Acessibilidade / Reportar erro

A carta reavida: o lugar do analista e a prática em cuidados paliativos*1 *1 Este artigo é fruto dos desdobramentos de um caso acompanhado durante o Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional, Modalidade Residência Hospitalar, vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IP/UERJ, e cujo campo de prática é o Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ. O trabalho foi escrito conjuntamente pelos autores que acompanharam o caso, uma como residente, outro como supervisor, no Setor de Urgências Subjetivas.

The letter recovered*2 *2 In Portuguese in “reavida” there is a wordplay with reecovered and life 3 3 In Portuguese in “reavida” there is a wordplay with recovered and life. : the analyst’s place and practice in palliative care

La lettre retrouvée4 4 En Portugais dans “reavida” il ya un jeu-de-mots entre recuperée et vie. : la place et la pratique de l’analyste dans les soins palliatifs

La carta recuperada5 5 En português en “reavida” hay un juego de palabras entre recuperada y vida. : el lugar del analista y la práctica en cuidados paliativos

O artigo tem como objetivo refletir sobre o lugar que o analista pode vir a ocupar nos casos de pacientes em cuidados de fim de vida no hospital. A possibilidade de morte iminente, própria dessa clínica, encarna de forma fatídica o encontro com o real como impossível, mote da psicanálise em qualquer circunstância. A partir do relato de caso de uma paciente, acompanhada apenas durante seu último dia de vida, ressaltamos os efeitos possibilitados por uma escuta analítica, na medida em que se deu lugar para as angústias e desejos dos sujeitos envolvidos, e concluímos sobre a importância dessa escuta Outra, em relação à oferecida pela equipe médica. Ao abordarmos o tema dos cuidados paliativos, sublinhamos, por um lado, as dificuldades dos profissionais em lidar com a morte da paciente, e, por outro, problematizamos os impasses colocados pela falta de integralização dessa prática ainda hoje.

Palavras-chave:
Lugar do analista; cuidados paliativos; hospital; sujeito do desejo


Resumos

This paper reflects on the place that the analyst can occupy in cases of end-of-life care patients at the hospital setting. The possibility of imminent death in this type of care fatally embodies the encounter with the real as impossible, the motto of psychoanalysis in any circumstance. Based on the case report of a patient’s last day of life, the article emphasizes the effects made possible by a psychoanalytical listening, insofar as it gave room to the anguishes and desires of subjects involved, concluding on the importance of such an listening against that provided by the medical team. In discussing palliative care, it both underlines the professionals’ difficulties in dealing with patient death, and problematizes the impasses posed by the lack of integration of this practice.

Key words:
Place of the analyst; palliative care; hospital; subject of desire

Cet article propose une réflexion sur la place que l’analyste peut occuper face au cas des patients en soins de fin de vie à l’hôpital. La possibilité d’une mort imminente, propre à cette clinique, incarne fatalement la rencontre avec le réel comme impossible, devise de la phychanalyse en toute circonstance. À partir du rapport de cas du dernier jour de vie d’une patiente, l’article souligne les effets rendus possibles par une écoute analytique, dans la mesure où elle à donner place aux angoisses et aux désirs des sujets impliqués, concluant sur l’importance d’une telle écoute contre celle fournie par l’équipe médicale. En abordant les soins palliatifs, il souligne à la fois les difficultés des professionnels à faire face à la mort du patient, et problématise les impasses posées par le manque d’intégration de cette pratique.

Mots clés:
Place de l’analyste; soins palliatifs; hôpital; sujet du désir


El artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el lugar que puede llegar a ocupar el analista en los casos de pacientes sometidos a cuidados al final de la vida en el hospital. La posibilidad de muerte inminente, propia de esta clínica, encarna de manera fatídica el encuentro con lo real como imposible, horizonte del psicoanálisis en cualquier circunstancia. A partir del relato de caso de una paciente, seguido solo durante su último día de vida, destacamos los efectos posibilitados por una escucha analítica, en tanto dio lugar a las angustias y deseos de los sujetos involucrados, y concluimos sobre la importancia de una escucha Otra en relación con la asistencia brindada por el equipo médico. Una escucha que, a cambio, pone al equipo y al paciente en el trabajo, y hace que el último movimiento del sujeto del deseo llegue a su destino. Al abordar el tema de los cuidados paliativos, subrayamos, por un lado, las dificultades de los profesionales en el enfrentamiento de la muerte del paciente, y, por otro lado, problematizamos los impasses que plantea la falta de integración de esta práctica aún hoy.

Palabras clave:
Lugar del analista; cuidados paliativos; hospital; sujeto de deseo


Introdução

Em conferência proferida a médicos no Collège de Médecine à La Salpêtrière, Lacan (1966/2001)Lacan, J. (2001). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana: Revista da Escola Brasileira Internacional de Psicanálise, 32, 8-14. (Trabalho original publicado em 1966). discute a questão que lhe fora ali endereçada sobre o lugar da psicanálise na medicina. Tomando por coordenada “a aceleração que vivemos quanto ao lugar da ciência na vida comum” (p. 8), ele propõe considerar o lugar da psicanálise na medicina do ponto de vista do médico, da modificação que teria se produzido em sua função pelo que descreveu, portanto, como o “aparecimento de um homem que sirva às condições de um mundo científico” (p. 9). Ao nos voltarmos ao contexto dos cuidados paliativos1 1 Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), "Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos, espirituais” (WHO, 2002). e de fim de vida no hospital, partiremos da orientação dada por Lacan na conferência, interrogando, como ele (p. 10), em que medida os eixos que fundam a posição do psicanalista poderiam converter-se, nessa conjuntura, em balizas ao médico, especialmente ao lidar com a realidade da morte e os limites da cura. Em que o lugar do psicanalista teria também a contribuir para uma prática em cuidados paliativos e no fim de vida? A discussão de tal questão terá por lastro nossa experiência em hospital, aqui articulada nos termos de um caso em particular.

