustrializados a partir de frutos do Cerrado baru/cumbaru, pequi e babaçu permitiram a comercialização em mercado institucional, o que contribuiu para o fortalecimento dos sistemas de produção local, consolidando uma complementação de renda importante para a agricultura familiar e a diversificação das estratégias econômicas das famílias (MENDES et al., 2014MENDES, M. F.; SILVA, M. de A.; NEVES, S. M. A. da S.; NEVES, R. J.; SEABRA JUNIOR, S. A organização e a produção agroindustrial extrativista na fronteira Brasil-Bolívia, na região sudoeste de Mato Grosso. Revista Conexão UEPG, v. 10, n. 1, p. 140-149. 2014.). A abordagem de sistemas agroalimentares locais abrange conceitos relacionados ao desenvolvimento rural, à sustentabilidade, aos mercados institucionais, aos arranjos produtivos, à produção de qualidade, aos impactos econômicos em comunidades e mudanças no padrão de consumo, além do fomento de políticas públicas que forneçam suporte à organização de seus agentes (SOUZA et al., 2020SOUZA, A. B. DE; FORNAZIER, A.; DELGROSSI, M. E. Sistemas agroalimentares locais: possibilidades de novas conexões de mercados para a agricultura familiar. Ambiente e Sociedade, v. 23, 2020.).

Desta forma, se torna necessário um esforço para que um conjunto de produtos locais, obtidos de forma sustentável, esteja presente num fluxo constante, envolvendo organização das etapas de coleta, armazenamento, agroindustrialização e distribuição/comercialização. Com este apoio, os produtos da sociobiodiversidade poderiam aumentar a presença nos diferentes canais de distribuição representados na Figura 2, estando à disposição dos consumidores e favorecendo hábitos regulares de uso e consumo sustentáveis.

Observa-se um panorama onde os consumidores nos centros urbanos desconhecem a maioria dos produtos alimentícios oriundos dos biomas locais. O apoio e os esforços para o fortalecimento do agroextrativismo sustentável podem possibilitar o acesso a novos mercados, para esses produtos com valor agregado, prestigiando os ecossistemas naturais, suas origens e funções social, ambiental e econômica.

Ambiente institucional e sua importância para o agroextrativismo

Um dos principais componentes do ambiente institucional quando se discutem as cadeias agroindustriais é o conjunto de normas e leis que regem o funcionamento das mesmas, as quais podem, inclusive, serem compostas por hábitos e costumes (ZYLBERSTAJN; NEVES, 2000). Estas regem as relações entre os agentes econômicos, o modo de operação das atividades, as formas de processamento, preferências por produtos e muitos outros elementos que podem estar estabelecidos, em algumas situações, majoritariamente pelo uso e costume e que, à medida que a atividade se formaliza e consolida no sistema produtivo, acaba sendo alvo de normas e regulamentos.

A legislação relacionada com a temática da produção sustentável é ampla, com leis, decretos, programas, políticas e planos, no âmbito federal e estadual. A Lei de Política Agrícola (BRASIL, 1991) prevê que o apoio do Poder Público será extensivo: Art. 45 - “aos grupos indígenas, pescadores artesanais e àqueles que se dedicam às atividades de extrativismo vegetal não predatório”; e Art. 48 - para “armazenamento, beneficiamento e instalação de agroindústria”. Sobre a Unidade Familiar de Produção Agrária, em decreto recente (BRASIL, 2021b), as políticas públicas deverão considerar os empreendimentos familiares rurais (constituídos por pessoa jurídica e com a finalidade de produção, beneficiamento, processamento ou comercialização, ou ainda para prestação de serviços de turismo rural), assim como as formas associativas de organização da agricultura familiar. Desta forma, observou-se o dever do Poder Público em apoiar os empreendimentos familiares incluindo operações de beneficiamento, processamento e comercialização, assim como o extrativismo vegetal.

