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As configurações contemporâneas do gênero e a insistência do desejo1 1 O artigo é fruto do trabalho de pesquisa em andamento para dissertação de mestrado de Lorena Loures, intitulado “A clínica psicanalítica e os dissidentes de gênero: do sujeito, enfim, em questão”, financiada pela CAPES (nível 5) e sob orientação da profa. dra. Maria Cristina Poli do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGTP-UFRJ).

The contemporary gender configurations and the insistence of the desire

Les configurations contemporaines du genre et l’insistance du désir

Las configuraciones de género contemporáneas y la insistencia del deseo

O artigo tem por objetivo propor algumas questões sobre as resistências de psicanalistas sobre as novas configurações do gênero (e dos corpos) no contemporâneo. Indica também a persistência do desejo do psicanalista como o que permite a reformulação da doxa analítica considerando tais modificações como resultantes de um alargamento do universo simbólico — o que acarreta grandes consequências na efetividade da escuta clínica. Para tanto, reafirmamos a ética do desejo diante do real enquanto irrepresentável e da aposta na escrita ante à impossibilidade da relação sexual. Por fim, a partir de uma breve apreciação do filme Tudo sobre minha mãe (1999) do cineasta espanhol Pedro Almodóvar defenderemos a necessidade que se impõe a nosso campo de um tempo para compreender a mudança em curso, a fim de que possamos chegar a conclusões sensíveis às novas possibilidades de arranjo que se apresentam na clínica.

Palavras-chave:
Clínica psicanalítica; desejo; gênero; escrita


Resumos

This paper intends to propose some questions about the psychoanalyst’s resistances to the brand-new configurations of gender (and bodies) at the contemporary. It supposes further the persistence of the desire as a thing that allows the reformulation of the analytical doxa, considering these modifications as an enlargement of the symbolical universe — that results in several consequences in the clinical´s listening effectivity. Therefore, we reassert the ethics of desire against the real while unrepresentable and the bet of writing against the impossibility of sexual relationship. Starting with a short appreciation of a Spanish film maker Pedro Almodóvar´s film “Todo Sobre Mi Madre” (Spain, 1999), we vindicate, at last, an imposition of a time to understand the changes in progress at our field, in order to have sensitive conclusions about the brand-new possibilities of sexual arrangements showing in the clinic.

Key words:
Psychoanalysis clinical; desire; gender; writing

L’article pose quelques questions sur les résistances des psychanalystes aux nouvelles configurations du genre (et des corps) dans le contemporain. Il indique aussi la persistance du désir du psychanalyste comme ce qui permet la reformulation de la doxa analytique en considérant ces modifications comme résultant d’un élargissement de l’univers symbolique — ce qui entraîne des conséquences majeures dans l’efficacité de l’écoute clinique. Pour ce faire, nous réaffirmons l’éthique du désir face au réel irreprésentable et du pari sur l’écriture face à l’impossibilité des rapports sexuels. Enfin, à partir d’une brève appréciation du film « Tout sur ma mère » (1999) du cinéaste espagnol Pedro Almodóvar, nous soutenons qu’il faut prendre du temps pour comprendre les changements en cours afin de pouvoir parvenir à des conclusions sensibles aux nouvelles possibilités d’arrangement qui se présentent dans la clinique.

Mots clés:
Clinique Psychanalytique; désir; genre; écriture


Este artículo tiene como objetivo plantear algunas preguntas sobre la resistencia de los psicoanalistas a las nuevas configuraciones de género (y de los cuerpos) en el mundo contemporáneo. Además, señala la persistencia del deseo como lo que permite la reformulación de la doxa analítica considerando tales cambios como resultado de una expansión del universo simbólico –lo que trae grandes consecuencias para la efectividad de la escucha clínica. Para ello, reafirmamos la ética del deseo frente a lo real como irrepresentable y de la apuesta por la escritura ante la imposibilidad de la relación sexual. Por último, a partir de una breve apreciación de la película “Todo sobre mi Madre” (1999), del cineasta español Pedro Almodóvar, argumentamos que se requiere tiempo para que nuestro campo de trabajo comprenda los cambios en curso, de modo que lleguemos a conclusiones sensibles sobre las nuevas posibilidades de arreglo sexual que se presentan en la clínica.

Palabras clave:
Clínica psicoanalítica; deseo; género; escritura


Introdução

As revoluções sexuais do século XX — advindas da mudança nos costumes promovida pelos movimentos sociais como o feminismo e os LGBTs, bem como de avanços científicos e tecnológicos (a invenção da pílula anticoncepcional e as técnicas de reprodução assistida, por exemplo) — engendraram novos arranjos para o campo de experiência sexual do sujeito. Outras regras relacionais tornaram-se possíveis, os pactos entre os parceiros estenderam suas fronteiras e as expressões de gênero diversificaram-se para muito além da relação conjugal heterossexual prescrita pelo patriarcado: o homem protetor, provedor, chefe de família, baluarte da razão e da moral; a mulher cuidadosa, sensível, emotiva e naturalmente submissa aos caminhos rumo à maternidade — momento cúmulo de sua realização.

Porém, talvez ainda não seja tão explicita a forma como as mudanças sociais e tecnológicas que vivenciamos no último século interferiram na relação do sujeito com seu corpo próprio. A presença da tecnologia na intimidade — não apenas as médicas como também as digitais — impede que possamos hoje abordar a constituição de um corpo com uma pretensa pureza conceitual que situaria sua erogenidade na relação ao Outro/outros e isolada dos gadgets que o cercam. Estes mesmos participam da ortopedia dos corpos e delimitam recursos subjetivos dantes impensáveis — a cirurgia de redesignação genital e os tratamentos hormonais, por exemplo.