A existência de pacientes em cuidados paliativos no hospital e a assistência desses pelas equipes não garantem que se efetivem as consequências do encontro com o incurável e a inclusão da morte como horizonte do cuidado. Podem se constituir práticas em cuidados paliativos que deixem de fora as implicações radicais do incurável e da morte para o trabalho clínico com esses pacientes. Entendemos que não se trata simplesmente de estabelecer uma mudança de objeto, mas de se promover um deslocamento de posição. Daí Malengreau (1995)Malengreau, P. (1995). Para uma clínica de cuidados paliativos. Opção Lacaniana: Revista da Escola Internacional Brasileira de Psicanálise, 13, 87-90. questionar se “a maneira pela qual a psicanálise inclui em sua própria experiência os limites que ela encontra; será ela capaz de oferecer alguma referência a uma prática tendo por objetivo, não curar, mas atenuar o irredutível de um real” (p. 87). Não se trataria, como indicamos, do saber médico simplesmente tomando o incurável e a morte por objeto, mas o incurável e a morte implicando uma outra posição frente ao saber, debilitando o saber médico em razão de limites que não são suplantáveis.

Voltando à conferência de Lacan (1966/2001)Lacan, J. (2001). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana: Revista da Escola Brasileira Internacional de Psicanálise, 32, 8-14. (Trabalho original publicado em 1966)., a partir do que a experiência da psicanálise teria desvelado, é justamente a falha no saber que ofereceria ao médico uma possibilidade de resposta aos novos desafios que a ele se apresentam. Seja “a estrutura da falha que existe entre a demanda e o desejo” (p. 10), que Lacan entende dar-se a ver mesmo na experiência médica mais banal, embora só a psicanálise a tenha formalizado; seja na dimensão menos evidente de que a relação entre saber e corpo não contempla o gozo desse último. Retomando a perspectiva de que as mudanças que vieram a constituir a posição atual do médico advêm de injunções reportáveis à aceleração da presença do discurso científico, ele assinala como “falha epistemo-somática o efeito que terá o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo” (p. 11). Isto é, a própria subordinação do corpo ao saber científico denota, em sua falha, que “um corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo” (p. 11). O gozo situa aí, para Lacan, esse limite do corpo ao saber, engendrado, contudo, pela própria tentativa de colonização de um pelo outro; limite ao saber com que Freud já se deparara ao incluir na psicanálise a via aberta com a postulação de uma pulsão de morte (1920/1996c). O incurável e a morte — é o que pretendemos discutir com base no caso abaixo — confrontariam o profissional a esses limites, em um ponto no qual uma nova especialidade não consegue suplantá-los. Há uma necessária convocação ao trabalho frente a uma fronteira intransponível, trabalho não inteiramente informado por um saber compartilhável.

O caso: da angústia ao desejo de saber, uma despedida possível

A paciente Cecília2 2 Nome fictício usado para preservar a identidade da paciente. tinha 37 anos e descobrira o diagnóstico de HIV havia dois anos e meio. Como decorrência da doença, a paciente desenvolvera hipertensão pulmonar. No início de 2020, o Estado trocara o medicamento de alto custo que ela tomava por outro, cujos riscos de acarretar hepatite medicamentosa eram maiores. Foi o caso de Cecília, que, referindo-se a esse fato, desabafou: “o Estado mata a gente”. Devido à hepatite, ela tinha necessidade de realizar um transplante de fígado, porém seu quadro de hipertensão pulmonar fazia com que a cirurgia fosse contraindicada naquelas circunstâncias.

A equipe solicitara atendimento psicológico por perceber a paciente muito angustiada. Quando nos aproximamos de seu leito para atendê-la, Cecília demonstrou ter urgência em falar, e se disse desesperada. Ela relatou não saber se estava melhorando de seu quadro clínico, o que permitiria eventualmente que ela voltasse para casa, ou, ao contrário, se iria morrer no hospital. A paciente tinha medo de que a equipe médica não estivesse lhe contando toda a verdade e, a fim de confortá-la, escondessem algo. Cecília deixou explícito que precisava saber se não haveria mais tratamento para sua doença, para que, assim, ela pudesse se preparar para a morte. A suspensão produzida pelo não saber sobre seu prognóstico era o que lhe causava angústia. Ao longo do atendimento, foi possível a ela formular algumas perguntas sobre o tratamento, as quais gostaria de endereçar aos médicos.

Dirigimo-nos à equipe, que foi muito receptiva. Os médicos explicaram que, diante do cenário de impossibilidade do transplante do fígado, as chances de regeneração do órgão eram muito pequenas, mas que, pela literatura, não podiam afirmar ao certo as probabilidades. Como a paciente era jovem, eles acreditavam, e queriam muito acreditar, que havia alguma possibilidade de recuperação. No entanto, alertavam para o fato de que, se houvesse uma piora repentina, o óbito poderia ocorrer de forma muito rápida, isto é, em questão de horas. Após escutá-los, pudemos perceber que a equipe também estava muito angustiada diante da impotência em curar a paciente, assim como em dar uma resposta precisa quanto à sua morte. Apesar desse não saber também comparecer do lado dos médicos, algo de não dito quanto ao fim dos recursos para o tratamento do fígado de Cecília estava sendo transmitido para a paciente, causando-lhe desespero. Mais do que o direito da paciente em saber, princípio inscrito na rotina médica, ela desejava saber.

A partir do que pudemos apontar, uma médica que acompanhava o caso reconheceu a dificuldade da equipe em tratar do assunto, uma vez que a paciente era jovem, tinha uma filha de 11 anos e estava completamente lúcida. Geralmente os médicos estavam acostumados a tratar da paliação com os familiares, por conta do quadro comum de rebaixamento da consciência dos pacientes nessas condições. Esse caso era diferente, pois, além de lúcida, Cecília queria saber sobre a morte, o que quase ninguém conseguia escutar. Oferecemo-nos para ir junto com a médica para essa conversa.

