COMENTÁRIOS CIENTÍFICOS
Comentários sobre o artigo: pesquisa de aloimunização após transfusão de concentrados de hemácias em um estudo prospectivo
Laércio de Melo
External Quality Control Program in Immunohematology, Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular - ABHH
Autor correspondente Autor correspondente: Laércio de Melo Programa Externo de Controle de Qualidade em Imuno-hematologia Rua dos Otonis, 296 - sl / 202-204, Santa Efigênia 30150-270, Belo Horizonte, MG, Brasil laercio@imunohematologia.com.br
A transfusão de hemácias representa a injeção intravenosa, em grande escala, de tecido não próprio e oferece uma oportunidade valiosa para estudarmos a resposta imunológica a antígenos estranhos. Pacientes que recebem transfusões de hemácias têm risco de formar aloanticorpos contra antígenos positivos nas hemácias do doador e negativos no paciente. A aloimunização é um risco clinicamente importante, mas pouco se conhece sobre os fatores que regem esse risco.
Utilizando um novo modelo matemático para avaliar a aloimunização por hemácias (modelo estocástico, que é um processo aleatório), excluindo-se os pacientes com doença falciforme, calculou-se que aproximadamente 13% dos receptores de sangue são respondedores e correm o risco de produzir aloanticorpos contra os antígenos estranhos presentes nas hemácias do doador (o risco de produzir aloanticorpos antieritrocitários não é a mesma coisa que incidência de aloanticorpos)(1, 2).
A incidência de anticorpos antieritrocitários não é insignificante e varia muito de acordo com a doença dos pacientes, história prévia de transfusões e gravidezes e as diferentes frequências dos antígenos nos pacientes em relação aos doadores na região geográfica. Estimam-se as frequências em 1 a 2% em pacientes internados em hospitais gerais, 5% ou mais em pacientes politransfundidos e mulheres multíparas e 20% ou mais em pacientes com doenças dependentes de transfusão (p. ex., anemia falciforme, talassemia, etc.)(3).
A aloimunização pode provocar doença hemolítica do feto e recém-nascido e reações hemolíticas transfusionais que podem atrasar o tratamento da doença básica, além de reter o paciente internado no hospital por maior tempo; possivelmente causa também maior morbidade após transplante de órgãos(4, 5). Títulos de anticorpos anti-eritrocitários frequentemente caem abaixo dos níveis detectáveis, permitindo que unidades de concentrado de hemácias incompatíveis sejam transfundidas com estímulo das células de memória e consequente aumento do título de anticorpos.
Com o aumento da expectativa de vida e o grande desenvolvimento tecnológico, está aumentando o número de pacientes com doenças degenerativas crônicas e o quantitativo de procedimentos cirúrgicos mais complexos que demandam maior número de transfusões de sangue e, consequentemente aumentando também a probabilidade de transfusões repetidas. Muitos anticorpos podem não ser detectados quando as transfusões seguintes forem realizadas, colocando desta forma o receptor em risco de desenvolver reações hemolíticas tardias.
Devido às consequências clínicas da aloimunização eritrocitária, vários estudos retrospectivos têm sido realizados, na tentativa de elucidar as variáveis clínicas e dos pacientes e identificar aqueles com risco aumentado de aloimunização.
Como a maioria dos estudos relacionados à aloimunização foram realizados em pacientes cronicamente transfundidos(6), Santos et al, em artigo publicado na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, realizaram estudo retrospectivo que demonstrou a importância de se valorizar também a incidência de anticorpos clinicamente significativos em pacientes que recebem transfusões ocasionais quando atendidos em situações de emergências(7). Nesta edição da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, está publicada uma original análise prospectiva - Pesquisa de aloimunização após transfusão de concentrados de hemácias em um estudo prospectivo(8) - realizada com os dados de pacientes atendidos em serviços de emergências cirúrgicas e clínicas.
Os resultados demonstraram a alta taxa de aloimunização de 10,49% (15/143) em pacientes transfundidos com concentrados de hemácias; produção de anticorpos até seis meses após; diminuição e queda total do título até 15 meses após em 60% dos indivíduos aloimunizados. Os anticorpos anti-K e os dirigidos contra antígenos do sistema Rh foram os mais frequentes; o maior título encontrado foi 1:32 (anti-K) e foi constatada evidente correlação com o número de transfusões.
Devido à alta incidência de aloanticorpos antieritrocitários de importância clínica em pacientes transfundidos em serviço de emergência clínica e cirúrgica, os autores propõem estender para todos os pacientes com cirurgias planejadas e/ou com eventos clínicos agudos que não necessitarem de transfusão de emergência a realização da fenotipagem do paciente para antígenos C, c, E, e e K, e realizar a transfusão de hemácias compatibilizando o sangue do doador para estes antígenos. O tema é controverso porque a prevenção da formação de anticorpos antieritrocitários não é possível e tampouco prática para a maioria dos pacientes, além de que muitas aloimunizações podem não causar problemas. Além disto, os serviços de hemoterapia têm baixo valor de remuneração pelos serviços prestados e enfrentam o desafio de realizar crescente aumento de exames, sem a devida contrapartida financeira, obrigando os modernos serviços a melhorar a eficiência. Neste contexto é importante salientar que se a fenotipagem for realizada rotineiramente utilizando microtécnicas automatizadas, pode haver redução de custos. No futuro o uso de plataformas automatizadas para fenotipagem/genotipagem em grande escala possibilitará aumentar significativamente a segurança transfusional (9).