Devido a importância do uso sustentável da biodiversidade e a proteção dos saberes ancestrais criou-se a Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015 (Lei da Biodiversidade), onde os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares tiveram garantido o direito de decisão no que se refere ao uso dos conhecimentos tradicionais e a repartição de benefícios, dentre outros (BRASIL, 2015).

Políticas de apoio e fomento à comercialização, visando gerar renda para agricultores familiares, assentados da reforma agrária, silvicultores, extrativistas, pescadores, indígenas e integrantes de povos e comunidades tradicionais, incentivam o escoamento da produção agroextrativista. Dentre estas, Souza et al. (2020SOUZA, A. B. DE; FORNAZIER, A.; DELGROSSI, M. E. Sistemas agroalimentares locais: possibilidades de novas conexões de mercados para a agricultura familiar. Ambiente e Sociedade, v. 23, 2020.) destacaram o PAA e o PNAE, utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente destes produtores, de no mínimo 30% dos recursos, contribuindo com sistemas alimentares locais.

Recentemente, o limite individual do valor de venda do agricultor familiar e do empreendedor familiar rural, para atender a alimentação escolar, teve seu valor máximo dobrado, chegando a quarenta mil reais por DAP familiar/ano/entidade executora (BRASIL, 2021c). A aquisição de produtos da sociobiodiversidade no PNAE, além de promover uma alimentação mais saudável, pode ser um resgate dos costumes alimentares, valorizando a floresta e seus modos de vida, formulando novos cardápios das escolas e resultando em dinamização da economia local (MOTA et al., 2021MOTA, J. S. da; SILVA, D. W.; PAULETTO, D. A inserção de produtos da Sociobiodiversidade na alimentação escolar no município de Santarém, PA. Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento, v. 15, n. 1, p. 92-114, 2021.).

O Programa Alimenta Brasil, equivalente ao PAA, visa fomentar a produção sustentável da agricultura familiar e promover a sua inclusão econômica e social, o processamento, a industrialização de alimentos e a geração de renda, assim como incentivar o consumo e a valorização destes alimentos, dentre outras finalidades (BRASIL, 2021d). Desde a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN, para assegurar o direito humano à alimentação adequada, foram previstos mecanismos de garantia de preços mínimos para os produtos da sociobiodiversidade; conservação, manejo e uso sustentável da agrobiodiversidade, assim como a segurança alimentar e nutricional de povos e comunidades tradicionais, dentre outras ações (BRASIL, 2006). Em 2021, a Política de Garantia de Preços Mínimos para Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio) teve aumento do pagamento para subvenção direta ao produtor extrativista, garantindo um preço mínimo para comercialização de 17 produtos nativos, dentre os quais baru, buriti, bocaiuva (macaúba), mangaba e pequi (GOVERNO DO BRASIL, 2021).

Vale ressaltar que as políticas governamentais, assim como as grandes corporações transnacionais, assumiram um papel central na produção ecológica global, com capacidade de influenciar práticas nas cadeias de suprimentos locais e tendo um potencial poderoso de mudança para melhorar a sustentabilidade (NYSTRÖM et al., 2019NYSTRÖM, M.; JOUFFRAY, J. B.; NORSTRÖM, A. V.; CRONA, B.; SØGAARD JØRGEN-SEN, P; CARPENTER, S. R.; BODIN, Ö.; GALAZ, V.; FOLKE, C. Anatomy and resilience of the global production ecosystem. Nature, v. 575, n. 7, 2019.).

O Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade (PNPSB), de 2008, em seguida a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) de 2012, Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) de 2015, Plano Nacional de Fortalecimento das Comunidades Extrativistas e Ribeirinhas (Planafe) de 2015, e recentemente o Programa Bioeconomia Brasil - Sociobiodiversidade, visam promover a estruturação de sistemas produtivos baseados no extrativismo sustentável e na sociobiodiversidade, neste último, relacionando ao conceito da bioeconomia (BRASIL, 2019).