Quando a médica se aproximou do leito da paciente, Cecília perguntou sobre outras questões mais específicas e superficiais sobre seu quadro, e depois calou. Insistimos, questionando se ela tinha outras perguntas. Ela então conseguiu formular aos poucos a dúvida sobre se estavam lhe falando a verdade. A médica, sensível, lhe devolveu: “sobre o quê?”, e a paciente então conseguiu fazer a tão temida pergunta, de forma indireta: “sobre se eu vou morrer”. A médica pôde lhe responder que era muito difícil para os médicos reconhecerem, e ainda mais dizerem isso, mas que eles também não sabiam. A médica explicou-lhe sobre sua atual situação clínica e que, apesar de não haver mais proposta curativa, a equipe desejava muito que ela melhorasse e estavam fazendo tudo que era possível para isso, cuidando dela da melhor forma. Cecília demonstrou enorme apaziguamento após essa conversa.

À tarde, nesse mesmo dia, a médica nos solicitou novamente, devido à piora da paciente. Cecília havia entrado em processo de morte ativa e já havia sido informado a ela e à sua mãe sobre a iminência de seu óbito. Quando nos aproximamos de Cecília, ela sentenciou que ia morrer. Sabia que “todos tinham a sua hora”, já que a “a única certeza era a morte”, mas, apesar disso, ao chegar o momento da própria morte, não sabia o que esperar ou o que fazer, pois “ninguém sabe sua hora”. O fato de saber disso fazia com que o desespero fosse outro, diferente do primeiro. Não era mais o da (in)certeza, mas o da certeza da morte iminente. Ela estava cansada de sofrer e de lutar contra a doença que enfrentava há tanto tempo. Por conta disso, afirmou que desejava morrer, mas, ao dizê-lo, sentiu-se culpada por desistir, projetando no Outro um julgamento. Ao escutá-la, pôde se questionar o que seria tal desistência, uma vez que desejar parar de sofrer não era o mesmo que desistir. Sublinhamos também a coragem que ela tinha de pensar, falar e enfrentar a morte, do modo que estava fazendo.

Cecília também lamentou o fato de não ter ninguém da sua família com ela nesse momento. Sua mãe havia ido ao hospital, mas fora embora para casa, pois, segundo a paciente, não aguentara permanecer ao seu lado e fugira da notícia. A paciente refletiu que, se estava difícil para ela própria, era possível imaginar como devia estar sendo para sua mãe. A constatação de estar sozinha naquela hora lhe trazia muito sofrimento, o qual vinha acompanhado da tentativa de compreender e interpretar o porquê disso. Diante de sua fala e de seu sentimento de solidão, perguntamos se ela gostaria de escrever uma carta. A paciente então ditou duas cartas, uma endereçada à sua mãe e outra à sua filha.

Depois de escrever a carta, lembramos de um recurso que desenvolvêramos para o atendimento dos pacientes com Covid-19, que naquele momento não podiam receber visitas: a videochamada com familiares. Ligamos para a mãe da paciente, para escutá-la e também para lhe falar sobre o desejo da filha de realizar a videochamada. Com o consentimento da paciente e da mãe, diversos familiares se reuniram, inclusive sua filha, para estarem presentes nesse instante de despedida. Ao final, Cecília percebeu que todos estavam emocionados, e, quando perguntamos sobre ela, assumiu que também estava, apesar de ter disfarçado. Após essa ligação, Cecília afirmou que não ia conseguir dormir sozinha, e então oferecemos nossa presença como companhia e testemunho. Mais tarde, ela pediu para descansar e nos despedimos. Pouco tempo depois, chegou a mensagem da médica informando sobre o falecimento da paciente, e agradecendo a possibilidade de termos realizado um trabalho integrado, de forma a proporcionar uma despedida sem pendências.

Os cuidados paliativos e o lugar do analista

Ao relatarmos o acompanhamento do último dia de vida de Cecília, por um lado, iluminamos as possibilidades criadas, mesmo diante da morte, proporcionadas por uma escuta analítica em um atendimento pontual. Por outro, não podemos deixar de problematizar a falta de um cuidado integralizado da equipe multidisciplinar, que permitisse que a paciente e sua família pudessem ter sido atendidas anteriormente, antecipando as intervenções clínico-institucionais, e evitando, assim, o prolongamento e/ou o aumento de suas angústias. De acordo com a OMS (WHO, 2002WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. (2a ed.). WHO, 2002.), tal como citamos anteriormente, os cuidados paliativos pressupõem o trabalho multidisciplinar e a identificação precoce do sofrimento, a fim de prevenir e promover alívio do sofrimento, seja este físico, social, psicológico ou espiritual.

A partir dessa definição, podemos mesmo questionar se esse atendimento derradeiro se enquadraria como parte de uma assistência em cuidados paliativos, na medida em que, apesar de seus efeitos terem proporcionado algum destino possível para o mal-estar da paciente, compreendido para além do desconforto físico, o fato de só ter sido realizado tardiamente, sem acompanhamento prévio, acaba por contrariar um dos princípios dessa prática. A urgência de seu atendimento evidencia justamente a falta de um cuidado integrado anterior e necessário. As consequências de seu acompanhamento não devem mascarar essa lacuna institucional, na medida em que, apesar de tudo, muito pode ser feito com tão pouco recurso de tempo.

Portanto, a fim de melhor analisarmos as contingências existentes nesse caso, as quais não permitiram um reconhecimento precoce do sofrimento da paciente, faz-se necessário contextualizar como foi realizado o atendimento a Cecília. Quando a encontramos pela primeira vez, ela estava em seu décimo primeiro dia de internação. Apesar de em tempos anteriores à pandemia trabalharmos com oferta de atendimento, visando escutar todos os pacientes internados nas enfermarias nas quais atuávamos, em junho de 2020, um dos momentos com maior número de internações por Covid-19 neste hospital, o cenário era outro. Nesse período, foram poucos os psicólogos que continuaram a trabalhar presencialmente, de modo que passamos a oferecer atendimento por demanda nas mais diversas enfermarias, nas quais não estávamos inseridos na rotina hospitalar.