A questão que nos norteia é então se os psicanalistas estariam (se nós estamos) cientes das novas possibilidades corporais e de gênero configuradas no contemporâneo. Como vem sendo recebido e orientado o trabalho clínico a respeito da proliferação de modificações corporais? A recepção na escuta e na transferência é a de um arranjo recursivo possível ao sujeito ou o de “passagens a ato” que, desencadeadas pelas injunções do discurso, produziriam embaraços no tratamento do real pelo simbólico (Lacan,1963-64/1988Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1963-64).). Como veremos a seguir, há efetivamente uma dificuldade perceptível em algumas produções psicanalíticas sobre as dissidências de gênero2 2 Podemos definir os “dissidentes de gênero” como sendo aqueles sujeitos cujos corpos e performances não reproduzem o jogo de símbolos e os pactos sexuais tal como estão estruturados (e são impostos) pelo laço social. Ou seja, aqueles sujeitos que se propõem e experimentam uma vivência com o sexo e com o gênero que extrapola os limites cognoscíveis, políticos e estéticos vigentes. Podemos situar as transexualidades, as travestilidades, as homossexualidades, as intersexualidades, as assexualidades, enfim. Todos os sujeitos que resistem à hegemonia política do heterossexismo e do binarismo sexual/anatômico. que se colocam na contramão do trilhamento ético de Freud e Lacan; o que reflete, sem dúvida, a resistência em ouvir esses novos arranjos possíveis entre o corpo e a palavra.

Não é pretensão deste artigo abarcar a riqueza das discussões que tais questões têm promovido no campo psicanalítico. Pretendemos apenas esboçar alguns fundamentos teóricos que nos ajudem a avançar neste terreno que tem se mostrado tão fértil para uma atualização contemporânea da teoria psicanalítica.

Dócil ao trans — no avesso da ética

Apenas a título de indicação de um caso exempla,3 3 A escolha pela crítica ao artigo de Miller deve-se à relevância do autor no campo psicanalítico lacaniano. Optamos por nos debruçar sobre o seu trabalho com mais profundidade devido a isto, bem como à limitação no número de laudas plausível para um artigo. Reconhecemos a questão como um limite metodológico do trabalho e reafirmamos a necessidade de um melhor mapeamento da questão em trabalhos futuros. traçaremos uma breve crítica ao artigo de Jacques-Alain Miller intitulado “Dócil ao trans” (2021). Ali vemos com clareza a dificuldade que vem se impondo à parte do campo psicanalítico em relação aos dissidentes de gênero.

Em um tom irônico e jocoso, Miller argumenta que a ampliação dos espaços de fala dos grupos subalternos, para além dos consultórios no pós-Segunda Guerra, acabou por bagunçar a ordem sexual estabelecida. Aqueles que eram, até então, considerados “doentes” puderam vir a público falar, perturbando não o gênero, intrinsecamente confuso, mas a “guerra imemorial dos sexos” (Miller, 2021, p. 12Miller, J-A. (2021). Docile au trans. Lacan Quotidien, 928, 3-18.). Ou seja, a organização político-sexual que regia as relações:

Nos assuntos de pegação, ou seja, no campo da sexualidade, se vocês preferem falar Gourmet, é uma zona. Tudo agora está de cabeça para baixo. Butler e suas bacantes bagunçaram tudo ali, não é possível. (Miller, 2021, p. 7Miller, J-A. (2021). Docile au trans. Lacan Quotidien, 928, 3-18.; grifo nosso)

O autor está claramente defendendo a ideia de que a ordem sexual estabelecida já não era caduca e inaceitável sob todos os parâmetros, que o patriarcado não expunha — e segue expondo —, as mulheres à submissão e à violência e que os sujeitos estavam de fato firmemente referenciados nos papéis de gênero que lhes eram atribuídos. Valendo-se do exemplo de um grupo “masculinista”4 4 MGTOW – “Men going their own way” (“Homens que fazem seu próprio caminho”). Grupo reacionário e antifeminista surgido em meados dos anos 2000, tendo uma origem incerta. Tem por pressuposto básico a ideia de um “suprematismo feminino” na cultura contemporânea. Propõe que os homens sigam e construam suas vidas a despeito de relacionamentos íntimos mais sérios com as mulheres, dentre outras medidas de resistência à suposta “feminização” do mundo. que defende a existência de uma supremacia feminina na organização social a ser rechaçada — que de forma absurda posiciona como um avesso dos movimentos feministas — ele argumenta que se encontra, embutida nas pautas transidentitárias, a defesa de um suprematismo “trans”, que invasiva e autoritariamente assola a ordem sexual estabelecida, consistindo em uma grande ameaça.

Além disso, ele acusa os movimentos trans de serem segregacionistas no sentido de inventarem um inimigo externo a ser combatido a fim de reafirmação política. Tomando a exposição de Paul Preciado no Congresso da AMP, e que apreciaremos a seguir, ele defende que os trans armaram-se contra os analistas, como sendo os porta-vozes da ordem e do patriarcado. Questionando o enfraquecimento do Nome-do-pai e referindo como consequência um suposto aumento da influência do desejo materno sob os sujeitos contemporâneos, pode-se ler aí um subtexto de apelo ao retorno de um pai — que nunca existiu — para colocar ordem novamente naquilo que foi aniquilado pelas propostas queer.