A proposição dos autores foi realista e possibilitará avançar mais uma etapa na prevenção da aloimunização, considerando que atualmente é essencial a fenotipagem em mulheres em idade fértil e também em pacientes com sérios riscos de desenvolver reações hemolíticas transfusionais e naqueles que necessitam de transfusões frequentes, como pacientes com anemia falciforme.
Referências
1. Higgins JM, Sloan SR. Stochastic modeling of human RBC alloimmunization: evidence for a distinct population of immunologic responders. Blood. 2008;112(6)2546-53. Comment in: Blood. 2010;115(21):4315; author reply 4315-6; Blood. 2008;112(6):2180-1.
2. Cooling L. Mining the possibilities behind RBC alloimmunization. Blood. 2008;112(6):2180-1. Comment on: Blood. 2008;112(6):2546-53.
3. Types of transfusion complications [Internet]. Canadian Blood Service; c2009 [cited 2012 May 3]. Available from: http://www.transfusionmedicine.ca/resources/books/vein-vein/complicationsblood-transfusion/types-transfusion-complications
4. Lerut E, Van Damme B, Noizat-Pirenne F, Emonds MP, Rouger P, Vanrenterghem Y, et al. Duffy and Kidd blood group antigens: minor histocompatibility antigens involved in renal rejection? Transfusion. 2007;47(1):28-40.
5. Boyd SD, Stenard F, Lee DK, Goodnough LT, Esquivel CO, Fontaine MJ. Alloimmunization to red blood cell antigens affects clinical outcomes in liver transplant patients. Liver Transpl. 2007;13(12):1654-61. Comment in: Liver Transpl. 2007;13(12):1630-2.
6. Schonewille H, van de Watering LM, Brand A. Additional red blood cell alloantibodies after blood transfusions in a non-hematologic alloimmunized patient cohort: is it time to take precautionary measures? Transfusion. 2006;46(4):630-5.
7. Santos FW, Magalhães SM, Mota RM, Pitombeira MH. Posttransfusion red alloimmunization in patients with acute disorders and medical emergencies. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007;29(4):369-72.
8. Alves VM, Martins PR, Soares S, Araújo G, Schmidt LC, Costa SS, Langhi Júnior DM, Moraes-Souza H. Alloimmunization screening after transfusion of red blood cells in a prospective study. Rev Bras Hematol Hemoter. 2012;34(3)206-11.
9. Castilho L. [The future of red cell alloimmunization]. Rev Bras Hematol Hemoter. 2008;30(4):261-2. Portuguese.
Submissão: 11/5/2012
Aceito: 12/5/2012
Conflito de interesse: Os autores declaram não haver conflito de interesse
- 1. Higgins JM, Sloan SR. Stochastic modeling of human RBC alloimmunization: evidence for a distinct population of immunologic responders. Blood. 2008;112(6)2546-53.
- Comment in: Blood. 2010;115(21):4315; author reply 4315-6;
- Blood. 2008;112(6):2180-1.
- 2. Cooling L. Mining the possibilities behind RBC alloimmunization. Blood. 2008;112(6):2180-1.
- Comment on: Blood. 2008;112(6):2546-53.
- 3. Types of transfusion complications [Internet]. Canadian Blood Service; c2009 [cited 2012 May 3]. Available from: http://www.transfusionmedicine.ca/resources/books/vein-vein/complicationsblood-transfusion/types-transfusion-complications
- 4. Lerut E, Van Damme B, Noizat-Pirenne F, Emonds MP, Rouger P, Vanrenterghem Y, et al. Duffy and Kidd blood group antigens: minor histocompatibility antigens involved in renal rejection? Transfusion. 2007;47(1):28-40.
- 5. Boyd SD, Stenard F, Lee DK, Goodnough LT, Esquivel CO, Fontaine MJ. Alloimmunization to red blood cell antigens affects clinical outcomes in liver transplant patients. Liver Transpl. 2007;13(12):1654-61.
- Comment in: Liver Transpl. 2007;13(12):1630-2.
- 6. Schonewille H, van de Watering LM, Brand A. Additional red blood cell alloantibodies after blood transfusions in a non-hematologic alloimmunized patient cohort: is it time to take precautionary measures? Transfusion. 2006;46(4):630-5.
- 7. Santos FW, Magalhães SM, Mota RM, Pitombeira MH. Posttransfusion red alloimmunization in patients with acute disorders and medical emergencies. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007;29(4):369-72.
- 8. Alves VM, Martins PR, Soares S, Araújo G, Schmidt LC, Costa SS, Langhi Júnior DM, Moraes-Souza H. Alloimmunization screening after transfusion of red blood cells in a prospective study. Rev Bras Hematol Hemoter. 2012;34(3)206-11.
- 9. Castilho L. [The future of red cell alloimmunization]. Rev Bras Hematol Hemoter. 2008;30(4):261-2. Portuguese.
Autor correspondente:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Ago 2012 -
Data do Fascículo
2012