Por conseguinte, se é verdade que podemos afirmar que a pandemia e sua consequente desestruturação do trabalho regular no hospital contribuíram para o atraso na solicitação e/ou oferta de atendimento à paciente, realizado apenas em seu último dia de vida, não podemos deixar de notar que, apesar de o trabalho em cuidados paliativos ter seu início no Brasil na década de 1980, experimentando crescimento significativo, nos anos 2000 (Carvalho e Parsons, 2012Carvalho, R. T., & Parsons, H. A. (Orgs.) (2012). Manual de Cuidados Paliativos ANCP. (2a ed.). Recuperado de: <http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/05/Manual-de-cuidadospaliativos-ANCP.pd>.
http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-conten...
), na prática, esse ainda está longe de ser uma realidade implementada enquanto política pública sistematizada e efetiva.

Sublinhamos no relato do caso uma posição subjetiva dos profissionais da equipe que recusavam lidar com a morte, ou até mesmo com o não saber sobre a morte. Essa perspectiva é corroborada por Lorenzzoni, Vilela e Rodrigues (2019)Lorenzzoni, A. M. V., Vilela, A. F. B., & Rodrigues, F. S. S. (2019). Equipe multiprofissional nos cuidados paliativos em oncologia: uma revisão integrativa. Revista Espaço Ciência & Saúde. 7(1), 34-48. Recuperado de: <https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/201044>.
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/2...
, que afirmam ser possível que a equipe multiprofissional se sinta frustrada ao lidar com a morte e com o sofrimento humano, na medida em que as relações entre o cuidador e o ser cuidado envolvem sentimentos complexos. Assim, os autores evidenciam a necessidade da busca por capacitação dentro ou fora das instituições de trabalho que oportunizem momentos de discussão entre a equipe, e também a importância de realizar mais pesquisas dentro dessa temática.

No entanto, é imprescindível sustentarmos que a demora da equipe em perceber o sofrimento da paciente e solicitar o atendimento psicológico está relacionada também a questões objetivas. Apesar de ser reconhecida a importância da humanização do cuidado, existem muitas dificuldades para executá-la, e a graduação não prepara os profissionais para a atuação em cuidados paliativos (Oliveira, Maranhão e Barroso, 2017Oliveira, T. C. B., Maranhão, T. L. G., Barroso, M. L. (2017). Equipe Multiprofissional de Cuidados Paliativos da Oncologia Pediátrica: Uma Revisão Sistemática. Revista de Psicologia, 11 (35), 492-530. Doi: https://doi.org/10.14295/idonline.v11i35.754.
https://doi.org/10.14295/idonline.v11i35...
). Essa questão se torna ainda mais relevante quando se trata de um hospital universitário, como é o caso.

Molin et al. (2021)Molin, A., Lanferdini, I. I. Z.,Vanini, S., Ebel, A., & Picinin, D. (2021). Cuidados Paliativos na assistência hospitalar: A percepção da equipe multiprofissional. Brazilian Journal of Health Review, 4(1), 1962-1976. Doi:10.34119/bjhrv4n1-159.
https://doi.org/10.34119/bjhrv4n1-159...
elencaram, dentre as dificuldades para a realização dessa prática, a falta de comunicação e o despreparo dos profissionais. Dessa maneira, a sugestão dos autores é de que as instituições de modo geral busquem programas de educação continuada, e invistam em comissões internas de cuidados paliativos, para um melhor preparo e atuação dos profissionais nesse cenário de cuidado.

Outra pesquisa realizada com os profissionais de uma Unidade de Terapia Intensiva revelou que a assistência à saúde de pacientes em cuidados paliativos nessa unidade é direcionada à promoção do conforto. O conforto relacionado ao bem-estar físico foi o mais presente nos discursos dos participantes da pesquisa, o que deixou evidente a necessidade de capacitação multiprofissional para uma assistência do conforto de forma holística (Pires et al., 2020Pires, I. B., Menezes, T. M., Cerqueira, B. B., Albuquerque, R. S., Moura, H. C., Freitas, R. A, et al. (2020). Conforto no final de vida na terapia intensiva: percepção da equipe multiprofissional. Acta Paul Enferm. Doi: http://dx.doi.org/10.37689/actaape/2020AO0148.
http://dx.doi.org/10.37689/actaape/2020A...
). Esse ponto tornou-se patente no caso de Cecília, pois apesar de haver uma enorme preocupação da equipe com o conforto da paciente, faltou um olhar profissional capaz de identificar a angústia da paciente, promovendo uma resposta institucional mais imediata.

Há um longo trajeto a percorrer no trabalho com os cuidados paliativos, mas já ensaiamos alguns primeiros passos e avançamos com nossas questões na direção de elaborações teóricas e práticas sobre o assunto. Como desdobramentos desse caso na instituição em que trabalhamos, podemos apontar uma parceria realizada entre a unidade de Psicologia à qual estamos vinculados e o ambulatório de cuidados paliativos da instituição, bem como o estreitamento do trabalho em algumas enfermarias, para o acompanhamento de casos em cuidados paliativos, mediante parecer e por busca ativa.

Do ponto de vista teórico, uma vez postas tais problemáticas, podemos pensar o trabalho realizado com a paciente como bem-sucedido, apenas na medida em que se leve em conta o que foi possível de ser feito diante das condições precárias existentes. Sabemos, contudo, que essas estão distantes dos ideais e princípios que fundam a prática em cuidados paliativos. Assim, assinalamos um desfecho bem-sucedido, do ponto de vista clínico, mais do que o institucional.