Nesse texto, de forma avessa ao discurso e à ética da psicanálise, Miller posiciona-se de modo extremamente segregacionista e se dirige a Preciado quase como um inimigo, como alguém radicalmente outro. Em seu artigo, questiona se de fato as pessoas trans têm o direito de falar, dado os efeitos políticos de suas falas. Ele reafirma claramente a estrutura da cultura patriarcal em detrimento do real que vem escapando a ela sob a forma das novas possibilidades de arranjos sexuais, das quais os dissidentes de gênero são porta-vozes.

O resultado não poderia ser outro: “nem tudo é cor-de-rosa no país dos trans, e que antes de ser militantes da causa trans, trata-se de pessoas mais frágeis do que outras, mais ameaçadas e que sofrem ainda mais” (Miller, 2021, p. 17Miller, J-A. (2021). Docile au trans. Lacan Quotidien, 928, 3-18.). Sem nenhum questionamento de motivações político-sociais, ele tece uma ontologia das pessoas dissidentes como sendo grandes vítimas, fracas por natureza, doentes. Uma perturbação como as histéricas o eram para a medicina do século XIX. Sua resposta a tais modificações no discurso sobre o sexo e a sexualidade se situa, portanto, no âmbito da psicopatologia, inscrevendo o psicanalista como baluarte de uma ordem de poder decadente.

Na contramão dessa ideia, retomaremos o desejo do psicanalista proposto por Lacan (1959-60/2009a)Lacan, J. (2009a). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60].5 5 O artigo limita-se ao trabalho com os conceitos lacanianos por uma questão de orientação teórica das autoras. Novamente reconhecemos a questão enquanto um limite metodológico e reiteramos a importância da contribuição de outros autores do campo psicanalítico, como J. Laplanche, M. Klein, S. Ferenczi e outros autores e psicanalistas da atualidade. enquanto direção ética para as produções teóricas e reafirmação de uma escuta advertida das vicissitudes e impasses dos sujeitos no contemporâneo. Para tanto: 1) traçaremos uma discussão acerca das novas relações possíveis entre corpo e linguagem ante aos avanços tecnológicos; 2) faremos uma aproximação entre a ideia de epistemologia em Preciado e a de semblante em Lacan, tendo em vista a necessidade de ampliação do universo simbólico de quem se propõe a ouvir; 3) reafirmaremos a ética do desejo a partir da função da causa, do relevo dado ao real enquanto irrepresentável e da aposta no uso da escrita ante ao impossível do sexo; 4) defenderemos, a partir de uma breve apreciação do filme Tudo sobre minha mãe (1999) do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, a necessidade de um tempo para compreender a mudança em curso, fugindo das certezas antecipadas e de conclusões rápidas e teoricamente confortáveis.

“O somatheque está mudando”

É inquestionável a nossa íntima relação — para não dizer simbiótica — com a tecnologia no cotidiano. O amplo acesso às redes sociais e vias de comunicação, o uso de medicamentos e exames diagnósticos cada vez mais sofisticados, o uso compulsivo dos smartphones e de todos os seus recursos, o avanço das modalidades de ensino à distância, enfim. A vida contemporânea é atravessada pela tecnologia em todos os seus âmbitos, desde relações íntimas, até as laborais. O acesso à informação e ao lazer, artes, cultura.

Também inquestionável é a influência que um contato tão íntimo e recorrente com as tecnologias tem na relação do sujeito com seu corpo, para não dizer em sua ortopedia. Basta observar a destreza com que crianças muito jovens utilizam recursos digitais e os demandam, por exemplo. Observam a presença de todo este aparato e de todas as suas possibilidades desde sempre em suas casas, suas vidas. Submetem-se a exames altamente sofisticados e observam os adultos ao redor extremamente implicados no uso da tecnologia, o que certamente tem consequências para sua formação, no momento mesmo em que estão adquirindo a consciência de seu corpo como uma unidade.

Lacan já nos alertava sobre a influência do que a ciência é capaz de produzir enquanto tecnologia — nas palavras dele, os gadgets. Segundo o autor, a ciência não apenas propiciou o surgimento desses novos recursos, como também engendrou um novo discurso determinando uma nova forma de laço social (Lacan, 1972-73/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).). Isto implica uma série de consequências para o sujeito — inclusive na relação com o seu corpo: novas maneiras de situar a falta e de se haver (ou não) com ela:

Esse discurso (o científico) engendrou todo tipo de instrumento de que precisamos, do ponto de vista que aqui se trata, qualificar de gadgets. Desde então, vocês são, infinitamente muito mais do que pensam, os sujeitos dos instrumentos que, do microscópio à radiotelevisão, se tornam elementos da vida de vocês. (Lacan, 1972-73/2008, p. 88Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).)

A este respeito, Cunha (2020)Cunha, E. (2020). Sobre macacos, cyborgs e trans: a psicanálise nos limites do humano. In J. Estona (Org.), Relações de gênero e escutas clínicas (pp.35-50). Editora Devires. reflete sobre a possibilidade de estarmos vivenciando uma quarta ferida narcísica na humanidade. Segundo ele, “depois de deixarmos o centro do universo, nos tornarmos irmãos e herdeiros dos macacos e de perdermos o controle sobre nossos atos e pensamentos, já não sendo mais senhores em nossa própria casa, nos confundimos hoje com os objetos que nós mesmos fabricamos, que aprendemos a controlar e agora tememos que um dia assumam o controle sobre nós” (pp. 44-45).