No MS, o potencial dos frutos nativos pode ter maior repercussão com a certificação do extrativismo orgânico sustentável a partir do Plano Estadual (PLEAPO) (MATO GROSSO DO SUL, 2020). Este Plano faz parte da Política Estadual de Agroecologia, Produção Orgânica e Extrativismo Orgânico Sustentável (PEAPO), que prevê incentivo à diversificação e à geração de trabalho e renda no meio rural, por meio do apoio à agroindustrialização e ao turismo rural, priorizando-se a organização de cadeias curtas, dos empreendimentos cooperativos, de economia solidária, das feiras e eventos diversos com venda direta ao consumidor (MATO GROSSO DO SUL, 2018).

Nos últimos 20 anos, o ambiente institucional avançou na determinação de um aparato legal de suporte para a produção familiar, e, inclusive, de modo mais específico, para o incentivo e amparo da produção sustentável, entendida aqui em suas nuances de produção orgânica, de produção das comunidades locais, da produção de produtos nativos, locais e regionais. Nesse sentido, o envolvimento de ações nas diferentes esferas de governo federal, estadual e municipal, assim como de suas empresas públicas, universidades e institutos de pesquisa e extensão pode fortalecer a produção agroextrativista como forma de conservar a biodiversidade, a segurança alimentar e nutricional e o desenvolvimento sustentável.

Portanto, a estruturação de cadeias produtivas que permitam esta produção de relevância regional valorizará seus aspectos culturais, de sustentabilidade, podendo tornar-se uma vantagem competitiva em mercados de consumidores de alimentos sensíveis ao perfil socioambiental e cultural de seus produtores. A melhor estruturação do ambiente organizacional, apoiando as associações, cooperativas e outros agroextrativistas, permitirá expandir sua participação na economia de mercado, inclusive, avançando em nichos no exterior.

Conclusões

Os produtos da sociobiodiversidade apresentam potencial para o desenvolvimento endógeno das comunidades do Cerrado e do Pantanal no MS, com destaque para as que possuem estrutura de organização e áreas de produção de alimentos coletivas, contribuindo para promoção de segurança alimentar e nutricional, a partir das comunidades indígenas, quilombolas e da agricultura familiar.

No aproveitamento dos frutos das espécies nativas destacam-se acuri, bocaiuva, cumbaru, jatobá, guavira e pequi por serem espécies de vasta ocorrência no MS com diversidade de produtos de valor agregado, o que valoriza suas origens e funções social, ambiental e econômica, com possibilidades de inovação e sustentabilidade.

Observa-se a importância do consumidor consciente no estabelecimento dos mercados diferenciados para estes produtos, assim como a identificação de economias de escopo, com a distribuição destes produtos baseados no desenvolvimento rural e local inclusivo.

As políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e as relacionadas ao extrativismo sustentável, principalmente a Política e o Plano Estadual de Mato Grosso do Sul, podem contribuir nas perspectivas de fluxo de comercialização destes produtos, valorizando sistemas alimentares locais e sustentáveis.

A legislação de amparo para o agroextrativismo também reflete que a sociedade começa a reconhecer a importância deste segmento, e a sua evolução nos últimos anos demonstra a incorporação dessa valorização no ambiente institucional.

Os desafios são amplos, recomendam-se novos estudos com foco em canais de comercialização, fomento à organização das iniciativas agroextrativistas com vistas à sustentabilidade, comunicação destes produtos e seus preparos, assim como dos aspectos de valorização social e ambiental que os diferenciam de produtos convencionais, usuais no padrão de alimentação nacional.

Agradecimentos

Agradecemos às comunidades participantes das ações de extensão, aos parceiros institucionais, ao apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa, ao Ensino e à Cultura (FAPEC) pela execução financeira via Emenda Parlamentar n°14510014 e à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2021
  • Aceito
    13 Fev 2023
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