Além disso, é preciso relativizar também a expressão sem pendências, usada pela médica, sobretudo quando se trata da morte. Dependendo de como se tome o conceito de boa morte, presente no âmbito dos cuidados paliativos (Menezes e Barbosa, 2013Menezes, R. A., & Barbosa, P. C. (2013). A construção da “boa morte” em diferentes etapas da vida: reflexões em torno do ideário paliativista para adultos e crianças. Ciência e saúde coletiva, 18(9), 2653-2662. Doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000900020
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201300...
) pode-se estar rechaçando justamente a dimensão humana da morte, que remonta ao que essa experiência evoca de inassimilável, de modo incontornável, a despeito dos cuidados e da dignidade de que se possa ver cercada. É esse real da morte que, do lugar de analistas, gostaríamos de privilegiar em nossa discussão sobre cuidados paliativos. Talvez pensando, a partir do caso, em uma melhor morte ou em menos pendências.

Barros (2015)Barros, R. (2015). Os cuidados paliativos e o tempo. In A. B. R. Bernat, F. L. T. Lima, L. S. Alcântara, & M. M. Swinerd (Orgs.). Cadernos de Psicologia: os tempos no hospital oncológico, 3, 159-161. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva/Ministério da Saúde. Recuperado em 11 out. /2020 de: <http://controlecancer.bvs.br/> ou <http://www.inca.gov.br>.
http://controlecancer.bvs.br/>...
, a partir da definição de Cuidado Paliativo da Organização Mundial da Saúde (OMS) — qual seja, a abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através de prevenção e alívio do sofrimento — ressalta a relação essencial dessa prática com a questão do tempo. A noção de paliativo refere-se ao que não dura muito, ao que é temporário e não definitivo. Malengreau (1995)Malengreau, P. (1995). Para uma clínica de cuidados paliativos. Opção Lacaniana: Revista da Escola Internacional Brasileira de Psicanálise, 13, 87-90. define os cuidados paliativos, em sua acepção mais ampla, como os meios que daríamos para suportar um mal que não pode ser suprimido. Se alinharmos as duas concepções, talvez possamos antever que o mal que não se pode suprimir está relacionado ao tempo; que, se por um lado, ao findar, é real e definitivo, por outro, na espera desse momento que nunca se sabe exatamente, escancara a falta de respostas advindas do Outro.

Freud, no artigo “Refexões para os tempos de guerra e morte” (1915/1996a), adverte-nos para o fato de que não há representação da própria morte no inconsciente, de modo que nesse registro somos todos imortais. A proximidade da morte traz para a cena o real da castração, o rochedo que coloca para Freud (1937/1996d)Freud, S. (1996d). Análise terminável e interminável. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXIII). Imago. (Trabalho original publicado em 1937). o questionamento sobre os limites do que seria analisável. Por isso, não é fácil escutar ou falar sobre a morte, seja do lado do paciente ou do lado da equipe, pois é precisamente isso, a castração do Outro, a qual também implica a de cada sujeito, que se evita na neurose. Contudo, “se o paciente demanda um Outro que o escute enquanto morre, é porque a questão da morte precisa ser falada” (Moretto, 2001, p. 103Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um analista no hospital? Casa do Psicólogo.). A inclusão da morte e do incurável no dizer não está garantida ao se tomar os cuidados paliativos como objeto de uma prática, eventualmente uma especialidade. Não se trataria apenas de uma mudança de objeto a ser abordado desde a mesma posição, mas de uma mudança da própria posição em decorrência do que se inclui.

Quanto à aproximação possível entre o trabalho em cuidados paliativos e o do psicanalista, Barros (2015)Barros, R. (2015). Os cuidados paliativos e o tempo. In A. B. R. Bernat, F. L. T. Lima, L. S. Alcântara, & M. M. Swinerd (Orgs.). Cadernos de Psicologia: os tempos no hospital oncológico, 3, 159-161. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva/Ministério da Saúde. Recuperado em 11 out. /2020 de: <http://controlecancer.bvs.br/> ou <http://www.inca.gov.br>.
http://controlecancer.bvs.br/>...
elenca alguns pontos. Um deles diz respeito a lidar com a angústia. Se a angústia surge justamente da falta de significantes que representem a experiência vivida, o que Moretto (2001)Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um analista no hospital? Casa do Psicólogo. sugere que o psicanalista possa fazer tratando-se de um paciente terminal “é se oferecer como escuta, como um Outro que possibilita a fala, dado que as formas simbólicas têm como função dar conta da angústia, ainda que não-toda” (p. 103). Para Malengreau (1995)Malengreau, P. (1995). Para uma clínica de cuidados paliativos. Opção Lacaniana: Revista da Escola Internacional Brasileira de Psicanálise, 13, 87-90., “levar a sério o que ele [paciente] diz é convidá-lo a dar sua carta, é referir o que ele diz a um saber particular, a um saber que valeria como antídoto às respostas prontas que lhe são impostas pela civilização” (p. 89).

Freud, no ensaio “Sobre a transitoriedade” (1915/1996b), postula que o valor dessa é o valor da escassez no tempo, e que, portanto, a limitação da fruição eleva o valor da mesma. Diante da proximidade da morte sabida — pois todos nós podemos estar em tal condição, com a diferença de não o sabermos (Moretto, 2001Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um analista no hospital? Casa do Psicólogo.) — o valor da palavra, isto é, o valor da possibilidade de dizer e de ser escutado como sujeito, naquilo que tange o seu desejo, pode vir a se tornar ainda maior, na medida em que se leva em conta esse tempo que resta e que urge. É também pelo significante que o processo de luto pode se dar. Da angústia ao luto a passagem se faz pelo dizer, é nossa aposta.