Ele prossegue associando tal fenômeno com as resistências políticas que nos deparamos diante dos dissidentes de gênero. Para além da problemática sexual propriamente dita, o uso que estes fazem de seu corpo — por vezes passando por intervenções tecnológicas diretas, hormonizações e cirurgias por exemplo — sua própria existência é tomada como uma ameaça por extrapolar os limites entre o que seria orgânico ou plástico, humano ou inumano, tornando porosas e confusas as suas fronteiras.

Tal idiossincrasia do discurso vigente aponta de modo mais evidente os limites de um tratamento exclusivamente simbólico do sujeito e de seus embaraços com seu corpo num contexto de análise. Ora, se a hormonização participa de forma tão importante para a construção daquele corpo, não podemos pretensamente afirmar que se trata de um recurso inválido. Talvez haja uma resistência em ouvir que um quê de ato, uma intervenção direta na carne, seja hoje possível aos sujeitos sem necessariamente se tratar de uma precipitação no real que dispensa o valor da palavra e da circulação de recursos simbólicos. Talvez essas intervenções diretas, ao contrário, contribuam para este acesso. De toda forma, é certo que há novos modos de enlaçamento moebianos e não moebianos dos registros que precisam ser considerados.

Lembremos ainda que Freud mesmo já admitia ser impossível que o tratamento analítico, através do recurso à palavra, eliminasse totalmente a necessidade de uma satisfação mais direta no corpo (Freud, 1914/2010Freud, S. (2010). Recordar, repetir e elaborar. In Obras completas de Sigmund Freud (vol. 10, pp. 145-158). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).). É necessário considerar, como avançou Lacan, os limites do simbólico.

“Eu sou um Orlando cuja escrita se tornou química” (Preciado, 2019, p. 24Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset.; grifos nossos). Nesta frase exemplar, Preciado bagunça as fronteiras entre o somático e o tecnológico e também entre o simbólico e o que seria da ordem de um ato. Numa passagem relevante à questão, ele define o somatheque, o corpo e suas novas possibilidades cunhadas no encontro com a tecnologia:

Da mesma forma que Freud evocou um aparelho psíquico mais amplo que a consciência, é necessário hoje articular uma nova noção do aparelho somático para levar em conta as modalidades históricas e externalizadas do corpo, aquelas que existem mediadas por tecnologias digitais ou farmacológicas, bioquímicas ou protéticas. O somatheque está mudando. (Preciado, 2019, p. 20Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset.; grifos nossos)

Dito isso, como podemos definir o monstro, substantivo com o qual o filósofo se identifica no título de seu livro Eu sou um monstro que vos fala? Nas palavras dele, “o monstro é aquele que vive em transição. Aquele que ainda não pode ser considerado verdadeiro num regime de conhecimento e poder determinado” (Preciado, 2019, p. 21Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset.; grifos nossos). Seria aquele que, por deixar a carne ser mais explicitamente atravessada pelos gadgets, não consegue ser reconhecido como um ser humano? A quem ele assusta?

Deter-nos-emos agora nesta questão, na interface entre a ideia de epistemologia trabalhada por ele e a proposição de “semblante” cunhada por Lacan.

O semblante como epistemologia e a insistência do real

A partir de sua própria experiência de vida o filósofo Paul Preciado, que se identifica como um homem trans, se dirigiu a uma plateia de psicanalistas durante a Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana em Paris (2019). Sua intervenção obteve tamanha repercussão que acabou por ser publicada em um pequeno volume, que estamos apreciando em partes neste artigo, intitulado Eu sou o monstro que vos fala.

E é a partir de suas vivências, seus atravessamentos políticos enquanto um sujeito que experimenta o próprio corpo e o sexo de uma maneira não hegemônica que ele levanta questões extremamente pertinentes à psicanálise hoje.

Além das questões relativas aos gadgets e as novas bricolagens possíveis entre o corpo e a palavra, que abordamos no tópico anterior, Preciado questiona o tratamento da diferença sexual em psicanálise em termos da imposição de uma ordem simbólica patriarcal. Conforme sua leitura, o regime da diferença sexual é para ser lido como uma epistemologia política do corpo (Preciado, 2019Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset.), ou seja, um grande artefato ficcional e político da organização dos corpos e de suas performances na sociedade que estrutura a diferenciação entre uma vivência verdadeira ou falsa com o sexo, sendo histórico e contingente.

A epistemologia — análise das formas pelas quais ascendemos ao conhecimento — enquanto dispositivo, termo advindo do trabalho de Foucault, indica a transitoriedade dos modos como os discursos respondem às questões que dado momento histórico elabora. À medida que a realidade nos impõe novas demandas de pesquisa, cabe a esse dispositivo uma reformulação interna que desse conta de responder as novas perguntas que porventura surgirão.

Assim, o autor defende que a epistemologia política do corpo e da diferença sexual, vigentes quando do surgimento da psicanálise, estaria agora em crise. Há novas formas de experienciar o sexo e os gêneros que ultrapassam os preceitos impostos pelo modelo patriarcal e heterossexista. Porém, ao contrário do que seria indicado — reformular a epistemologia para que nela coubessem novas perguntas e novas respostas — a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria estariam optando por sustentar os modos antigos de apreensão da realidade. Nas palavras do autor, “eles decidem modificar corpos, normalizar sexualidades, retificar identificações” (Preciado, 2019, p. 41Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset.).

