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Cannabis sativa: a planta que pode produzir efeitos indesejáveis e também tratá-los

EDITORIAL

Cannabis sativa: a planta que pode produzir efeitos indesejáveis e também tratá-los

"O que hoje é um paradoxo para nós, será uma verdade demonstrada para a posteridade."

Denis Diderot

Antes da Era Cristã, os chineses já faziam referência à Cannabis sativa (cannabis) afirmando que "se ingerida em excesso pode produzir visão de demônios e por longo tempo faz a pessoa comunicar-se com espíritos" (Pen Ts'ao Ching, a mais antiga farmacopéia), enquanto hoje algumas evidências sugerem que um dos componentes da planta, o canabidiol (CBD), apresenta efeitos antipsicóticos1,2. No mesmo sentido, inúmeros estudos mostram que usuários da cannabis justificam seu uso como uma forma de relaxarem, lidarem com o estresse e reduzirem a ansiedade. No entanto, o principal efeito adverso da planta é uma reação aguda e intensa de ansiedade que frequentemente lembra um ataque de pânico3. Como essa planta, que está entre as mais antigas cultivadas pelo homem, pode produzir efeitos tão antagônicos?

Esta pergunta começou a ser respondida na primeira metade dos anos 60 pelo grupo do Professor Raphael Mechoulam, com a determinação da estrutura química dos principais componentes da planta, entre eles o Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC), responsável pelos efeitos psicoativos da planta, e o CBD, o canabinoide não psicotrópico mais investigado. Hoje são conhecidos mais de 80 canabinoides, que ficam armazenados em glândulas na extremidade de pêlos secretores que recobrem as flores e folhas da planta. A disponibilidade em forma pura dos componentes da planta estimulou o interesse pelo estudo da cannabis, com o número de publicações atingindo um primeiro pico em meados dos anos 70.

Neste período, um grupo de pesquisadores brasileiros, liderados por Elisaldo Luiz de Araújo Carlini, contribuiu de forma significativa no estudo da planta, especialmente na interação entre os canabinoides, demonstrando que os efeitos da cannabis não poderiam ser explicados apenas pelos efeitos do Δ9-THC.

Num desses estudos de interação, em voluntários saudáveis, verificou-se que o CBD atenuou significantemente a ansiedade e os efeitos psicoticomiméticos produzidos por doses elevadas de Δ9-THC, sugerindo que o CBD poderia ter efeitos ansiolíticos e/ou antipsicóticos. Iniciava-se, assim, uma linha de investigação que vem sendo seguida por nosso grupo de pesquisa até hoje4 e que compõe parte do artigo "Uso terapêutico dos canabinoides em psiquiatria", publicado neste suplemento5. Os efeitos contraditórios dos canabinoides nos transtornos mentais são discutidos neste suplemento por mais dois artigos: um sobre os efeitos dos canabinoides nas psicoses e outro sobre o uso abusivo de cannabis em pacientes com transtornos mentais.

Depois do pico de publicações, nos anos 70, esse número foi decrescendo, por mais de uma década. Entretanto, no final dos anos 80 e início dos 90, o interesse pelo estudo da cannabis foi renovado com a descrição e clonagem de receptores específicos para os canabinoides no sistema nervoso e a posterior identificação de ligantes endógenos para esses receptores. Este tema é detalhado no artigo "Exploração farmacológica do sistema endocanabinoide: novas perspectivas para o tratamento de transtornos de depressão e ansiedade?"6. A partir dessas descobertas, o número de publicações sobre a cannabis tem crescido de forma notável, tendo aumentado quase dez vezes da década de 80 para a década atual (ISI Web of Science – Figura 1).


O grande volume de conhecimentos gerados por esses estudos tem contribuído para o esclarecimento de questões polêmicas relacionadas à cannabis, como seus efeitos sobre alterações cognitivas e seu potencial de produzir dependência e sintomas de abstinência. Esses temas são abordados nesse suplemento nos artigos: "Anormalidades cognitivas no uso da cannabis"7 e "Intervenções farmacológica e psicossocial para os distúrbios de uso da cannabis"8.

Estamos hoje mais próximos de conhecermos como os canabinoides exercem seus efeitos e esse conhecimento tem nos revelado o funcionamento de um sistema modulador de nossa neurotransmissão, cuja existência não se suspeitava há 20 anos. Estes avanços poderão reconciliar os achados aparentemente paradoxais obtidos com a cannabis, melhorar o nosso entendimento dos transtornos psiquiátricos e proporcionar novas possibilidades terapêuticas em psiquiatria.

Antonio Waldo Zuardi, José Alexandre S. Crippa,

Jaime E. C. Hallak

Departamento de Neurociências e Ciências do

Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,

Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

INCT Translacional em Medicina (CNPq),

Ribeirão Preto, SP, Brasil

  • 1. Zuardi AW, Crippa JA, Hallak JE, Moreira FA, Guimarães FS. Cannabidiol, a Cannabis sativa constituent, as an antipsychotic drug. Braz J Med Biol Res 2006;39(4):421-9.
  • 2. Zuardi AW. History of cannabis as a medicine: a review. Rev Bras Psiquiatr 2006;28(2):153-7.
  • 3. Crippa JA, Zuardi AW, Martín-Santos R, Bhattacharyya S, Atakan Z, McGuire P, Fusar-Poli P. Cannabis and anxiety: a critical review of the evidence. Hum Psychopharmacol 2009;24(7):515-23.
  • 4. Zuardi AW. Cannabidiol: from an inactive cannabinoid to a drug with wide spectrum of action. Rev Bras Psiquiatr 2008;30(3):271-80.
  • 5. Crippa JAS, Zuardi AW, Hallak JEC. Therapeutical use of the cannabinoids in psychiatry. Rev Bras Psiquiatr 2010;32(Suppl I):S56-66 .
  • 6. Saito VM, Wotjak CT, Moreira FA. Pharmacological exploitation of the endocannabinoid system: new perspectives for the treatment of depression and anxiety disorders? Rev Bras Psiquiatr 2010;32(Suppl I):S7-14 .
  • 7. Solowij N, Pesa N. Cognitive abnormalities and cannabis use. Rev Bras Psiquiatr 2010;32(Suppl I):S31-40 .
  • 8. Budney AJ, Vandrey RG, Stanger C. Pharmacologicaland psychosocial interventions for cannabis use disorders. Rev Bras Psiquiatr 2010;32(Suppl I): S46-55.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Maio 2010
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