O caso relatado, acompanhado apenas durante o último dia de vida da paciente, apesar do breve tempo, ou justamente por isso, elucidou de forma muito clara a importância de uma escuta Outra na instituição e nos cuidados de fim de vida. Esse trabalho permitiu não só que a paciente pudesse falar de sua angústia, de sua solidão e de sua tristeza, como também que ela se despedisse e endereçasse suas palavras, suas lembranças, seus sentimentos e desejos em relação à família. Além disso, possibilitou também que ela formulasse suas dúvidas e exigisse saber de seu quadro clínico. O desejo de saber da paciente, que pôde ser transmitido à equipe, fez desvelar nos médicos a dificuldade que tinham em aceitar a morte de uma paciente tão jovem, com uma filha, com uma vida pela frente. Por conta disso, agarravam-se, em seu silêncio, à pequena possibilidade de melhora da paciente. A negação vivida pela equipe naquele momento apareceu posteriormente na fala da médica a nós dirigida.

Nesse ponto, situamos duas condições fundamentais para que nosso trabalho tenha podido se realizar. O primeiro diz respeito ao desejo de saber da paciente. Como ressaltamos anteriormente, ele vai além do direito de saber, inscrito, apesar de nem sempre efetivado, nas regras do hospital. Na posição de analista, o desejo de saber é ainda mais essencial, uma vez que é o motor, em nossa clínica, de todo trabalho possível. A angústia e o desespero da paciente não resultariam necessariamente em um desejo de saber, poderiam produzir outros desfechos. É inclusive muito comum nos depararmos no hospital com o desejo de não saber, de manter o recalque em relação à morte, como um rochedo intransponível. Desejo igualmente a se ter em conta, mesmo que a direção de nosso trabalho, na medida do possível, seja outra. Se no caso da paciente esse deslocamento teve a chance de ocorrer, não foi, no entanto, sem que tenham lhe dado a palavra, palavra recolhida e posta a trabalho.

O passo seguinte, segunda condição do trabalho, foi ter podido se dar a transmissão pelo psicanalista à equipe médica do que o desejo da paciente mobilizou. Ao referirmo-nos à transmissão não delimitamos o procedimento de comunicação. A equipe, que já havia reconhecido inicialmente o sofrimento da paciente, solicitando atendimento para ela, pôde depois escutar, por nós, seu desejo, não sem o reposicionamento da própria médica, o qual, mais do que o ato comunicacional em si, denotou ter havido transmissão. A partir daí outro destino pôde se produzir para o que adviria no breve espaço de tempo até a ocorrência do óbito. Ao interrogar-se sobre a transmissão na psicanálise para além do que se efetua na relação entre analista e analisante, Lacan (1964/2003, p. 242)Lacan, J. (2003). Ato de fundação. In Outros escritos (pp. 235-247). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). lança mão do termo transferência de trabalho, o qual podemos apontar como condição para a efetividade do trabalho com a equipe; em verdade, para qualquer trabalho possível para o psicanalista no hospital.

A expressão transferência de trabalho demarca a distinção com relação ao trabalho da transferência, explorado desde Freud (1912/2017)Freud, S. (2017). A dinâmica da transferência. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1912). como móvel do dispositivo analítico. Distinta desse último, a dimensão ampliada em que a presença do analista pôde ser pensada no hospital evoca tal noção, não estando em jogo um saber próprio do analista, mas seu trabalho. O que se transmite diz respeito à posição desde a qual o trabalho se faz, supondo assim a possibilidade de que tenha se dado, de um sujeito a outro (não, portanto, através do par analista/analisante), uma indução; que a posição do analista no trabalho possa ter efeito sobre a posição daquele — médico, enfermeiro etc. — com quem se estabeleceu, na contingência do acontecimento, uma transferência, transferência de trabalho. Nesse sentido vimos Malengreau (1995)Malengreau, P. (1995). Para uma clínica de cuidados paliativos. Opção Lacaniana: Revista da Escola Internacional Brasileira de Psicanálise, 13, 87-90., com relação aos cuidados paliativos, interrogar o que a própria experiência da psicanálise poderia oferecer a uma prática no hospital que, para além do universal de um curável, sustentasse o irredutível de um real.

Ao remetermo-nos à ordem dos acontecimentos nesse atendimento, o que se tornou patente foi o fato de que o que se encadeou nessa história só pôde produzir efeitos por ter havido condições para o trabalho, as quais buscamos rastrear. No entanto, essas condições são também, paradoxalmente, efeitos do trabalho, frutos desse. O curto tempo em que foi realizado o acompanhamento da paciente no curso de sua morte, ao longo de uma tarde, deixa evidente que o tempo de que se tratou na sequência dos fatos aqui narrados é, sobretudo, lógico.

No escrito “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, Lacan (1945/1998a)Lacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In Escritos. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1945). descreve três momentos lógicos, a saber: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Ao pensar o caso apresentado, a partir dessa perspectiva, destacamos alguns momentos como elementares para essa engrenagem lógica. Se, em um primeiro tempo, a paciente encontrava-se angustiada, é porque estava vendo o não-dito sobre seu estado clínico gritando no silêncio da equipe, em oposição ao falatório que a doença produz no corpo ao romper com o silêncio dos órgãos (Leriche, 1936, p. 16Leriche, R. (1936). Introduction générale; De la santé à la maladie; La douleur dans les maladies; Où va la médecine?. Encyclopédie française, t. VI.). Em um segundo momento, sublinhamos o diálogo que consistiu na pergunta que a paciente pôde afinal endereçar à médica sobre se ela iria morrer, e a resposta dessa última de que não sabia, como ponto crucial para o tempo de compreender da paciente, com a antecipação de uma certeza. É a partir do Outro, mas não necessariamente de um saber do Outro, que foi possível chegar à assunção de uma certeza, aquela que se refere à sua morte e à urgência que essa colocava, ainda que sem hora marcada.