Conforme Preciado, haveria em Lacan algumas chaves conceituais para a desnaturalização da diferença sexual, abrindo espaço para sua historicização. O filósofo menciona o desvio pela linguística, mas afirma que o psicanalista não estaria politicamente preparado para o empreendimento — embora uma resposta conceitual à crise da diferença sexual já estivesse em andamento no seu ensino.

Neste ponto, podemos incluir aqui nas proposições abertas por Preciado, a consideração de algumas inovações conceituais promovidas por Lacan. Uma delas nos interessa particularmente pelo seu laço com as fórmulas lógicas da sexuação: a noção de semblante. Não conseguiremos, nos limites deste artigo, aprofundar este tema. Mas trata-se, a nosso juízo, de um conceito fundamental para a renovação epistemológica da psicanálise diante das modificações contemporâneas da ordem sexual.

Podemos definir o semblante como sendo uma articulação significante que engendra dada realidade, ou seja, aquela articulação que veicula a dimensão da verdade e os sentidos possíveis para o sujeito. O semblante designa, nesse sentido, o que seria da ordem de um trilhamento natural: uma cadeia articulada com pretensões de natureza, uma “verdade que cria dificuldades lógicas” (Lacan, 1971/2009b, p. 23Lacan, J. (2009b). O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971).).

Assim, o discurso científico pode ser pensado enquanto um semblante no que tange suas pretensões de universalidade impostas à produção da dita “realidade”. Podemos pensá-lo aproximando da leitura que Preciado faz da epistemologia: não um ponto de partida, mas ao contrário, uma pista de pouso onde determinados sentidos podem ser lidos e articulados — enquanto outros não (Preciado, 2019Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset.).

Por outro lado, estando calcado no campo da verdade — o algo não permeável que resiste à universalidade no sujeito, a fantasia — o discurso analítico faz surgir a ideia de que o sentido natural é aparência, semblante, na medida em que revela seu fundamento ficcional. A fantasia é, então, a barreira lógica a uma suposta “verdade universal” almejada, sendo o lugar de onde o semblante que sustenta tal suposição pode ser interrogado (Lacan, 1971/2009).

Podemos situar a fantasia no terreno do real na medida em que faz furo às pretensões de realidade/naturalidade do semblante. Voltando à nossa seara, a sexualidade, fica claro desta forma que sua íntima relação com a fantasia impede que a determinemos em termos meramente científicos, lógicos e universais. O próprio Freud afirmava ser impossível definir e lhe impor um sentido unívoco (Freud, 1908/2008Freud, S. (2008). A moral sexual cultural e o nervosismo moderno. In Obras completas de Sigmund Freud (vol. 8, pp. 163-175). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1908).). Há sempre uma hiância, um furo no saber — castração — por estar a sexualidade humana bordeada pelo discurso e seus limites intrínsecos:

O comportamento sexual humano consiste numa certa manutenção desse semblante animal. A única coisa que o diferencia dele é que esse semblante seja veiculado num discurso e que é nesse discurso que ele é levado para algum efeito que não fosse semblante (...) Nos limites do discurso, na medida em que ele se esforça por fazer com que se mantenha o mesmo semblante, de vez em quando existe o real. (Lacan, 1971/2009b, p. 31Lacan, J. (2009b). O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971).)

Sendo o real o ponto que toca o inominável — o não todo, o objeto perdido da pulsão, o princípio de criação (Poli, 2014Poli, M. C. (2014). O feminino além do édipo. SIG, Revista de psicanálise, 4(6), 23-29.) — e estando referenciado a ele a práxis psicanalítica, como nos situar ante os novos semblantes, as interrogações advindas das modificações operadas na “epistemologia política dos corpos”? Dadas as novas maneiras de vivenciar o sexo e o gênero no contemporâneo, para onde aponta o desejo do psicanalista?

Eticamente advertido da insistência do real enquanto limite intransponível a qualquer articulação conceitual, o analista deve se orientar por tudo aquilo que, escapando ao semblante, força uma nova escrita. Ou, nas palavras de Preciado (2019)Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle. Grasset., “substituir a epistemologia quando esta estiver gerando mais problemas do que resolvendo” (p. 31). Talvez seja esse um bom direcionamento para uma escuta mais sensível das dissidências de gênero na clínica.

A insistência do desejo e a função da escrita

Definir o desejo do psicanalista seria uma empreitada deveras complexa, a extrapolar os limites do que pode se pretender neste artigo. Nosso objetivo será apenas tangenciá-lo a partir de suas relações com a escrita e com o real, para, por fim, situá-lo enquanto referencial para uma escuta mais sensível das dissidências de gênero.

Como vimos, o real pode ser definido enquanto limite intransponível que se impõe a qualquer trabalho do significante, ao semblante que organiza um discurso, qualquer que seja sua articulação. O real, em outros termos, é a parte da experiência que se perde, não se deixa conceitualizar, não pode ser apreendido em nenhum sentido. Nas palavras de Lacan (1975-76/2007)Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Zahar (Trabalho original publicado em 1975-76)., “o real é um caroço em torno do qual o pensamento divaga” (p. 118).

Ao mesmo tempo que o real aparece enquanto impossível, inarticulável e, portanto, impõe dificuldades lógicas a qualquer conceitualização, ele também é definido em termos de potência de criação, pois não cessa de não se escrever, é constante, insistente. Tem um valor de trauma no ponto em que, contingencialmente e por impor uma impossibilidade lógica, é capaz de forçar uma nova escrita, ampliando as possibilidades simbólicas:

O real em questão tem o valor do que chamamos geralmente de um trauma (...) Digamos que é o forçamento de uma nova escrita, dotada do que é preciso mesmo chamar, por metáfora, de um alcance simbólico, e também forçamento de um novo tipo de ideia, uma ideia que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido. (Lacan, 1975-76/2007, p. 127Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Zahar (Trabalho original publicado em 1975-76).)

Nesse sentido, o desejo na psicanálise refere-se a esse excesso, a esse umbigo da cadeia significante, às impossibilidades lógicas abordadas enquanto potência criativa. Um desejo em ato, que prioriza a via do exercício pulsional em detrimento das identificações imaginárias (Poli, 2007Poli, M. C. (2007). A medusa e o gozo. Ágora, 10(2), 279-294.) e das pretensões de natureza do semblante.

Assim, o analista aposta — tanto na clínica quanto nas produções teóricas — na potência criativa da cadeia significante a partir do ponto mesmo em que o sentido escapa a ela. Ora, a sexualidade — em sua íntima relação com a fantasia, com a pulsão, com as posições de gozo que não são correspondentes — talvez seja um campo privilegiado para um estreitamento do impossível, cerne do desejo.

Tendo em vista que o objeto do desejo é ontologicamente perdido e situa-se em relação a ele senão como causa, tudo que se possa estabelecer enquanto objeto sexual posterior a essa perda fundamental irá se impor apenas como substituto alegórico, criação, fantasia. “Uma vez tirado, o objeto a que ocupa esse lugar só deixa nele o ato sexual, a castração” (Lacan, 1971/2009b, p. 71Lacan, J. (2009b). O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971).), encenada das mais diversas maneiras.

Na trilha da história tais fantasias tomaram corpo de diferentes maneiras: o amor cortês, o casal vitoriano, a pederastia grega, o amor livre em “Maio de 68”, entre outras. Todas essas encenações do impossível — por ser o objeto perdido de antemão apenas recuperado a partir mesmo de uma relação (Lacan, 1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Zahar (Trabalho original publicado em 1975-76).) — tiveram em algum momento o aspecto de realidade última, de verdade inquestionável. Simultaneamente, todas se impuseram em algum momento como impossibilidade lógica ao status relacional vigente, o absurdo a forçar uma nova escrita:

Interrogar a dimensão da verdade em sua morada é algo que só se faz pelo escrito, na medida em que o escrito não é linguagem, mas se fabrica por sua referência a, não havendo metalinguagem possível que garanta a univocidade do sentido da lógica que ali se constitui. (Lacan, 1975-76/2007, p. 60Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Zahar (Trabalho original publicado em 1975-76).)

A escrita, nesse sentido, tem lugar privilegiado num tratamento analítico e numa elaboração teórica em psicanálise. Pois trata-se da possibilidade de uma modulação da palavra que se passa afastada da linguagem enquanto corpo simbólico, podendo bordear algum sentido antes inimaginável, possibilitar uma ação que não podia ser pensada antes. O escrito resgata a causa da escritura, ou seja, possibilita modalidades de ação, novos arranjos, novas maneiras de fracassar o reencontro do sujeito com seu objeto. Dito de outro modo, a escrita delineia novas suplências, abrindo o campo dos possíveis.

Os dissidentes de gênero propõem maneiras até então impensáveis de viver o sexo, bem como de viver o corpo e a performance nos encontros com a tecnologia. Na medida em que não há relação sexual, sendo ela a própria fala (Lacan, 1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Zahar (Trabalho original publicado em 1975-76).), por que certas relações não poderiam ser ouvidas? Por que tantas elaborações teóricas patologizantes e conclusões precipitadas quando os dissidentes escancaram o potencial criativo do impossível que tanto nos interessa?

A nosso ver, impõe-se a nosso campo a necessidade de uma escansão e de um tempo para compreender a mudança nos arranjos que está acontecendo, como veremos no tópico a seguir.

Tempo de compreender o gênero e permanecer na platéia!

Como vimos, há uma insistência do que não se escreve sobre as estruturas que se impõem como realidade — ou semblante — questionando o seu status universal e forçando novas escritas e novos trilhamentos. Porém, a dimensão insistente também se refere ao que se escreve, ao simbólico que engendra as lógicas possíveis e o status quo. Sendo o sujeito efeito de uma escansão de linguagem, ou seja, um recorte significante singular, ele não consegue se referenciar inteiramente a algum parâmetro universal que lhe sirva de argumento a seu funcionamento, restando-lhe apenas sua própria composição para tanto:

A submissão do sujeito ao significante é propriamente um círculo, na medida em que a asserção que ali se instaura, por não se fechar em nada senão na própria escansão, ou, em outras palavras, na falta de um ato em que encontre sua certeza, remete apenas à sua própria antecipação na composição do significante, em si mesma insignificante. (Lacan,1966/1998b, p. 821Lacan, J. (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).; grifos nossos)

Nesse sentido, Lacan afirma existir certo rigor coercitivo nos processos lógicos que tende sempre, por uma razão estrutural, a apenas desdobrar-se sobre si mesmo. A única maneira, segundo ele, desse processo se expandir e ser capaz de perceber as nuances e diferenças, e talvez engendrar novas possibilidades de funcionamento ao sujeito, seria a inserção de alguma escansão suspensiva (Lacan, 1966/1998bLacan, J. (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).).