No questionamento feito por Cecília estava contida uma decisão de “colocar as cartas na mesa” e a coragem de tirar as derivações possíveis da pergunta enunciada. A partir da resposta dada, um fatídico “não sei”, verificou-se um apaziguamento na paciente. A assunção desse não saber por parte da médica, a castração também do lado do Outro, trouxe algo de inédito, tanto para a médica, como para a paciente. O limite do saber médico costuma esbarrar mais no insuportável de não saber sobre a morte, isto é, no limiar do simbólico, do que a própria certeza sobre a morte, sobre a qual se pode afirmar algo. Supomos que pode ser mais difícil para aquele que está no discurso médico assumir que não se sabe se um paciente vai morrer ou não do que lhe dar certeza sobre a morte. Para a paciente, o não saber da médica não só lhe aliviou quanto à possibilidade de algo estar sendo escondido, como também teve para ela uma função de antecipação de sua morte, o que viabilizou que ela ainda pudesse fazer algo com isso.

Em um terceiro tempo, seguinte a esse, quando a paciente entrou em processo de morte ativa, e isso lhe foi dito, algo ainda pôde se desenrolar a partir dessa asserção. Esse momento foi constituído então pela conclusão de que estava sozinha, e o não saber o que fazer com “a sua hora” deu lugar à decisão de se despedir. O tempo muitas vezes esmagado pelo horizonte da morte próxima não é proporcional à dimensão dos desdobramentos que podem ser produzidos, haja vista o alargamento das transposições possibilitadas. Assim, o tempo cronológico desse atendimento — apenas uma tarde — elucida de forma paradigmática como o tempo lógico se desvencilha dos ponteiros do relógio, sem, contudo, prescindir dele.

Uma carta chega sempre a seu destino

Lacan (1957/1998b, p. 45)Lacan, J. (1998b). O seminário sobre “A carta roubada”. In Escritos. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957)., no “Seminário sobre ‘A carta roubada’”, afirma que uma carta sempre chega a seu destino, e, para fundamentar esse aforisma, retoma o conto de Edgar Allan Poe, que dá título a seu seminário. O conto consiste resumidamente em duas cenas principais. Na primeira, a carta é roubada. O ministro entra nos aposentos reais, onde estão a rainha e o rei. Com a chegada desse terceiro personagem, a rainha torna-se afita, pois ela está em posse de uma correspondência comprometedora, de cuja existência o rei não poderia saber. Justamente por ser secreta, a rainha deixa a carta à mostra em cima de sua mesa, junto com outras cartas, a fim de melhor escondê-la da percepção do rei, que, por definição, é destinado a nada notar. O ministro, percebendo a partir do olhar da rainha o valor da carta, troca-a por outra que ele possui, à guisa de obter poder de chantagem sobre ela. Na segunda cena, a carta é reavida. Depois de chamar a polícia, que investiga incansavelmente o apartamento do ministro e não obtém sucesso na busca da carta, a rainha contrata o detetive Dupin, que a encontra. O ministro, do mesmo modo como a rainha fzera anteriormente, havia escondido a carta em um lugar visível a todos, lá onde justamente a polícia nunca a procuraria, por supor que essa estivesse escondida em recônditos obscuros. Dupin, por sua vez, resgata a carta que pertencia à rainha, substituindo-a novamente por outra, de modo a deixar o ministro acreditando que ainda possuía a carta na manga.

O que Lacan ressalta do conto é o problema da significação e da inter-subjetividade, e aponta que o que está em jogo aí é a verdade. A rainha e o ministro deixam a carta em evidência, diante dos olhos de todos, por acreditarem que assim a estavam preservando. Os policiais não a encontram, não porque a carta estivesse em lugar demasiadamente acessível, mas por atrelarem o sentido preconcebido de que uma carta preciosa como aquela só poderia estar muito bem escondida. Assim, Lacan parte do ponto de que supor, em um jogo de intersubjetividade e de especulação imaginária, que o outro, como semelhante, pensa o que estamos pensando, é um erro e uma miragem.

Na instituição hospitalar, portanto, o analista não pretende se colocar do lado do paciente, tampouco do da equipe, mas em um lugar Outro. Tal como a carta, que pode não ser encontrada justamente por estar em evidência, as formações do inconsciente, que se colocam à mostra na superfície do significante, podem passar despercebidas. A carta, ou a letra, pula aos olhos e aos ouvidos de quem pode vê-las ou escutá-las, mas para isso é preciso estar no lugar de Dupin, ou do analista; isto é, em um lugar diferente daquele que atribui significações prévias, o que é próprio das relações duais. No caso relatado, o assunto da morte estava sendo inter-dito, pelo fato de a equipe supor, através de uma especulação, ou ação especular, que tal notícia seria fonte de muito sofrimento para a paciente. Para Cecília, no entanto, essa mensagem possibilitou despedidas, cartas e apaziguamentos. Ao presumir, a partir de si, o sentido para o outro, se não houvesse Outra escuta que pudesse assinalar tal dimensão, a carta-morte não chegaria a seu destino.

Para tratar da questão da intersubjetividade imaginária, Lacan (1954-55/1985)Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55). retomou também em seu O seminário. Livro 2 a fala de Dupin, no conto, acerca do jogo de par ou ímpar. A fala importa aqui na medida em que traz ressonâncias a propósito da estrutura de identificação ao outro, cuja estratégia consiste em adivinhar o comportamento do adversário, passando a posição do sujeito a depender da posição do outro, estando suspensa à própria incerteza. Isso demonstraria a fragilidade do jogo intersubjetivo. No par ou ímpar, o que está em jogo é o par, no sentido de que é uma relação dual. O analista não deve justamente ocupar um lugar a par da situação, mas à par-te. Sua estratégia quanto à partida na análise passa por convocar o morto do jogo, que é o único lugar possível para seus próprios sentimentos (Lacan, 1958/1998c, p. 595Lacan, J. (1998c). A direção do tratamento. In Escritos. (Vera Ribeiro, Trad.). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958).). Ficando de fora do jogo fantasmático, o analista permite que o sujeito jogue o seu jogo, sustentado pela sua presença. Dessa forma, o analista ocupa um lugar que é Outro, de extimidade (Lacan, 1959-60/2008, p. 169Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da Psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).), isto é, exterior e íntimo a um só tempo, terceiro sem ser ímpar, parcial no sentido de não-todo. A inconsistência de sua posição permite, na contingência do momento, que a carta chegue a seu destino e seja reavida, mesmo no momento da morte. Assim, “o sujeito, na medida em que fala, pode encontrar inteiramente sua resposta, seu retorno, seu segredo, seu mistério, no símbolo construído” (Lacan, 1954-55/1985, p. 235Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55).).

  • 1
    Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), "Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos, espirituais” (WHO, 2002WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. (2a ed.). WHO, 2002.).
  • 2
    Nome fictício usado para preservar a identidade da paciente.
  • *1
    Este artigo é fruto dos desdobramentos de um caso acompanhado durante o Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional, Modalidade Residência Hospitalar, vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IP/UERJ, e cujo campo de prática é o Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ. O trabalho foi escrito conjuntamente pelos autores que acompanharam o caso, uma como residente, outro como supervisor, no Setor de Urgências Subjetivas.
  • *2
    In Portuguese in “reavida” there is a wordplay with reecovered and life
  • 3
    In Portuguese in “reavida” there is a wordplay with recovered and life.
  • 4
    En Portugais dans “reavida” il ya un jeu-de-mots entre recuperée et vie.
  • 5
    En português en “reavida” hay un juego de palabras entre recuperada y vida.

Referências

  • Barros, R. (2015). Os cuidados paliativos e o tempo. In A. B. R. Bernat, F. L. T. Lima, L. S. Alcântara, & M. M. Swinerd (Orgs.). Cadernos de Psicologia: os tempos no hospital oncológico, 3, 159-161. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva/Ministério da Saúde. Recuperado em 11 out. /2020 de: <http://controlecancer.bvs.br/> ou <http://www.inca.gov.br>
    » http://controlecancer.bvs.br/>» http://www.inca.gov.br>
  • Carvalho, R. T., & Parsons, H. A. (Orgs.) (2012). Manual de Cuidados Paliativos ANCP (2a ed.). Recuperado de: <http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/05/Manual-de-cuidadospaliativos-ANCP.pd>.
    » http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/05/Manual-de-cuidadospaliativos-ANCP.pd
  • Freud, S. (1996a). Reflexões sobre tempos de guerra e morte. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vols. I e II). Imago. (Trabalho original publicado em 1915).
  • Freud, S. (1996b). Sobre a transitoriedade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vols. I e II). Imago. (Trabalho original publicado em 1915).
  • Freud, S. (1996c). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII). Imago. (Trabalho original publicado em 1920).
  • Freud, S. (1996d). Análise terminável e interminável. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXIII). Imago. (Trabalho original publicado em 1937).
  • Freud, S. (2017). A dinâmica da transferência. In Fundamentos da clínica psicanalítica Autêntica. (Trabalho original publicado em 1912).
  • Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55).
  • Lacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In Escritos Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1945).
  • Lacan, J. (1998b). O seminário sobre “A carta roubada”. In Escritos Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957).
  • Lacan, J. (1998c). A direção do tratamento. In Escritos (Vera Ribeiro, Trad.). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958).
  • Lacan, J. (2001). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana: Revista da Escola Brasileira Internacional de Psicanálise, 32, 8-14. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Lacan, J. (2003). Ato de fundação. In Outros escritos (pp. 235-247). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 7. A ética da Psicanálise Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).
  • Leriche, R. (1936). Introduction générale; De la santé à la maladie; La douleur dans les maladies; Où va la médecine?. Encyclopédie française, t. VI.
  • Lorenzzoni, A. M. V., Vilela, A. F. B., & Rodrigues, F. S. S. (2019). Equipe multiprofissional nos cuidados paliativos em oncologia: uma revisão integrativa. Revista Espaço Ciência & Saúde. 7(1), 34-48. Recuperado de: <https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/201044>.
    » https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/201044
  • Malengreau, P. (1995). Para uma clínica de cuidados paliativos. Opção Lacaniana: Revista da Escola Internacional Brasileira de Psicanálise, 13, 87-90.
  • Menezes, R. A., & Barbosa, P. C. (2013). A construção da “boa morte” em diferentes etapas da vida: reflexões em torno do ideário paliativista para adultos e crianças. Ciência e saúde coletiva, 18(9), 2653-2662. Doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000900020
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000900020
  • Molin, A., Lanferdini, I. I. Z.,Vanini, S., Ebel, A., & Picinin, D. (2021). Cuidados Paliativos na assistência hospitalar: A percepção da equipe multiprofissional. Brazilian Journal of Health Review, 4(1), 1962-1976. Doi:10.34119/bjhrv4n1-159.
    » https://doi.org/10.34119/bjhrv4n1-159
  • Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um analista no hospital? Casa do Psicólogo.
  • Oliveira, T. C. B., Maranhão, T. L. G., Barroso, M. L. (2017). Equipe Multiprofissional de Cuidados Paliativos da Oncologia Pediátrica: Uma Revisão Sistemática. Revista de Psicologia, 11 (35), 492-530. Doi: https://doi.org/10.14295/idonline.v11i35.754
    » https://doi.org/10.14295/idonline.v11i35.754
  • Pires, I. B., Menezes, T. M., Cerqueira, B. B., Albuquerque, R. S., Moura, H. C., Freitas, R. A, et al. (2020). Conforto no final de vida na terapia intensiva: percepção da equipe multiprofissional. Acta Paul Enferm Doi: http://dx.doi.org/10.37689/actaape/2020AO0148
    » http://dx.doi.org/10.37689/actaape/2020AO0148
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. (2a ed.). WHO, 2002.
Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2021
  • Revisado
    17 Jun 2022
  • Aceito
    19 Jun 2022
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com