Em outras palavras, num contexto de análise, cabe ao sujeito tomar certa distância de seu próprio funcionamento, permanecer suspenso, incrédulo e suportar as contingências que lhe ocorrem sem fazer apelo a seus significados habituais. Deve ele abdicar de sua asserção de certeza antecipada, para que consiga sair da tirania de seus sentidos circulares. A ferramenta para isso é a fala e a transferência.

Ao analista, por sua vez, cabe manter-se em uma posição em que tal fala possa emergir da melhor maneira possível. E isso ocorre quando ele ocupa a posição de testemunha, ou seja, desempenhando o papel de alteridade fundamental do sujeito (Outro da linguagem). Assim, a fala consegue sair da ordem do fingimento e assumir o seu lugar na ordem do significante, podendo mentir e colocando-se como verdade do sujeito (Lacan, 1966/1998b, p. 822Lacan, J. (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).).

O analista-testemunha suporta a falta de sentido e a escansão junto ao sujeito, sem fechar nenhum sentido com retóricas, interpretações e argumentações lógicas que só se referem a si mesmas. Escrutinando o impossível, ele sustenta “o olhar em seu instante, no que pode incluir todo o tempo necessário para compreender” (Lacan, 1966/1998a, p. 205Lacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In Escritos (pp. 197-213). Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).). Estamos sendo testemunhas de nossos pacientes dissidentes? Estamos permanecendo suspensos à nossa lógica analítica, tão bem estruturada, a fim de que ali possa emergir a verdade do sujeito? Quais encenações estão perdendo o status na nossa clínica?

Um outro lugar onde tais encenações ganham espaço notório é no cinema de Pedro Almodóvar. Conhecido por escrutinar a “loucura” feminina em suas várias manifestações e por representar a sexualidade humana de forma exagerada, grotesca e por vezes surrealista, Almodóvar brinca com as representações de gênero, as tragicomédias conjugais, os guetos homossexuais, o sagrado e o profano, o corpo em todas as suas contradições e cores. Talvez possamos nos servir de seu amor pela diversidade para pensarmos em uma clínica mais sensível aos dissidentes de gênero.

O aclamado filme Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1999Todo sobre mi madre (1999). Direção e roteiro: Pedro Almodóvar. Madrid: El deseo, 1999.) vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro na categoria de direção, lançou o diretor nas graças do cinema internacional.

Manuela (Cecília Roth) parte em busca do pai de seu filho após sua morte em um acidente. O pai em questão é a travesti Lola (Toni Cantó), com quem viveu um casamento anos atrás, antes de sua transição. No caminho, ela encontra ajuda com a amiga do passado, também travesti, Agrado (Antônia San Juan) e ambas acabam por trabalhar com a aclamada atriz Huma Rojo (Marisa Paredes) durante a sua temporada com a peça “Um bonde chamado desejo” de Tennessee Williams.

A antológica peça de Williams serve de ícone para os contrastes que Almodóvar tenta trabalhar no filme, entre uma sexualidade padrão e hegemônica e a sexualidade de gueto: a prostituição, as vivências travestis, as contaminações por HIV. Pois ao mesmo tempo que o filme protagoniza as sexualidades marginais, a peça encena personagens padrões do patriarcado: Stella, a mulher submissa ao marido Stanley, rude, animalesco, agressivo e hiperssexualizado. Além de Blanche Debois, irmã de Stella — a quem tensiona em sua performance —, sendo a mulher que não se encaixa, sedutora e sem lugar por não habitar o desejo matrimonial de um homem (Williams, 1947/2008Williams, T. (2008). Um bonde chamado desejo. L&PM.).

O filme e a peça são riquíssimos, sendo impossível abordá-los com a atenção que mereciam. Aqui nos deteremos a uma cena específica da personagem Amparo, bem ilustrativa para nossos argumentos.

Ao fim do filme, a atriz Huma Rojo não pode encenar a peça devido a problemas pessoais, pedindo aà Amparo que passe o recado à plateia. A personagem é uma travesti extremamente performática, defensora de suas cirurgias e de suas modificações corporais, sendo o que dá a ela lugar ao mundo. Em dado momento do filme ela afirma: “O silicone é o que eu tenho de mais real”.

As cortinas se fecham e ela comunica ao público que ali não mais será encenado o drama de Stella, Stanley e Blanche, em seus papéis de gênero prescritos pelo patriarcado, suas problemáticas específicas de sexualidade e violência. E propõe ao público dizer de sua história, seu uso do corpo, sua transição pelas cirurgias, maquiagens. A quem quisesse ouvir, ela diria de sua nova forma de viver o embaraço do sexo.

Muitos levantam e hostilizam a personagem. Não conseguem ouvi-la, pois sua performance não tinha a dignidade de uma peça de teatro, não poderia ser levada em consideração. Existem psicanalistas que também se levantariam, no momento em que o tradicional não fosse mais o terreno compartilhado, extrapolando sua capacidade de apreensão e articulação teórica.

Na contramão está o desejo, tal como proposto por Lacan. Quem está por ele atravessado deve permanecer na platéia, escandir-se de seus conhecimentos prévios e testemunhar as novas formas pelas quais a verdade do sujeito contemporâneo pode se colocar. Por vezes, o silicone é o que aquele sujeito tem de mais real. Que estejamos munidos de ética e desejo para ouvir isso.

Conclusão

A discussão é extensa e o artigo limitado, porém, a leitura e as chaves conceituais que aqui tentamos esboçar apontam para a contradição lógica que existe entre a posição ética do psicanalista e produções que se sustentam em preconceitos, patologizações e conservadorismos ao se tratar das dissidências de gênero.

Tendo em mente a natureza vacilante do semblante e as interrogações incessantes que a realidade impõe sobre ele — ou, nas palavras de Preciado, sobre esta “epistemologia política do corpo” — bem como a perda ontológica do objeto do desejo, situado senão como causa, tentamos demonstrar a função da escrita enquanto recurso para ampliação das possibilidades de suplência do impossível e do irrepresentável do sexo.

Além disso, defendemos que cabe ao analista considerar as influências da tecnologia nas possíveis configurações subjetivas engendradas pelo discurso contemporâneo e em como seria pretensioso tentar abordar o corpo ou o simbólico a partir de certa pureza substancial/conceitual.

Enfim, tentamos aqui expor e definir o desejo do analista em termos de valoração da potência criativa do impossível, no que tange à possibilidade de novas escritas, novas falas e novas escutas. Estaremos preparados para estreitar o impossível e as novas possibilidades que emanam do que ainda não podemos compreender?

Cabe ao analista-testemunha escrutinar a peça que ainda não pode bem compreender e olhar/ouvir a diversidade com a qual os sujeitos encenam a falta atinente ao campo simbólico e suas incidências em sua história. Permanecer na platéia de um teatro, ou quem sabe subir ao palco, para compor a cena que não pode ser senão a do absurdo e embarcar neste bonde chamado desejo.

Agradecimentos

Agradecemos primeiramente ao financiamento público da CAPES que proporcionou o desenvolvimento desta pesquisa, ao grupo de trabalho em pesquisa composto pelos orientandos da professora Maria Cristina Poli, à UFRJ e ao Projeto “Falatrans”. A pesquisa partiu da escuta dos pacientes dissidentes de gênero atendidos pelo projeto.

  • 1
    O artigo é fruto do trabalho de pesquisa em andamento para dissertação de mestrado de Lorena Loures, intitulado “A clínica psicanalítica e os dissidentes de gênero: do sujeito, enfim, em questão”, financiada pela CAPES (nível 5) e sob orientação da profa. dra. Maria Cristina Poli do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGTP-UFRJ).
  • 2
    Podemos definir os “dissidentes de gênero” como sendo aqueles sujeitos cujos corpos e performances não reproduzem o jogo de símbolos e os pactos sexuais tal como estão estruturados (e são impostos) pelo laço social. Ou seja, aqueles sujeitos que se propõem e experimentam uma vivência com o sexo e com o gênero que extrapola os limites cognoscíveis, políticos e estéticos vigentes. Podemos situar as transexualidades, as travestilidades, as homossexualidades, as intersexualidades, as assexualidades, enfim. Todos os sujeitos que resistem à hegemonia política do heterossexismo e do binarismo sexual/anatômico.
  • 3
    A escolha pela crítica ao artigo de Miller deve-se à relevância do autor no campo psicanalítico lacaniano. Optamos por nos debruçar sobre o seu trabalho com mais profundidade devido a isto, bem como à limitação no número de laudas plausível para um artigo. Reconhecemos a questão como um limite metodológico do trabalho e reafirmamos a necessidade de um melhor mapeamento da questão em trabalhos futuros.
  • 4
    MGTOW – “Men going their own way” (“Homens que fazem seu próprio caminho”). Grupo reacionário e antifeminista surgido em meados dos anos 2000, tendo uma origem incerta. Tem por pressuposto básico a ideia de um “suprematismo feminino” na cultura contemporânea. Propõe que os homens sigam e construam suas vidas a despeito de relacionamentos íntimos mais sérios com as mulheres, dentre outras medidas de resistência à suposta “feminização” do mundo.
  • 5
    O artigo limita-se ao trabalho com os conceitos lacanianos por uma questão de orientação teórica das autoras. Novamente reconhecemos a questão enquanto um limite metodológico e reiteramos a importância da contribuição de outros autores do campo psicanalítico, como J. Laplanche, M. Klein, S. Ferenczi e outros autores e psicanalistas da atualidade.

Referências

  • Cunha, E. (2020). Sobre macacos, cyborgs e trans: a psicanálise nos limites do humano. In J. Estona (Org.), Relações de gênero e escutas clínicas (pp.35-50). Editora Devires.
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  • Freud, S. (2010). Recordar, repetir e elaborar. In Obras completas de Sigmund Freud (vol. 10, pp. 145-158). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).
  • Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Zahar. (Trabalho original publicado em 1963-64).
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  • Lacan, J. (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma Zahar (Trabalho original publicado em 1975-76).
  • Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).
  • Lacan, J. (2009a). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60].
  • Lacan, J. (2009b). O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971).
  • Miller, J-A. (2021). Docile au trans. Lacan Quotidien, 928, 3-18.
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  • Preciado, P. (2019). Je suis le monstre qui vous parle Grasset.
  • Todo sobre mi madre (1999). Direção e roteiro: Pedro Almodóvar. Madrid: El deseo, 1999.
  • Williams, T. (2008). Um bonde chamado desejo L&PM.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2022
  • Revisado
    16 Fev 2023
  • Aceito
    04 Abr 2023
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